cacauao - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e...

20
CACAU DO AO FÁTIMA MOURA FOTOGRAFIAS · PHOTOS MÁRIO CERDEIRA FROM COCOA TO CHOCOLATE

Upload: others

Post on 28-Jun-2020

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: CACAUAO - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas

CACAUDO AO

FÁTIMA MOURA FOTOGRAFIAS · PHOTOS

MÁRIO CERDEIRA

FROM COCOA TO CHOCOLATE

Page 2: CACAUAO - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas

90 116 204 224CACAU, A ALMA DO CHOCOLATECacao, the soul of chocolate

ORIGENS DO CHOCOLATEThe origins of chocolate

O CACAU CHEGA A ÁFRICACacao reaches Africa

O CHOCOLATE DA SAUDADEThe chocolates we miss

TRABALHAR O CHOCOLATEWorking with chocolate

DA AMAZÓNIA À BAÍA, UMA VIAGEM PORTUGUESAFrom the Amazon to Bahia, a Portuguese journey

6 38

Page 3: CACAUAO - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas

2726

CACAU, A ALMA DO CHOCOLATE Cacao, the soul of chocolate

Tradicionalmente, depois de limpa, a polpa é deitada em tanques e coberta com folhas de bananeira. Com a ajuda das leveduras do ar, a temperatura começa a subir e o pH a baixar, destruindo o embrião da semente e dando início a uma série de reações, nomeadamente a eliminação de compostos adstringentes e amargos, ou a sua transfor-mação em substâncias mais adocicadas através do traba-lho das enzimas. Ao longo deste processo, as massas vão sempre sendo remexidas e mudadas de tanque. É também nesta fase que o cacau começa a ganhar a característica e lindíssima cor acastanhada do chocolate, devido à ação oxidante das enzimas sobre os polifenóis. O uso de se-mentes não fermentadas em certas áreas da América do Sul era, e continua a ser, tradicional.

Traditionally, the pulp is cleaned, thrown into tanks and covered with banana leaves. With the help of the natural yeasts in the air, the seeds briefly germinate, and the temperature begins to rise while the pH decreases, a process that ends the germination and triggers a series of chemical reactions. Astringent and bitter compounds are eliminated or transformed into sweeter substances by the work of enzymes. Throughout this process, the mass of beans is constantly being turned and changed from one tank to another. It is also at this stage, due to the polyphenol oxidase, that cocoa begins to obtain its distinctive trait, a beautiful brownish colour. In some parts of South America, the use of non-fermented seeds was, and still is, traditional.

Os tanques de fermentação forrados com folhas de bananeira.Fermentation tanks lined with banana leaves.

Polpa preparada para a fermentação.Roça de Santo António, São Tomé.Pulp in buckets, ready for fermentation.Roça de Santo António, São Tomé.

Page 4: CACAUAO - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas

3534

MisturaNesta fase, cada empresa tem uma receita própria, em que variam as proporções dos ingredientes usados. Às massas de cacau junta-se açúcar, baunilha, lecitina, um emulsio-nante, e leite em pó, no caso do chocolate de leite.

RefinaçãoDa fase anterior resultam pedaços de massa de chocolate, que, por vezes, se conglomeram. Através de um tapete, esses pedaços seguem para a refinação, de onde saem em par-tículas minúsculas (com cerca de quinze micrómetros), graças ao trabalho de gigantescos rolos de aço. Se ao entrar nesta fase o chocolate parecia querer começar a tomar uma textura reconhecível, ao sair parece ter regredido, apresen-tando-se como um fino pó, que pinta de castanho-claro os tapetes que o conduzem à fase seguinte.

MixingEach manufacturer has their own recipe, in which the proportions of the added ingredients vary. Sugar, vanilla, lecithin, emulsifier, and, for milk chocolate, powder milk, are added to the cocoa liquor.

RefiningThe mixture then goes through a serious of huge stainless-steel rollers for refining until it becomes smooth — it comes out in miniscule particles of about 15 micrometres. If, before this step, the mixture seemed to take the recognisable shape and texture of chocolate, when it comes out of the rollers it is but a very fine powder which stains the mats that take it to the next step in a light brown colour.

Conchagem. Fábrica Imperial. Conching. Imperial Factory.

Page 5: CACAUAO - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas

49

ORIGENS DO CHOCOLATE The origins of chocolate

MAIASMAYA

OLMECASOLMECS

TOLTECASTOLTECS

ASTECASAZTECS

O ouro castanho dos astecasDe todos os povos do Novo Mundo, os Astecas foram os maiores apaixonados pelo cacau, talvez por não o terem por perto, uma vez que os altos vales do centro do atual México eram demasiado frios para a sua cultura. O cacau era trazido de longe, sobretudo do sul da Guatemala, às costas dos tamemes, os carregadores treinados desde pequenos para transportar mais de vinte quilos em aci-dentados percursos superiores a vinte quilómetros, dia após dia, semana após semana, mês após mês. A coman-dar o seu comércio estavam os pochteca, uma classe de mercadores astecas endinheirados. Estas valiosas merca-dorias confluíam para a capital, Tenochtitlán, situada no local da atual Cidade do México, onde eram guardadas em enormes armazéns. No tempo de Moctezuma, chega-ram a estar armazenadas mil e duzentas toneladas de sementes de cacau.

O dinheiro que crescia nas árvoresMais que uma mercadoria de luxo, o cacau era uma força vital, «coração e sangue» do império, como lhe chamavam os astecas segundo o Codice fiorentino, de Bernardino de Sahagún. Este franciscano, que chegou à região em 1529 e cedo se tornou o maior especialista na língua local e um rigoroso etnógrafo, contou que as sementes de cacau eram vendidas separadamente em função da sua quali-dade, sendo as melhores usadas como dinheiro. Ali, o di-nheiro crescia literalmente nas árvores. Tal como as sedas chinesas ou as conchas africanas, as sementes de cacau possuíam as principais características do dinheiro: valor intrínseco, divisibilidade, boa conservação e escassez q.b. Devido ao seu tamanho, as melhores sementes serviam para a compra de pequenos produtos, mais económicos, ao contrário de outros mais valiosos, trocados por jade, penas de quetzal ou peles de jaguar. Um ovo de perua custava três sementes; um peru, cem; e um escravo, três mil. Nesta região, o cacau como moeda ainda era aceite no século XIX, servindo de pagamento a alguns trabalha-dores.

The brown gold of the AztecsOf all the people in the New World, the Aztecs were the most passionate for cacao, perhaps because it did not grow in their lands, since the high valleys of what is now central Mexico were too cold. Cacao was therefore imported from afar, mostly from the south of Guatemala, on the back of the tlamemes, porters trained from childhood to carry loads of more than 20 kilograms over hilly terrain for more than 20 kilometres, day after day, week after week, month after month. They were at the service of the pochteca, a special class of wealthy Aztec merchants. Their valuable goods were taken to the capital, Tenochtitlan, located in what is now Mexico City, where they were stored in enormous warehouses. At one point in the reign of Moctezuma, 1,200 tonnes of cacao seeds were stored here.

The money that grew on treesMore than a luxury, cacao was a vital force, the ‘heart and blood’ of the empire, as the Aztecs called it, according to Bernardino de Sahagún’s Florentine Codex. This Franciscan friar, who arrived in the region in 1529 and soon became the greatest specialist in the local native language and a meticulous ethnographer, described how the cacao seeds were sold according to their quality, with the best used as currency. In that land, money literally grew on trees. Like the Chinese silk or the African shells, cacao seeds had the main characteristics of currency: inherent value, divisibility, durability and limited supply. Due to their size, the seeds would be used to buy small, less expensive items; more highly valued items were traded for jade, quetzal feathers or jaguar skins. A turkey’s egg cost three seeds; a turkey, three thousand. Cacao was still being used as money to pay workers in this region in the 19th century.

Mapa do século XVIII com localização das civilizações da Mesoamérica.18th century map labelled with the different ancient Mesoamerican civilizations.

O Mercado de Tlatelolco (no século XVI), de Diego Rivera, Palácio Nacional do México.The Market of Tlatelolco (in the 16th century), by Diego Rivera, Palácio Nacional do México.

Page 6: CACAUAO - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas

54

ORIGENS DO CHOCOLATE The origins of chocolate

das suas missões no Paraguai, dedicava um substancial capítulo às «virtudes do cacau». Entre as várias indicações para o seu consumo estavam o conforto da mente, do estô-mago e do fígado e o alívio das cataratas e da asma. Estes padres também sabiam extrair a manteiga de cacau, que aplicavam em uso externo na pele. Os portugueses vieram a ter um importante papel no uso medicinal do cacau. A primeira receita a incluir o cacau foi do foro medicinal e apareceu no livro Chocolata Inda; Opusculum de Quali-tate et Natura Chocolatae (publicado em espanhol em 1631, na cidade de Madrid, e em latim em 1644), pela pena do médico Antonio Colmenero de Ledesma. Pela primeira vez se recomendava que o cacau fosse feito com água quente, já que na Mesoamérica parece ter sido sempre tomado frio. Contudo, o padre jesuíta José de Acosta7

refere que nesta região o cacau podia ser tomado frio, quente ou morno.No século XVIII, o especialista em história natural De Quélus afirmou que cerca de trinta gramas de chocolate seriam tão nutritivos quanto meio quilo de carne, e recomendou que, a partir de uma certa idade, os homens bebessem chocolate em vez de vinho. Servia o cacau para uso exter-no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas.

always to have been drank cold. However, the Jesuit priest José de Acosta8 mentioned in his accounts that in the New World cacao was consumed cold, hot, or warm.In the 18th century, the French naturalist and historian De Quélus stated that thirty grams of chocolate were as nutritious as 500 grams of meat, suggesting that, from a certain age, men should drink chocolate instead of wine. He prescribed cacao for external and internal usage, in elixirs, ointments, beverages and hotchpotches, sought after for their energetic and aphrodisiac effects.

Spanish passionStill in the 16th century, soon after the indifference shown by Columbus and Cortés at the time of their first encounters with cacao, the Spaniards were to fall head over heels with the new chocolate beverage — and it is still very much the case today.This love story began in the Spanish New World colonies, where, influenced by the native people, both Europeans and Creoles brought chocolate into fashion, adapting it to their taste by adding sugar, cinnamon and aniseed, and forgoing the spices used by the Maya and Aztecs. They also transformed it into a hot drink.The first documented shipment of cocoa arrived in Spain from Mexico in 1520. In some cases, cocoa was transported in the form of pressed powder, balls or bars, the latter easier to accommodate. It was in such manner that most Europeans first met cocoa.But the first official contact of the Spanish Court with the drink happened in 1544, when a large delegation of Q’eqchi people from the region of modern Guatemala visited Spain. Leading this delegation was its cacique, Don Juan Aj Pop’o Batz, later named governor of Verapaz — something quite unusual in the Spanish colonies. Aj Pop’o Batz was carried in a litter and showed a fitting majestic posture. The meeting was promoted by the Dominican friars, who organised the delegation welcomed by the then Prince Philip — later King Philip I of Portugal and II of Spain. Amongst the offerings, there were several vessels with the cocoa drink, crowned by its dazzling foam.An obsession and passion for chocolate amongst Spaniards rapidly ensued, and its consumption increased in both medicinal and culinary use, gradually adapted to local tastes.

A paixão espanholaPouco tempo depois da indiferença mostrada por Colombo e Cortés nos seus primeiros encontros com o cacau, mas ainda no século XVI, os espanhóis apaixonaram-se louca-mente pela nova bebida de chocolate, que hoje continua-mos a associar ao país nosso irmão. Esta história de amor começou nas colónias espanholas, onde, influenciados pelos povos locais, europeus e criollostransformaram o chocolate em moda, adaptando-o ao seu gosto através da adição de açúcar, canela e anis, e esquecen-do as especiarias de maias e astecas. E tomando-o quente.Em 1520, chegava a Espanha, vindo do México, o primeiro carregamento conhecido de sementes de cacau. Em al-guns casos, o cacau era transportado sob a forma de pó prensado, em bolas ou tabletes, mais fácil de acomodar. Foi com este visual que a grande maioria dos europeus conheceu o cacau. Porém, o primeiro contacto oficial da corte com esta be-bida foi em 1544, através da deslocação de uma grande delegação de índios maias q’eqchíes, da região da atual Guatemala. À frente da delegação vinha o seu cacique, Don Juan Aj Pop’o Batz, que seria nomeado governador de Verapaz, algo inédito nas colónias espanholas. Aj Pop’o Batz era transportado numa liteira e ostentava o corres-pondente porte real. Este encontro tivera a mão dos fra-des dominicanos, organizadores da delegação que foi recebida pelo então príncipe Filipe, que viria a ser Filipe I de Portugal e II de Espanha. Entre as ofertas sobressaíam, pela originalidade, vários recipientes com a inefável bebida de cacau, coroada pela espuma. A partir de então, e rapidamente, desenvolveu-se um caso de obsessão e paixão pelo chocolate entre os espanhóis, e o seu consumo foi subindo em duas vertentes, a medi-cinal e a culinária, e adaptando-se progressivamente ao gosto local.

Posídon leva o chocolate do México para a Europa, frontispício deChocolata Inda, de Antonio Colmenero de Ledesma (1644).Poseidon takes the chocolate from Mexico to Europe, frontispiece of Chocolate Inda, by Antonio Colmenero de Ledesma (1644).

Americano, com a sua chocolateira e a sua taça.American native, with his chocolatière and his goblet.

Page 7: CACAUAO - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas

8382

ORIGENS DO CHOCOLATE The origins of chocolate

O incomparável Bento da MaiaO Tratado Completo de Cozinha e de Copa é possivel-mente um dos mais abrangentes e rigorosos livros de co-zinha do princípio do século XX, época de fartura de recei-tuário. Época também do auge do cacau santomense, que ainda que alimentasse algumas fábricas nacionais, saía quase todo para o estrangeiro.Nele figura uma secção dedicada ao café, chá e chocolate, em que o autor salienta que, ao contrário dos outros dois, este último serve de alimento. Explica Bento da Maia que «o chocolate é objeto duma larga fabricação em Espanha e em França; [e que] entre nós também se fabrica, mas em pequena quantidade»33,e esclarece ainda que as pessoas confundem o bom cho-colate com o mau, achando erroneamente que aquele que faz uma bebida grossa é o melhor — quando é justa-mente o que está falsificado com a adição de farinha. Para o preparar, usa-se a chocolateira, em cobre estanha-do ou em folha-de-flandres e com um buraco no meio, por onde passa o cabo de uma batedeira à qual se dá um movimento rotatório até fazer espuma. Na secção dos doces, as receitas já surgem escritas como hoje, com a lista de ingredientes e as respetivas quantida-des à cabeça. A lista de receitas de chocolate aumentou um pouco. Algumas receitas requerem chocolate fino ou muito bom. A lista inclui as «Amêndoas cobertas com chocolate» (p. 458), os «Biscoitos de chocolate» (p. 474), os «Figos de chocolate» (p. 559), moldados na forma deste fruto com uma pasta de amêndoa a que o chocolate dá a cor de figo, os «Bombons de chocolate» (p. 512), muito di-ferentes dos atuais, consistindo numa massa de açúcar, manteiga, leite e apenas vinte gramas de chocolate, que, depois de estendida, é cortada em forma de prismas, e as «Pastilhas de chocolate» (p. 602), semelhantes aos bom-bons, mas com mais chocolate. A terminar, um «Pudim de chocolate» (p. 615), que tem a curiosidade de cozer num banho-maria coberto com brasas.

The incomparable Bento da MaiaThe cooking book Tratado Completo de Cozinha e de Copa(The Complete Treatise on Kitchen and Pantry) is possibly one of the most comprehensive and precise cookery books of the beginning of the 20th century, a plentiful time in terms of recipes. It is also the height of the cacao production in São Tomé and Príncipe, whose production was mainly exported to Europe, with only a small amount going to a few Portuguese factories. There is a section devoted to coffee, tea and chocolate, in which the author points out that the latter, unlike the others, is a source of nourishment.In the book Bento da Maia explains that ‘chocolate is produced in large scale in Spain and France; among us, it is also produced, but in small quantities’.35 He also clarifies that people mistake bad chocolate for good, assuming the chocolate that makes a thicker drink is the best, when it is only because it has been adulterated with flour. To prepare the drink, a chocolatière should be used, made of tinned copper or tinplate, with a hole in the middle, where a beater handle was inserted to be spun to raise the froth.In the confectionary section, there are recipes written as today, with the list of ingredients and their quantities at the top. The number of recipes using chocolate has increased slightly. Some of them require fine or very good quality chocolate. They are: ‘almonds coated in chocolate’ (p. 458); ‘chocolate biscuits’ (p. 474); ‘chocolate figs’ (p. 559), made in a mould with the shape of the fruit with almond paste coloured by chocolate; ‘chocolate bonbons’ (p. 512), very different from the ones we make today, made with a mixture of sugar, butter, milk and only 20 grams of chocolate, which is then shaped into prism shapes; ‘chocolate pastilles’ (p. 602), similar to bonbons but with a bit more chocolate; and ‘chocolate pudding’ (p. 615), interestingly cooked in a bain-marie covered in ashes.

Servindo chocolate e outras bebidas. Painel de azulejos do Palácio do Marquês de Pombal, em Oeiras (2.º quartel do século XVIII).

Serving chocolate and other drinks. Panel of tiles, from Palácio do Marquês de Pombal, Oeiras (2nd quarter of 18th century).

Page 8: CACAUAO - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas

DA

AMAZÓNIA À BAÍA, UMA VIAGEM PORTUGUESA

FROM THE AMAZON TO BAHIA, A PORTUGUESE JOURNEY

Page 9: CACAUAO - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas

93

Silvestre na bacia amazónicaEm estado silvestre, o cacaueiro, como a maioria das plantas tropicais, gosta de viver em comunidade, apertado no meio das outras, sejam elas grandes, gigantes ou rasteiras. Quatro mil anos antes de Cristo já os cacaueiros eram abundantes naqueles que vi-riam a ser os nossos territórios do Maranhão, nome com que foi batizada a parte por-tuguesa da bacia amazónica. Daqui se espalharam em direção ao norte e ao sul, prova-velmente pela ação dos macacos, grandes devoradores dos seus frutos. Embebidas na floresta amazónica, podiam encontrar-se mais de duas dezenas de espécies de ca-caueiros. Os índios colhiam-lhes os frutos, mas a sua fartura, e a fartura de tudo, era tal que nunca precisaram de os cultivar. A polpa, mais ou menos doce conforme a espé-cie, era consumida fresca, ou fermentada até se transformar numa bebida alcoólica, usada em celebrações. Processo antiquíssimo, a fermentação transformava as sementes de cacau do mesmo modo que das uvas se fazia o vinho; dos cereais, o pão e a cerveja; e do leite, o queijo. Depois de fermentadas e secas ao sol, estas sementes eram usadas por tupis e guaranis como estimulante e como remédio.

Wild in the Amazon basinIn the wild, the cacao tree, like most tropical trees, favours a community life, squashed amongst others, be they tall, giant or creeping. Six thousand years ago, cacao trees were already abundant in Maranhão, the region of the Amazon basin colonised by the Portuguese. From here, they spread to the north and south, probably with the help of monkeys, ravenous consumers of their fruit. Within the Amazon forest, there were more than twenty species of cacao trees, from which the indigenous people collected the pods. Their abundance was such that they never needed to cultivate the plants. The pulp, more or less sweet depending on the species, was eaten fresh or fermented into an alcoholic drink that was consumed during ceremonies. An ancient process, fermentation transforms cacao seeds in the same way grapes are made into wine, cereals into bread and beer, and milk into cheese. Once fermented and dried in the sun, the cacao seeds were used by the Tupi and Guarani people as a stimulant and a medicine.

DA AMAZÓNIA À BAÍA, UMA VIAGEM PORTUGUESA From the Amazon to Bahia, a Portuguese journey

Página 91: Mulheres guaranis civilizadas a caminho da missa de domingo,Jean-Baptiste Debret (1834-1839).Page 91: Civilised Guarani women going to church on Sunday, Jean-Baptiste Debret (1834-1839).

Chefe dos bororenos preparado para um ataque, Jean-Baptiste Debret (1834-1839).Chief of the Bororeno on the warpath, Jean-Baptiste Debret (1834-1839).

A bacia do rio Amazonas foi um dos primeiros locais onde o cacau existiu em estado silvestre. Usando os braços índios, os Jesuítas e os colonos portugueses fizeram a sua recoleção e, mais tarde, o seu cultivo, transformando-o numa das principais «drogas do sertão». No século XVII, o cacau emigrou para a Baía, onde, no início do século XIX, o seu enorme êxito acabaria por fomentar uma sociedade de profundas desigualdades económicas e sociais. Tudo isto enquanto na Europa se espalhava a loucura pelo chocolate e a demanda crescia desmesuradamente.The Amazon basin was one of the places where the cacao plant first existed in the wild. Using the natives’ manpower, the Jesuits and the Portuguese colonisers began collecting the fruit, and later started to grow it, making it one of the most important ‘spices of sertão’. In the 17th century, the cacao tree was carried to Bahia, where its enormous success would foster a society of deep social and economic disparity in the early 19th century. All the while, there was a growing passion for chocolate amongst Europe’s elite, and an ever increasing demand for cacao.

Page 10: CACAUAO - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas

104

DA AMAZÓNIA À BAÍA, UMA VIAGEM PORTUGUESA From the Amazon to Bahia, a Portuguese journey

Selva, engenhos e aimorésMalgrado estes e outros ensaios anteriores, nos finais do século XVIII o cacau esmorecia em favor da cana-de-açúcar, devido a uma subida do preço internacional do açúcar e às novas instruções da Coroa portuguesa para o recuperar. Nesta época, o sul da Baía era ainda uma imensa selva por explorar, e Ilhéus não passava de um conjunto de caba-nas ligadas por ruas cobertas de capim. O edifício mais importante da vila, o Colégio dos Jesuítas, construído em 1563 no local de uma aldeia tupi, estava então em ruínas, à espera da ser demolido para dar origem ao Palácio dos Grifos. Apenas uma minúscula faixa do litoral era ocupa-da, fazendo-se todas as ligações de pessoas e bens por barco. Um dos maiores perigos que os colonos da capitania de Ilhéus tinham de enfrentar, e o maior entrave à penetra-ção dessa imensa selva por explorar, era «a praga dos sel-vagens Aimorés, que com seus assaltos cruéis, fizeram despovoar os engenhos, e se hoje estão já de paz, ficaram os homens tão desbaratados de escravos, e mais fábrica, que se contentam em plantar mantimento para comer»43.Estes aimorés, também chamados «botocudos», que pren-diam os colonos ao litoral pelo terror, eram índios do grande grupo tapuia (não tupi), que haviam sido escorraçados do litoral pela chegada dos tupis. Espalhavam-se por uma grande zona, que incluía parte dos estados de Espírito Santo e de Minas Gerais. Eram de estatura insolitamente grande, e o seu aspeto assustador era reforçado pelo uso de grandes discos nas orelhas e nos lábios. Porém, o mais medonho era o seu regime alimentar: comiam carne hu-mana, não apenas como forma de antropofagia ritualista, mas como canibalismo, ou seja como forma de alimenta-ção. Estas tribos dificultaram a penetração do interior durante vários anos, mas acabaram por ser praticamente exterminadas, cedendo finalmente lugar à ocupação colonial e aos engenhos canavieiros.

Jungle, mills and AimorésDespite all these trials, by the end of the 18th century cacao was relegated to second place in favour of sugarcane: a rise in the global price of sugar led the Portuguese Crown to instruct the colony to start growing it again.At this time, the south of Bahia was still a vast and unexplored tropical forest, and the town of Ilhéus was nothing but a bunch of huts with streets covered by grass. The most important building of the town was the Jesuit College, built in 1563 on the site of a Tupi village, which was by then already in ruins (later to be demolished and substituted by Palácio dos Grifos). Only a small strip of land on the coast was occupied, and all the transport of people and goods was by boat.One of the most serious dangers that the colonisers in Ilhéus endured (and the biggest obstacle to the exploitation of the forest) was the ‘plague of the savages Aimorés, who with their cruel attacks scared people away from the sugar mills, and even if today they are of peace, the men were left without slaves, nor factories, and are happy only to plant food to eat’.45

These Aimorés, also called Botocudos, restricted the colonisers to the coast by terrorising them. They were indigenous people of the group Tapia (not Tupi) who had been chased away from the coastal areas by the Tupi. They occupied a wide area that included part of the states of Espírito Santo and Minas Gerais. They were unusually tall, and their frightening look was enhanced by wooden discs worn in the bottom lip and ear lobes. But their most conspicuous feature was their diet: human flesh. It was not just a ritual, but proper cannibalism, as it was part of their food regime. These tribes made it difficult for the settlers to explore the hinterland for many years, until they were virtually exterminated, enabling occupation by the colonisers and the exploitation of sugarcane.

Pequeno Moinho de Açúcar Portátil,Jean-Baptiste Debret (1834-1839).Small Sugarcane Mill,Jean-Baptiste Debret (1834-1839).

Botocudos, Puris, Pataxós e Machacalis. Alguns índios botocudos eram acusados de antropofagia. Aqui são visíveis um crocodilo (no espeto), um tatu e uma ave (no chão). Jean-Baptiste Debret (1834-1839).Botocudos, Puris, Pataxós and Machacalis. Some of theBotocudo tribes were accused of cannibalism. In this picture we can see a crocodile (on the spit), an armadillo and a bird (on the floor). Jean-Baptiste Debret (1834-1839).

105

Page 11: CACAUAO - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas

119118

Discovery and first waves of colonisersCacao was no different to other products originally from Africa or America in that its cultivation was tested in other territories controlled by the colonising countries. Like most of those products, the first experimental location for Portuguese cacao was Madeira island, due to its versatile climate and closeness to the motherland.The Portuguese monarchs regularly sent emissaries to map new territories and record everything that was new and aroused scientific or economic interest. Because these men needed to be good at drawing — the only way to register the look of things then — architects were often included in these missions. As architects did not abound in Portugal, they were sourced abroad, recruited by friars and ambassadors. One of those architect-emissaries chosen by King D. José was Giuseppe Landi. Upon his arrival in Brazil, he chose a few native exotic plants to experiment with in Madeira. One of them was the cacao tree, whose cultivation away from its equatorial habitats proved unsuccessful. However, the archipelago of São Tomé would become, in the 19th century, the first place in Africa to grow Theobroma cacao, and make Portugal its largest exporter in the 20th century — so successful was its cultivation there.

O CACAU CHEGA A ÁFRICA Cacao reaches Africa

Descoberta e primeiras vagas de colonizaçãoO cacau em nada foi diferente dos inúmeros produtos das colónias africanas ou ameri-canas, cujo cultivo, mais cedo ou mais tarde, foi experimentado noutros territórios dos diversos países colonizadores. Tal como para a maioria deles, o nosso primeiro tubo de ensaio para o cacau foi a ilha da Madeira, de clima polivalente e perto de «casa». Os nossos reis enviavam regularmente emissários para mapear os novos territórios e registar tudo quanto era novo e despertava interesse científico ou económico. Como estes homens deveriam ser dotados de habilidade para o desenho, a única forma de re-produção existente, os arquitetos tornavam-se apetecíveis para estas missões. Na falta destes em Portugal, iam buscar-se ao estrangeiro, recrutados por frades ou embaixa-dores. Um desses arquitetos-emissários reais enviados ao Brasil foi Giuseppe Landi. Ali chegado no reinado de D. José, escolheu algumas das exóticas plantas brasileiras para experimentar a sua viabilidade na Madeira. Uma delas era o cacau, que não provou dar-se bem longe dos habitats equatoriais. Viria a ser o arquipélago de São Tomé a tornar-se, no século XIX, o primeiro local de África a receber o Theobroma cacao, cujo êxito retumbante faria de Portugal o seu maior exportador no início do século XX.

Depois do sucesso do cacau brasileiro, as ilhas de São Tomé e Príncipe fizeram de Portugal o maior exportador mundial no princípio do século XX, através de um cacau de elevada qualidade. Foi uma das maiores fontes de riqueza do arquipélago entre meados do século XIX e princípios do século XX. A história desta época de ouro é delineada neste capítulo também através das Roças de Água-Izé e de Porto Alegre, que nos podem ajudar a perceber por que razão este fruto está atualmente a tornar-se uma riqueza e um atrativo turístico nas duas ilhas. Nunca chegou a fazer parte da cozinha local e ainda hoje não é usado ou apreciado pela população, que se limita a colher e a vender as cabossas de certas árvores, sobreviventes das antigas roças e visíveis à beira da estrada. O êxito do cacau santomense, hoje o Amelonado e o Catongo, está ligado aos novos roceiros e produtores, como Claudio Corallo, com os seus chocolates de excelência, ou Francisca Monteiro, cuja Roça Santo António abastece a chocolataria artesanal Equador.After the success of cacao in Brazil, the islands of São Tomé and Príncipe made Portugal the largest world exporter in the early 20th century, and with a high-quality cacao. It was a major source of wealth for the archipelago between the mid-19th century and the beginning of the 20th. The history of this golden age is the subject of this chapter — also told through the story of Roças Água-Izé and Porto Alegre — which may help us understand why this fruit is currently becoming a synonym of wealth and touristic appeal on the two islands. Cocoa was never adopted by the local gastronomy and it is still not consumed or enjoyed by the majority of the population, who at most will pick and sell the pods from a few surviving trees of old plantations on the verge of the roads.The current success of the cacao of São Tomé (today only the varieties Amenolado and Catongo) is linked to the new plantation owners (roceiros) and producers, like Claudio Corallo, with his excellent chocolates, and Francisca Monteiro, whose Roça Santo António supplies the Portuguese artisan chocolatier Equador.

Vendedora no mercado de São Tomé. Stallholder at São Tomé market.

Page 12: CACAUAO - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas

123

O CACAU CHEGA A ÁFRICA Cacao reaches Africa

Cão Grande.

Piroga e ilhéu das Rolas. Pirogue, with the Islet of Rolas in the background.

O seu descobrimento, que terá rondado o ano de 1470, foi obra de Pero Escobar, João de Santarém e João de Paiva. Nessa altura as ilhas «eram todas elas uns bosques espa-dissimos, com árvores viçosas, e tam grandes que pare-ciam tocar o céu»52, diz Piloto, que viveu na primeira me-tade do século XVI. No seu conjunto, as duas ilhas medem mil quilómetros quadrados e têm hoje pouco menos de duzentos mil habitantes. A sua origem vulcânica trans-formou-as «numa convulsão orográfica» e «numa revolu-ção altimétrica»53, e enriqueceu-lhes o solo, sobre o qual o clima equatorial fez brotar uma paisagem de vegetação luxuriante. No sul da ilha de São Tomé dificilmente se vislumbra um pedaço de terra, de tal forma os tons de verde-escuro invadem toda a paisagem. Ali, os portugueses encontraram árvores endógenas: o em-bondeiro, o inhame, muitos dendezeiros, e os gigantescos ocás, de cujos troncos ainda hoje se escavam as pirogas.

The islands were discovered around 1470 by Pero Escobar, João de Santarém and João de Paiva. At the time they ‘were all no more than vast woods with thriving trees, so tall that they seemed to touch the sky’52 (said a man called Piloto in the early 16th century). The islands occupy 1,000 square metres and are inhabited today by less than 2,000 people. Their volcanic beginnings have made them an ‘orographic convulsion’ and an ‘altimetric revolution’,53 with a rich soil from which the equatorial climate shoots up a luxuriant flora. On the south of the São Tomé island it is difficult to spot a piece of visible soil, so dense are the shades of dark green that fill the landscape.The Portuguese found many indigenous trees there: the baobab, the yam, the African oil palm and the giant ocátrees, whose trunks are still to this day dug out to make canoes.

Page 13: CACAUAO - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas

129128

O CACAU CHEGA A ÁFRICA Cacao reaches Africa

No início do século XVI, a sociedade santomense era cons-tituída por europeus (degredados, homens livres atraídos pelas terras baratas ou exercendo cargos públicos, comer-ciantes estrangeiros à procura de negócios com a costa africana), negros (escravos das plantações e escravos do-mésticos, mas também homens livres oriundos da costa africana e que praticavam o comércio) e forros (em geral, mestiços já nascidos no arquipélago) — designação que remete para as cartas de alforria concedidas em 1515 pelo rei D. Manuel às escravas que se tornaram mulheres dos primeiros europeus e aos respetivos filhos e, em 1517, aos escravos chegados com a primeira vaga de colonização. De entre estes últimos, refira-se o João Menino, um negro que veio a tornar-se um homem riquíssimo. Estas vagas migratórias irão acentuar o domínio crioulo/mestiço da sociedade santomense, através do fortalecimento pro-gressivo da classe dos forros, que, devido à escassez de europeus, irão ocupar grande parte dos cargos públicos.

A cana-de-açúcar, primeira monoculturaO primeiro grande ciclo agrícola foi o canavieiro, iniciado nos fins do século XV com a cana-de-açúcar trazida da Ma-deira e o saber de alguns mestres madeirenses. Senhores de engenho, havia-os portugueses, espanhóis, italianos e flamengos. Entre as boas condições para o seu êxito esti-veram a abundância de madeiras, para combustível; de cursos de água, para a rega da planta; e de escravatura negra, trazida da vizinha costa da Mina, para o abrasador trabalho. Estes «doces infernos», expressivo nome de ba-tismo dado pelo padre António Vieira55 aos engenhos, obrigavam os escravos a um trabalho fisicamente muito exigente e em duríssimas condições. Durante o ciclo canavieiro, a necessidade de braços para o trabalho das plantações reduziu substancialmente o nú-mero de escravos dedicados às tarefas domésticas, sem-pre escassos neste arquipélago, ao contrário do que acon-tecia no Brasil. Apenas existiram nas casas mais ricas, onde serviam os meninos a partir dos sete anos, ainda sem préstimo no trabalho agrícola. Tudo faziam: desde abanar a pancá, uma estrutura retangular que fazia as ve-zes de ventoinha, na sala ou na casa de jantar, até serem «brinquedos» dos filhos dos roceiros, passando pela tarefa de mensageiros no interior da roça.

In the early 16th century the islands’ population was composed of Europeans (convicts, free men attracted to the cheap land or working in the public services, and foreign merchants looking for business with Africa), Africans (farming slaves, domestic slaves, and free men who were traders from the coast of Africa) and forros (free people of African descent born on the archipelago). The word ‘forro’ comes from the Portuguese carta de alforria, the writs of emancipation given by King D. Manuel in 1515 to the slave women who became the wives of the first Europeans and to their children; and in 1517 to the slaves who arrived with the first settlers. Noteworthy amongst these first forros is João Menino, an African man who would become immensely wealthy. These waves of migration accentuated the mixed-raced characteristic of the society in São Tomé and Príncipe and the strengthening of the social group of forros who, in the absence of Europeans, will soon gain prominence in public positions.

Sugarcane, the first monocultureThe first relevant agricultural wave was the sugarcane, which began in the early 15th century when the crop and its know-how was brought from Madeira by farmers. The masters of these plantations (engenhos) were Portuguese, Spanish, Italian and Flemish. Several factors made it a success: plenty of wood for fuel, water and African slaves, brought from Elmina, to perform the searing work. Father António Vieira55 poignantly named the engenhos ‘sweet hells’, where the enslaved people were forced to perform extremely demanding physical work in very tough conditions.During the age of the sugarcane, the need for physical labour on the plantations substantially reduced the number of slaves dedicated to domestic tasks (unlike Brazil). In São Tomé the slaves dedicated to domestic work existed only in the wealthier households, where boys as little as seven years old, too small for farm work, served the families in the houses. They did everything, from swinging the punkah — a large screen-like fan hanging from the ceiling in sitting and dining rooms — to being ‘toys’ for the children of the roceiros, to being used as messengers within the plantation.

Mercado municipal de São Tomé.The market of São Tomé.

Page 14: CACAUAO - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas

179

O CACAU CHEGA A ÁFRICA Cacao reaches Africa

Todas as instalações da roça estão situadas ao nível do mar, subindo-se um pouco para as habitações do feitor e dos administrativos. A única exceção é o hospital, hoje trans-formado em igreja. Integrada na roça, existia uma aldeia piscatória que fornecia parte do peixe seco para a alimen-tação do pessoal. A situação isolada de Porto Alegre, no extremo da ilha, obrigava à autossuficiência, ainda em maior grau do que nas outras roças, uma vez que o acesso se fazia quase exclusivamente por barco, usando-se no tempo do visconde uma embarcação a vapor, o Malanza.As principais produções — cacau, copra, coconote e óleo de palma — destinavam-se tanto a consumo próprio como à exportação. A área de cacauzal chegou a ter 359 hectares, rivalizando com o imenso coqueiral para produção de óleo de coco, muito usado na iluminação pública e privada. À casa principal, que na década de 1950 recebeu dois tor-reões laterais, conduzia uma alameda bordejada por co-queiros. De um dos lados desta alameda situava-se o ter-reiro. Oficinas, secadores, com a sua gigantesca chaminé ainda hoje altaneira, e armazéns concentravam-se em local adjacente. Mais abaixo, junto ao pontão, continuam a ver--se dois pequenos armazéns, que davam saída aos produ-tos que viajavam por barco. Foi o cacau que enriqueceu o visconde. Será a baixa do seu preço e o aumento do custo da mão-de-obra, entre 1901 e 1905, que o obrigará a vender a Porto Alegre à empresa belga do capitalista Henry Burnay.

All the farm buildings are at sea level, while the residences of the farm managers and the administrative buildings are further up the hill. The old hospital, now a church, is at sea level too. Within the plantation, there was a fishing village, which supplied part of the dried fish that fed the staff. Its isolation, at one extreme end of the island entailed its self-sufficiency, even more than in other roças, as access to the plantation was almost exclusively by sea — a steam boat also named Malanza. The main produce — cacao, copra, palm kernel oil and palm oil — were meant for both export and domestic consumption. The cacao plantation area was at one time 359 hectares, rivalling the immense coconut plantation, from which coconut oil (or copra oil) was produced, much used in public and private lighting.An avenue lined with coconut trees lead to the man house, to which two turrets were added on each side in 1950. On one side of the avenue was a big yard. The workshops, the drying house (its enormous chimney still towers over the other buildings) and the warehouses were just off the yard. Further down, by the jetty, you can still see two small warehouses, where the goods were expedited to be shipped.It was cacao that enriched the Viscount. The decrease of its price and the increase of the cost of labour between 1901 and 1905 would force him to sell Porto Alegre to the Portuguese-Belgian venture partly owned by Henry Burnay.

O secador da Roça Porto Alegre, com a sua enorme chaminé, na década de 1960 e em 2017.Roça Porto Alegre: the drying machine with its enormous chimney, in the 1960s and in 2017.

Roça Porto Alegre: porto de pesca. Roça Porto Alegre: fishing port.

Roça Porto Alegre: secadores, década de 1960.Roça Porto Alegre: drying machines, 1960s.

Page 15: CACAUAO - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas

191190

O CACAU CHEGA A ÁFRICA Cacao reaches Africa

Com a ajuda das novas técnicas

«Uma linha de caminho-de-ferro percorre a propriedade em todas as direções, sobre a qual rola um comboio devidamente

atilado e transporta os produtos à sede, além do elevado número de vagonetas que torneia os montes e despenhadeiros onde

aquele não pode chegar.»105

Ao viajarmos pela única estrada que nos conduz para sul na ilha de São Tomé, avistámos repentinamente, por en-tre a vegetação, um antigo secador de roça. Parámos ime-diatamente o jipe, mesmo em frente a uma casa onde duas mulheres estão à varanda, apanhando um pouco de ar menos quente e mirando tudo o que mexe. Assim que me vê aproximar, a mais velha chama-me. Trata-se de dona Felícia, que com a sua filha, Maria Pedro, ali vive há muitos e muitos anos. Não faz ideia de quantos. Interrogada sobre a sua idade, diz-me ter «60-70 anos». A sua casa é mesmo ao lado do secador de cacau da antiga Roça Coló-nia Açoriana, que se lembra bem de ver em pleno funcio-namento. Nem foi preciso perguntar-lhe nada. De rajada, contou-me em detalhe as visitas da família que adminis-trava a roça, sem esquecer os nomes das crianças. Faz ques-tão de guiar-nos na visita ao antigo secador, onde já difi-cilmente conseguimos fazer a reconstituição do processo. O teto colapsou e, a céu aberto, a vegetação cresceu e in-vadiu todo o espaço, incluindo os antigos conjuntos de tabuleiros que deslizavam pelos carris do edifício. Cá fora, deparamos com a velha caldeira, ainda bem identificável. O combustível consistiria provavelmente em cascas de coco e alguma lenha. Os secadores vieram substituir um moroso processo de se-cagem manual do cacau, em que as sementes eram postas a secar em grandes tabuleiros no terreiro, sendo preciso tapá-los ou retirá-los para coberto, para evitar humidade ou chuva. Em conjunto com o caminho-de-ferro e alguma maquinaria para as oficinas e armazéns, constituíram preciosas novas ajudas técnicas, que foram ficando aces-síveis com a Revolução Industrial. Os portugueses com-pravam-nos aos ingleses e aos alemães, que, por sua vez, nos compravam o cacau e nos revendiam o chocolate. Revelaram-se extremamente úteis numa região como São Tomé, em que a mão-de-obra escasseava e encarecia cada vez mais.

The help of new technology

‘A railway line crosses the property in all directions, over which runs a train with its carriages, carrying the produce to the headquarters,

and a big number of wagons go around the hills and slopes where the train cannot go.’105

On a visit to the island of São Tomé, travelling by car on the only existing road that reaches the south, we suddenly catch a glimpse of an old cocoa-drying machine amongst the vegetation. We pull up, right by a house with a terrace, where two women watch the day go by in the cool breeze. As I am approaching them, one of them calls out. Her name is D. Felícia, who has lived in that house with her daughter, Maria Pedro, for many years. She does not quite know how many. When I ask her about her age, she replies ‘sixty or seventy’. Her house is just beside the drying machine of the old Roça Colónia Açoriana, and she clearly remembers when it worked. There is no need to ask her questions: in a burst, she tells us in detail about the family who used to manage the roça, not foregoing the names of all the children. She insists on guiding us on a tour to the old drying machine. It is now very difficult to imagine the whole process: the ceiling has collapsed, the thicket has grown and invaded all the space, including the old wheeled trays that used to slide on rails. Outside we see the old boiler, still quite recognisable. It was probably fuelled by coconut shells and wood.The machine dryers replaced the slow process of manually drying the cocoa, by which the seeds were dried in huge trays out on the yard, needing to be covered or moved indoors to avoid dampness or rain. The railway and some other machinery for the workshops and warehouses brought to the roças precious innovative technology, made accessible by the Industrial Revolution. The Portuguese roceiros bought them from the British and the Germans, who, in turn, bought the cocoa to make the chocolate they would later sell back to Portugal. These machines were extremely useful in a region like São Tomé, where the labour force was scarce and increasingly more expensive.

Dona Felícia com a filha, Maria Pedro.D. Felícia with her daughter, Maria Pedro.

Page 16: CACAUAO - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas

207

Ícones em chocolateAo chocolate está ligado um imenso capital emocional e social, cujo papel não é ape-nas percetível nos países simultaneamente produtores e consumidores da América do Sul, como é o caso do México. Neste país, parcialmente situado na antiga Mesoamérica, mantêm-se ainda diversas tradições pré-colombianas, como a do Dia dos Mortos, que entrelaça catolicismo com as antigas religiões maias, sendo esta data comemorada com máscaras, caixões e caveiras de chocolate. Nos países da região, o chocolate nunca saiu da vida quotidiana. Os mexicanos continuam a comprar as cabossas de cacau no mercado e a percorrer todo o processo de preparação do chocolate. Nos países meramente consumidores, como o nosso, o chocolate também se estabe-leceu como fator de socialização, ligado a atividades transversais a todas as classes sociais. Natal e Páscoa, as duas principais festas cristãs, têm a sua simbologia recupe-rada do paganismo, intimamente associado ao chocolate. Coelhinhos, ovos e galinhas de chocolate — símbolos da vida, da fecundidade e da renovação da primavera — sur-gem na Páscoa em todos os países europeus e para todas as idades e estatutos sociais.

Chocolate iconsChocolate has an important social and emotional significance, which plays a perceivable role not only in the countries of Central and South America which are both producers and consumers, like Mexico. In this country, which is partly located in the ancient Mesoamerica, there are pre-Columbian traditions still being followed today, of which the Day of the Dead is an example, entwining Catholicism with the old Mayan religions, celebrated with masks, coffins and skulls made of chocolate. In all the countries of that region, chocolate has never left the daily life of the people. To this day, Mexicans still buy cacao pods in the market and prepare chocolate themselves, performing all the phases of the process at home.In consumer-only countries, like Portugal, chocolate has always played a social role, linked to activities across all social layers. The symbology of Christmas and Easter, the two main Christian feasts, is borrowed from paganism and is closely associated to chocolate. Chocolate bunnies, eggs and chicks — symbols of life, fertility and renewal in Spring — appear at Easter in all European countries, for people of all ages and social classes.

O CHOCOLATE DA SAUDADEThe chocolates we miss

Page 17: CACAUAO - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas

TRABALHAR O

CHOCOLATEWORKING WITH CHOCOLATE

Page 18: CACAUAO - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas

235

Uma das melhores receitas de bolo de chocolate de cortar à fatia que conheço — fazia parte do caderno de receitas da minha mãe. Nas casas burguesas, era costume haver sempre um bolo para o lanche da criançada. Meia receita faz um bolo pequeno, mas que rende bastante. Para a re-ceita completa, use uma forma grande.

12 fatias grandes

250 g de manteiga sem sal250 g de açúcar6 ovos, gemas e claras separadas250 g de chocolate, derretido ou raspado250 g de farinha para bolos com fermento1 dl de vinho do porto

1. Pré-aquecer o forno a 180ºC. Com a batedeira elétrica, bater a manteiga em creme. Juntar o açúcar, as gemas e o chocolate derretido ou raspado. Com a colher de pau, misturar a farinha peneirada e o vinho do porto. 2. Bater as claras em castelo e, com cuidado, envolver na massa do bolo. 3. Untar uma forma grande de buraco e enfarinhar. Deitar a massa e levar ao forno durante cerca de 30 minutos. Deixar arrefecer ligeiramente e desenformar.

This is one of the best recipes for a chocolate cake I have ever come across. It was in my mother’s recipe notebook. In middle class households there was always a chocolate cake for the children’s tea. Cutting these quantities by half will produce a small cake that goes a long way. For the whole quantities, use a big cake tin.

Makes 12 big slices

250 g unsalted butter250 g sugar6 eggs, yolks and whites separated250 g chocolate, melted or grated250 g self-raising flour, sieved100 ml Port wine

1. Preheat the oven to 180ºC. Using a hand blender, beat the butter into a cream. Add the sugar, yolks and chocolate. With a wooden spoon, mix the flour and the Port wine in.2. Whisk the whites into firm peaks and slowly fold them into the mixture.3. Butter a ring cake pan and dust flour over it. Pour in the mixture and bake in the oven for 30 minutes. Leave to cool down slightly before unmoulding.

Bolo de chocolate para o lancheChocolate cake for tea

O CHOCOLATE EM CASAChocolate at home

Page 19: CACAUAO - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas

240

TRABALHAR O CHOCOLATE Working with chocolate

Foram importados dos EUA, tendo-se popularizado no início do século XXI, antes do aparecimento dos cupcakes.Foram ficando por cá, e têm os seus admiradores. À massa, podem acrescentar-se diversos tipos de frutos secos, chips de chocolate preto, de cholate branco, de manteiga de amendoim…, enfim, tudo o que combinar bem com chocolate. O segredo é não os deixar cozer demais, para que fiquem húmidos no interior.

15 a 18 brownies

120 g de chocolate175 g de manteiga4 ovos L150 g de açúcar mascavado50 g de farinha de trigo50 g de farinha de amêndoa (amêndoa triturada)50 g de nozes, em pedacinhos50 g de chips de chocolate preto50 g de chips de chocolate branco

1. Pré-aquecer o forno a 180ºC. Derreter o chocolate no mi-cro-ondas, ou em banho-maria, e deixar arrefecer. Juntar a manteiga e deixar derreter, mexendo de vez em quando.2. Bater os ovos com o açúcar na batedeira elétrica até se obter uma massa esbranquiçada. Juntar a mistura do chocolate e bater. 3. Adicionar a farinha e a amêndoa e voltar a bater ligeira-mente. Por fim, juntar as nozes e os chips de chocolate e mexer para envolver.4. Deitar a massa num tabuleiro retangular com 30 cm × 20 cm, untado, para obter brownies com cerca de 2 cm de altura, ou num tabuleiro quadrado com 20 cm de lado, untado, para brownies mais altos.5. Levar ao forno durante cerca de 15 minutos, verificando a cozedura a partir dos 12 minutos, com um palito. Retirar en-quanto o palito sair ainda húmido, para evitar que sequem. 6. Podem ser cobertos com chocolate derretido ou polvi-lhados com açúcar em pó ou com cacau em pó.

Imported from the United States, these became very popular in Portugal at the beginning of this century, before cupcakes became the trend. Brownies, however, are here to stay and have a lot of fans. You can add different types of dried fruit, dark and white chocolate chips or peanut butter — whatever goes with chocolate. The secret is not to let them bake too much so they stay moist inside.

Makes 15 to 18 brownies

120 g chocolate175 g butter4 large eggs150 g muscovado sugar50 g flour50 g ground almonds50 g walnuts, chopped in little pieces50 g dark chocolate chips50 g white chocolate chips

1. Preheat the oven to 180ºC. Melt the chocolate in the microwave or a bain-marie and let it cool down. Add the butter, leave it to melt, stirring occasionally.2. Beat the eggs with the sugar in a freestanding mixer until it is whitish and light. Add the chocolate mixture and combine.3. Add the flour and almonds and mix it in slightly. Finally, add the walnuts and the chocolate chips and fold them in. 4. Pour the mixture into a buttered 30 × 20 cm rectangular tray for 2 cm high brownies, or a 20 cm square tray for slightly higher brownies.5. Bake for about 15 minutes but check them12 minutes in with a cocktail stick. Don’t overbake them — take them out when the stick is still wet.6. You can cover them with melted chocolate, or dust them with icing sugar or cocoa pow der.

BrowniesBrownies

O CHOCOLATE EM CASAChocolate at home

Page 20: CACAUAO - filatelista-tematico-blog.net · no e interno, nos habituais elixires, pomadas, bebidas e mistelas, sendo procurado pelas suas propriedades ener-géticas e até afrodisíacas

Fotografias/Photos Mário Cerdeira

DO CACAU AO CHOCOLATE FROM COCOA TO CHOCOLATEINGREDIENTES: Cacau, a alma do chocolate; Origens do chocolate; Da Amazónia à Baía, uma viagem portuguesa; O cacau chega a África; O chocolate da saudade; Trabalhar o chocolate.INGREDIENTS: Cacao, the soul of chocolate; The origins of chocolate; From the Amazon to Bahia, a Portuguese journey; Cacao reaches Africa; The chocolates we miss; Working with chocolate.

Fátima Moura