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    José Celso Martinez Corrêa:entre efeitos de sentidos e condições de produção

    JOSÉ GUSTAVO BONONI* 

    Resumo

    Este artigo tem a pretensão de conjugar os preceitos acerca da metodologia eda epistemologia da Análise de Discurso francesa trabalhando um discursodo dramaturgo José Celso Martinez Corrêa fundador do grupo TeatroOficina  de São Paulo publicado no ano de 1972. Este artigo pretendecontribuir com os estudos relacionados à historia e historiografia do teatro

     brasileiro.

    Palavras-chave: Teatro Oficina; Teatro; Análise do Discurso; Brecht.

    Abstract

    This article purports to combine the precepts about the theory andepistemology of Discourse Analysis working on a speech by French

     playwright José Celso Martinez Corrêa founder of Theatre Workshop of SãoPaulo published this speech in 1972. This article aims to contribute to studiesrelated to history and historiography of Brazilian theater.

    Key words: Teatro Oficina; Theatre; Discourse Analysis; Brecht.

    *

      JOSÉ GUSTAVO BONONI é mestrando do Programa de Pós-Graduação em História daUniversidade Federal do Paraná - UFPR e bolsista pelo programa CAPES/REUNI. 

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    José Celso Martinez Corrêa. 1968. Fundo Teatro Oficina, pasta 34, Arquivo EdgardLeuenroth/UNICAMP.

    O discurso: enunciador eenunciatários

    José Celso Martinez Corrêa é o nome deum sujeito, dramaturgo, diretor, ator e

    fundador do grupo teatral TeatroOficina  (instituição teatral fundada em1958 em São Paulo) – indivíduo que sefez referência nas artes cênicas doBrasil da segunda metade do século XXaté os dias atuais. Nasceu emAraraquara-SP, em 30 de março de1937 e se dirigiu para São Paulo-SP, nadécada de 1950 para fazer faculdade deDireito na Universidade de São Paulo(USP). Foi no Clube acadêmico desta

    faculdade (XI de Agosto) que José

    Celso fundou o grupo Teatro Oficina,grupo este que também se tornariareferência para o teatro nacional nadécada de 1960, devido à repercussãodas críticas teatrais nacionais e

    internacionais. Mas, foi a partir de1967, com a encenação de O Rei daVela  de Oswald de Andrade, sobdireção de José Celso, que o TeatroOficina ganhou maior notoriedade e seconsagrou na crítica teatral,encabeçando o antropofagismo deOswald de Andrade na cultura teatral nadécada de 1960 e configurando o grupocomo uma das principais instituiçõesteatrais do país.

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    Com isso, pode-se perceber José CelsoMartinez Corrêa, enunciador dodiscurso aqui em questão, como umsujeito “autorizado” – usando de uma

    terminologia de Pierre Bourdieu (1996) –, a pronunciar tal discurso reflexivosobre o teatro, para seus pares, devido

     principalmente a sua posição naquelemomento enquanto dramaturgo e

     produtor cultural, além de ter por trásuma instituição consagrada para o meioem que José Celso pretendia atingirdiretamente.

    O porta-voz autorizado consegueagir com palavras em relação aoutros agentes e, por meio de seutrabalho, agir sobre as própriascoisas, na medida em que sua falaconcentra o capital simbólicoacumulado pelo grupo que lheconferiu o mandato e do qual ele é,

     por assim dizer, o procurador(BOURDIEU, 1996, p. 89).

    José Celso como “procurador” dacomunidade das artes cênicas do Brasiltinha como enunciatários, além dosespectadores do espetáculo “Ocasamento do pequeno burguês” deBrecht (e a de se atentar, apesar dadificuldade de análise da recepção dodiscurso pela história, que poderia seruma platéia que buscava algo peculiarde uma cultura política de esquerda,

     partindo do pressuposto que Brecht emsuas poesias estaria como sugerido porHannah Arendt (1987), a serviço da

    doutrina da ideologia comunista), quereceberam o encarte no ato doespetáculo, os artistas cênicos, osdiretores teatrais, os produtoresculturais e de forma indireta, também osagentes repressivos do governo do

     presidente ditador Costa e Silva.Analisemos então o discurso:

    1 O teatro velho, passivo doTBC já acabou. Êle já foi engolidoe vomitado. Já se foi aquêle tempo

    em que dirigir uma peça era manter

    o equilíbrio dos atos, iluminardireitinho, fazer o ator falarempostado; dar ritmo aquí e alí, poralguns cenários pesados decompensado e pronto. Hoje, o quevemos é a fase do teatro comoexpressão artística, livre, tentandocaptar os sintomas, a sensibilidade eos sinais de uma nova cultura. Oteatro deixou de ser artesanal, comoera a cafonice aristocratizante doTBC – veículo de expressão e

     badalação pequeno-burguêsa – parase tornar um instrumentoverdadeiro de tudo o que se passa,confusamente no terceiro mundo.

    2 Tudo no teatro, hoje,conclama o indivíduo a criar sua

     própria história, a se rebelar contratodos os condicionamentos. Já sefoi o tempo em que teatro festivoconscientizava o espectador. Issonão interessa mais, pois hoje sesabe que não basta conscientizar: omais importante é fazer agir. Averdadeira consciência só virá naação. O teatro do terceiro mundotem a função de não ter que serinstrumento. Seu sentido estará nograu de agitação que conseguir naação do indivíduo e na preparação

     para as grandes ações que seesperam do homem nos paísessubdesenvolvidos.

    3 Neste momento, no Brasil,nós temos meios humanos de seconseguir um teatromaravilhosamente funcional. É ummomento em que o povo brasileiro

    sente a necessidade do teatro porque sente necessidade de refletire sentir o problema da ação. Não é

     portanto, uma fase de teatro bemcomportado, mas de um teatroviolento, bárbaro, criador, comotudo que está vindo à tona nêste

     país. É um teatro que se comunica pela porra a uma platéia mistificadaque aí está para receber mesmovilões e outros bichos e objetos pelacara. O teatro moderno deve seradicalizar, no sentido de voltar à

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    sua raiz, isto é, ao comportamentohumano como nas sociedades

     primitivas. O papel a desempenharno terceiro mundo é fatal. Jean-PaulSartre diz que lamenta não ternascido em um país de terceiromundo. Régis Debray veio lutar emnossas barbas; o maior antropólogodo mundo Claude Lévis-Strauss,constrói toda a sua ciência a partirdo exame dos trópicos.

    4 O nosso mundo, o terceiro,não será construído por si, com afôrça de suas máquinas. Seuartifício é o homem, que terá

     primeiro que lutar contra os

    envolvimentos que lhe impedem omovimento, construindo assim omundo de acôrdo com suas utopias,suas Maracangalhas, suasPasárgadas, seus Eldorados. OEldorado do terceiro mundocomeça já na descoberta que umclima de ação e luta vale mais doque um ambiente burocrata econsumidor dos lixos alheios. Comisso o teatro redescobre sua funçãomais antiga, quase sagrada, de seraquela arte destinada a dar maisfôrça e confiança à arte do homem(CORRÊA, 1972) 1.

    José Celso sempre esteve como aindaestá (data da produção deste artigo), afrente do Teatro Oficina, grupo teatralque se encontra até hoje emfuncionamento, foi seu fundador e seu

     porta voz, quase sempre com umdiscurso instaurador de rupturas,

     polêmico, alegórico, procurando inovare buscar novas linguagens cênicas,romper com o tradicional e conservador,

    1  Conteúdo mimeografado em encartedistribuído para o público primeiramente emsetembro de 1972, na encenação e readaptaçãofeitas pelo grupo Teatro Oficina, sob direção deJosé Celso Martinez Corrêa do espetáculo: “Ocasamento do pequeno burguês” de BertoldBrecht. Procurou-se preservar a escrita original

    de José Celso, como pode ser percebido pelaregra gramatical utilizada no texto pelo autor.

    assim como é perceptível em seusdiscursos sua ânsia para opinar comohomem público e produtor culturalacerca da política nacional.

    Como pode ser percebido no discursoacima de José Celso, o lúdico e o

     polêmico se entremeiamdiscursivamente – faz-se referência aquidas categorias tipológicas sugeridas porEni Orlandi 2  - usando de polissemiasem sua formação discursiva. Seguindoos preceitos de Orlandi (1983), para aautora, o discurso apresenta trêscategorias distintas e distinguíveis, que

    seriam elas: “o discurso polêmico, odiscurso lúdico e o discurso autoritário”(1983, p. 142) e os critériosestabelecidos para se traçar taistipologias estariam na “interação e na

     polissemia” (1983, p. 142).

    Discurso Lúdico: é aquele em que areversibilidade entre interlocutoresé total, sendo que o objeto dodiscurso se mantém como tal nainterlocução, resultando disso a

     polissemia aberta. O exagero é onon sense.

    Discurso polêmico: é aquele emque a reversibilidade se dá sobcertas condições e em que o objetodo discurso está presente, mas sob

     perspectivas particularizantes dadas pelos participantes que procuramlhe dar uma direção, sendo que a

     polissemia é controlada. O exageroé a injúria (ORLANDI, 1983 p.142).

    José Celso usa de um discurso polêmicoe direciona para os seus pares asugestão de que aquele modelo de teatro“comportado”, herança do TBC, já teriasido “engolido e vomitado”. As

     palavras, engolido e vomitado, secolocam com um léxico injurioso, assim

    2 Segundo Eni Orlandi (1983) “a noção de tipo énecessária como princípio de classificação para

    o estudo da linguagem em uso, ou seja, dodiscurso” (ORLANDI, 1983, p. 140). 

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    como non sense, da mesma forma quecabe analisar a acusação de ser o TBCum “veículo de expressão pequeno-

     burguesa”. Ainda percebendo as

    categorias tipológicas do enunciado, para José Celso acabou-se aquele tempode “cafonice aristocratizante” herançado TBC, seria então um novo tempo,um tempo em que os produtores deteatro deveriam deixar para traz aquelevelho modelo de se fazer teatro, modeloque supostamente estaria voltado paraum público que não fosse a elite

     brasileira ou, segundo o enunciador, quenão fosse a “badalação pequeno-

     burguesa”. Está estabelecida aí acaracterística da tipologia polêmica dodiscurso de José Celso, se este, usandodo termo de Bourdieu (1996), pode servisto como “procurador” em seudiscurso da classe dos dramaturgos eartistas cênicos, o efeito de sentido

     proposto por José Celso é crítico a essa própria classe artística que elerepresenta.

    Segundo o dramaturgo, a produçãoteatral de hoje – hoje em seu tempo1972 – estaria passível a um tempo deuma “nova cultura”, uma cultura que

    rompe com algo do passado, é a fase doteatro de “livre expressão artística”, quenão necessita de equilíbrio e que tenta“captar os sintomas, a sensibilidade e ossinais” dessa nova cultura. Tais efeitosde sentidos propostos por José Celsocaracterizam novamente outro viés detipologia polêmica em seu discurso

     proferido em 1972 e explicita umenunciatário que primeiramente estáoculto, um discurso polêmico não

    voltado apenas para a classe artística,mas que rompe com a ordem dodiscurso imposta e estabelecida, a denão criticar ou incitar contra a políticanacional – e aí está estabelecido um

     problema relacionado às condições de produção do discurso – que veremosmais adiante.

    José Celso Martinez Corrêa. 1971. Fundo Teatro Oficina, foto 1476, Arquivo Edgard

    Leuenroth/UNICAMP. 

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    O enunciador do discurso tem comoenunciatários explícitos seus pares, acomunidade das artes cênicas,

     paulistana e nacional, e para eles aponta

     para o surgimento do novo tempo, anova cultura para a produção artística enão deixa de apontar para algo que seria

     passado para essa produção – “acafonice do TBC”. O novo teatro seriaaquele “instrumento verdadeiro de tudoo que se passa no terceiro mundo” e aíaparece o sujeito oculto enunciatário deJosé Celso, o Estado brasileiro. Osefeitos de sentidos do enunciador sevoltados para o enunciatário Estado,

    sugere que o Brasil necessita de um

    instrumento que mostre a verdade parao povo. Ou seja, se estiver sendosugerido no discurso que o Brasilnecessita de verdade, verdade que

    supostamente seria explicitada por umteatro funcional, o que estaria entãosendo omitido? Se esse instrumento é

     público - o teatro - e no discurso ficaclaro que se tem a necessidade deinstrumentalizar a verdade através doteatro e mostrar algo que está sendoomitido ou mentido por alguém ou algo

     – o Estado, o polêmico está na crítica àomissão ou à mentira imposta peloEstado. E aí será necessário que

    analisemos o contexto da enunciação.

    José Celso Martinez Corrêa. 1973. Fundo Teatro Oficina, foto 881, Arquivo EdgardLeuenroth/UNICAMP. 

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    Contexto da enunciação

    As condições de produção do discursode José Celso estavam mergulhadas nasituação calamitosa para a expressãoartística e jornalística do pós 1968 noBrasil, ou seja, pós Ato Institucionalnúmero cinco – AI-5. Como se sabe,após a promulgação do AI-5 o governoinstitucionalizou a censura política e

     proibiu qualquer expressão pública queremetesse à política ou a assuntos

     polêmicos que trouxessem questõesacerca do governo militar. Além disso, aditadura militar intensificou a

     propaganda política, que, segundoCarlos Fico (2004) denotou uma “outraface da censura” (FICO, 2004), dogoverno Costa e Silva. Era ummomento em que a propaganda políticaveiculava as falácias montadas peloregime militar, falácias quedemonstravam como “a sociedade

     brasileira finalmente realizava todas assuas potencialidades” (FICO, 2004, p.266).

    Estaria então, após a promulgação doAI-5 (último dos decretos emitidos peladitadura militar brasileira), estabelecidaa ordem do discurso e os limites domesmo para agentes públicos como osgrupos teatrais (cênicos, plásticos,musicais), o jornalismo, entre outros.Para perceber parte dos limitesinstitucionalizados pelo Estadoestabelecendo assim o que não estariaautorizado ou o que não seria legal de se

     pronunciar, analisemos o conteúdo dosartigos quarto e quinto do AI-5:

    Art 4º - No interesse de preservar aRevolução, o Presidente daRepública, ouvido o Conselho deSegurança Nacional, e sem aslimitações previstas naConstituição, poderá suspender osdireitos políticos de quaisquercidadãos pelo prazo de 10 anos ecassar mandatos eletivos federais,estaduais e municipais.

    Parágrafo único – Aos membrosdos Legislativos federal, estaduais emunicipais, que tiverem seusmandatos cassados, não serão dadossubstitutos, determinando-se oquorum parlamentar em função doslugares efetivamente preenchidos.

    Art 5º - A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato,importa, simultaneamente, em:

    I - cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;

    II - suspensão do direito de votar ede ser votado nas eleições sindicais;

    III - proibição de atividades oumanifestação sobre assunto denatureza política;

    IV - aplicação, quando necessária,das seguintes medidas desegurança:

    a) liberdade vigiada;

     b) proibição de freqüentardeterminados lugares;

    c) domicílio determinado,

    § 1º - o ato que decretar asuspensão dos direitos políticos

     poderá fixar restrições ou proibições relativamente aoexercício de quaisquer outrosdireitos públicos ou privados.

    § 2º - As medidas de segurança deque trata o item IV deste artigoserão aplicadas pelo Ministro deEstado da Justiça, defesa aapreciação de seu ato pelo Poder

    Judiciário.3

     Analisando conjuntamente os artigosquatro e cinco do AI-5 com o que foiestabelecido após a promulgação dodecreto pela história e por memórias do

     período, a suspensão dos direitos políticos prevista no artigo quinto sedava, além de outros fatos, por qualquervinculação de pessoas ou agentes

    3

     Artigos 4° e 5° do Ato Institucional nº 5, de 13de dezembro de 1968.

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     públicos com o que caracterizasse comoatos subversivos “no interesse de

     preservar a Revolução” (golpe militarde 1964), o que no artigo quarto estaria

    legitimado a suspensão dos direitos previstos na Constituição Nacional.Com isso, é possível imaginar adificuldade para uma instituiçãoartística pública elencar um discursoque pretendesse criticar ou a sociedade

     brasileira ou o governo ditatorialinstaurado naquele momento. Omomento deste discurso de José Celsoera o momento do  Brasil ame-o oudeixe-o, momento de maior atividade do

    CCC (Comando de Caça aosComunistas), e que também foi o demaior atividade da resistência armada

     pela esquerda brasileira, contexto quetorna o discurso aqui trabalhado, aindasegundo a classificação de Orlandi,mais polêmico e estritamente fora daordem do discurso (FOUCAULT, 1996)estabelecida. Ou seja, José Celso,

    apesar de autorizado a pronunciar paraseus pares, poderia não agradar a ordem

     pré-estabelecida pelo governo ditatorial,a ordem de não questionar acerca de

    determinados assuntos, de nãosubverter, a ordem do ritual de exclusãoe de restrição (FOUCAULT, 1996)impregnado pela ditadura.

    “... o ritual define a qualificaçãoque devem possuir os indivíduosque falam (e que, no jogo de umdiálogo, da interrogação, darecitação, devem ocupardeterminada posição e formulardeterminado tipo de enunciados);

    define os gestos, oscomportamentos, as circunstâncias,e todo o conjunto de signos quedevem acompanhar o discurso; fixa,enfim, a eficácia suposta ouimposta das palavras, seu efeitosobre aqueles aos quais se dirigem,os limites de seu valor de coerção(FOUCAULT, 1996, p. 39)”.

    José Celso Martinez Corrêa 1979. Fundo Teatro Oficina, foto 2074, Arquivo Edgard

    Leuenroth/UNICAMP.

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    José Celso rompe com a ordem impostaquando sugere que “nosso mundo, oterceiro”, só será construído quando seuhomem “lutar contra os envolvimentos

    que lhe impedem o movimento”. Acercade que impedimento José Celso poderiaestar falando? Aliás, o teatro“maravilhosamente funcional” sugerido

     pelo enunciador, pressupõe-se que oteatro necessita de ter uma funçãosocial, aquela função voltada para a“necessidade de refletir e sentir o

     problema da ação”. Devemos atentar para as palavras “ação” e “agitação”, propostas pelo discurso de José Celso,

    são palavras que se analisarmos o léxicode ambas naquele contexto asencontraremos enquanto semânticas de

     jargões da esquerda para definir, a práxis, a necessidade de ação política ea propaganda comunista.

     Nesse momento fica clara a posiçãoideológica do enunciador, o sujeitoexpõe sua intenção pelo discurso a

     partir de suas condições de produção no

    âmago de uma realidade social. Assim podemos perceber através da formaçãodiscursiva que propõe José Celso osembates entre a ideologia do sujeitoenunciador, com a ideologia dominante

     – que impõe a ordem discursiva.Pêcheux (1988) vai colocar que é sobrea base lingüística que se tem odesenvolvimento dos processosdiscursivos, contudo para o autor, todo

     processo discursivo se inscreve em uma

    relação ideológica de classe, o que seconstitui a contradição. Partindo daidéia de Pêcheux que toda formaçãodiscursiva é em partes dissimulada(1988), devido à tentativa detransparência dos efeitos de sentidosconstituída pelo discurso, e assim“desfeita a ilusão da transparência dalinguagem, e exposto à materialidade do

     processo de significação e daconstituição do sujeito” (ORLANDI,

    2005, p. 28), os objetos significantes

    apropriados por José Celso para produzir sua formação discursiva aquiem questão, estão sob dependência dointerdiscurso, e é nesse sentido que

     podemos perceber o uso dedeterminados termos que explicitam aideologia política do sujeito enunciadorem embate e resistência com a ideologiadominante. A ideologia política doenunciador é explicitada tambémquando o mesmo faz uso de teóricosrenomados da esquerda naquelecontexto para alicerçar seu discurso,como quando faz referências a JeanPaul-Sartre e Régis Debray, este último

    tendo participado ativamente naconstrução de uma práxis política daesquerda armada.

    Analisando a trajetória do grupo, não parece ser em vão o uso de termosexplicitamente políticos naquelemomento por José Celso. Não énovidade a perseguição que houve dogrupo Teatro Oficina  pelo CCC(Comando de Caça aos Comunistas) no

    final dos anos 1960 e começo de 1970, por exemplo, quando a instituição foiinvadida pela facção policial militar decaça aos comunistas, quandodeterminados espetáculos foraminterditados e até quando a instituiçãofoi incendiada - o que segundo JoséCelso em entrevista oral concedida amim, seria uma prática do CCC.Segundo José Celso o sentido do novoteatro, proposto em seu discurso para

    seus pares, estaria “no grau de agitaçãoque conseguir na ação do indivíduo e na

     preparação para as grandes ações que seesperam do homem nos paísessubdesenvolvidos”. A constituição daformação discursiva do enunciador, porexemplo, “o grau de agitação” que JoséCelso reivindicava de forma

     polissêmica, se encontra naquilo queFiorin coloca como “campo dasdeterminações inconscientes” (1988),

     presentes no discurso do sujeito

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    enunciador, isso denota o fato de que ouso de termos alegóricos que remetem à

     política na formação discursiva de JoséCelso (partindo do pressuposto de que

    os enunciatários diretos de José Celsoseriam apenas a comunidade artísticacênica e a platéia) constitui sua

    “maneira de ver o mundo numa dadaformação social” (FIORIN, 1988, p.19), explicitando assim parte dascondições de produção, ou como sugere

    Michel Foucault, das “condições deemergência” (1986) do discurso doenunciador.

    José Celso Martinez Corrêa, 1982. Fundo Teatro Oficina, fotos 1463 e 1464, Arquivo EdgardLeuenroth/UNICAMP. 

    Possíveis efeitos de sentidos

    Como nos mostra Bakhtin (1995) ainteração social se dá por processos deenunciação que também não deixa de seconfigurar enquanto mecanismossociais e esses processos de enunciação,assim como produção desses processos

     – os discursos –, são constituídos porcontextos de produção e de recepção doenunciado, os enunciatários e ascondições de produção e suasimplicações, como já analisado no casodo discurso aqui problematizado. A

     partir dos processos de enunciação e dos

    contextos de produção é gerado aquiloque Dominique Maingueneau definiucomo “espaço discursivo” (1993) e é

    nesse espaço discursivo que se tem ainteração de gêneros distintos emconfronto que materializam discursos dediversas formas, formando o queMaingueneau (1993) define comocampo discursivo – espaço de trocas deefeitos de sentidos devido àinterdiscursividade intrínseca aodiscurso – o que caracteriza sua

     possibilidade dialógica. Contudo,quando se tem uma repressão das

    condições dialógicas, como no caso da

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    ditadura militar brasileira no ano dodiscurso aqui trabalho (1972) 4, onde asideologias são contraditórias e não há

     possibilidade de convivência espacial de

    campos discursivos discrepantes, aformação discursiva fica caracterizada pela alegoria e polissemia, como nocaso do discurso de José Celso.

    É nesse sentido que é possível encontrara interação das tipologias discursivas

     propostas por Eni Orlandi (1983) naformação discursiva de José Celso, osentremeios do polêmico e do lúdico, ouseja, a “polissemia aberta” e a

    “polissemia controlada”, por exemplo,quando José Celso remete seu discursoà produção teatral e aos produtores,dizendo que a nova cultura que emergeno Brasil – naquele momento - sugere

     produzir um teatro “bárbaro, criador,como tudo que está vindo à tona neste

     país”. Ao mesmo tempo em que JoséCelso usa de seu discurso paraintroduzir uma sugestão que não deixade ser ideologia e utópica para a

     produção do teatro no Brasil (assimcomo não deixa de ser polêmica quandose faz uma crítica aberta aos seus pares),José Celso usa da polissemia paraintroduzir questões relativas aos

     problemas sociais e políticos que seencontravam no contexto de produçãode seu discurso – “bárbaro e criador” –“à tona neste país”.

    Devem ser enfatizados, além da críticaalegórica ao governo e o uso da

     polissemia para contornar o ritual daordem do discurso imposta, os efeitosde sentidos propostos pelo enunciadorquando o mesmo tece críticas a

     produção do teatro nacional, a critica ao

    4 Período em que alguns autores caracterizam aditadura militar brasileira que se inicia em abrilde 1964 como um momento de linha dura, omomento do pós-AI-5, onde direitosimprescindíveis da liberdade de expressão

    foram dissolvidos com o pretexto da violênciade Estado.

    teatro bem comportado, característicado TBC – Teatro Brasileiro deComédia, como apontado em seudiscurso, e aí é possível apontar para a

    semântica discursiva sugerida peloenunciador com relação à produçãoartística, sobre a qual este estavaautorizado a se pronunciar. SegundoFiorin (1988) “a semântica discursiva éo campo da determinação ideológica

     propriamente dita. Embora esta sejainconsciente, também pode serconsciente” (FIORIN, 1988, p.19).Assim, José Celso, como dramaturgoreconhecido por seus pares naquele

    momento, demonstra sua insatisfaçãoquanto aos rumos da produção artística,explicitando sua ideologia referente a

     produção teatral, algo que deveria ser“engajado”, “funcional”, mecanismo dedivulgação da realidade social. 

    Referências

    ARENDT, H. Homens em tempos sombrios.São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

    BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo efilosofia da linguagem.  São Paulo, HUCITEC,1995.

    BENVENISTE, E. Problemas de LinguísticaGeral. São Paulo: Ed.Nacional, 1976.

    BOURDIEU, P. A economia  das trocaslingüísticas. S. Paulo: EDUSP, 1996.

    CORRÊA, José Celso Martinez. Zé CelsoMartinez Corrêa Primeiro Ato: Cadernos,Depoimentos, Entrevistas (1958-1974). SãoPaulo: Editora 34, 1998.

    FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia . São Paulo: Ática, 1988.

     ______________ Elementos de análise dodiscurso. São Paulo: Contexto, 1989.

    FOUCAULT, M. A Arqueologia do saber. Riode Janeiro: Forense, 1986.

     ____________. A Ordem do Discurso. Paris:Gallimard, 1996.

    MAINGUENEAU, D. Novas tendências emanálise do discurso. Campinas: Pontes;

    Unicamp, 1993.

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    ORLANDI, E. A Linguagem e seufuncionamento: as formas do discurso.Campinas: Pontes; Unicamp, 1983.

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