blacking how musical is man traduzido werlang

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1 John BLACKING 1976 [1973] Quão Musical é o Homem? [Rascunho de How Musical Is Man? Londres: Faber & Faber. Tradução de Guilherme Werlang] É FAVOR NÃO CITAR Este importante estudo etnomusicológico é uma tentativa do autor — um músico que se fez antropólogo social — de comparar suas experiências com o fazer musical de diversas culturas. Aqui apresenta ele novas infor- mações resultantes de suas pesquisa em música africana, sobretudo entre os venda. Descobriu ele que a música dos venda, à sua maneira, não é estruturalmente menos complexa que a música européia. A alfabetização e a invenção da notação podem propiciar uma extensão das estruturas musicais, mas exprimem diferenças de grau, e não as diferenças de gê- nero que a distinção entre música ‘artística’ e ‘folclórica’ implica. É possí- vel encontrar muitos dos processos essenciais da música, se não todos, na constituição do corpo humano e nos padrões de interação dos corpos hu- manos em sociedade. Assim, na estrutura, bem como na função, toda música é música ‘folclórica’, porquanto não se pode transmitir ou em- prestar significação à música sem as associações entre pessoas. Se a hipótese de John Blacking sobre as origens biológicas e sociais da música estiver correta, mesmo que só em parte, poderia ela ensejar no- vas idéias sobre a natureza da musicalidade, o papel da música na educa- ção, e o seu papel geral em sociedades que (tal como a dos venda, no contexto de sua economia tradicional) terão mais tempo livre à medida em que se incrementa a automação. John Blacking é Professor de Antropologia Social na Queen’s University de Belfast. A Meyer Fortes

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Este importante estudo etnomusicológico é uma tentativa do autor — um músico que se fez antropólogo social — de comparar suas experiências com o fazer musical de diversas culturas. Aqui ele apresenta novas informações resultantes de suas pesquisa em música africana, sobretudo entreos venda.

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  • 1John BLACKING

    1976 [1973] Quo Musical o Homem? [Rascunho de HowMusical Is Man? Londres: Faber & Faber. Traduode Guilherme Werlang]

    FAVOR NO CITAR

    Este importante estudo etnomusicolgico uma tentativa do autor ummsico que se fez antroplogo social de comparar suas experinciascom o fazer musical de diversas culturas. Aqui apresenta ele novas infor-maes resultantes de suas pesquisa em msica africana, sobretudo entreos venda. Descobriu ele que a msica dos venda, sua maneira, no estruturalmente menos complexa que a msica europia. A alfabetizaoe a inveno da notao podem propiciar uma extenso das estruturasmusicais, mas exprimem diferenas de grau, e no as diferenas de g-nero que a distino entre msica artstica e folclrica implica. poss-vel encontrar muitos dos processos essenciais da msica, se no todos, naconstituio do corpo humano e nos padres de interao dos corpos hu-manos em sociedade. Assim, na estrutura, bem como na funo, todamsica msica folclrica, porquanto no se pode transmitir ou em-prestar significao msica sem as associaes entre pessoas.

    Se a hiptese de John Blacking sobre as origens biolgicas e sociais damsica estiver correta, mesmo que s em parte, poderia ela ensejar no-vas idias sobre a natureza da musicalidade, o papel da msica na educa-o, e o seu papel geral em sociedades que (tal como a dos venda, nocontexto de sua economia tradicional) tero mais tempo livre medidaem que se incrementa a automao.

    John Blacking Professor de Antropologia Social na Queens Universityde Belfast.

    A Meyer Fortes

  • 2PREFCIO

    Este no ser tanto um estudo erudito sobre a musicalidade humana, quantouma tentativa de prestar contas das minhas experincias acerca da prtica musicalem diversas culturas. Trago novas informaes, fruto de minha pesquisa em msicaafricana, bem como alguns fatos que so familiares a qualquer um que tenha for-mao na tradio da msica artstica europia; porm minhas concluses e su-gestes so tentativas. Elas expressam o dilema dum msico que se tornou antro-plogo profissional, e por este motivo que dedico o livro a Meyer Fortes. Em1952, quando devotava muito mais tempo msica que a meus cursos em antro-pologia, ele me mandou a Paris, numas frias de vero, estudar etnomusicologiacom Andr Schaeffner. Porm, mais cinco anos se passariam antes que eu come-asse a atinar para a possibilidade duma antropologia da msica. Mesmo aps umano de intenso trabalho de campo, minha tendncia era a de encarar a msica afri-cana como algo outro; e esta atitude se reforava quando ouvia uma gravao deWozzeck ou alguma msica de Webern na minha tenda, ou sempre que havia umpiano disponvel, quando submergiria em Bach, Chopin ou Mozart.

    Foi a msica dos venda da frica do Sul o que primeiro me livrou de alguns demeus preconceitos. Eles me apresentaram uma nova dimenso da experincia mu-sical e uma compreenso mais profunda da minha prpria msica. Fui educadopara compreender a msica como um sistema de ordenao do som, dentro do qualo europeu, visto como detentor duma habilidade musical excepcional, inventou edesenvolveu um conjunto cumulativo de regras, e um espectro crescente de pa-dres de som admissveis. Associando diversos objetos snicos a vrias experin-cias pessoais, escutando e tocando reiteradas vezes a msica de alguns composi-tores consagrados, e atravs duma reafirmao seletiva que se supunha ser objeti-vamente esttica, mas qual no eram estranhos interesses de classe, adquiri umrepertrio de tcnicas de execuo e composio e valores musicais que eram con-seqncia to previsvel do meu ambiente social e cultural, quanto as capacidadese o gosto musicais dum homem venda so conveno de sua sociedade. As princi-pais conseqncias de quase dois anos de trabalho de campo entre os venda, e dastentativas de analisar meus dados por um perodo de doze anos, so que acreditoestar comeando a compreender o sistema venda; que no compreendo mais ahistria e as estruturas da msica artstica europia to claramente quanto dan-tes; e que no consigo ver nenhuma razo de ser na distino entre os termos m-sica folclrica e artstica, exceto enquanto rtulos comerciais.

    Os venda me ensinaram que a msica jamais no pode ser uma coisa em simesma, e que toda msica msica folclrica, porquanto a msica no se a podetransmitir, ou ter significao, sem associaes entre as pessoas. As distines en-tre a complexidade superficial dos diversos estilos e tcnicas musicais no nos diznada de relevante sobre os propsitos expressivos e o poder da msica, ou sobre aorganizao intelectual que a sua criao importa. A msica tem por demais a vercom sentimentos e experincias humanas em sociedade, e seus padres so, commuita freqncia, o produto de exploses surpreendentes de cerebraes incons-cientes, para que se sujeite ela a regras arbitrrias, tais como as dum jogo. Muitosdos processos essenciais da msica, se no todos, podem ser encontrados na cons-

  • 3tituio do corpo humano, e nos padres de interao de corpos humanos em soci-edade. Portanto toda msica , estrutural bem como funcionalmente, msica fol-clrica. Aqueles que fazem msica artstica no possuem mais sensibilidade ouinteligncia inatas que os msicos folclricos: as estruturas de sua msica sim-plesmente expressam, por processos similares aos da msica venda, os sistemasnumericamente maiores de interao entre as pessoas em suas sociedades, conse-qncia duma diviso do trabalho mais extensa e duma tradio tecnolgica cumu-lativa.

    claro que a alfabetizao e a inveno da notao so fatores importantes,que podem favorecer uma ampliao das estruturas musicais, mas expressam di-ferenas de grau, e no a diferena de gnero que a distino entre msica artsti-ca e folclrica sugere. Limitei meus exemplos msica dos venda, por ter experi-ncia pessoal e dados empricos a seu respeito para dar consistncia a minhasafirmaes. Mas meu raciocnio acerca da msica numa cultura parece ser aplicvela outros sistemas musicais que os etnomusiclogos vm estudando, sobretudo msica artstica rabe, indiana, chinesa, japonesa e indonsia. Estou convicto queuma abordagem antropolgica no estudo de todos os sistemas musicais os tornarmais inteligveis que as anlises dos padres sonoros como coisas em si mesmas.

    Se meu palpite sobre as origens biolgicas e sociais da msica estiver correto,mesmo que s em parte, poder vir ele a ter um impacto sobre as avaliaes demusicalidade e os paradigmas da educao musical. Acima de tudo, poderia susci-tar algumas idias novas sobre o papel da msica na educao, e o seu papel geralem sociedades que (como a dos venda, no contexto de sua economia tradicional)tero mais tempo livre, medida em que cresce a mecanizao. Costumava eu di-vagar sobre o porqu de, na minha escola preparatria, a maior parte das bolsas irpara os coristas, que representavam apenas um tero da escola e que, por conta docanto nos servios religiosos e da prtica coral, faltavam a mais de um tero dasaulas. Quando vivi entre os venda, comecei a entender como a msica pode se tor-nar parte intrnseca do desenvolvimento da mente, do corpo, e da harmonia nasrelaes sociais. Estas idias so, claro, mais antigas que os escritos de Bocio ePlato sobre msica; porm espero que minhas experincias prprias possam tra-zer uma abordagem nova a uma problemtica perene.

    Sou profundamente grato ao Board of Regents da Universidade de Washin-gton, cujo convite para ministrar as John Danz Lectures me deu ensejo de pensarem voz alta, sintetizando alguns dos meus pensamentos acerca da msica africana.Agradeo a Robert Kauffman, quem primeiro sugeriu que eu viesse, e a WilliamBergsma, Robert Garfias e muitos mais, que me ajudaram a passar um ms muitoalegre e estimulante em Seattle. Agradeo sobretudo a Naomi Pascal por seu entu-siasmo e conselhos na preparao das palestras para publicao, e a Cyril Ehrlichpela leitura do manuscrito e pela grande valia dos comentrios; mas toda a respon-sabilidade pelas deficincias do produto final minha. Estou convicto de que qual-quer esforo criativo sntese das reaes dum indivduo a todas as coisas boasque os outros lhe ofereceram; assim, estes breves agradecimentos representamapenas uma frao da gratido que devo a todos aqueles que me ajudaram a apre-ciar e compreender a msica.

  • 4AGRADECIMENTOS

    Os trechos do War Requiem [Rquiem da Guerra] de Benjamin Britten foramreproduzidos com a permisso de Boosey & Hawkes Music Publishers Ltd.; os daNona Sinfonia de Gustav Mahler e o Abschied dos Cantos da Terra, com a permis-so da Universal Edition (London) Ltd.; os da Dcima Sinfonia de Mahler, com apermisso de G. Schirmer, 140 Strand, London, WC2R 1HH, e o copyright 1966,com permisso, da Associated Music Publishers, Inc., New York. Os exemplos deThe Language of Music [A Linguagem da Msica], de Deryck Cooke, foram reprodu-zidos com permisso da Oxford University Press.

  • 5SUMRIO

    SOM HUMANAMENTE ORGANIZADO 6

    MSICA NA SOCIEDADE E NA CULTURA 24

    CULTURA E SOCIEDADE NA MSICA 38

    HUMANIDADE SONORAMENTE ORGANIZADA 54

    BIBLIOGRAFIA SELETA 69

    NDICE 72

  • 6SOM HUMANAMENTE ORGANIZADO

    Etnomusicologia uma palavra relativamente nova, que se pode usar comoreferncia genrica ao estudo dos diversos sistemas musicais do mundo. As suasoito slabas no redundam em nenhuma vantagem esttica em comparao com ascinco de musicologia, mas podem elas ao menos nos fazer lembrar que, bem an-tes de ouvir msica europia ocidental, os povos de muitas das culturas ditas pri-mitivas usavam escalas de sete tons e harmonia.

    Talvez precisemos duma palavra pouco jeitosa para reequilibrar um mundomusical que ameaa se perder nas raias do elitismo. Precisamos nos dar conta quea maioria dos conservatrios ensina um s tipo de msica tnica particular, e que amusicologia , na verdade, musicologia tnica. Uma Escola de Msica tal como a daUniversidade de Washington, que cria um sub-departamento de Etnomusicologia,Msica tnica ou Msica Negra, vem dando um primeiro passo para o reconheci-mento de seu papel no mundo musical do futuro. De modo implcito, reconheceu asua Msica, mais modestamente, como um sistema de teoria e prtica musicais queemergiu e se desenvolveu durante um dado perodo na histria europia.

    As distines que as diversas culturas e grupos sociais fazem entre msica eno-msica so mais importantes que quaisquer separaes arbitrrias e etnocn-tricas entre Msica e Msica tnica, ou entre Msica Artstica e Msica Folclrica. Alongo prazo, as atividades do Homem enquanto Msico que sero de maior inte-resse e conseqncia, para a humanidade, que os feitos particulares do homemocidental. Se, por exemplo, todos os membros duma sociedade africana so capa-zes de executar e escutar de maneira inteligente a sua prpria msica indgena, ese possvel demonstrar que essa msica grafa, quando se a analisa no seu con-texto social e cultural, se baseia em processos intelectuais e musicais, e produz naspessoas uma gama de efeitos semelhantes aos que se encontra na chamada msicaartstica da Europa, preciso que perguntemos por que habilidades musicais apa-rentemente gerais deveriam ser restritas a uns poucos eleitos, nas sociedades vis-tas como culturalmente mais avanadas. Ser que o desenvolvimento cultural re-presenta um avano real na sensibilidade e habilidade tcnica da humanidade, ouser mais um passatempo para as elites, um instrumento da explorao de classes?Ser que, para que uns poucos possam ser vistos como mais musicais, precisoque se considere a maioria como anti-musical?

    A pesquisa etnomusicolgica expandiu o nosso conhecimento sobre os diver-sos sistemas musicais do mundo, mas ainda no deu ensejo reavaliao que essenovo conhecimento suscita, a da musicalidade humana. Em se seguindo as implica-es de suas descobertas, e desenvolvendo um mtodo, e no uma mera rea deestudo, a etnomusicologia ter o poder de criar uma revoluo no mundo da msi-ca e da educao musical. Acredito que a etnomusicologia deva ser mais que umramo da musicologia ortodoxa a se ocupar da msica extica ou folclrica: elapode suscitar novas formas de se analisar a msica e a histria da msica. As divi-ses que hoje se reconhece entre Msica Artstica e Msica Folclrica so, enquantoinstrumentos conceituais, imprprias e enganosas. Enquanto ndices de diferenamusical, no so significativas nem precisas; no mximo, definem apenas os inte-

  • 7resses e as atividades de diferentes grupos sociais. Elas expressam a mesma pers-pectiva dum verbo irregular que se conjugasse assim: eu toco msica; voc umcantor folclrico; ele faz um som horrvel. preciso que saibamos quais so ossons, e que tipos de comportamento as diversas sociedades houveram por chamarde musicais; e at sabermos mais a esse respeito, no podemos comear a res-ponder a questo do quo musical o homem.

    Se os estudos em psicologia da msica e os testes de musicalidade no lo-graram chegar a um consenso acerca da natureza da musicalidade, talvez ser por-que foram, quase que na sua totalidade, etnocntricos. Assim, as contradiesexistentes entre as diversas escolas de pensamento podem ser fruto do seu etno-centrismo. A escola da gestalt tem razo quando insiste que o talento musical mais que um conjunto de atributos especficos dependentes das capacidades sen-soriais; mas s em parte, pois suas totalidades no do conta da cultura da qual amsica faz parte. Quando os adversrios da escola da gestalt atribuem importnciaprimordial s capacidades sensoriais, tambm tm eles razo, pois sem certas ca-pacidades especficas no seria possvel perceber nem fazer msica. Porm seustestes tambm tm valor restrito, bem como as teorias nas quais se baseiam, sen-do sequer mais objetivos que aqueles que podem aparentar ser menos cientficos.Paradoxalmente, seu louvvel desiderato de independncia do contexto e objetivi-dade fracassa justo porque minimizam eles a importncia da experincia cultural naseleo e no desenvolvimento das capacidades sensoriais. Por exemplo, um testede afinao musical com base nos sons dum oscilador de freqncia de pulsos daGeneral Radio pode parecer mais cientfico que um tal que se baseie em timbresculturalmente familiares, pois possvel manter um controle rigoroso da intensida-de e durao dos sons. Mas na verdade os resultados de tal teste podero redundarnuma distoro da verdade pois, em virtude da pouca familiaridade com a mdia,poder haver um desequilbrio na percepo do sujeito.

    Um exemplo do etnocentrismo de todos os testes musicais com que me de-parei at hoje servir como crtica geral, e tambm mostrar que, se quisermosdescobrir as habilidades que a musicalidade importa, devemos ampliar o nosso m-bito investigao. Measures of Musical Talents [Medidas de Talento Musical], deCarl Seashore, foi a primeira padronizao de testes de habilidade musical a vir luz, em 1919; e mesmo aps se submeter a crticas, refinamentos e elaboraes,tanto da parte do prprio Seashore quanto de vrios outros profissionais, no hou-ve uma mudana radical nos procedimentos dos testes. Ora, como a discriminaosensorial se desenvolve na cultura, as pessoas podem prescindir da capacidade deidentificar qualquer distino entre intervalos musicais que so capazes de ouvir,mas que no tm nenhuma significao no seu sistema musical. Do mesmo modo,pessoas que usam apenas quatro ou cinco termos bsicos para cores podem sercapazes de distinguir entre as mais finas nuanas, ainda que no conheam os ter-mos especficos que os fabricantes inventam com o fim de vender as roupas danova estao. Por quase dois anos morei numa sociedade rural africana, a estudar,no contexto de sua experincia cultural, o desenvolvimento e a expresso da capa-cidade musical dos seus membros. A msica ocupa uma posio muito importantena vida dos venda do Transval Setentrional, e mesmo os colonos brancos que so-frem da lgica demente do apartheid so prontos a admitir que os venda so umpovo muito musical. Mas ao se deparar com os testes de talento musical de Se-ashore, um excelente msico venda bem poderia passar por desafinado e anti-musical. Em sendo harmnica a sua percepo bsica do som, poderia ele sustentarque dois intervalos de quinta ou de quarta so iguais, e que no h nenhuma dife-rena entre dois padres meldicos aparentemente diferentes (vide Exemplo 2). Os

  • 8testes de timbre e intensidade so irrelevantes fora do contexto social do som, eera provvel, de qualquer modo, que o som do oscilador logo o desorientasse: se osom no for produto dum ser humano, no ser msica.

    Est claro que os testes de capacidade musical so relevantes apenas nasculturas cujos sistemas musicais so similares aos de quem se testa. Mas eu aindaperguntaria: qual o valor dos testes musicais nas culturas que os estabelece? Oque testam os testes, e at onde isso diz respeito capacidade musical? Quo mu-sical a capacidade que se manifesta na composio musical e na performance, esob que condies vem ela tona? No poderemos responder questo do quomusical o homem? antes de sabermos que aspectos do comportamento humanoso especificamente musicais, se que eles existem. Falamos toa de genialidademusical, mas no sabemos quais qualidades do gnio se restringem msica, ou seelas se manifestam ou no por outros meios. Tampouco sabemos at que ponto es-sas qualidades podem ser latentes em todos os homens. Bem poderia ocorrer queas inibies sociais e culturais que impedem o desabrochar do gnio musical somais significativas que qualquer capacidade musical que possa parecer propici-lo.

    A questo do quo musical o homem? correlata s questes mais geraissobre qual a natureza do homem? e quais so os limites do seu desenvolvi-mento cultural?. Faz parte duma srie de questes que devemos formular acercado passado e do presente do homem, se que estaremos a fazer algo mais no fu-turo que tatear s cegas. Ainda que no tenha eu nenhuma resposta final questoque o ttulo do livro coloca, espero demonstrar, nos trs primeiros captulos, comoa pesquisa etnomusicolgica pode dar soluo maioria dos problemas e, noquarto, quo importante o assunto pode ser para o futuro da humanidade. H tantamsica no mundo que razovel supor que a musicalidade, assim como a lingua-gem, e possivelmente a religiosidade, uma caracterstica definidora da espciehumana. Processos fisiolgicos e cognitivos essenciais que geram a composio eexecuo musicais podem mesmo ser parte da herana gentica, e estar assim pre-sentes em quase todos os seres humanos. Uma compreenso destes e de outrosprocessos que a produo musical implica pode nos oferecer provas de que os ho-mens so criaturas mais notveis e capazes que a maioria das sociedades jamais ospermitiu ser. Tal no uma falha da cultura em si, mas uma falha do homem, queconfunde os meios culturais com os fins, e portanto vive para a cultura, e no paraalm dela.

    Consideremos as contradies entre teoria e prtica em matria de musicali-dade no tipo de ambiente burgus em que me criei, e onde me parecia estar a ad-quirir um nvel de competncia musical. (Disse parecia por ser princpio funda-mental do meu raciocnio o no sabermos com preciso o que competncia musi-cal, ou como se a adquire.) Faz-se msica enquanto comemos e tentamos conver-sar; no entremeio de filmes e no teatro; quando sentamos nos sales dos aeropor-tos cheios e, em tom de pressgio, enquanto aguardamos a decolagem do avio;se a toca o dia todo no rdio; e mesmo nas igrejas, poucos organistas permitemque algum silncio intervenha entre as diversas etapas do ritual. A minha socieda-de sustenta que apenas um nmero finito de pessoas so musicais, e no entanto seporta tal como se todas as pessoas possussem uma capacidade bsica, sem a qualno poderia haver qualquer tradio musical a capacidade de ouvir e distinguirpadres sonoros. A maioria dos cineastas e diretores de televiso espera atrair aateno de platias amplas e vrias; e assim, ao colocar a trilha sonora nos dilo-gos e na ao, assumem implicitamente que as platias podem discernir os seuspadres e reagir ao seu apelo emocional, e que elas a ouviro e compreendero,em conformidade com as intenes do compositor. Pressupem eles que a msica

  • 9uma forma de comunicao e que, num contexto cultural normal, seqncias musi-cais especficas podem evocar sentimentos de medo, apreenso, paixo, patriotis-mo, religio, assombramento, e por a vai.

    Os cineastas podem no ter conscincia dos fundamentos dos seus pressu-postos; mas podemos estar seguros que se a experincia mostrasse o seu erro,rejeitariam, por desnecessria, toda sonoplastia e msica ambiente. Ao invs, pare-cem depositar cada vez mais confiana na musicalidade do seu pblico, abando-nando a msica de fundo contnua em favor dum incremento dramtico mais seleti-vo. Isto pode ser apenas uma reao s presses dos sindicatos de msicos; masainda que fosse, os cineastas continuam a encomendar msica aos compositores, aum considervel custo extra. notvel que tais pressupostos sejam os de homense mulheres cujas atitudes para com a arte e o lucro costumam contradizer a elesprprios. A formao dum produtor na cultura europia ocidental devia ensin-loque nem todas as pessoas so musicais, e que algumas so mais musicais que ou-tras. Mas seu conhecimento e sua experincia de vida o levam a rejeitar inconsci-entemente tal teoria. O dogma capitalista diz a ele que s uns poucos eleitos somusicais, mas a experincia capitalista o faz lembrar que The Sound of Music [ANovia Rebelde] foi uma das maiores bilheterias de todos os tempos.

    Sbito vem mente uma explicao para tal paradoxo. Em muitas sociedadesindustriais, costuma-se julgar o mrito de acordo com ndices de produtividade elucros imediatos, e com uma suposta utilidade, dentro dos limites dum dado siste-ma. raro que se reconhea ou incentive a capacidade latente, a menos que o su-jeito pertena classe social certa, ou ocorra manifestar traos daquilo que as pes-soas aprenderam a tomar por talento. Assim, se avalia a criana como musical ouanti-musical com base na sua capacidade de fazer msica. E no entanto, a prpriaexistncia do msico profissional, bem como seu necessrio suporte financeiro de-pende de ouvintes que, num senso importante, no ho de ser menos aptos musi-calmente que ele. Devem ter a capacidade de distinguir e correlacionar padres so-noros diversos.

    Sei que, antes e depois de Haydn compor a Surprise Symphony [Sinfonian.94], muitas platias no vm escutando msica com ateno, e que, numa soci-edade que inventou a notao, era possvel que uma elite hereditria transmitisse amsica sem qualquer necessidade de ouvintes. Mas se tomarmos uma perspectivaglobal sobre a msica, e se levarmos em conta situaes sociais em tradies musi-cais que no tm notao, ficar claro que a criao e performance da maioria dasmsicas surge, em primeiro lugar, a partir da capacidade humana de descobrir pa-dres sonoros e identific-los em ocasies posteriores. Sem os processos biolgicosde percepo auditiva, e sem um consenso cultural entre pelo menos alguns sereshumanos quanto ao que se percebe, no possvel haver msica ou comunicaomusical.

    Costuma-se ignorar a importncia da audio criativa em discusses acercada aptido musical, e no entanto esta to fundamental para a msica quanto o para a linguagem. No que toca a genialidade precoce, o que importa no tantoque alguns nasam com dons aparentemente excepcionais, mas que a criana pos-sa reagir organizao sonora da msica antes que a ensinem a reconhec-la. Sa-bemos, tambm, que crianas que no so precoces podem tambm reagir, aindaque possam no manter a mesma relao positiva com a msica, nem tentar re-produzir a sua experincia.

    Em sociedades onde a msica no escrita, a audio culta e precisa toimportante e to sintomtica da habilidade musical quanto a execuo o , pois

  • 10

    trata-se do nico meio de assegurar a continuidade da tradio musical. A msica fruto do comportamento de grupos humanos, seja ele formal ou informal: a orga-nizao humana do som. E ainda que sociedades diferentes tendam a acalentar di-ferentes idias sobre o que tomam por msica, todas as definies se baseiam nal-gum consenso de opinio sobre os princpios a partir dos quais se deve organizar ossons. No pode haver tal consenso sem que haja algum compartilhamento de ex-perincias, e a menos que diferentes pessoas sejam capazes de ouvir e reconhecerpadres nos sons que chegam aos seus ouvidos.

    Por ser a msica uma tradio cultural que se pode partilhar e transmitir, nopoder ela existir a menos que alguns seres humanos possuam, ou tenham desen-volvido, uma capacidade de audio estruturada. A performance musical, em con-traste com a produo de rudo, inconcebvel sem a percepo de ordem no som.

    Se minha nfase na primazia da audio pode parecer muito fora de propsi-to, pense no que aconteceria, mesmo tradio da msica escrita, caso se tomassea mera execuo como critrio de habilidade musical. Os msicos sabem que possvel uma performance ruim passar desapercebida para uma platia que assistemas no ouve; e mesmo as platias ouvintes podem aprender a aceitar digressesradicais em peas familiares de Chopin ou Beethoven, que um dia estiveram emvoga, mas que se tornaram mais tarde parte duma tradio pianstica. A continui-dade da msica depende tanto da demanda de ouvintes crticos, quanto da disponi-bilidade de msicos.

    Quando digo que no h de existir msica sem percepo de ordem no mbitodo som, no estou a argumentar que algum tipo de teoria da msica deva precedera composio e performance musicais: tal seria obviamente incorreto para a maio-ria dos msicos folclricos. Estou a sugerir que uma percepo da ordem sonora,seja ela inata ou adquirida, ou ambos, deve acontecer na mente antes de emergircomo msica.

    Meu uso proposital do termo ordem snica, pondo nfase na experincia daescuta exterior, quer evidenciar que qualquer juzo sobre a musicalidade do homemdeve se basear em descries dum campo distinto e circunscrito do comportamentohumano, o qual chamaremos provisoriamente de musical. Pode-se criar ordemsnica por acidente, como fruto de princpios de organizao que so musicais ouextra-musicais, tais como a seleo de orifcios em espaos eqidistantes numaflauta, ou trastes num instrumento de cordas. Do mesmo modo, uma falta de or-dem snica aparente pode expressar um arranjo ordenado de nmeros, pessoas,frmulas matemticas, ou quaisquer elementos que se possa transformar em som,tais como a programao duma curva senoidal numa mquina eletrnica.

    Se um compositor me disser que no posso esperar ouvir qualquer ordemnas notas, mas que posso observ-la nos padres de crculos e cones que se daos msicos, ou nos nmeros que se insere numa mquina, posso decidir chamar orudo de mistificao retrgrada, ao invs de msica de vanguarda; mas no possoexclu-la de qualquer apreciao da musicalidade humana, ainda que provavel-mente no pertena ela rea do comportamento que compreende a msica dosbosqumanos, dos bemba, dos balineses, de Bach, Beethoven e Bartk. organiza-o sonora humana, cujo endereo o ouvido humano e que, possivelmente, osamigos do compositor apreciam, e que portanto diz respeito comunicao e srelaes entre pessoas.

    Tal processo de produo de som musical no to moderno ou sofisticadoquanto seus criadores poderiam alegar: no passa duma extenso do princpio ge-

  • 11

    ral de que a msica deveria exprimir aspectos da organizao humana, ou percep-es humanamente condicionadas da organizao natural. Observei um processosemelhante na Zmbia, em 1961. Entre os nsenga do distrito de Petauke, os meni-nos tocavam pequenas kalimba mbiras para se distrair, enquanto andavam ou sesentavam a ss. A anlise das melodias que tocavam revela relaes entre os pa-dres do movimento dos polegares esquerdo e direito, os padres rtmicos com quetocavam as teclas, e o padro de organizao do prprio teclado (vide Figura 1).As melodias no soam como outras msicas nsenga, mas os dois polegares tocampolirritmias tpicas dos nsenga que, em outros contextos, mais de um msico toca-ria. Um instrumento semelhante, de nome ndimba, possui um teclado diverso,mais prprio para o acompanhamento meldico que para dedilhar padres. Os ho-mens que tocam esse instrumento costumam ser artistas populares, que cantamjunto de ou para grandes platias. Ainda que sua msica costume soar mais sim-ples do que a que tocam os meninos, na verdade ela mais musical em sua cons-tituio, uma vez que os padres de relao entre o movimento do polegar e o te-clado se subordinam melodia duma cano, com uma letra e forma que permiteaos demais cantar com o instrumento. Algumas das melodias dos meninos podemser mais experimentais e de vanguarda, mas elas no se destinam a muitas pesso-as, uma vez que carecem duma qualidade que os nsenga parecem requerer de suamsica, a saber, o poder de reunir as pessoas em comunho.

    Transcries de trs melodias nsenga para kalimba

    Arranjo das teclas de uma kalimba de 14 notas (A) e de uma ndimba de 14 notas (B).(i): Alturas aproximativas das escalas de uso mais freqente (transpostas). (ii): Numera-o das teclas da esquerda para a direita do teclado. (iii): Teclas em numerao sim-trica, de acordo com o uso dos polegares direito e esquerdo, em direes contrrias. Asteclas escuras e os nmeros sublinhados acima e abaixo do pentagrama indicam as notasno registro superior do teclado.

    f(i) mi si r l d sol mi d d sol sol l f si(ii) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14

    (iii) 4 c

    3 3 cb a a 4

    2 b2

    1

    Polegar Esquerdo 1 Polegar Direito

    Figura 1. Comparao entre as melodias e os teclados das mbiras kalimba e ndimba, quetocam os nsenga de Petauke, na Zmbia, a ilustrar as origens culturais e fsicas do som mu-sical.

  • 12

    d

    (i) d mi l sol sol l f si d r mi sol l si(ii) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14

    65

    43

    21

    1c 3 b 2 a

    4

    (iii) 5Polegar Esquerdo Polegar Direito

    Fundamentos rtmicos das melodias de kalimba, conforme os revela as anlises das partesque os polegares esquerdo e direito tocam.

    Figura 1. continuao

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    Anlise de melodia da ndimba.

    Figura 1. continuao

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    Figura 1. continuao

    possvel fazer mais que uma nica anlise duma pea de msica qualquer, emuito se escreveu sobre este assunto. Mas preciso que se possa produzir anlisesprecisas que indiquem onde se emprega processos musicais e extra-musicais, o quevm eles a ser exatamente e por que se os utiliza. Num certo nvel analtico, todocomportamento musical estrutural, seja em relao a processos biolgicos, fisio-lgicos, sociolgicos, culturais ou puramente musicais; e tarefa do etnomusiclo-go identificar todos os processos que so relevantes para uma explanao do sommusical.

    A Figura 2 mostra uma passagem musical que se pode interpretar pelo menosde duas maneiras. uma das diversas figuraes reiterativas que ocorrem numasrie de melodias que toca um flautista nande (ou konjo) de Butembo, no Zaire, efica claro, a partir do contexto musical, que ela d prazer ao msico e exprimeprincpios fundamentais da estrutura musical. O que a msica em si no deixa claro a natureza desses princpios. Um ouvinte com formao na msica tnica euro-pia pode perceber um movimento de e para um centro tonal, que ele descreveriacomo uma seqncia tnicadominantetnica. Mais genericamente, nos termosque Hindemith e outros adotaram, poder-se-ia descrev-la como uma seqnciamusical a exprimir repousotensorepouso. O msico nande pode tambm conce-ber a passagem como um movimento de e para um centro tonal, j que muita m-sica africana se estrutura deste modo, ainda que no pense ele nos termos espec-ficos de relaes entre tnica e dominante. Mas se considerarmos a sua performan-ce com relao experincia fsica de tapar os orifcios com os dedos, as relaestonais adquirem uma outra significao. O relaxamento fsico de retirar os dedos daflauta produz um som que harmonicamente tenso, enquanto que a tenso fsicade tapar alguns orifcios produz um som que harmonicamente relaxante.

    Frase musical utilizada em msica para flauta de Butembo

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    Dedilhado de flauta de Butembo, e sons produzidos

    representa obstruo do orifcio

    representa abertura de orifcio

    1. dedo MO DIREITA {

    2. dedo

    1. dedo MO ESQUERDA {

    2. dedo d e f g a

    Transformao Linguagem MODELO Linguagem Transformao

    nota na frase musicalHARMNICA FSICA

    (obstruo dos orifcios da flauta: dedilhado) nota na frase musicalL dominante TENSO 1 SolSol tnica RELAXAMENTO 0 LL dominante TENSO 1 SolSol tnica RELAXAMENTO 0 L

    Figura 2. Duas interpretaes possveis do mesmo trecho musical, usando um modelo ten-so / repouso e as respectivas linguagens harmnica e fsica.

    No sei qual destas interpretaes da msica correta no contexto da socie-dade nande, e no da musicalidade do msico em tela, Katsuba Mwongolo, ou se houtra explanao. Mas estou certo de que h, em ltima anlise, apenas uma ex-planao, e que uma anlise sensvel ao contexto, da msica na cultura, seria ca-paz de revel-la. Quanto analisei as melodias para flauta em 1955, estava a traba-lhar com gravaes comentadas e com um instrumento tpico que aprendi a tocar.No tinha qualquer experincia em primeira mo na cultura do msico, e nenhumaamostra do seu sistema musical, j que havia bem poucas gravaes disponveis.

    Posso levar mais f na anlise do equilbrio entre fatores fsicos e musicais nacriao das melodias que os nsenga tocam nas mbiras kalimba e ndimba, pois tra-balhei na Zmbia em 1961 com os msicos, aprendendo a tocar as melodias (bemmal), observando os diferentes contextos da performance, e ouvindo e gravandoinmeras outras peas de msica nsenga. S atravs do cotejo de informaes mu-sicais e extra-musicais foi possvel descobrir o que havia nas notas.

    possvel improvisar testes musicais no campo; e estes podem vir a ser osnicos meios para descobrir ou confirmar os princpios que geram a composiomusical. Por exemplo, os jovens venda tocam duetos em ocarinas, que chamam dezwipotoliyo, fabricando-as com pequenos frutos de dimetros variveis (c. 4,5 a 7cm.) nos quais abrem um buraco grande para soprar, e dois para tapar com os de-dos. Os sons possveis de se tocar nas ocarinas variam conforme o tamanho dasesferas, e o msico pode modificar a sua afinao com o sopro. Para duetos, osmsicos selecionam pares que soam bem, e portanto sua escolha indica quais osprincpios musicais que procuram expressar nos duetos. Elaborei um teste no qual,de todas as combinaes de ocarinas com afinaes diferentes, dois jovens selecio-nam a combinao mais satisfatria; a sonoridade dos duetos que se toca nestesinstrumentos revela, portanto, princpios tonais e harmnicos que possuem umaimportncia particular na msica para ocarina, e na msica venda em geral. AFigura 3 mostra trs destes padres, com suas progresses de base e seqnciaharmnica.

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    Trs duos para ocarina

    Progresses de base

    Seqncia harmnica

    Diagrama em escala de duas ocarinas dos venda, feitas de frutos ocos (A: de Strychnosspinosa Lam., a laranja selvagem; B: de Oncoba spinosa Forsk.)

    Figura 3. Princpios tonais e harmnicos na msica para ocarina dos venda.

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    Estes trs exemplos ilustram problemas que existem na anlise da msica dequalquer compositor ou cultura. Tambm chamam eles a ateno para os perigosda comparao entre msicas diversas tendo como parmetro nico o seu som.Ainda que o sentido da msica esteja, em ltima anlise, nas notas que o ouvidohumano percebe, possvel fazer vrias interpretaes estruturais de qualquer pa-dro sonoro, e dependendo da formao cultural e do estado emocional moment-neo dos seus ouvintes, pode ser que haja um nmero quase infinito de reaes in-dividuais sua estrutura.

    Contudo, quando se avalia o sistema musical dum nico compositor ou culturano seu contexto cultural total, possvel reduzir, em larga medida, o nmero deinterpretaes estruturais possveis. Mesmo quando a articulao do sistema cla-ra, a explanao estrutural nos termos daquele sistema pode ser incompleta. Porexemplo, sabemos bastante sobre a teoria e prtica da harmonia na msica artsti-ca europia no sculo dezenove, mas quando analisamos a msica de Hector Berli-oz, til saber que ele costumava experimentar encadeamentos harmnicos no vi-olo, e que a estrutura do instrumento determinou muitas das suas seqncias deacordes.

    Deixe-me ilustrar melhor o problema analtico atravs duma analogia com alingustica estrutural. Ao faz-lo, no estou a sugerir que a etnomusicologia devaempregar os mtodos da lingustica, ainda que as finalidades das anlises musical elingustica possam se parecer. No vejo razo alguma para supor que a msica sejaum tipo de linguagem, ou que tenha quaisquer relaes estruturais especiais com alinguagem, ou que os processos da linguagem sejam necessariamente mais funda-mentais que outras atividades culturais humanas. Contudo, as anlises do com-portamento da linguagem em Eric Lenneberg, Noam Chomsky e seus sucedneosapontam para caractersticas que apresentam paralelos com a msica. No me re-firo tanto ao fato bvio de que o som si pode ter uma significao estrutural e se-mntica diferente em lnguas diferentes, e que mesmo em ingls as palavras sea,see e see so diferentes, quanto variedade das estruturas que podem subjazer sestruturas superficiais duma lngua, ou seja, aos padres de palavras que ouvimose aos quais reagimos.

    Os falantes da lngua inglesa costumam compreender os encadeamentos depalavras de acordo com o contexto no qual se os ouve. Assim, conforme sugereLenneberg, o encadeamento they-are-boring-students tem duas interpretaessintticas possveis, mantendo relao direta com duas interpretaes semnticaspossveis [eles so estudantes chatos / eles esto chateando os estudantes]. A fra-se pode ser tanto um comentrio dos professores com respeito aos alunos {[(They)] [(are) ((boring) (students))]} onde boring [chato] um adjetivo; oupode ser um comentrio dos estudantes sobre os professores {[(They)] [(areboring) (students)]} onde boring [chateando] uma forma verbal infletida. Emmuitos casos, contudo, no h uma relao unvoca entre interpretaes sintticase semnticas. Chomsky mostrou que, no nvel superficial, a estrutura da expressoem gerndio the shooting of the hunters [o alvejamento dos caadores] pode seruma transformao seja da orao ativa hunters shoot [caadores alvejam], sejada passiva hunters are shot [caadores so alvejados].

    por conta deste tipo de relao entre estruturas profundas e superficiais queno podemos encarar a linguagem como uma questo de adequao de palavras acompartimentos gramaticais, de acordo com padres adquiridos, independentes dosprocessos cognitivos que os padres subentendem. H uma distncia enorme entrea orao ativa John is eager to please [John est ansioso para agradar] e a passi-

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    va John is easy to please [John fcil de se agradar], ainda que, na superfcie,haja alterao numa palavra apenas. Do mesmo modo, no podemos substituirshooting [alvejamento] por qualquer forma verbal similar, sem levar em conta asimplicaes semnticas que, por sua vez, trazem tona princpios estruturais di-versos. Em alguns contextos posso falar em the eating of the hunters [a alimen-tao dos caadores] do mesmo modo como the shooting of the hunters, porm,em todos os contextos que conheo, the drinking of the hunters [a bebedeira doscaadores] s pode ter uma interpretao estrutural e semntica. preciso consi-derar sempre as possibilidades lgicas, contudo, e em algumas culturas a ambigi-dade de expresses tais como the singing of the hunters [a cantoria dos caado-res] ou the dancing of the hunters [a dana dos caadores], que s podem sertransformaes de oraes ativas, podem se resolver na idia de que um homempode ser cantado ou ser danado.

    Podemos interpretar estruturas musicais, assim como seqncias de palavras,como fruto da adequao de sons musicais a compartimentos, seguindo as regrasde uma gramtica musical. Mas ignorar as estruturas profundas pode gerar confu-so. Deryck Cooke faz meno a uma conseqncia cmica de tal abordagem anlise musical em seu livro The Language of Music (Londres: Oxford UniversityPress. 1959: ex. 73, 186). Um amigo seu pensava, em segredo, que a canohumorstica Yes, we have no bananas (we have no bananas today) [Yes, ns te-mos bananas], popular no passado, fora gerada do seguinte modo:

    Exemplo 1

    Uma ilustrao mais sria da importncia das estruturas profundas na anlisemusical se nos apresenta em duas verses diferentes duma cano infantil venda,Funguvhu tanzwa mulomo! (vide Exemplo 2). As duas melodias so descritas comose fossem a mesma coisa, por serem elas transformaes da mesma estruturaprofunda, que , em essncia, uma seqncia harmnica qual uma articulaode palavras confere mpeto e contorno rtmicos. As notas duma melodia so osequivalentes harmnicos da outra.

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    Exemplo 2

    A primeira problemtica na avaliao da musicalidade humana tambm aquesto central da musicologia e da etnomusicologia. Trata-se da problemtica dadescrio do que ocorre numa pea musical. Ainda no somos capazes de explicar oque j sabemos intuitivamente, como resultado da experincia na cultura, a saber,as diferenas essenciais entre a msica de Haydn e Mozart, ou dos ndios flathead edos sioux. No basta conhecer as caractersticas distintivas dos concertos de pianode Mozart ou da orquestrao de Haydn: queremos saber com preciso como e porque Beethoven Beethoven, Mozart Mozart e Haydn Haydn. Todo compositortem um sistema cognitivo bsico que deixa a sua marca nas suas maiores obras,independente dos instrumentos para os quais foram elas escritas. Esse sistemacognitivo compreende todas as atividades cerebrais que sua coordenao motora,seus sentimentos e suas experincias culturais importam, bem como suas ativida-des sociais, intelectuais e musicais. Uma descrio precisa e compreensiva do sis-tema cognitivo do compositor ir, assim, dar ensejo s explanaes mais funda-mentais e potentes dos padres que sua msica conforma. Outrossim, se entendermelhor os estilos musicais em voga numa sociedade enquanto expresses de pro-cessos cognitivos, os quais se pode observar em operao na formao de outrasestruturas. Quando soubermos como esses processos cognitivos funcionam na pro-duo dos padres sonoros a que as diversas sociedades chamam de msica, es-taremos em melhores condies de descobrir quo musical o homem.

    O estudo da msica na cultura o que Alan Merriam advogou na sua impor-tante obra, The Anthropology of Music [A Antropologia da Msica] (Evanston, Illi-nois: Northwestern University Press. 1964), mas para explicar como um sistemamusical faz parte de outros sistemas de relaes dentro duma cultura, a etnomusi-cologia ainda fica a dever anlises culturais sistemticas da msica. No bastaidentificar um estilo musical caracterstico segundo os seus prprios termos, e con-sider-lo em relao respectiva sociedade (para parafrasear a definio de umadas metas da etnomusicologia, segundo Mantle Hood, que vem trabalhando maisnesse sentido que qualquer outro etnomusiclogo vivo). Temos de reconhecer quenenhum estilo musical apresenta os seus prprios termos: seus termos sero ostermos de sua sociedade e cultura, e dos corpos dos seres humanos que o escu-tam, que o criam e realizam.

    No podemos mais estudar a msica como uma coisa em si mesma, uma vezque a pesquisa etnomusicolgica deixa claro que as coisas musicais nem sempre

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    so estritamente musicais, e que a expresso de relaes tonais em padres sono-ros pode ser secundria com respeito s relaes extra-musicais que os tons repre-sentam. Podemos concordar que a msica o som que se organiza em padres so-cialmente aceitos, que a prtica musical pode ser vista como uma forma de com-portamento que se adquire, e que os estilos musicais se baseiam no que o homemoptou por selecionar da natureza como parte de sua expresso cultural, em con-traste com aquilo que a natureza imps a ele. Mas a natureza da qual o homemselecionou os seus estilos musicais no exterior a ele; ela compreende a sua pr-pria natureza as suas capacidades psicofsicas e as maneiras como estas foramestruturadas por suas experincias interativas com as pessoas e coisas, as quaisso parte do processo adaptativo de maturao na cultura. No sabemos quais des-sas capacidades psicofsicas, fora a audio, so essenciais para a prtica musical,ou se alguma delas especificamente musical. Parece que as atividades musicaisse associam a partes especficas do crebro, e que estas so distintas dos centrosda linguagem. Mas jamais no saberemos o que procurar at que estudemos osprocessos criativos que esto presentes mesmo numa performance musical erudita,do mesmo modo como se apresentam nas frases dum linguajar erudito.

    A pretenso da etnomusicologia de ser um novo mtodo de anlise da msicae da histria da msica haver de se basear numa premissa em grande parte aindano aceita, a saber, que em sendo a msica a organizao humana do som, h dehaver uma correlao entre os padres de organizao humana e os padres so-noros que se produz enquanto fruto da interao humana. Me interesso sobrema-neira pela anlise das estruturas musicais, porque este o primeiro passo em dire-o ao entendimento dos processos musicais e, portanto, avaliao da musicali-dade. Talvez jamais no sejamos capazes de entender exatamente como outra pes-soa se sente com respeito a uma pea musical, mas qui possamos entender osfatores estruturais que geram os sentimentos. A ateno funo da msica na so-ciedade necessria apenas na medida em que pode nos ajudar a explicar as es-truturas. Ainda que venha eu a discorrer sobre os usos e efeitos da msica, o queme interessa por princpio o que a msica , no para que serve a msica. Sesoubermos o que ela , poderemos conseguir empreg-la e desenvolv-la em mui-tos modos que ainda no se imaginou, mas que a ela so inerentes.

    O som pode ser o objeto, mas o homem o sujeito; e a chave para se enten-der a msica est nas relaes que existem entre sujeito e objeto, o princpio ativode organizao. Stravinsky expressou isso com a clareza que lhe caracterstica,quando falou de sua prpria msica tnica: a msica nos dada com o nico pro-psito de estabelecer uma ordem nas coisas, inclusive, e sobretudo, a coordenaoentre homem e tempo (Chronicle of my Life [Crnica da Minha Vida]. Londres: Go-llancz. 1937: 83). Cada cultura tem seu ritmo prprio, porquanto a experinciaconsciente se ordena em ciclos de mudana sazonal, crescimento fsico, vida ealm-tmulo, sucesso poltica, ou quaisquer outros aspectos recorrentes a que seconfere significao. Podemos dizer que a experincia ordinria do cotidiano temlugar no mundo do tempo real. A qualidade essencial da msica o seu poder decriar um outro mundo, de tempo virtual.

    No sistema musical dos venda, o ritmo que distingue o som (u imba) da fala(u amba), de modo tal que os padres de palavras que se recita numa mtrica re-gular se chamam canes. Tanto Stravinsky quanto os venda insistem que a msi-ca importa o homem. As pulsaes regulares dum motor ou duma bomba podemsoar como o toque dum tambor, mas nenhum venda as entenderia como msica,ou esperaria que elas o sensibilizassem, pois a sua ordem no um produto diretode seres humanos. O som de instrumentos eletrnicos ou dum sintetizador Moog

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    no estaria fora do mbito da experincia musical, na medida em que apenas otimbre, e no o mtodo de ordenamento, estaria fora do controle humano. A msi-ca dos venda no se fundamenta na melodia, mas na excitao rtmica de todo ocorpo, da qual o canto s uma decorrncia. Portanto, quando parece que escuta-mos uma pausa entre duas batidas de tambor, devemos nos dar conta de que, parao executante, no se tratar duma pausa: cada batida de tambor parte dum mo-vimento total do corpo, no qual a mo ou uma baqueta percute a pele do tambor.

    Estes princpios se aplicam cano infantil Tshidula tsha Musingadi (Exemplo3) que, para os venda, msica, e no fala ou poesia.

    Exemplo 3

    Seria de se esperar que a cabea do tempo casse nas slabas -du, tsha e-nga-, que se acentua na execuo. Mas quando as pessoas batem palmas juntocom a cano, batem elas nas slabas Tshi-, -la, -si- e -di, de modo que no hpausa no quarto tempo, mas um padro total de quatro tempos que se pode repetirquantas vezes quiser, mas nunca menos que uma vez, se for para qualific-lo comocano e no fala.

    A msica venda francamente poltica, porquanto se a executa em diversoscontextos polticos e, com freqncia, com fins polticos especficos. Tambm po-ltica porque pode envolver as pessoas numa experincia comum marcante, dentrodo mbito de sua experincia cultural, tornando-as, portanto, mais conscientes desi mesmas e de suas responsabilidades umas para com as outras. Muthu ndi mu-thu nga vhanwe, dizem os venda: O homem homem graas s suas ligaescom outros homens. A msica venda no uma fuga da realidade; uma aven-tura na realidade, a realidade do mundo do esprito. uma experincia do devir, naqual a conscincia individual se alimenta da conscincia coletiva da comunidade, eassim se torna fonte de formas culturais mais ricas. Por exemplo, se dois percussi-onistas tocam exatamente o mesmo ritmo superficial, mas mantm uma diferenaindividual, interna, do ritmo ou do pulso, o que produzem mais que produtos indi-viduais. Assim, a combinao de uma batida simples na execuo de duas pessoas,em andamentos diferentes, resulta em:

    Exemplo 4

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    Uma combinao de ritmos imbicos com cabeas de tempo diferentes poderesultar em:

    Exemplo 5

    Outras combinaes so ilustradas na Figura 4, a demonstrar como a mesmaestrutura superficial pode resultar de processos diferentes, envolvendo um, dois, outrs msicos.

    Figura 4. Maneiras diferentes pelas quais um, dois ou trs instrumentistas podem produziras mesmas estruturas musicais.

    Seria uma rude distoro descrever estes padres sonoros, com organizaesdiversas, como objetos snicos iguais, s porque soam iguais. Mesmo reconhecen-do a maneira pela qual se produz os sons, seria imprprio, no contexto da msicavenda, descrev-los como exemplos de polirritmia. Deve-se descrev-los, primeiro,nos termos dos processos cognitivos e comportamentais que so prprios da cul-tura venda.

    Uma anlise cultural de alguns dos ritmos na Figura 4 no seria aquela queapenas assinalasse que se os usa desta ou daquela maneira, em certas ocasiesespecficas. No seria uma nota de programa a delinear o contexto da msica, masum artifcio analtico a descrever a sua estrutura enquanto expresso de padresculturais. Assim, no so floreios musicais os toques de ritmos em combinaes dedois ou trs instrumentistas que, na realidade, um poderia executar: expressameles conceituaes da individualidade na comunidade, e de equilbrio social, tem-poral e espacial, que se encontram noutros aspectos da cultura venda e noutros ti-pos de msica venda. Ritmos como esses no se os pode executar com justeza, amenos que os instrumentistas sejam seus prprios regentes, e que, ao mesmotempo, se submetam eles ao ritmo dum regente invisvel. Este o tipo de experi-ncia em comum que os venda almejam e expressam em sua prtica musical, euma anlise de sua msica que ignore tais fatos ser to incompleta quanto umaanlise da Vespro della Beata Vergine de 1610, de Monteverdi, que no leve em

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    conta o pano de fundo litrgico, as primeiras obras sacras do compositor, o seuservio aos duques de Gonzaga e suas primeiras experincias com a pera.

    No se pode desvincular as anlises funcionais acerca da estrutura musicaldas anlises estruturais acerca da sua funo social: no se pode explicar de modojusto a funo dos sons musicais em relao uns aos outros, como partes dum sis-tema fechado, sem referncia s estruturas do sistema sociocultural do qual a m-sica faz parte, ao sistema biolgico ao qual pertencem todos aqueles que fazemmsica. A etnomusicologia no apenas uma rea de estudos que trata da msicaextica, nem uma musicologia do que tnico uma disciplina que mantm aesperana duma compreenso mais profunda de qualquer msica. Se possvelanalisar e compreender certas msicas como expresses tonais da experincia hu-mana, no contexto de diferentes tipos de organizao social e cultural, no vejo omotivo por que no se deveria analisar qualquer msica do mesmo modo.

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    MSICA NA SOCIEDADE E NA CULTURA

    Descrevi a msica enquanto som humanamente organizado. Argumentei quedevemos procurar relaes entre os padres de organizao humana e os padressonoros que se produz como fruto de organizao interativa. Reforcei esta proposi-o geral fazendo referncia aos conceitos de msica que so comuns entre osvenda do Transval Setentrional. Os venda tambm compartilham a experincia dofazer musical, e sem essa experincia haveria muito pouca msica. A produo dospadres sonoros que os venda chamam de msica depende primeiro da continuida-de dos grupos sociais que os produzem e, segundo, da maneira como os membrosdestes grupos se relacionam entre si.

    Para descobrirmos o que a msica , e quo musical o homem, precisamosperguntar quem ouve e quem toca e canta em qualquer dada sociedade, e o por-qu. Tal uma pergunta sociolgica, e pode-se comparar situaes em sociedadesdiversas sem qualquer referncia s formas superficiais da msica, pois que esta-mos interessados apenas na sua funo na vida social. Neste aspecto, pode nohaver quaisquer diferenas significativas entre a Msica Negra, a Msica Country ouWestern, a Msica Pop ou o Rock, as peras, a Msica Sinfnica ou o Cantocho. Oque no diz nada a algum pode mexer com outrem, no graas a qualquer quali-dade absoluta na msica em si, mas graas ao que a msica veio a significar paraele enquanto integrante duma sociedade ou grupo social em particular. Devemosnos lembrar tambm que, se podemos ter nossas prprias preferncias pessoais,no podemos julgar a eficcia da msica ou dos sentimentos dos msicos com basenaquilo que parece ela provocar nas pessoas. Se um velho mestre cego, na inicia-o dos venda, ouve em silncio uma gravao dum canto inicitico domba, nopodemos valorar a eficcia da msica como maior ou menor que a da banda degaitas de Spokes Mashiyane, de Joanesburgo, que lhe enfadonha mas atrai o seuneto. No podemos afirmar que os kwakiutl so mais emotivos que os hopi porqueseu jeito de danar parece, aos nossos olhos, mais exttico. Algumas culturas, oualguns tipos de msica e dana dentro duma cultura, podem promover a internali-zao consciente das emoes, mas isso no quer dizer que sejam estas menosintensas. As experincias msticas ou psicodlicas dum homem podem no ser vis-tas ou sentidas por seus circunstantes, mas no se pode rejeit-las por irrelevantespara a vida dele em sociedade.

    Os mesmos critrios de julgamento deveriam se aplicar s diferenas apa-rentes na complexidade superficial da msica, que tendemos a encarar nos mesmostermos que os de outros produtos culturais. J que se pode relacionar a complexi-dade crescente de carros, avies e muitas outras mquinas sua eficcia comomeios de comunicao, costuma-se supor que, outrossim, o desenvolvimento tcni-co na msica e nas artes deve ser indicao duma expresso mais profunda oumelhor. Minha sugesto que a popularidade de alguma msica indiana na Europae na Amrica do Norte no estranha ao fato que aparenta ela uma virtuosidadetcnica, ao mesmo passo que d prazer aos ouvidos e acarreta um filosofar profun-do. Quando tento despertar o interesse dos meus alunos pela sonoridade da msicaafricana, sei que tendo tambm a atrair a sua ateno para os feitos tcnicos da

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    performance, por serem estes mas imediatos apreciao. No obstante, a simpli-cidade ou complexidade da msica , em ltima anlise, irrelevante: a equao nodeveria ser MENOS = MELHOR ou MAIS = MELHOR, mas MAIS ou MENOS = DIFE-RENTE. o contedo humano do som humanamente organizado o que mexe comas pessoas. Mesmo que tal venha tona como um contorno meldico ou harmni-co, como um objeto sonoro digamos, a sua origem ainda o pensamento dum serhumano sensvel, e essa sensibilidade que pode estimular (ou no) sentimentosnoutro ser humano, da mesma maneira como impulsos magnticos transmitemuma conversa telefnica dum interlocutor a outro.

    A questo da complexidade musical se torna importante apenas quando ten-tamos avaliar a musicalidade humana. Suponha que eu argumentasse que, por ha-ver certas sociedades em que as pessoas so to competentes em msica quantotodas as pessoas o so na linguagem, a msica pode ser um trao constituinte daespcie humana. Alguns iro por certo retorquir que a evidncia duma distribuiogeral da capacidade auditiva e de performance entre os venda e outras sociedadesaparentemente musicais no seria passvel de comparao com a distribuio res-trita da capacidade musical na Inglaterra, digamos, pois que a complexidade damsica inglesa tal que apenas uns poucos podem domin-la. Noutras palavras, sea msica inglesa fosse to elementar quanto a msica dos venda, ento claro quea musicalidade dos ingleses seria to genrica quanto a dos venda! A implicao demaior alcance deste raciocnio que o desenvolvimento tecnolgico acarreta um n-vel de excluso social: constituir uma platia passiva o preo que alguns devempagar por fazer parte duma sociedade superior, cuja superioridade se mantm pelahabilidade excepcional duns poucos eleitos. O nvel tcnico do que se define comomusicalidade entra ento em questo, e possvel que se tenha algumas pessoaspor anti-musicais. com base em tais pressupostos que se estimula ou anestesia ahabilidade musical em muitas sociedades industriais modernas. Esses pressupostosesto em oposio diametral idia dos venda de que todo ser humano normal apto performance musical.

    A questo da complexidade musical irrelevante em qualquer consideraoacerca da universalidade da competncia musical. Primeiro, no seio dum nico sis-tema musical, a maior complexidade musical pode ser como que uma extenso dovocabulrio, que no altera os princpios bsicos da gramtica e no faz sentidosem eles. Em segundo lugar, a cognio humana incomensuravelmente maiscomplexa do que o que quer que homens e culturas produzam de particular. Acimade tudo, a eficcia funcional da msica parece ser mais importante para os ouvintesque a sua complexidade ou simplicidade superficial. De que vale ser o maior pia-nista do mundo, ou compor a msica mais inteligente, se ningum quer ouvir? Deque vale ao homem inventar e empregar novos sons apenas pelo seu valor intrnse-co? Ser que sons novos significam qualquer coisa na cultura venda, por exemplo,em termos de novos grupos e mudana social? Por que sequer cantar e danar? Porque se preocupar em melhorar a tcnica musical se a finalidade da performance ocompartilhamento da experincia social?

    As funes da msica na sociedade podem ser o fator decisivo na promooou inibio da habilidade musical latente, bem como influenciar na escolha culturalde conceitos e materiais com os quais se compe msica. No seremos capazes deexplicar os princpios da composio at que entendamos melhor a relao entre aexperincia humana e a musical. Se eu descrever algumas das funes da msicana sociedade venda, talvez o novo conhecimento possa estimular uma compreen-so maior de processos semelhantes noutras sociedades. Assim foi, com certeza, aminha prpria experincia. Desde a minha estadia inicial de dois anos do distrito de

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    Sibasa, entre 1956 e 1958, e como conseqncia de trabalhos de campo subse-quentes noutros lugares da frica, vim a compreender a minha prpria sociedadecom maior clareza, e aprendi a apreciar melhor a minha prpria msica. No sei seas minhas anlises da msica venda esto corretas ou no: tirei grande proveitodas crticas dos venda, que foram amveis a ponto de discutir meus dados e con-cluses, mas possvel que haja outras interpretaes que at ento nos escapa-ram. Seja qual for o juzo final sobre minhas anlises da msica venda, espero queas minhas descobertas possam desempenhar um pequeno papel no resgate dascondies de dignidade e liberdade originais sob as quais aflorou a sua tradiomusical.

    Os venda somam cerca de trezentos mil, e a maioria deles vive na regio ru-ral subdesenvolvida que lhes coube quando os colonos brancos tomaram o restantede suas terras para o plantio e a minerao. Em comparao com os mais de dozemilhes de negros sul-africanos, que se repartem entre os zulu, xosa e soto-tswana, os venda podem parecer insignificantes. E no entretanto o governo sul-africano vem demonstrando muito interesse por neles, levando a cabo importantesexerccios militares em suas ditas terras nativas. Pois os venda vivem nas monta-nhas Zoutpansberg e cercanias, junto fronteira norte da repblica branca da fri-ca do Sul. Desde que l estive, em 1958, mais e mais brancos vm se estabelecen-do em terras que um dia se reservara para os negros.

    Em 1899 os venda figuravam como os ltimos sul-africanos a se submeter aodomnio dos beres. Eles esto numa boa posio para se tornarem os primeiros aconquistar sua liberdade completa. Os ancestrais de alguns dos cls dos venda vivi-am em suas terras bem antes dos brancos aportarem na Cidade do Cabo, e conse-guiram manter a sua identidade mesmo aps aceitarem o domnio dos invasoresnegros do norte, h cerca de duzentos anos. Os venda so pacifistas de corao,tendo um dito: Mudi wa gozwi a u na malila (No lar do covarde no h lgri-mas). Quando seu pas sofreu a invaso posterior, do sul, dos negros que estavama fugir do avano dos brancos, os venda preferiram recuar para a segurana de su-as montanhas e esper-los passar. Eram relutantes em aceitar inovaes culturaisou incorporar estranhos ao seu sistema poltico, em termos que poderiam diminuir,ao invs de aumentar, a cooperao e a o humanitarismo (vhuthu) em sua socie-dade. Por outro lado, durante a segunda metade do sculo dezenove, os vendaadotaram e aceitaram, como canes de povos que falam venda, diversas canese estilos de msica de seus vizinhos ao norte e ao sul.

    Pode parecer estranho que um povo to musical tivesse manifesto pouco in-teresse, e pouca habilidade relativa, nos sons e nas tcnicas da msica europia.As razes so em parte tcnicas, mas sobretudo polticas. Primeiro, o tipo de msi-ca que se disseminou em misses e escolas foi, com freqncia, o tipo de msicainstitucional europia da mais sem graa, e mesmo a melhor msica sofreria a dis-toro invarivel decorrente da maneira na qual os brancos a ensinavam. No hou-ve nenhum contato real com o idioma original, com o qual no tinham familiarida-de; nenhum dos europeus que transmitiam a tradio eram msicos com boa for-mao, e assim tanto eles, como os africanos que formavam, costumavam ser toincertos sobre a leitura correta das partituras quanto aqueles a quem ensinavam.Os especialistas brancos os asseguravam que o sentimento e a expresso (quecostumava redundar na vestimenta de uniformes vistosos em competies de cantoentre as escolas) eram mais importantes que a preciso. Tal uma noo bem es-tranha msica tradicional dos venda, na qual sempre se pressupe a preciso e,em geral, pressuposto o sentimento, entretanto possui ela fora suficiente paraprovocar conseqncias desastrosas no processo de assimilao da msica euro-

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    pia, e da no ser surpresa que, no geral, no conseguissem os venda, musicais naaparncia, uma proficincia na interpretao da msica europia, mesmo quandoquisessem t-la.

    No h dvida de que fatores polticos eram ainda mais significantes que asbarreiras tcnicas que descrevi. Ainda que a evangelizao e educao que trouxe-ram os missionrios tivessem uma boa recepo inicial da parte dos venda, a admi-nistrao branca e a explorao comercial que veio a seguir no o tiveram. Desde1900 que os venda no podiam se recolher a seus abrigos nas montanhas, tal comofaziam nas invases anteriores. Uma fora fsica superior os coagira a se submetera um sistema autoritrio que contradiz a democracia tradicional africana. Seria sur-preendente, portanto, que a indiferena e mesmo hostilidade para com a msicaeuropia devesse acompanhar a sua resistncia dominao branca? A reao ge-nrica msica europia condiz com a funo da msica em sua sociedade, e deveser vista com um fenmeno tanto sociolgico quanto musical.

    Muito da msica dos venda circunstancial, e sua performance uma indica-o da atividade de grupos sociais. A maioria dos adultos venda sabe o que est sepassando pela mera audio de seus sons. Durante a iniciao das moas, se umainicianda est a ser levada ao rio ou de volta sua cabana de iniciao, as mulhe-res e crianas que a acompanham alertam as pessoas da sua aproximao comuma cano especfica, na qual se estala o lbio inferior com o indicador.

    Exemplo 6

    A cano a seguir, com seu inslito preldio, indica que uma novia est a serconduzida de sua casa para a iniciao. A melodia ser reconhecvel mesmo para asmulheres que no conseguirem escutar a letra.

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    Exemplo 7

    Ao longo dos diversos estgios da formao das meninas, a instruo se d,tanto direta quanto indiretamente, atravs de danas simblicas, que costumamser exerccios fsicos bem extenuantes, a se realizar com uma diversidade de com-plexos ritmos. H uma cano que pede que as meninas no faam fofoca.

    Exemplo 8

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    Os Venda aprendem a compreender os sons da msica tal como compreen-dem a fala. No distinguem menos de dezesseis estilos diferentes, com diferentesritmos e combinaes de cantores e instrumentos; e dentro destes estilos, h sub-divises ulteriores de estilo, bem como cantos diferentes dentro de cada diviso.Por exemplo, na escola sugwi, de iniciao para meninas, h quatro tipos principaisde canto:

    1. Nyimbo dza u sevhetha (cantos para danar em roda) as cantam as meni-nas ao danar em sentido anti-horrio, num crculo ao redor dos tambo-res. O andamento dos cantos rpido, e a sua cano mais freqenteque qualquer outro tipo de canto na escola. Na mesma categoria h doiscantos com ritmos especiais, um canto de despedida (luimbo lwa u ede-la, literalmente o canto para dormir), que sempre termina a seo; e umcanto de recrutamento, que as pessoas mais velhas cantam quando vo arecrutar.

    2. Nyimbo dza vhahwira (cantos dos cantores mascarados) se as cantaquando os danarinos mascarados danam defronte as meninas. O anda-mento varia, com episdios rpidos e lentos a acompanhar as diversasetapas da dana, e ritmos distintos a marcar os vrios passos.

    3. Nyimbo dza dzingoma (cantos para ritos especiais) acompanha certas pro-vaes que as novias devem sofrer quando esto no segundo estgio dainiciao. Cada qual possui um padro rtmico distinto.

    4. Nyimbo dza milayo (cantos das leis da escola) as cantam as novias equalquer iniciada presente. Elas se ajoelham no cho junto aos tamboresenquanto muluvhe, a menina a quem se confia as novias, conduz a can-o.

    A Figura 5 resume os diferentes tipos de msica comunal que os venda reco-nhecem, e indica as pocas do ano em que se as pode ou no executar.

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    MSICA COMUNAL DOS VENDA

    OutubroTshimedzi

    NovembroLara

    DezembroNyendavhusiku

    JaneiroPhando

    FevereiroLuhukwi

    MaroThafamuhwe

    AbrilLambamei

    MaioShundunthule

    JunhoFulwi

    JulhoFulwana

    AgostoThanguie

    SetembroKhuvbumedzi

    TRABALHO DESCANSOEXAMES ESCOLARES FRIAS ESCOLARES FRIAS ESCOLARES

    PRIMAVERA V E R O O U T O N O I N V E R N O PRIMAVERAt s h i l i m o t s h i f h e f h o v h u r u h a o u m a r i h a

    T E M P O D E R O A R l u t a v u l a mavhuya-hayaTEMPO DE IR PARA CASA

    m a d z u l a - h a y aTEMPO DE FICAR EM CASA

    C H U V A S CHUVAS FORTES S E M P A S T O R E I OOS ANIMAIS PASTAM SOLTOS NOS CAMPOS DE

    MILHO

    P L A N T I O L I M P E Z A PRIMEIRAS ESPIGASDE MILHO VERDE

    COL HE ITAz w i k o l i COLETA DE AMENDOINS

    R O A R

    CANTOS DE TRABALHO

    L I M P A R

    ny imbodza d avhaP E N E I R A R EC O N S T R U I R C A S A S

    1 CANTOS DE PILARCANTOS DE CERVEJA

    m a f h u w em a l e n d e

    DDIVAS DE CERVEJA DEDOADORES A TOMADORESDE MULHERES

    mirulavho-makhutuvhakwasha

    2 CANTOS INFANTIS ny imbo d za vhana ESTRIAS E CANTOS ngano EM CASA, APS O ESCURECERPEAS DE DANA dzombo, nzekenzeke, tshinzerere, tshifhaseAO AR LIVRE, EM NOITES DE LUA

    3 DANAS DE MENINAS COM TAMBORES tshigombela

    4 DANAS DE MENINOS COM FLAUTAS DE CANIO [PENTATNICAS] E TAMBOREStshikanganga, givha, visa

    5 EXPEDIES MUSICAIS mabepha tshikona tshigombelaDA CIDADE, tshikanganga, etc.NA PSCOA

    tshigombelatshikona, tshikanganga, etc.

    6 ESCOLA DE CIRCUNCISO DOS MENINOS

    m u r u n d u

    7 ESCOLA DE CIRCUNCISO DAS MENINAS sungw i o u musevhe th o P E R O D O S D E C E R C A D E T R S M E S E S A O L O N G O D O A N O ,

    C O M I N T E R V A L O S D E D E S C A N S O

    8 DANAS DE POSSESSO tshelet [literalmente CHOCALHO DE MO] DANADA EM CASA QUANDO SE ATRIBUI ADOENA AO DESEJO DOS ESPRITOS DE ENTRAR NO CORPO DA VTIMA

    ngoma dza midzimu, na dza malombo[literalmente TAMBORES DOS ESPRITOS ANCESTRAIS, etc.]EXECUTADA AO AR LIVRE POR DE 4 A 6 DIAS

    9 ESCOLA DE INICIAO DAS MENINAS vhusha REALIZADA QUANDO SE RELATA A PUBERDADE DA MENINA AO CHEFE. CADA SEO DURA 6 DIAS10 ESCOLA DE INICIAO DAS MENINAS tsh i k anda

    REALIZADA APENAS ANTES DO INCIO DA domba NA REGIO. DURA UM MS

    11 ESCOLA DE INICIAO PR-MARITAL DE MENINOS E MENINAS d o m b aREALIZADA POR CHEFES E LIDERANAS EM INTERVALOS DE CERCA DE 5 ANOS EM CADA REGIO, E APS A ASCENSO DUM NOVO GOVERNANTE

    12 DANA NACIONAL COM FLAUTAS DE CANIO [HEPTATNICAS] E TAMBORES t s h i k o n aPARA NOMEAR OU PRESTAR EXQUIAS A UM GOVERNANTE, PARA RITOS SACRIFICIAIS thevula EM TMULOS DOS ANCESTRAIS DE GOVERNANTESPARA QUALQUER OCASIO IMPORTANTE

    13 MSICA DE IGREJAS SEPARATISTAS ny imbo d za z i o n

    14 MSICA DE IGREJAS SOB DIREO EUROPIA ny imbo d za vha tend i

    15 MSICA DE ESCOLA ny imbo d za t sh i k o lo

    16MSICA SECULAR MODERNA E LEVE, JAZZ, etc. ny imbo d za t sh i khuwa, d za dzha i v i , e tc .PARA CASAMENTOS, FESTAS DE ANIVERSRIO, EVENTOS SOCIAIS, etc. APRENDIDA ATRAVS DE CONTATOS URBANOS, DE GRAVAES, etc.

    N.B. AS LINHAS CONTNUAS INDICAM PERFORMANCES DIRIAS, OU AO MENOS REGULARES, AO LONGO DO PERODO EM QUESTOAS LINHAS PONTILHADAS INDICAM PERFORMANCES IRREGULARES

    Figura 5. Diagramas a mostrar os diferentes tipos de msica comunal que os venda reco-nhecem, e a indicar as pocas do ano em que se as pode ou no executar.

    Ainda que, no geral, os venda classifiquem a sua msica de acordo com o seucontexto social, e o nome de cada evento e de sua msica costume ser o mesmo,os critrios de discriminao so formais e musicais. pelo seu som, e sobretudopelo seu ritmo e configurao do seu conjunto vocal e / ou instrumental, que se re-conhece o emprego da msica. Os contextos nos quais se canta os cantos no soexclusivos, mas a maneira em que se os canta costuma ser uma determinao do

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    contexto. Assim, um canto de beber cerveja pode se transformar num canto debrincadeira para a iniciao feminina domba, caso em que se pode juntar umacompanhamento de tambor e elaborar a forma perguntaresposta num encadea-mento seqencial de frases. Outrossim, possvel realizar muitas variaes dife-rentes da dana nacional, tshikona, nos instrumentos musicais dos venda. Elas so-am diferentes, mas todas se chamam tshikona, e se as concebe como variaes so-bre um tema nas linguagens dos diversos instrumentos.

    Quando os venda debatem ou classificam os diferentes tipos de canto, costu-mam distinguir entre os cantos que so prprios para a ocasio, e aqueles que seadotou e adaptou. Por acreditar que este fenmeno comum na msica da fricaCentral e Meridional, e que necessita duma investigao cuidadosa em trabalhos decampo, vou mencionar um exemplo particularmente bom, com que me depareiquando trabalhava com os gwembe tonga, da Zmbia. Gravei o que foi descritopara mim como um canto de moagem, e o contexto me deixou poucas dvidas so-bre o seu emprego. Num contexto diferente, se me descreveu a mesma melodiacomo um canto de dana mankuntu, para crianas pequenas, e o novo contextotambm me deixou poucas dvidas sobre o seu uso. As nicas diferenas entre asduas performances ocorriam no seu ritmo, andamento e contexto social. O cantono era, na verdade, um canto de moagem, mas um canto que se cantava en-quanto se moa. Ocorria que um canto de dana mankuntu estava em voga na po-ca, e o uso que lhe dava a mulher enquanto moa era comparvel performance deHark, the Herald Angels Sing! [Ouvi, os Anjos Cantam a Anunciar!] quando selava roupa no Natal.

    As maneiras como os povos classificam os cantos, de acordo com a forma e ocontexto, podem constituir indcios importantes sobre os processos de transforma-o musicais e extra-musicais que so admissveis numa cultura. Por exemplo, hum canto dos venda sobre solido e morte que ouvi uma vez numa festa, numainterpretao muito expressiva, porm sem o menor trao de tristeza. Noutra oca-sio, conversava um dia com um velho cego, mestre de iniciao, quando ele co-meou de sbito a cantar esse mesmo canto. Estava ele a ponto de levantar e dan-ar quando o seu filho o interrompeu, dizendo: No dance, meu velho!. Por estarseu pai a cantar um canto triste, deveria estar cheio de tristeza, no havendo assimmotivo nenhum para intensificar a emoo danando, sobretudo uma vez que haviao risco dele cair e se machucar. O filho se sensibilizara profundamente, mas quandoperguntei a ele sobre o canto, respondeu apenas que era um canto de beber cer-veja. Ele poderia t-la descrito como um canto triste, mas preferiu mencionar asua classificao formal.

    O valor da msica na sociedade, e seus efeitos diferenciais nas pessoas, po-dem ser fatores essenciais no crescimento ou na atrofia das habilidades musicais, eo interesse das pessoas na prpria msica pode ser menor que nas atividades soci-ais que se relacionam ela. Por outro lado, a habilidade musical jamais se desen-volve sem uma certa motivao extra-musical. Para cada criana prodigiosa cujointeresse e habilidade se esvaneceram, por um incapacidade sua de relacionar amsica com a convivncia com seus companheiros, deve haver milhares de pessoasque hoje apreciam a msica como parte da experincia de vida, e lamentam pro-fundamente ter negligenciado a prtica musical, ou no ter aprendido a tocar uminstrumento. Vem-se mitigando este conflito, em grande parte, com certos progra-mas de educao musical, mas a combinao de atividades sociais, fsicas e musi-cais no to total quanto na sociedade venda. Quando eu via os jovens vendadesenvolvendo seus corpos, suas amizades e sua sensibilidade na dana comunal,no podia deixar de lamentar as centenas de tardes que perdi no campo de rgbi e

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    nos ringues de boxe. que me educavam ento no para cooperar, mas para com-petir. A prpria msica se apresentava como uma experincia mais competitiva quecomunitria.

    Ainda que a estrutura da maior parte da msica dos venda pressuponha umalto grau de cooperao na performance, seria errneo sugerir que todas as experi-ncias musicais e suas associaes sociais tambm so comunitrias. Por exemplo,no ltimo dia da iniciao feminina tshikanda, a postura melanclica, silenciosa dasiniciandas fazia um forte contraste em relao excitao do canto e da dana dasvelhas senhoras oficiantes e das demais participante iniciadas. Apesar das meninasapresentarem uma demonstrao de humildade e desprendimento, difcil crer queesto elas a mascarar o que quer que esteja alm da resignao e indiferena msica que lhes solicitaram que interpretassem. Quando as perguntei sobre suasreaes, notei uma diferena significativa entre o a tradio das meninas e o a tradio. legal!, dos adultos.

    Outrossim, os excitantes ritmos da dana de possesso dos venda (ngomadza midzumi) no provocam transe em qualquer venda. Eles o provocam apenasnos participantes do culto, e s quando esto danando l em suas prprias casas,nas quais os espritos ancestrais que os possuem se sentem vontade. A eficciada msica depende do contexto, tanto aquele no qual se a interpreta, quanto ondese a ouve. Mas depender, em ltima anlise, da msica, conforme descobri numavez em que tocava um dos tambores. Os danarinos se revezam para entrar naarena, e no princpio ningum se queixava das minhas tentativas. No muito maistarde, contudo, uma senhora de idade comeou a danar e, como se tocava a m-sica da sua sociedade de culto, era de se esperar que entrasse ela em transe. Paroudepois de alguns minutos, contudo, e insistiu para que outro percussionista mesubstitusse! Alegou ela que eu estava a estragar o efeito da msica, ao apressar oandamento o que bastava, suponho, para inibir o princpio do transe.

    A maneira em que a msica da dana de possesso se torna eficaz sugere queo parentesco um fator to importante quanto o ritmo musical, nos seus efeitossobre as pessoas. Mas no so tanto as relaes de sangue, quanto as suas impli-caes sociais que so fatores decisivos, e no tanto a msica, quanto o seu ambi-ente social e as atitudes que se desenrolam em torno dela. Afinal, se a msica dadana de possesso tem o poder de bolar uma mulher num momento, por que noo faria num outro? Ser que a situao social que inibe efeitos musicais via de re-gra poderosos? Ou ser que a msica, sem o reforo duma srie de circunstnciassociais especiais, andina? So indcios como estes que me fazem ctico quanto atestes de associao musical aos quais se submeteram sujeitos em situaes artifi-ciosas e antisociais, as quais os criadores da msica jamais imaginaram. Sob taiscondies, a msica no pode deixar de perder toda significao ou, no mnimo, adiversidade de suas significaes est para alm da conta. Isso tambm levantauma outra questo: j que a msica no pode exprimir nada que seja extra-musical, poder ela sequer comunicar, a menos que a experincia qual se referej exista na mente do ouvinte, qualquer coisa para mentes mal preparadas ou pou-co receptivas? Ser que mesmo um ritmo poderoso incapaz de excitar uma pes-soa mal preparada? Ou ser que as mulheres venda ficam impassveis porque noesto dispostas? No tenho resposta para tal, mas meu prprio amor msica eminha convico de que ela seja mais que um comportamento adquirido me fazemter esperana de que so as inibies sociais que so poderosas, no a msicaque carece de poder.

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    Voltemos questo do parentesco no desenvolvimento da habilidade musical.Os venda podem desprezar a possibilidade de humanos serem anti-musicais, masreconhecem que algumas pessoas fazem msica melhor que outras. O juzo se ba-seia na exibio de brilho tcnico e originalidade da parte do msico, e no vigor ena suficincia de sua execuo. Considera-se que quem quer que se d ao trabalhode aperfeioar a sua tcnica o faz por ter um envolvimento profundo com a msica,enquanto meio de compartilhar alguma experincia com seus semelhantes. No aceitvel o desejo sincero de exprimir sentimentos como desculpa para uma per-formance inexata ou incompetente, conforme si ocorrer no confuso mundo popmoderno e na dita msica folclrica. Se uma pessoa quer exprimir o que lhe pr-prio, suposto que o far bem feito. O juzo sobre a habilidade dum mestre per-cussionista (matsige) numa dana de possesso feito com base nos sons que eleproduz, no pelo quanto lana ele olhares e saracoteia o seu corpo.

    Os venda podem sugerir que uma habilidade musical excepcional heranabiolgica, mas na prtica reconhecem que os fatores sociais desempenham o papelmais importante na sua efetivao ou inibio. Um menino de ascendncia nobrepode, por exemplo, manifestar grande talento, mas de se esperar que, quandocrescer, abandonar a prtica musical regular em favor de funes administrativasmais srias (para ele). Tal no quer dizer que deixar de ter um ouvido crtico einteligente para a msica: na verdade, possvel que venha a receber, em cantos,importantes orientaes para o sucesso na administrao. Inversamente, uma me-nina de nobre ascendncia recebe todo o incentivo para desenvolver suas capacida-des musicais, de modo que possa desempenhar, quando mulher, um papel ativo nasuperviso das escolas de iniciao para moas que as casas dos governantes abri-gam, e nas quais a msica um aspecto indispensvel em suas funes didticas erituais. Durante dois meses de ensaios dirios de tshigombela, a dana das moasjovens, observei o quanto que as jovens parentes dum chefe ganhavam relevocomo intrpretes notveis, ainda que no aparentassem ser, em princpio, maismusicais que as de sua faixa etria. Sugiro que o motivo do seu desenvolvimentocomo bailarinas estava nos elogios e no interesse que lhe manifestavam as mulhe-res da platia, que na sua maioria eram da famlia do chefe, e que por serem pa-rentes, portanto, conheciam as moas de nome. certo que, mais que capacidadesmusicais extraordinrias, de herana gentica, foram as conseqncias sociais dasrelaes de sangue que levaram ao incremento de sua musicalidade. Mais uma vez,no surpreende que os mestres da iniciao tendam a herdar a funo de seuspais. O mestre deve conhecer muitos cantos e rituais, da que, ao ajudar seu pai notrabalho, o filho se coloque numa posio favorvel.

    Na sociedade venda, h portanto uma expectativa de habilidade musical ex-cepcional da parte de pessoas que nascem em certas famlias, ou de grupos sociaisnos quais a performance musical essencial para a manuteno de sua solidarie-dade de grupo. Tal como a performance musical o fator central a justificar aexistncia perene duma orquestra enquanto grupo social, tambm um grupo depossesso dos venda, ou uma escola de iniciao domba, ou uma escola sungwi demeninas, desintegrariam se no houvesse msica. Apenas uns poucos daqueles quenasceram no grupo justo viro figurar de fato como msicos excepcionais, e o queparece distingui-los que eles so melhores executantes por haverem posto maistempo e energia na coisa. Ao aplaudir a maestria de msicos excepcionais, os ven-da esto a aplaudir o esforo humano, e na sua capacidade de reconhecer a maes-tria num meio musical, os ouvintes revelam que a sua competncia musical geralno menor que a dos msicos a quem aplaudem. Devemos nos lembrar que aexistncia de Bach ou Beethoven depende tanto duma platia com discernimento

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    quanto dos msicos, tal como alguns ancestrais dos venda no podero retornar aseus lares a no ser por meio dos prstimos de seus descendentes.

    Ainda que a msica comunal prevalea no cenrio musical dos venda, e defatores sociais influenciarem o desenvolvimento da habilidade musical, realiza-semsica individual, e bons instrumentistas solistas podem florescer sem nenhum dosincentivos que descrevi. Meninas novas, ao amadurecer, se recolhem aos sons sua-ves e ntimos do arco musical lugube, ou de seu equivalente moderno, a harpa deboca. Os jovens cantam as alegrias e dores do amor ao passo que se acompanhamcom uma mbira ou outro tipo de arco, de nome tshihwana. Um terceiro tipo de arco(dende) o tocam msicos semi-profissionais, notrios por seu sucesso com as mu-lheres.

    O nome que se d a tais menestris tshilombe tem a ver com palavrasque se referem possesso de espritos, tais como tshilombo e malombo. Os vendaadmitem que manifestaes de habilidade musical podem surgir onde menos se es-pera e entre os sujeitos mais improvveis, mas insistem em sua coerncia com ex-plicaes lgicas. O termo tshilombe deveria ser visto no tanto como uma consa-grao do gnio, ou do talento excepcional, quanto uma descrio ocupacional. Ummsico individual notvel algum que se coloca em contato com foras espiritu-ais, tal como um mdico ou o participante dum culto de possesso, sendo portantocapaz de exprimir uma gama maior de experincias que a maioria das pessoas.Pode parecer paradoxal que suas habilidades criativas devam ser expressas maisna originalidade e reflexo das palavras que compe, que na msica. Mas pode-seencontrar uma razo para tal no equilbrio de dois princpios bsicos da msicavenda.

    Conforme ressaltei no primeiro captulo, a msica dos venda se distingue dano-msica por criar um mundo temporal especial. A funo principal da msica cooptar as pessoas para experincias em comum dentro do mbito de sua experi-ncia cultural. A forma que a msica assume deve cumprir com esta funo, e as-sim, no desenrolar normal dos eventos, a msica dos venda se torna, sempre quepossvel, mais musical e menos adstrita cultura, e se rompem as limitaes queas palavras impem em favor duma expresso musical mais livre por parte dos in-divduos na comunidade. Para assegurar que a forma no perca a sua funo es-sencial, as composies de certos indivduos invertem o processo. A funo de taiscomposies subverter e expandir a conscincia das platias venda, tanto pelareflexo, quanto pela contradio do esprito do tempo. Elas refletem os interessespolticos do nmero maior de pessoas possvel, ao contradizer as tendncias musi-cais com as quais as pessoas tm familiaridade. O mesmo tipo de anlise da efic-cia musical se pode aplicar em outros contextos: eu no tomaria por exagero dizerque Beethoven atingiu o seu extraordinrio poder musical por ser anti-musical, es-candalizando a complacncia da sociedade que lhe era contempornea. Seus con-temporneos podem ter sido mais musicais no tratamento de suas melodias, porexemplo, mas o tipo de musicalidade convencional que apresentavam era menosrelevante para com os problemas contemporneos, ainda que fosse esta uma con-seqncia lgica de processos cognitivos temporrios.

    A anlise da composio e da apreciao da msica nos termos de sua funosocial, e de processos cognitivos que so aplicveis noutros campos da atividadehumana, de modo algum diminui a importncia da msica em si, e condiz com ohbito corriqueiro de correlacionar uma srie de atividades humanas e cham-lasde Artes. Contudo, nesta fase inicial da investigao, deveramos ter o cuidado deno supor que os processos que regem a criao musical sejam sempre os mes-

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    mos, ou que seus processos se relacionam, em particular, com aqueles que se em-prega nas outras artes. Os processos que so atinentes linguagem ou msicanuma cultura podem dizer respeito, noutra, ao parentesco ou organizao eco-nmica.

    Ser til a distino, na sociedade venda, entre os diversos tipos de comuni-cao musical que, em linhas gerais, se pode descrever como empregos utilitrios eartsticos da msica. Fica claro, a partir da maneira na qual os venda falam a res-peito, que nem toda msica possui o mesmo valor. Toda a sua msica deriva deexperincias humanas e tem uma funo clara na vida social, mas apenas uma par-cela sua vista como o que John Dewey chamava de instrumento indispensvelpara a transformao do homem e de seu mundo.

    Conforme demonstraram os meus exemplos, muito da msica dos venda mero sinal ou signo de eventos sociais, no sendo menos utilitria que jingles co-merciais, vinhetas de estaes de rdio, alguma sonoplastia, e hinos ou cantos quefuncionam, em essncia, como emblemas de diferentes grupos sociais. Muitos doscantos iniciticos so mais importantes como marcaes das etapas do ritual, oucomo reforos ou lembretes de lies, que como experincias musicais; os cantosde trabalho coordenam e facilitam o trabalho; e um certo tipo de cantos de bebercerveja pode servir para manifestar reclamaes e fazer solicitaes, quando gru-pos de mulheres levam cerveja de presente para as casas de seus afins. Tal comonos cantos de pilo das mulheres, nalguns cantos infantis, e nos cantos de protes-to, o arcabouo musical pode ritualizar a comunicao de maneira tal que se fazpossvel transmitir mensagens sem provocar retaliaes. Voc no vai preso se odisser em msica, e algo pode ser feito quanto sua reclamao, pois poder elase tratar da manifestao dum sentimento geral crescente.

    Pode-se definir as funes utilitrias da msica Venda como aquelas nas quaisos efeitos da msica so um adendo ao impacto da situao social, e as artsticas,como aquelas nas quais a msica em si o aspecto crucial da experincia. A provado alto valor que atribuem tshikona, sua dana nacional, e a performances apa-rentemente anti-musicais de virtuoses famosos no contradizem tal proposio,uma vez que observamos que se valoriza o processo da prtica musical tantoquanto, ou s vezes mais que o produto final. O valor da msica haver de se en-contrar, acredito, nos termos das experincias humanas que a sua criao acarreta.H uma diferena entre a msica que ocasional e a msica que aumenta a cons-cincia humana, a msica que simplesmente para se ter e a msica que paraser. Sugiro que a primeira pode ser um bom artesanato, mas a segunda arte, noimportando o quo simples ou complexa soe, e a despeito das circunstncias nasquais se a produz.

    A msica da tshikona exprime o peso do maior dos grupos sociais a que osvenda podem sentir que de fato pertencem. Sua performance envolve o maior n-mero de pessoas, e sua msica incorpora um nmero de notas maior que qualquerpea nica de msica venda que envolva mais que um ou dois intrpretes. Daquiloque eu disse sobre o compartilhamento de experincias na msica venda, deverficar claro que, para os venda, o peso e a beleza da tshikona no est apenas naquantidade de pessoas e notas que implica, mas na qualidade das relaes que sedeve estabelecer entre pessoas e notas, a cada vez que se a realiza. A msica datshikona s pode acontecer quando vinte ou mais homens tocam flautas com dife-rentes afinaes, com uma preciso tal que preciso que cada um interprete a suaparte e se coadune com as demais, e quando um mnimo de quatro mulheres to-cam tambores diferentes, numa harmonia polirrtmica. Alm do mais, a tshikona

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    no estar completa a menos que os homens tambm sigam, em unssono, os di-ferentes passos que, de quando em quando, o mestre da dana conduz.

    A eficcia da tshikona no segue a equao MAIS = MELHOR; um exemploda produo do mximo de energia humana disponvel numa situao que gera omaior grau de individualidade na maior comunidade possvel de indivduos. Atshikona permite uma experincia do melhor de todos os mundos possveis, e osvenda tm plena conscincia de seu valor. A tshikona, dizem eles, lwa-ha-maia-khal-i-tshi-vhila, o momento em que as pessoas correm para a arena de dana edeixam as suas panelas a