berstein, serge. “a cultura política”. in rioux & sirinelli (org.) copy

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Cultura Política

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    ~ A CULTURA POLTICA

    Serge Berstein

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    .-' \y"YT"-yr0Falar de cultura poltica a muitos ttulos colocar-se num campo

    de componentes antagnicas, A histria cultural, cuja riqueza con-sidervel desde h alguns anos, situa-se no centro dessa renovaoem profundidade do estudo das sociedades humanas, a partir daconvergncia das cincias sociais de que a colc des Annales mostroua via. Referir-se ao poltico trabalhar num campo a que os profetasdesta mesma escola lanaram o antema. caricaturando-o, antes quealguns dos seus membros soberbamente o ilustrassem I. Do mesmomodo, a evocao da cultura poltica inscreve-se na renovao dahistria polltica, operada sob 'n inspirao de Ren Rmond e de quea universidade de Paris-X-Nanterre e o Instituto de Estudos Polticosde Paris foram os lugares de elcio, Com efeito, no quadro dninvestigao, pelos historiadores do poltico, da explicao dos com-portamentos polticos no decorrer da histria, que o fenmeno dacultura poltica surgiu como oferecendo uma resposta mais satisfatriado que qualquer das propostas at ento, quer se tratasse da tesemarxista de lima explicao determinista pela sociologia, da teseidealista pela adeso a uma doutrina poltica, ou de mltiplas lesesavanadas pelos socilogos do comportamento c mesmo pelos psi-canalistas, Foroso verificar que o historiador, aplicando ti situaes

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    I Pensamos. em particular, nos trabalhos de Frnnois Furct sobre" RevoluoFmnccsa ou, mnis recentemente, sobre o comunismo, ou nos de Mare Ferro,sobre a Rssia ou :1 Primeira Guerra Mundial.

    2 Encontra-se uma exposio das grandes tinhas desta renovao na obracolccuvu publicndn sob a dircco de Ren Rmond, POlir /lJ/C hlstoirc politiquc,Paris, Lc Scuil. 1988,":i'

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    Natlia IglsiasNatlia IglsiasNatlia Iglsias
  • I

    polticas precisas estas grelhas de anlise, levado a concluir que elasno lhe permitem explicar, salvo de maneira parcial, fenrnenos com-plexos que tenta compreender. E se a cultura poltica responde melhor sua expectativa porque ela , precisamente, no uma chave uni-versal que abre todas as porias, mas um fenmeno de mltiplosparrnetros, que no leva a uma explicao unvoca, mas permiteadaptar-se complexidade dos comportamentos humanos.

    o que a cultura poltica?

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    Porque a noo complexa, a sua definio no poderia ser sim-ples. Pode-se admitir, com Jean-Franois Sirinelli, que se trata de

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    Esta proposta de grelha de leitura do poltico atravs da cllltlr\polltlca s tem evidentemente lmcrcsse se oferecer a possibilidade Idemelhor. fazer compreender a natureza e o alcance dos fenmenos ~'ue suposto explicar, Sem o que s seria mais um termo, acrescenta~osem proveito glrin tcnica dos historiadores. Foi a verificao 9x-perimental tentada pela revista Vil/glil/lr.? sicle, ao propor num ~-mero cspccialf a uma quinzena de historiadores e de politlogo aaplicao desta noo ao estudo das grandes famlias polticas aFrana contempornea (o comunismo" o gaullismo, o eentrismo osocialismo, a Frente Nacional), mas tambm das sensibilidades fi 0-sficas ou religiosas (a cultura laica, o catolicismo), novas corren essurgidas no campo do poltico (a ecologia ou as mulheres), especi fi-cidades infra ou supranacionais (a cultura poltica do Norte ou daAquitnia, ou a Europa face . cultura poltica francesa). A fecundid: dedos resultados surpreende. No s confirmam a validade da grelha.trazendo mais uma prova ao que se podia evidentemente supor ~orintuio ou deduzir de estudos anteriores", como permitem ai9daaflrrnar que, no estado actual das coisas, a ecologia ou a correjtcfeminista no possuem cultura poltica constituda, alis como ocentrisrno, e que no existe cultura poltica europeia. O que no pro-

    d. f . . 1mete e momento a estas correntes mais que um uturo precano, como

    se ver ao examinar as funes da cultura poltica. I'Cultura poltica ou culturas polticas? j

    Tal como surge aos alhos dos historiadores, ~L.no.o_dc...cult rupoltica est pois eS.lrejtamen~.e.liga~~.c!Jltl.!m. g~L,!~)'!!Tla.socle... .dade, ~em todavias.~._~.onfundir totalmente com ela, ..porque o s'cucampo Jeapllcao incid~-exCi~siv:i"JTientc-sbrep-ifco. No 'poderiapois haver untinornia, uma vez que a cultura poltica, como a prPiiU

    !.'_ 8 Vi/lglielllG sicle. RC\'lIc d'histoire, n." 44. OUI.-Dez. 1994, nmero espc inlLa Culturc politique CII France depuis de Gaulle,

    9 !,ensamos em espe~ial na import~ncia ele uma cultura po!tica solidamcrtcconstitulda, a do comurusrno, c na brilhante demonstrao que dela fez MprcLazar no seu livro Maisons rougcs. Lcs Partis eOl1llllllllislCS franais et itollcnde Ia Libration IIOS jours, Paris, Aubicr, 1992. . I

    . . i352

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    cultura, se inscreve no quadro das normas e dos valores que determi-num a representao que uma sociedade faz de si mesma, do seupassado, do seu futuro. Ora, esta noo, largamente utilizada pelospolitlogos americanos da escola descnvolvlrnentistav'", foi vivll-mente crlticada, ao ponto de se encontrar hoje completamente rejei-tada pela cincia poltica. Observamos, porm, que a crltlca incidesobre dois pontos totalmente alheios cultura pOlllci.-riil'como n'encaram"shisloriadores: em primeiro lugar, .aj.r1cJa.de.queoxisLiriu I (,_JJ.lllil~~gQJ!!ljLna.i.onaLp[pr.iu..de.cuda,pov.o e, por c:on~c:gllil1te,! :.l :'1 It!~I!.:~.-'!1!.I.i~~..p.~~E.~_~~.t:t!!_

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    Pura os historiadores, evidente que no interior de uma n~O~~ist~_~l.rrla plur~lidnde d,e ,C\lll~l.r.~s.. P,litiS' mas c.9~ ~~.~~~sdeabrangeJl~iqu.~ .con:esponaen'i- rea dos valores partilhados. Se,num dado lllolllcnto-Iilisf6ii',ess rea s;;!oresparilhado semostr~. Pa.s~?~~~_..!!111pta, temos ent-'~ul rura-p'O'lticiCdomin..n.T\~que faz inflectir pouco ou muito a maior parte -'usiitias'-l'itbraspolticas contemporneas. Pode-se assim adrnitir que, no prirniro~c.~'i.0do sculo XX,. 1L9!11.11riLPQ.~.!:~p.!!.t:>lianlLds~nip.ei1hOUIumQ!lIle.L.dom.inante, definindo um conjunto de referncias, acimaevocadas. esta cultura poltica dominante que explica a sort1 doPartidc Radical; que com ela se identifica amplamenle'2. No entanto,ao lado desta, existem outras culturas polticas, cujas referncis e'vises de futuro no so de forma alguma comuns: a' cultura pai icasocialista sonha com uma revoluo proletria que levaria ao ap re-

    ,\" cimento de uma sociedade sem classes, a cultura poltica naciona istapreconiza a criao de um Estado autoritrio, evenwulm niemonl'quico, que assentaria nas comunidades naturais, a cultura ol-tica catlica procura as vias da reazao do cristianismo na cidi de,atravs de organizaes polticlls diversas e por vezes opostas. Masnenhuma destas culturas antug6nicas do modelo republicano se \en-contra ao abrigo da influncia deste e todas devem, mais ou menos,concordar com os seus princpios. O socialismo obrigado n conjllgarsocialismo e repblica, e consegue-o de certo modo atravs da sn~~sejaursinna, de que se pode dizer, para simplificar, que adere no ~le-diato cultura republicana, remetendo o socialismo para o fUlur,L'3.A cultura republicana favorece a emergncia, no seio da nebulfsilcatlica, de uma democracia crist que retm alguns dos seus prin-cpios, mas no a lowlidade\4. Finalmente, o prprio nacionalismol na

    rc "to ",.to, S"ge Bmto'., Hlstoire du Parti radical, .1",Prcsscs de 1:1Fondation nauonatc dcs sdcnccs politiques, 1980-1982.

    1.\ AIl1.ill Bcrgouniollx, SociaJismc ct Rpubliquc, in Scrgc Bcrslcin e OUileRudcllc dir., Lc Modele rpubticoin, op, cit,

    14 Jcan-Donliniquc Durand, L' e",ope de Ia dmocratie cbrC:lic/IIH!, BruxctCS,Complc!i.c, 1995; Jcan-Maric Maycur, Des partis cOlllOliqucs li Ia dmocr I;tchrliclIllC. x/xt-xx' sicle, Paris, Armand Colin. 1980; Picrrc Lctamcndia,JDlllocralie c/'fliclllle. Paris, PUF. 1977.

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    I.:

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    sua verso barrsiana, aceita uma parte da herana republicana, dfe-renternente da corrente maurrassiana, que estabelece a sua identidadena rejeio global desta.Esta osmose entre cu)turas.p_llI;~ ..B!uj~~..~~asladas na origem

    impli-a~~~,jQ!!g~.-e.i~r urn_dado-fJ~o-sinnhri~.dejTdiopollka, ..e~(~jll!I!~~_f!l[lr~~e.~~.~.Q~....\!IILfenQf'!1~~.I?~,,:ohitly()qu.~.cor- /Ee.~R.Q!!.~~m_dadQ..rl:!Q.Q.le!ll().da-hislr.ia.e_de_q.u:.-se..pOJJ~J.!l!i.fj&a[j I, 1

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    soclcdnde de urna cultura poltica republicana verdadeiramente coe-rcntel5 Ser preciso meio sculo para que a conjuno das ideias desolidariedade e das exigncias de justia social do socialismo d vidaa uma cultura poltica de esquerda de que o Estado-providncia cons-titui o tabuleiro social. Se se considerar que o rnendsisrno representauma cultura politica do socialismo moderno muito distinta do marxis-mo, foroso verificar que ele no d lugar a uma transformao dacultura poltica socialista (e ainda muito parcialmente) seno com onascimento do PS em pinay, em 1971, e que est longe de terconquistado hoje esta corrente de opinio.Noutros termos, necessrio o espao de pelo rnenosduas gera-

    ~es para Que uma ideia nova,-qc-lrz-nl-res~I~_--useada nos-problemas da sociedade._R~!l~re _11Q.~_~piIilQs__sob.forma.de- um con--I~_nJ9----representaes de carcter normaliy e acabe por surgir comoeviden te-~--um-grupolmport;~ted~-c-ii-dos._ No menos que a extenso do prazo, os vectores pelos quais passaa lntegrao dessa cultura poltica merecem que se lhes d ateno.Verificur-se- sem surpresa que estes canais so precisamente os dasocializao poltica tradicional. Em primeiro lugar, a famlia, ondea criana recebe mais ou menos directamente um conjunto de normas,de valores, de reflexes que constituem a sua primeira bagagem poltica,que conservar durante a vida ou rejeitar quando adulto. Depois, aescola, o liceu, a universidade, que transmitem, muitas vezes de ma-neira indirecta, as referncias admitidas pelo corpo social na sua maioriae que npoinrn ou contradizem a contribuio da famlia. Vm depoisos influnclns adquiridas em diversos grupos onde os cidados sochumndos a viver.D exrcito desempenhou, durante muito tempo. umpnpel irnportuntc, que tende a declinar com a pouca durao do serviomllltnr, o nmero reduzido de jovens fi que se dirige de futuro e asformas civis que tende a revestir para os estudantes. Em contrapartida,o meio de trabalho continua a desempenhar um papel essencial, mesmose a sindical izao, dantes factor importante de socializao poltica,no tem mais que um efeito marginal. O mesmo acontece com apertena a partidos polticos, fenmeno que foi sempre minoritrio em

    u Scrge Bcrstcin, La celturc rpublicainc, ;11 Scrgc Berstcin c Odilc Rutlcllcdir., Le Modle rpubicain. 0)1- cir.

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    Frana e que tende fi s-lo cada vez mais ainda. Pelo contrrio, nose poderia subestimar o papel dos media, em especial audiovisuais,nessa difuso de representaes norrnalizadus que uma cultura po-ltica. Sem dvida que preciso evitar ver as coisas de maneiraexcessivamente simplista. Nenhum destes veetores da socializaopoltica procede por doutrinao. No obstante, a sua multiplicidadeprobe pensar que se exerce sobre um dado indivduo uma influnciaexclusiva. A aco variada, por vezes contraditria, e li compo-sio de influncias diversas que acaba por dar ao homem uma culturapoltica, a qual mais uma resultante do que uma mensagem unvocn,ESIa adquire-se no seio do clima cultural em que mergulha cadaindivduo pela difuso de temas, de modelos, de normas, de modosde raciocnio que, com a repetio, acabam por ser interiorizndos eque o tomam sensvel recepo de ideias ou adopo de compor-tamentcs convenientes. Que o cultural prepara o terreno do polticoaparece desde j como uma evidncia de que alguns retiraram estra-tgias. a observao de que o domnio cultural da esquerdo, desdea Libertao, constitua um obstculo II penetrao na opinlo dusideias de direita que leva, nos anos setenta, criao do GRECE, 11Nova Direita, que fixa assim um objcctivo mctupolico, o depreparar, atravs de uma conquista cultural dos espritos, o terrenopara uma futura conquista pcltica!",A cultura poltica assim elaborada e difundida, escala das gern-

    es, no de forma alguma um fenmeno imvel. um corpo vivoque continua a evoluir, que se alimenta, se enriquece com mlriplnscontribuies, a.'; das outras culturas polticas quando elas parecemtrazer boas respostas aos problemas do momento, os da evoluo daconjuntura que inflecte as ideias e os temas, no podendo nenhumncultura poltica sobreviver a prazo a uma contradio demasiado fortecom as realidades.A cultura poltica republicana que, no fim do sculo XIX, coloca

    o seu ideal social no culto do pequeno, sonhando com uma socie-

    16 Arme-Mario Durnnton-Crabol, Yisagcs de Ia Nouvclle Droitc. Lc GRECECI sOIr hlstoirc. Paris, Pressas de Ia Fondntion nationalc dcs scicnccs politiques,1988_

    ~i

    Natlia IglsiasNatlia IglsiasNatlia IglsiasNatlia Iglsias
  • dade de pequenos proprietrios independentes que realizaria as pro-messas da Revoluo Francesa, rem de verificar que tal surge em totalinadequno com a evoluo econmica. Tambm sem renunciarformalmente, encontra no solidarsmo uma estratgia de substituio,mais adaptada ao facto importante da concentrao industrial e dodesenvolvimento do salariado, e que desde j insiste na necessidadepara o Estado, em nome do quase-contrato que liga o indivduo cadeia das geraes e sociedade do seu tempo, de exigir dos maisricos que realizem, atravs da fiscalidade, o seu dever social a favordos mais pobres e mais desfavorecidos. Lgica social que devia con-duzir criao, depois da Segunda Guerra Mundial, do Estado-provi-dncia que. embora nunca se tendo reclamado do solidarismo, realiza evidncia o seu desgnio. falta de adaptao, uma cultura polticas pode ter um declnio inelutvel. A esclerose da cultura comunista,ligada a um modelo de operariado do sculo XIX e a uma leituradogrntica do marxismo, muito afastada da realidade das sociedadesevoludas do sculo xx provenientes do crescimento, tem muito a vercom a sua perda de influncia e, por conseguinte, com o decJnio doPartido Comunista. Noutros termos. ainda que as representaes di-firam da realidade objectiva, elas no podem estar em contradiocom ela, a menos que se perca toda a credibilldade e se desaparea.Mas a evoluo das culturas polticas no resulta apenas de uma

    adaptao necessria a circunstncias forosamente rnutveis, Eladepende tambm da influncia que possam exercer as culturas pol-ticas vizinhas, na medida em que estas parecem trazer respostas ba-seadas nos problemas que se depararam s sociedades num dadomomento da sua evoluo. assim que, a partir de meados dos anossetenta, a cultura socialista sofre uma verdadeira crise ligada, ao mesmotempo. ineficcia demonstrada da economia administrada dos pasesde Leste e s dificuldades do Estado-providncia confrontado com arecesso ou com o fraco crescimento econmico, que j no permitelibertur os excedentes necessrios ao financiamento da proteco social.Desde logo se v surgir no seu seio uma corrente favorvel adopo,pelo liberalismo, da confluna cega nos mecanismos do mercado,adopo que CIlIISIl \1111 drnrna de conscincia, porque um dos funda-111t:lll0S ua ideutkhule sociulista a crena na aptido do Estado paraconduzir 11 economia. que SI! encontra posta em questo. O divrcio

    358

    que ento se d entre a cultura poltica socialista tradicional, a queaderem os militantes e que constitui a prpria base da identidade doPartido Socialista, e essa adopo do lbernlisrno que alguns socialis-tas desejam inscrever no tempo, mas que os governos socialistaspraticam sem ousar anunci-lo abertamente, caracterizam bastantebem o processo de evoluo das culturas polticas, obrigadas u trans-formar-se, mas que s podem faz-to confrontando-se com tradiesde que retiram precisamente uma grande .parte da sua fora!".Resta perguntar qual o interesse que pode revestir o estudo, pelo

    historiador, desta nebulosa complexa que a cultura poltica, colocadana encruzilhada da histria cultural e da histria poltica e que tentauma explicao dos comportamentos polticos por Lima fraco do pa-trimnio cultural adquirido por um indivduo durante a sua existncia.

    Para que servem a cultura poltica e o seu estudo?

    Recordamos mais lima vez que a verdadeira aposta est em com-preender as motivaes que levam o homem a adoptar este ou aquelecomportamento poltico. A questo, que mal agitou os historiadores,est, pelo contrrio, no centro do questionamento dos polillogos, quecolocam geralmente o problema em termos muito contemporneossob a forma de um entendimento do fenmeno de participao ou decompromisso POllico1s A hiptese das investigaes sobre a culturapoltica que esta, uma vez adquirida pelo homem adulto, constituiriao ncleo duro que informa sobre ,IS suas escolhas em funo da visodo mundo que traduz. O estudo da cultura poltica, ao mesmo temporesultante de uma srie de experincias vividas e elemento determi-nante da aco futura, retira n sua legitimidade para :L histria da duplafuno que reveste. no conjunto um fenmeno individual, interio-

    17 Alain Bergounloux, Grard Grunberg, Le LOII!: Remords du pouvoir. LcPuni sociaiiste franais, 1905/991, Paris, Faynrd, 1992.

    18 Vcr, sobre este ponto, 1\ posio do problema pelos politlogos em NormaMayer, Pascnl Pcrrincau, Les Comportcments politiqucs, Paris, Arrnnnd Colin,1992, ou in Pascnl Pcrrincau dir., L'EIICngcl/lcJ/I potitiquc, dclin 014 11I11/(11101/1,Paris, Prcsses de Ia Fondntion nationalc dcs scicnccs politiques, 1994.

    359

    Natlia IglsiasNatlia IglsiasNatlia IglsiasNatlia IglsiasNatlia IglsiasNatlia IglsiasNatlia Iglsias
  • rizndo paio homem, I:: um enrneno colecvo, partilhado por grupos1I11Jl1eroIiOS.A Iorn da cultura poltica como elemento determinantc do com-

    portamcnto do indivduo resulta, em primeiro lugar, da lentido e dacomplexidade da sua elaborao. Adquirida no decurso da formaointelectual, beneficia do carcter de certeza das primeiras aprendiza-gens. Reforada pela confrontao destas com os acontecimentossurgidos durante a existncia humana, continua a aumentar em poderde convicO e no papel de chave da leitura do real. A habituao doesprito sua utilizao como grelha de anlise acaba por tom-Ia umfenmeno profundamente imeriorizado e que, como tal, imperme-vel crtica racional, porque esta faria supor que uma parte dospostulados que constituem a identidade do homem fosse posta emcausa. Assim, douard Herriot, intelectualmente formado numa fam-lia da classe mdia patriota, depois pela universidade positivistn ekantiana dos anos de 1880-1890, que se tomou por sua vez professore partidrio do ideal laico, republicano e reformista ligado heranadi Revoluo Francesa dos meios em que viveu, vai encontrar no casoDreyfus ocasio para pr concretamente em prtica a sua culturapoltica, entrando para a Liga dos Direitos do Homem, militando nasunivcrsidades populares e aderindo depois ao Partido Radical, expres-so partidria adequada da cultura poltica de que se reclama. A partirde ento, e para o resto da sua existncia, medida dessa culturapolticu c dessa experincia de juventude que considerar os aconte-cimentos polticos, arriscando-se a ficar ultrapassado quando as refe-rncias que cunslituem as bases dessa cultura se deslocaram por efeitodOI modificao das circunstncius '". A partir da, uma bagagem tosolidamente integrada, e que beneficia do )leso da experincia, dadedicao s causas pelas quais se milita, no poderia ser atingida porcrlticus provenientes da argumentao racional. Quer isto dizer que acultura poltica s proviria do instinto, do emocional, da sensibili-dade? Isso seria esquecer que a sua aquisio faz supor um raciocnio,que p-Ia em prtica com um dado facto implica anlise ou, pelo

    19 li dcmonstrno tentada na nossa ubra douard Herriot 0/110 I?plrbliqllceu personne, Paris, Prcsscs de 10 Fondation nationnlc dcs scicnccs potuiqucs,t9SS.

    360

    menos, ti adeso a uma anlise proposta e que, se o compromisso um acto do ser profundo, ele no nem impulsivo, nem irreflectido.Simplesmente, e todos tm conscincia disso, a interioruao dasrazes de um comportamento acaba por criar automatlsmos que soapenas O atalho da diligncia racional anteriormente realizada.Se u cultura poltica acaba por fazer integralmente parte do ser

    humano, significa isso que, passada uma certa idade, se tornou intan-gvel? Sem a chegar, pode-se pelo menos admitir que, uma vezalcanada a idade madura, difcil p-Ia em questo, salvo traumnsmograve. Pode-se considerar que a derrota de 1940, o fenmeno dadeportao durante a Segunda Guerra Mundial ou, de maneira menosdramtica, o movimento de Maio de 1968 para os universitrios ouintelectuais, na medida em que pem em causa identidades, trouxeramefcctivamente a mutao, o abandono de culturas polticas slida-mente instaladas. ou a adeso a novas formas de cultura poltica.Ora, se a cultura poltica retira a sua fora do fncto de, interiorizada

    pelo indivduo, determinar as motivaes do acto poltico, ela inte-ressa ao historiador por ser, em simultneo, um fenmeno colectivo,pnrtilhado por grupos inteiros que se reclamam dos mesmos postula-dos e viveram as mesmas experincias, Se existe um domnio em queo Icnrncno de gerao encontra justificao plena e total, bemeste20 Submetido mesma conjuntura, vivendo numa sociedade comnormas idnticas, tendo conhecido as mesmas crises no decorrer dasquais fizeram idnticas escolhas, grupos inteiros de uma geraopartilham em comum a mesma cultura poltica que vai depois deter-minar comportamentos solidrios face aos novos acontecimentos. Pode--se assim evocar a ~erao do caso Dreyfus, a que pertencem homenscomo Lon Blum, Edouard Herriot, Maurice Viollette ou Joseph Paul--Boncour, detentores da cultura republicana, para quem a fidelidadeao ideal da Revoluo Francesa, n crena no progresso, o primado doindivduo e a defesa dos seus direitos, o regime parlamentar. a von-tade de reforma social constituem um conjunto coerente e homogneo

    lU Sobre o fenmeno de gerao, ver li utilizao que dela Icz Jcan-FranoisSirinclli, Gnration intellectuelle, Paris. Fayard, 1988. Consultar igualmente onmero especial Lcs Gnrations, Vingrieme siclc. RCI'"C (I'histoire, 11.0 22,Abril 1989.

    36/

    Natlia IglsiasNatlia IglsiasNatlia IglsiasNatlia Iglsias
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    '~

    'IIU! gulnr, durante a sua vida, o seu comportamento poltico. A partirdo fim cios IIn05 vinte, chega s posies importantes uma gerao queviveu, uns trincheiras ou na retaguarda, o trnumntismo da PrimeiraGuerra Mundial e que vai, por reaco a esta, repudiar amplamenteli cultura republicana em proveito dos dois elementos chave que voconduzir 11 sua aco e que so o pacifismo e o realisrno?'. AristideBriand o seu inspirador e esta corrente ilustrada por homens comoJoseph Caillaux, Pierre Laval ou Marcel Dat, que no tm decertoa mesma idade, mas que parecem ter retirado as mesmas lies dasexperincias vividas e que desenvolvem uma cultura poltica sem tabue sem fronteiras, para uso dos sobreviventes do grande massacre. Poroposio a esta gerao realista, que se ilustrar pela resignao derrota de 1940, v-se aparecer depois desta uma nova cultura polticarnarcada por um retomo ao ideal patritico, . vontade de renovaoeconmica e social, unio dos Franceses, que marca uma novacultura republicana, de que O gaullismo ser o principal vecror'",Para o historiador, o interesse de identificao desta cultura pol-

    tica duplo. Permite em primeiro lugar pelo discurso, o argurnentrio,o gestual, descobrir as raizes e as filiaes dos indivduos, restitu-Ias coerncia dos seus comportamentos graas descoberta das suasmotivaes, em resumo, estabelecer uma lgica a partir de uma reu-nio de parmetros solidrios, que respeitam ao homem por urnaadeso profunda, no que a explicao pela sociologia, pelo interesse,pela adeso racional a um programa se revela insuficiente, porqueparcial, determinista e, portanto, superficial. Mas, em segundo lugar,passando da dimenso individual dimenso colectiva da culturapoltica, esta fornece uma chave que permite compreender a coesode grupos organizados volta de uma cultura, Factor de comunhOIdos seus membros, ela f-Ias tomar parte colectivarnente numa visocomum do mundo, numa leitura partilhada do passado, de uma pers-pectiva idruica de futuro, em normas, crenas, valores que constituem

    li Jcan-Franois Sirinclli, Gnration intelicctuelle, 01', cit., O repdio doidealismo republicano est descrito ;11 Jcan Luchairc, Une gllralioJl raliste,Paris, Valols, 1928.II Scrge Berstcin, La V Rpubliquc:un nouvcau modle rpublicain? , in

    Serge Bcrstcin c Odilc Rudellc dir., Le Modlc rpublicain, op. cit..

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    Ium patrimnio indiviso, fornecendo-lhes, para exprimir tudo isto, umvocabulrio, smbolos, gestos, at canes que constituem um verda-deiro rituaF3.No centro da nova ateno dada doravante pelos historiadores ao

    fenmeno cultural, a cultura poltica ocupa pois um lugar particular.Ela apenas um dos elementos da cultura de uma dada sociedade, oque diz respeito nos fenmenos polticos. Mas, ao mesmo tempo,revela um dos interesses mais importantes da histria cultural, o decompreender as motivaes dos netos dos homens num momento dasua histria, por referncia ao sistema de valores, de normas, decrenas que partilham, em funo da sua leitura do passado, das suasaspiraes para o futuro, das suas representaes da sociedade, dolugar que nele tm e da imagem que tm da felicidade. Todos oselementos respeitarues ao ser profundo, que variam em funo dasociedade em que so elaborados e que permitem perceber melhor asrazes de actos polticos que surgem, pelo contrrio, como epifcn-menos.

    1) Sergc Bcrstcln, Ritcs ct ritucls politiqucs, ln Jcan-Franols Sirincllidir.,Dlctionnairc historique c/c Ia I'ie polisique franaise 011 xx' sicle, Paris, rUF,1995,

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    11I. 4#4 E ysus;et.;:;;w;,JQHCt,I:TJ.'VtAflUAAUO&ltWUAA 44 k#f, -.

    Natlia IglsiasNatlia Iglsias