avc e anemia falciforme

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Rev. bras. hematol. hemoter. 2007;29(3):262-267

Angulo IL

Artigo / Article

Acidente vascular cerebral e outras complicaes do Sistema Nervoso Central nas doenas falciformesStroke and other vascular complications of the Central Nervous System in sickle cell disease

Ivan L. Angulo

A principal complicao da doena falciforme na infncia a das artrias cerebrais, mas aps os 20 anos tambm pode se manifestar, como seqela de leses anteriores ou neoformadas. A vasculopatia tem a maior importncia no desenvolvimento da criana e na qualidade de vida. Alm do acidente vascular cerebral completo ou incompleto ("silencioso"), existem outras complicaes do sistema nervoso central, porm no exclusivas. O diagnstico da vasculopatia cerebral falciforme necessita auxlio neurorradiolgico. O tratamento se faz basicamente com transfuses de eritrcitos contendo hemoglobina A. O objetivo deste trabalho rever a literatura mdica, procurando selecionar a melhor conduta em diagnstico e tratamento que seja possvel empregar de imediato, para reduzir a morbidade e mortalidade da vasculopatia cerebral e elevar a qualidade de vida dos pacientes, principalmente na infncia. Os fatores de risco clnicos e laboratoriais, incluindo a triagem por ultra-sonografia Doppler das artrias cerebrais e imagens de ressonncia magntica, devem influenciar a deciso de instituir transfuses crnicas e a quelao do ferro transfusional deve acompanhar este tratamento. Rev. bras. hematol. hemoter. 2007;29(3):262-267. Palavras-chave: Doena falciforme; vasculopatia cerebral; acidente vascular cerebral.

Introduo A causa mais comum de acidente vascular cerebral (AVC) na infncia a anemia falciforme, o homozigoto da hemoglobina S ou Hb SS. A doena falciforme (Hb SS e interaes com outras hemoglobinopatias e talassemias) a principal enfermidade gentica da populao brasileira, com 13.500 pacientes catalogados em 2006, com prevalncia populacional do gene S de 1/1.200 pessoas.1 Manifesta-se com leses em vrios rgos, causando elevada morbidade e mortalidade. Dentre essas leses, a principal, na infncia, a das artrias cerebrais, mas aps os 20 anos tambm pode se manifestar, como seqela de leses anteriores ou neoformadas.2 A vasculopatia tem a maior importncia no desenvolvimento da criana e na qualidade de vida.3 Alm do acidente vascular cerebral (AVC), completo ou incompleto ("silenci-

oso"), existem outras complicaes do sistema nervoso central, porm no exclusivas da doena falciforme, como convulses, encefalopatia, hipertenso intracraniana, trauma, meningite, alteraes mentais por distrbios metablicos e neuropatia perifrica ou hipertenso intracraniana por ocluso venosa.3 Com exceo do AVC, o diagnstico da vasculopatia cerebral falciforme no pode ser feito clinicamente, necessitando auxlio neurorradiolgico ou por outros meios. O tratamento se faz basicamente com transfuses de eritrcitos contendo hemoglobina A. O objetivo deste trabalho rever a literatura mdica, procurando selecionar a melhor conduta em diagnstico e tratamento que seja possvel empregar de imediato, para reduzir a morbidade e mortalidade da vasculopatia cerebral e elevar a qualidade de vida dos pacientes, principalmente na infncia.

Assessor mdico da Fundao Hemocentro. Mdico do Centro Regional de Hemoterapia do Hospital das Clnicas da Faculdade de Medicina de Ribeiro Preto USP. Correspondncia: Ivan de Lucena Angulo Rua Tenente Cato Roxo, 2.501 Campus da USP Monte Alegre 14051-140 Ribeiro Preto-SP Brasil Tel.: (16)2101-9300 Fax.: (16)2101-9309 E-mail: [email protected]

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Material e Mtodos Consulta base de dados Embase (www.embase.com - acesso em 08/01/2007) a partir de 2003, ao Entrez PubMed www.ncbi.nlm.nih.gov/entrez - acesso em outubro 2006), e Cochrane Library (http://cochrane.bireme.br/cochrane acesso em 14/12/2006). Fizemos tambm uma reviso de dados no publicados da casustica do ambulatrio de anemias do Centro Regional de Hemoterapia do Hospital das Clnicas da Faculdade de Medicina de Ribeiro Preto da Universidade de So Paulo. Resultados Selecionamos alguns artigos considerados relevantes para reviso do conhecimento aplicado sobre a prevalncia, etiologia e fisiopatologia, estimativa de risco, diagnstico e tratamento da vasculopatia cerebral falciforme. As concluses do SCD Global Experts and Regional Advisory Board Latin America1 sero apresentadas no final. Os artigos selecionados discorrem sobre o AVC agudo isqumico (AVCi) ou hemorrgico (AVCh), portanto pacientes com sinais e sintomas neurolgicos agudos, assim como sobre a isquemia cerebral "silenciosa" (ICS), isto , evidncias radiolgicas ou funcionais na ausncia de sinais e sintomas neurolgicos, pacientes assintomticos, portanto. No Centro Regional de Hemoterapia realizamos, em novembro de 2000, estudo com imagens de ressonncia magntica (IRM) e angiorressonncia (ARM) em 47 pacientes acima de 14 anos de idade, sendo 18 normais, 29 anormais, porm nove destes com alterao bilateral de baixo fluxo no sifo carotdeo, considerado falso-positivo, encontrando, portanto, 42,5% (vinte pacientes) com leses cerebrais residuais de isquemia cerebral e/ou vasculopatia. Os resultados destes vinte pacientes, (dez masculinos) foram os seguintes: leso vascular em 13; estenose/obstruo/estreitamento, 11; aneurisma, um; moyamoya, um; leso na artria cerebral mdia, cinco; na artria cerebral anterior, cinco; na artria cerebral posterior, um; na cartida interna, trs; leso em parnquima, 15, sendo gliose 11, encefalomalcea quatro, infartos trs; locais mais acometidos: ncleos da base, dois; cerebelo, um; tlamo, um. Leses mistas, vascular e parnquima, nove. Estudamos tambm, a partir de 2004, com Doppler Color Duplex (DTCi), e como parte da rotina, todas as crianas dos 2 aos 18 anos, complementando com IRM e angiorressonncia (ARM) nos casos com valores alterados do fluxo cerebral no Doppler. De cem crianas estudadas, havia 28 com elevao do fluxo e duas com reduo, os seja, 30% com valores alterados. Destes ltimos, 14 realizaram o estudo completo e 16 aguardavam vaga para as imagens de ressonncia. Dos 14 analisados, quatro tiveram os resultados de ARM normais e dez apresentavam leses, sendo sete com Hb SS (anemia falciforme, homozigoto), dois S-beta talassemia e um com interao SC (sete meninas e trs meninos). A cartida 263

interna foi a mais acometida (cinco casos), seguida pela artria cerebral mdia (trs casos, um concomitantemente com leso na cartida), dois casos com estenoses ou ocluses no-especificadas e um com moyamoya. Concluses A leso isqumica cerebral aguda sintomtica ou AVCi ocorre em 10% a 18% dos pacientes brasileiros.2 Em outros pases, oscila entre 1% (Arbia Saudita) e 10% (EUA). Na ausncia de tratamento, recorrncia do evento acontece em 2/3 dos casos. As leses cerebrais so progressivas, agravando as deficincias neurolgicas funcionais. Aos 20 anos de idade, 11% e, aos 45 anos, 24% dos pacientes j tiveram AVCi. A maior incidncia ocorre nas crianas entre 2 a 9 anos, voltando a aumentar aps os 20 anos, sendo a mdia das idades em 13,8 anos. O risco de isquemia cerebral (sintomtica ou silenciosa) no decorrer da vida do paciente de 30%. O acidente vascular hemorrgico ou AVCh, mais comum aps os 20 anos, apresenta mdia de idade de 31,7 anos. conseqncia do rompimento dos pequenos vasos de circulao colateral aps leses isqumicas, denominadas moyamoya.4 A mortalidade oscila entre 24% a 50%. Estudos em autpsias revelaram que o AVC responsvel por 9,8% das mortes nos EUA em pacientes do CSSCD estudo multicntrico norteamericano5 ou Cooperative Study Sickle Cell Disease . No Brasil, estudo realizado no Hemocentro do Rio Grande do Norte encontrou causas cerebrais em 9% dos bitos, semelhante s causas infecciosas, e inferior sndrome torcica e seqestro esplnico.6 A leso isqumica "silenciosa" ou ICS, isto , aumento da intensidade do sinal em imagens anormais de ressonncia magntica (IRM) do crebro, sem manifestaes clnicas de deficincia neurolgica que durem mais que 24 horas, tem o dobro da prevalncia do AVC (17% a 22% aos 20 anos). No entanto, utilizando tcnicas neurorradiolgicas avanadas, podemos encontrar leses em 44% a 49% dos pacientes.4 a leso cerebral mais freqente, acometendo 11% at os 4 anos e 22% aos 14 anos das crianas com anemia falciforme, 6% das crianas com interao SC e 15% com S talassemia. A leso isqumica "silenciosa" causa vrias deficincias neurocognitivas, como problemas de aprendizado e reduo do Quociente de Inteligncia (QI). Afeta os lobos frontais causando deficincia da ateno, falta de habilidades executivas, da memria ativa e de longo prazo, envolvendo, dessa forma, mdicos, familiares e os professores. As imagens anormais na IRM so em T2 por aumento da intensidade do sinal compatvel com infarto e acima de 3 mm. H falsos-positivos, como leses de encefalomielite, seqelas de leucomalcia e mielinizao alterada. Associados so atrofia cerebral e moyamoya, sem histria, achados fsicos, ou sinais focais de deficincia neurolgica de mais de 24 horas de durao. As crianas esto sob risco de progresso de leses neurolgicas, como AVC (predispe a AVCi, principal-

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mente se associada a velocidades de fluxo alteradas no Doppler), novas leses na IRM, baixo desempenho escolar e baixo QI. Os fatores de risco associados so baixa freqncia de CVO, convulses, leucocitose acima de 11.800, hapltipo SEN, porm sem valor preditivo. O risco de AVC de 8%, sendo de 0,5% nas crianas sem ICS.7 O tratamento sugerido so transfuses crnicas, que parecem interromper o surgimento de novas leses, mas estas leses so de patologia microvascular, sendo incerto o seu benefcio. Deve-se aguardar o resultado de um novo trial (SITT), que compare grupos com e sem transfuses. Uma opo sem provas de sucesso o emprego de hidroxiuria. Uns poucos casos se beneficiaram do TMO. Os programas de recuperao neurofuncional so aparentemente bem sucedidos.7 O quadro 1 (Hoppe, 2004)8 compara as duas entidades. O fentipo S homozigoto (Hb SS - anemia falciforme) considerado de maior risco9 do que as interaes SC e STalassemia beta, assim como antecedentes de ataque isqumico transitrio (TIA), anemia, leucocitose, hipertenso arterial, sndrome torcica aguda prvia, hipoxemia, irmos com AVC, antgenos HLA e polimorfismo da VCAM (molcula de adeso clula-endotlio). O infarto isqumico pode se originar de leses das grandes artrias do crculo de Willis, por hiperplasia da camada ntima e proliferao muscular e de fibroblastos, culminando na formao de trombos por outros fatores que seriam ativao da coagulao, presena de inflamao, ao de anticorpos antifosfolpides, ativao de clulas endoteliais, particularmente da VCAM, adeso de leuccitos e eritrcitos ao endotlio e desregulao da produo de xido ntrico (NO).10 H fatores de risco desfavorveis (grau de anemia, leucocitose, hipertenso arterial,

sndrome torcica aguda anterior, infeco por Clamidia, aterosclerose, hipoxemia aguda, TIA ou ataque isqumico transitrio ou evento neurolgico anterior, presena de moyamoya, presena de inflamao e baixa ocorrncia de crises vaso-oclusivas) e favorveis (presena de alfa talassemia e interao SC). Outros genes modificadores podem estar implicados no risco ou na proteo de AVC.11 Outros estudos dirigidos aos fatores de risco4 identificaram os seguintes: Clnicos idade 2 a 8 anos, devido ao fluxo cerebral elevado irmo Hb SS com AVC presena de isquemia cerebral silenciosa (ICS) ataque isqumico transitrio ou TIA (paralisia ou fraqueza de membros com 24 horas de durao) anterior infeco pelo parvovrus B19, crise aplstica meningite bacteriana sndrome torcica aguda recorrente com hipoxemia grave hipoxemia noturna, com ou sem apnia no sono anemia aguda, com queda da Hb de mais de 2 g/dl do valor basal convulses repetidas dactilite antes de um ano de idade disfuno ou infarto esplnico com um ano de idade priapismo hipertenso sistlica sinais de disfuno neuropsicolgica (baixo rendimento escolar, baixo desempenho em testes de ateno, incapacidade de realizao de tarefas que exigem habilidade manual fina).

Quadro 1. Comparao entre as leses vasculares cerebrais na doena falciforme. Hoppe, 2004 8, modificada. AVCi Idade da maior incidncia 2-5 anos AVCh 20-29 anos ICS 22% aos 6-12 anos; nmero de leses aumenta com a idade Ausncia de sintomas neurolgicos; disfuno neurocognitiva

Apresentao

Hemiparesia, afasia, deficincia hemisensorial ou defeitos visuais, sinais focais (convulses) IRM: infarto na regio de cartida ou ACM/ ARM: estenose, ocluso, moyamoya Lobos frontal, parietal e temporal, gnglios da base, tlamo (> 1,5 cm) Doppler transcranial Transfuses crnicas ou transplante de medula ssea

Cefalia grave, alterao da conscincia, convulses, sncope

Neuroimagens

Hemorragia subaracnidea ou intracerebral por rutura de aneurisma ou moyamoya

Infartos arteriais borderzone; ocluso dos pequenos vasos

Local das leses

Lobos frontal, parietal e temporal (