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AS CHANCES QUE A VIDA DÁ ELISA MASSELLI Sumário O começo. 7 Uma vida feliz. 12 Rancor desmedido 21 Tomada de decisão. 24 A história de Marília. 31 A Espiritualidade trabalhando. 58 Início de missão 63 A paz reina . 79 O inesperado acontece 84 O dia da exposição 88 Visita amiga 97 Em busca de ajuda 103 Sem saída 107 O pior acontece 116 Desespero total 122 Selma conta sua história 131 O reencontro 179 Ajuda necessária 190 Amigos trabalhando 217 O amor sempre vence 224 Nunca deixe para amanhã 255 O retorno 270 Despedida 281 Depressão 293 Plano perfeito 305 A força do perdão 332 Tomada de consciência 348 Acerto de contas 368 Reencontro feliz 372 Epílogo 376

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AS CHANCES QUE A VIDA D

ELISA MASSELLI

Sumrio

O comeo. 7

Uma vida feliz. 12

Rancor desmedido 21

Tomada de deciso. 24

A histria de Marlia. 31

A Espiritualidade trabalhando. 58

Incio de misso 63

A paz reina . 79

O inesperado acontece 84

O dia da exposio 88

Visita amiga 97

Em busca de ajuda 103

Sem sada 107

O pior acontece 116

Desespero total 122

Selma conta sua histria 131

O reencontro 179

Ajuda necessria 190

Amigos trabalhando 217

O amor sempre vence 224

Nunca deixe para amanh 255

O retorno 270

Despedida 281

Depresso 293

Plano perfeito 305

A fora do perdo 332

Tomada de conscincia 348

Acerto de contas 368

Reencontro feliz 372

Eplogo 376

O comeo

Selma acordou e, aps alguns minutos, levantou-se, tomou caf e

saiu. Precisava ir at o centro da cidade, onde compraria algumas coisas

no mercado. Estava casada fazia quinze anos com Roberto e tinha um

filho, Carlos, com treze anos de idade. Saiu de casa e foi caminhando em

direo rua principal. A cidade era pequena e todo o comrcio estava

naquela rua. Nela tambm ficava o nico armazm que vendia de tudo,

desde alimentos at alguns mveis e utenslios domsticos.

Enquanto caminhava, pensava:

Preciso comprar alimentos para preparar o almoo. Roberto e Carlos

saram cedo e, quando chegarem, estaro com muita fome.

Tranquila, continuou caminhando e pensando:

Estou vivendo uma fase muito boa na minha vida. Roberto est feliz

trabalhando como contador e gerente na empresa de laticnios, e Carlos

tambm, pois foi escolhido para jogar futebol e est treinando muito.

Apesar de tudo o que aconteceu, consegui reerguer a minha vida e estou muito

contente. Acho que quando no temos o que fazer s nos resta recomear.

Caminhando devagar, chegou ao armazm, comprou o que precisava

7

As chances que a vida d

e saiu, carregando uma sacola. Continuou caminhando e olhando as

vitrines. No havia muitas lojas, mas mesmo assim, sempre que passava

por l, gostava de apreciar. Ela conhecia todas as vitrines que quase

nunca mudavam, mas gostava de olhar, sempre esperando uma mudana

qualquer. O dia estava quente, tanto que seus cabelos negros que caam

at os ombros, por causa do calor e do suor, comearam a grudar em

seu pescoo e rosto. Ela continuou andando e olhando para as vitrines e

parou diante de uma delas onde havia um espelho. Ao ver a sua imagem

refletida, viu o rosto molhado pelo suor e os cabelos, tambm molhados,

que estavam junto ao pescoo, rosto e testa. O vestido branco estampado

com pequenas flores azuis e rosas tambm estava molhado junto ao

pescoo e nas mangas, e sentiu que a combinao tambm estava grudada

em seu corpo. Sem maquiagem alguma, percebeu que estava com

olheiras. Ao ver sua imagem refletida, comeou a rir e a pensar:

Imagine se minha me me visse assim. Ela que sempre foi to

preocupada com a aparncia, com sua imagem, teria um ataque.

Continuou andando e, ainda sorrindo, parou em frente a uma vitrine

que nunca havia visto.

Esta loja nova, nunca a vi antes.

Na vitrine estavam em exposio trs vestidos, lindos, de festa. Selma

parou e ficou olhando. Olhou por alguns segundos um e depois o outro. De

repente, uma sombra tomou conta do seu olhar e um pensamento surgiu:

Esses vestidos me fizeram lembrar daquela noite e do baile, onde

estvamos to felizes e que terminou de maneira to triste.

Uma lgrima se formou em seus olhos. Com a mo, molhada pelo

suor, tentou secar as lgrimas e continuou andando. No olhou mais

para vitrine alguma. Seu pensamento estava naquela noite de muitos

anos atrs. Caminhou alguns minutos e ouviu uma voz:

- Selma! Selma! No pode ser, voc mesma?

Ao ouvir aquela voz, Selma estremeceu e voltando-se, surpresa,

quase gritou:

- Flora! Voc aqui?

- Flora correu para ela de braos abertos. Abraaram-se, mas Flora

8

Elisa Masselli

afastou-se rapidamente e, rindo, disse:

- O que aconteceu com voc, Selma? Est horrvel! J imaginou o

que sua me diria se a visse assim?

Constrangida, Selma tentou rir:

- Realmente, voc tem razo, Flora! Agora mesmo, quando passei

em frente a uma vitrine e vi o meu reflexo nela, pensei exatamente isso.

Minha me morreria de tristeza.

- Pode ter certeza. Eu no sabia que voc estava morando nesta cidade.

Quanto tempo faz que veio para c?

- Mais de quinze anos.

- Tanto tempo assim? Voc est aqui desde aquela noite?

- Sim e no me mudei nunca mais.

- Voc se casou, tem filhos?

Selma sorriu:

- Sim, me casei alguns meses depois de ter chegado aqui e tenho um

filho com treze anos.

- Que maravilha! Ainda bem que a sua vida continuou. Sua me

sabe que voc est nesta cidade?

A mesma sombra que havia passado pelo rosto de Selma quando ela

viu os vestidos na vitrine voltou a surgir e uma lgrima quis se formar.

Rapidamente ela respirou fundo, secou os olhos com as mos e respondeu:

- No, acredito que no.

- Isso uma pena. Mas assim que eu for para l vou contar a ela.

- No, Flora! Por favor, no faa isso!

- Por que, no, Selma? J se passou tanto tempo. Sua me deve estar

preocupada por no saber onde e como voc est.

- No, no quero! - Selma disse, irritada.

- Est bem, no precisa ficar to nervosa.

- Desculpe-me, Flora, mas no quero me lembrar daquele tempo.

Estou bem e diria at que feliz aqui, longe de tudo aquilo e de todos.

- Est bem. Nunca poderia imaginar que a encontraria aqui e vivendo

dessa maneira!

- Nem eu imaginaria encontrar voc. O que est fazendo aqui nesta

9

As chances que a vida d

cidade perdida no fim do mundo?

- Minha me faleceu e eu recebi a herana. Como sabe, meus pais

tinham muito dinheiro e propriedades. Quando ela morreu, como nunca

me casei nem tive filhos e me vi sozinha naquela casa imensa, fiquei

triste e percebi que estava comeando a me deprimir. Ento resolvi que

precisava sair da nossa cidade e procurar outro lugar para repensar a

minha vida. Como no sabia para onde ir, peguei um mapa do estado

e coloquei sobre a mesa; fechei os olhos e percorri com o dedo; quando

parei, abri os olhos e o meu dedo estava sobre esta cidade. Sorri e resolvi

que precisava conhec-la. Cheguei aqui h dois meses, gostei da cidade e

resolvi abrir uma loja de vestidos de noiva e roupas de festa.

- Aquela loja nova de roupas de festa sua?

- Sim. Assim que cheguei aqui vi que no havia nenhuma loja desse tipo.

- Aqui? No tinha mesmo. uma cidade muito pequena, acho que

voc no vai ter muito sucesso. Festas so raras, e os vestidos de noiva

so todos feitos por uma costureira.

- Foi por ela ser pequena que gostei. Ela vai crescer e posso crescer

junto. No preciso de dinheiro, s quero ter algo que seja meu e um lugar,

tranquilo como este, para viver. E agora que te encontrei ficou melhor

ainda! Estou feliz, Selma, por ter encontrado voc! Selma tentou sorrir:

- Tambm estou feliz por ter encontrado voc, Flora.

- Moro naquela casa grande da esquina. Qualquer dia desses podemos

jantar. Venha com seu marido e seu filho! Onde voc mora?

- Vamos, sim, qualquer noite a gente pode jantar na sua casa ou voc

pode vir na nossa. Moro na esquina, mas na rua de trs. Voc est

morando sozinha?

- No, a Esmeralda veio comigo. Sabe que ela praticamente me criou

e no permitiria que eu viesse sozinha.

- Esmeralda ainda est com voc?

- Sim. Ela nunca quis me abandonar e confesso que no sei o que

seria da minha vida sem ela.

- Ela sempre cuidou muito bem de voc.

- De ns, Selma. Sempre cuidou muito bem de mim, da Arete e de voc.

10

Elisa Masselli

Novamente a sombra se formou no rosto de Selma, Flora percebeu:

- Nunca entendi o motivo de voc ter largado tudo e desaparecido.

Foi muito triste o que aconteceu. Sempre que me lembro, volto a sofrer,

mas no acho que foi motivo para voc ter desaparecido. O que aconteceu

realmente, Selma?

- uma longa histria, Flora. Qualquer dia desses podemos

conversar com mais tranquilidade e eu te conto tudo.

- Tem razo. Agora, morando aqui, teremos mais tempo para

conversar. E voc vai poder matar essa minha curiosidade.

Selma sorriu:

- J conversamos muito! Preciso ir at a loja e ver como esto as

coisas. Contratei uma moa, mas percebi que ela nada entende de festas

e de vendas. Precisa de treinamento.

- Voc perfeita nesses assuntos. Sempre gostou tanto de festas!

- Verdade, Selma. Foi por isso mesmo que abri a loja, porque gosto.

- Tambm preciso ir embora, tenho de preparar o almoo. Logo

mais meu marido e meu filho vo chegar e eles sempre chegam famintos.

At mais, Flora!

Flora sorriu e, mandando um beijo para Selma, continuou andando

em direo loja. Selma foi andando no lado oposto, pensando:

Ainda bem que ela no sabe o que aconteceu. No gostaria de me

lembrar do passado, mas pelo visto isso no vai ser possvel. Tomara que

possamos continuar convivendo em paz.

Quando chegou em frente loja, Flora olhou para trs e ainda pde

ver Selma, que dobrava a esquina. Com os olhos faiscando de raiva e de

dio, pensou:

Vou destruir voc e essa sua famlia linda! Voc vai pagar por tudo o

que nos fez, a mim e a Arete! No perde por esperar.

Imediatamente duas entidades se aproximaram, e rodopiando sua

volta, rindo, uma delas disse:

-

Isso mesmo, Flora! Ela merece sofrer muito e ns vamos ajudar voc! Ela

pensou que bastavafugir, se esconder neste fim de mundo, e tudo seria

esquecido.

Mas isso no vai acontecer! Ela vai pagar por tudo que fez, ora se vai!

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Uma vida feliz

Selma continuou caminhando. Estava surpresa e preocupada com

aquele encontro:

Como isso pde acontecer? Depois de tanto tempo, como Flora veio

parar aqui nesta cidade perdida e to longe de casa? Ela parece bem em

relao a mim, mas ser que est mesmo? Eu, durante todo esse tempo,

tentei esquecer, embora no tenha conseguido totalmente. Tentei esquecer

e outros problemas da minha vida fizeram com que eu no pensasse tanto

nisso. Nada que eu fizesse poderia mudar o que aconteceu. Esto todos

mortos e eu fui a culpada. Disso nunca poderei fugir.

Sorriu e continuou pensando:

Devo estar delirando, alucinando. Flora no teria como saber o que

aconteceu. Como nenhuma das pessoas que estavam naquela festa percebeu.

A vinda dela para esta cidade foi, sim, apenas coincidncia.

Olhou para o relgio que carregava em seu pulso:

Estou atrasada para preparar o almoo. Preciso me apressar.

Acelerou o passo e em poucos minutos estava em casa. Assim que

entrou colocou a sacola que carregava sobre a mesa. Enquanto tirava da

12

Elisa Masselli

sacola as coisas que havia comprado, pensava:

Como epor que Flora apareceu nesta cidade? Eu estava to bem, tranquila,

levando a minha vida. Feliz ao lado do Roberto e do Carlos. Tenho

medo que a presena dela possa fazer com que toda essa tranquilidade

desaparea. Por que o passado voltou?

Depois de tirar tudo da sacola, lavou as mos e comeou a cozinhar

e a pensar:

Nunca disse ao Roberto ou ao Carlos quem eu era e de onde vim.

Quando nos conhecemos, inventei uma histria e ele acreditou. Depois

nunca mais falamos sobre esse assunto. Preciso conversar com Flora e pedir

que no conte coisa alguma sobre o meu passado. S no entendo como ela

veio parar aqui. Esta cidade to distante e pequena, nunca pensei que um

dia isso poderia acontecer.

Mesmo nervosa e preocupada, terminou de preparar o almoo. Estava

terminando de colocar os pratos sobre a mesa quando eles chegaram,

se aproximaram dela e, um de cada lado, a beijaram no rosto. Ela

retribuiu os beijos e, enquanto eles iam lavar as mos, continuou colocando

os pratos. Alguns minutos depois, voltaram e sentaram-se.

Enquanto comiam, Carlos, feliz, disse:

- Mame, j contei ao papai. Hoje tarde vou jogar na equipe de

basquete! Como sabem, semana passada fiz um teste, e o tcnico hoje

disse que fui aprovado!

- Parabns, meu filho! Vai se sair bem!

- Tambm, com essa altura, voc s poderia ser jogador de basquete!

- Roberto disse, rindo.

Selma e Carlos tambm riram. Roberto continuou falando:

- Para que o dia seja perfeito, tambm tenho uma boa notcia!

Selma e Carlos, com curiosidade, olharam para ele, que continuou:

- A empresa, durante o ano, teve um lucro enorme e resolveu agradecer

os funcionrios dando um aumento de salrio. Com esse aumento,

vamos poder viajar! J podemos fazer o roteiro da viagem!

- Que maravilha, papai!

- Parabns, Roberto!

13

As chances que a vida d

- Nossa vida est perfeita, no est, Selma?

- Claro que est. O que mais posso desejar? Tenho um marido que

me ama e a quem eu amo e um filho que s me traz felicidade! Tenho,

sim, uma vida perfeita e s posso agradecer a Deus por isso.

Parou de falar e pensou:

Ser que mereo tanta felicidade? Claro que no. Depois de tudo o que

fiz, no mereo mesmo.

Ele sorriu e continuaram comendo.

Quando terminaram, Roberto, levantando-se, disse:

- Agora preciso trabalhar. Aumento de salrio significa aumento de

trabalho, mas que fao com toda a vontade do mundo. Adoro o meu

trabalho e a empresa que tanto j nos deu.

Selma, rindo, tambm se levantou e, abraada ao marido,

acompanhou-o at o porto. L, ele beijou de leve seus lbios e, rindo, se afastou.

Ela, sorrindo, ficou olhando at que ele desapareceu quando virou a

esquina. Entrou em casa e foi at a sala de visitas, onde Carlos assistia televiso.

Olhou para o filho e, sorrindo, perguntou:

- A que horas voc vai treinar, Carlos?

- s trs horas e vou ficar at as cinco. Estou feliz e nervoso, me.

- Nervoso, por qu?

- No sei. Estou com medo de no conseguir.

- No pense assim, claro que vai conseguir! Voc foi escolhido

porque o tcnico achou que tem futuro. V para o treino e faa tudo o

que puder e souber. Voc vai conseguir!

- verdade, mame! Adoro basquete!

- Assim que se fala, meu filho! Agora, preciso ir ao orfanato, as

meninas esto esperando por mim, estamos preparando a exposio de fim

de ano. Elas trabalharam e se dedicaram tanto! Precisamos fazer com

que tudo d certo.

- Claro que vai dar! H quanto tempo a senhora faz esse trabalho?

- Nem sei, h mais de dez anos. Comecei quando voc era pequenininho.

- Ento, no sei por que acha que pode no dar certo. Sempre deu!

* - Verdade. Nossa exposio a cada ano que passa fica melhor, mas

14

Elisa Masselli

desta vez diferente. Eu e Marlia estamos esperanosas de conseguir

dinheiro para construir mais uma ala e assim podermos atender a mais

crianas.

- As mes dos meus amigos gostam da senhora e a respeitam pois

sabem da sua dedicao ao orfanato.

- No me preocupo com isso; s quero que as meninas tenham o

trabalho reconhecido, j que foi feito com tanto carinho. Aquelas

meninas precisam desse incentivo. Agora, preciso ir. Tenho medo de no

terminarmos a tempo.

- Pare com isso, mame! Ainda falta mais de um ms! Vai dar tempo

de tudo ficar pronto!

- Verdade, Carlos, sempre deu. Agora estou indo. Depois voc me

conta como foi o treino.

Carlos sorriu e voltou os olhos para a televiso.

Ela saiu e na rua permitiu que lgrimas cassem por seu rosto. Com

as mos secou os olhos e, enquanto caminhava, foi pensando:

Minha vida to boa, to perfeita! Tenho Roberto, um marido

maravilhoso, e Carlos que tudo na minha vida. Sei que no tenho motivo para

me queixar, no sei por que estou triste, achando que alguma coisa de ruim

pode acontecer e toda essa felicidade desaparecer.

Sorriu e continuou andando e pensando:

Pare com isso, Selma! Nada de mal vai acontecer! Tudo vai continuar

como est. V cuidar das suas meninas.

Depois de caminhar por quinze minutos, chegou a um grande

porto, abriu e entrou. Assim que as crianas a viram chegando, correram

ao seu encontro e todas juntas a rodearam. As pequenas se agarraram s

suas pernas, o que dificultava sua caminhada.

Ela, rindo, abraou a todas e, com dificuldade, conseguiu entrar na casa

e foi recebida por uma senhora que tambm a recebeu com um sorriso.

- Ainda bem que chegou, Selma! As meninas esto ansiosas pelo dia

da exposio.

- Tambm estou, Marlia. Sa logo depois do almoo, nem lavei a

loua. Vamos para o galpo.

15

As chances que a vida d

Ela, Marlia e as meninas foram para um galpo que havia nos fundos

do quintal.

L dentro havia duas mesas grandes e compridas e, sobre elas,

vrios tecidos e linhas. As meninas sentaram-se nos bancos tambm de

madeira que estavam ao lado da mesa, Selma sentou-se em uma das

pontas da mesa e as meninas, uma a uma, foram trazendo suas peas

para que ela olhasse.

Selma foi olhando uma a uma, elogiando e corrigindo.

Assim que terminou de olhar todas as peas, Selma se levantou e,

sorrindo, disse:

- Vocs sabem que o dinheiro que vamos arrecadar com a venda

dessas peas vai ajudar Marlia com a manuteno do orfanato e, quem

sabe, at construir uma nova ala para que mais crianas possam vir

morar aqui. Por isso, precisam ser feitas com muito amor e carinho.

Enquanto eu no estiver aqui, Sandra, por ser a mais velha, voc vai ficar

encarregada de ajudar as meninas. Assim, no perderemos tempo, e as

peas ficaro lindas e todas sero vendidas:

- Pode ficar tranquila, dona Selma, vou cuidar de tudo. Tambm, se

no cuidar, minha me vai ficar muito braba, no vai, me?

- Claro que se voc no ajudar vou ficar preocupada e muito nervosa,

Sandra. Voc sabe o quanto dona Marlia nos ajudou quando viemos

para c. Voc tinha apenas seis anos e ela nos acolheu, deu estudo, e

agora voc est se preparando para ir para a faculdade. Tudo graas a ela.

- No diga isso, Rita. Voc tem me ajudado durante todos esses anos.

Sem voc, provavelmente no teramos o orfanato.

Marlia sorriu. Aps algum tempo, saram do galpo e foram para o

escritrio de Marlia. Entraram e sentaram-se:

- Ento, Selma, como esto os trabalhos? Voc acha que ficaro

prontos na data?

- Ficaro sim. As meninas esto motivadas. Elas sabem que, como

acontece todos os anos, a exposio trar pessoas que, ao conhecerem o

orfanato, ajudaro com algo mais alm da contribuio com a compra

das peas. Estou esperanosa, Marlia!

16

Elisa Masselli

- Exatamente o que precisamos, esperana! Voc sabe que desde que

voc chegou cidade e ao orfanato tem nos ajudado muito. No tem sido

fcil, as despesas aumentam todo ms.

- Sei disso, mas no podemos desanimar.

- Voc com seu otimismo de sempre, Selma.

- Anime-se, Marlia! Vai dar tudo certo! Alguma vez voc ficou sem

dinheiro para cuidar das suas meninas?

- No. Algumas vezes fiquei nervosa e assustada, mas, de alguma

maneira o dinheiro sempre chegou. Isso aconteceu quando voc apareceu

aqui querendo conhecer o orfanato.

Selma sorriu:

- Voc no me falou isso. O que estava acontecendo?

- Eu no podia dizer, pois voc veio apenas visitar o orfanato. Estava

desesperada sem saber o que fazer. A comida estava desaparecendo da

dispensa. Acho que voc foi enviada por Deus.

- Nunca imaginei que voc pensasse isso, Marlia, pois eu sempre

achei que voc tinha sido um anjo na minha vida.

- Eu? Por qu?

- Naquela manh em que vim aqui, a tia de meu marido, minha grande

e nica amiga, aps ficar por muito tempo doente, morreu. Fiquei muito

triste e me sentia s e desprotegida, mesmo tendo Roberto e Carlos, que

ainda era pequeno. Eu sentia muito sua falta, do seu sorriso e de suas

palavras. No sentia prazer algum e s chorava. Naquela manh, como sempre

fazia, fui at a padaria comprar po e leite para que eu e Roberto pudssemos

tomar caf antes de ele ir trabalhar. Estava aguardando ser atendida quando

ouvi uma moa perguntar a outra que tambm esperava:

-

Como esto as coisas l no orfanato, Rita?

-

Dona Marlia no comenta, mas ela anda muito preocupada. Chegaram

muitas crianas e preciso muito dinheiro para manter todas elas.

-

Mas dona Marlia rica, Rita!

-

Sim, ela mantm o lugar com seu prprio dinheiro, mas no pode

assumir tudo sozinha. Seria preciso que algum surgisse ou alguma coisa

acontecesse para ajud-la.

17

As chances que a vida d

-

Ningum ajuda?

-

Algumas pessoas sim, mas no o suficiente. Todos os dias, venho

aqui na padaria buscar po para o caf da manh. Seu Antnio j ajuda

h muito tempo.

- Ainda bem.

- Eu estava ouvindo a conversa delas, Marlia, e nem percebi que

havia chegado a minha vez. Seu Antnio, ao perceber que eu estava

distrada, disse:

- Chegou sua vez, senhora.

- Envergonhada, olhei para ele e pedi po e leite. Depois, sa apressada

sem olhar para as mulheres que conversavam.

- Foi assim que ficou sabendo do orfanato, Selma?

- Foi, sim, Marlia. Sa dali e, enquanto voltava para casa, ia

pensando. Senti uma vontade enorme de conhecer um orfanato, saber como era.

Sabia que existiam, mas nunca me preocupei. Em casa e enquanto

tomvamos caf, contei a Roberto o que havia acontecido e terminei dizendo:

-

Sempre ouvi falar sobre orfanatos, mas nunca conheci nenhum.

Tenho uma enorme curiosidade de conhecer.

- Roberto, sabendo que eu andava triste, sem vontade de coisa alguma,

disse:

-

Por que no vai visitar esse orfanato e assim aplacar sua curiosidade?

- Voc acha que posso ir? Ser que vo me receber?

-

S vai saber indo. V at l e, quem sabe, possa ajudar de alguma

maneira.

- Ser? Ajudar?

- No sei, mas no custa tentar.

- Vou fazer isso. Logo depois do caf e aps dar um jeito aqui em casa,

vou com Carlos at l.

- Terminamos de tomar caf, Marlia. Roberto, aps me beijar e se

despedindo, foi para o trabalho. Carlos, que ainda dormia, acordou.

Cuidei dele e no entendia o motivo, mas estava me sentindo bem e no

tinha mais vontade de chorar. Depois de cuidar da casa e de Carlos, sa e

vim para c. O resto voc j sabe.

18

Elisa Masselli

- Sei sim e como sei. - Marlia disse rindo.

Selma tambm riu. Marlia continuou:

- Nunca vou me esquecer daquele dia. Rita tinha razo, naquele dia

eu estava realmente muito preocupada. As crianas estavam chegando.

Eu j havia gastado uma boa quantia do meu dinheiro. Meus pais e

sogros me ajudavam, mas no podia pedir mais. Eu havia assumido o

orfanato, precisava encontrar uma maneira de cuidar dele. Quando voc

chegou e comeamos a conversar, senti que poderamos trabalhar juntas.

Depois de conversarmos por algum tempo, voc veio com a ideia de

pedir que seu marido conversasse com o dono do laticnio para quem ele

trabalha para conseguir leite e derivados para as crianas.

- Ele conversou e conseguiu. No precisamos mais nos preocupar

com leite e po.

- Depois, fomos falar com o dono do armazm e conseguimos

alimentos. Fomos aos stios e conseguimos ovos e verduras. Em pouco

tempo no precisvamos mais nos preocupar com a alimentao das crianas.

- Verdade, Marlia. Tudo mudou rapidamente.

- Isso mesmo, Selma. Depois, voc veio com a ideia de ensinar as

meninas a costurar e a bordar para que fizssemos uma exposio onde

os trabalhos pudessem ser vendidos. Fizemos isso e hoje um sucesso.

- Depois daquele dia no tive mais tempo para ficar chorando e

sofrendo. No que eu tenha me esquecido da minha amiga, mas conhecendo-a

como conhecia sabia que estava feliz com o que eu estava fazendo.

- Sabe, Selma, j h algum tempo venho estudando uma doutrina

que fala muito da importncia de nos doarmos aos outros, da caridade.

- No foi pensando nisso que vim para c, apenas tinha curiosidade

de saber como funcionava um orfanato, mas acho que o que disse

verdade mesmo, pois foi somente depois de me dedicar s crianas que a

minha dor, minha tristeza, passou.

- A doutrina ensina que quando nascemos um anjo amigo vem nos

acompanhando e fica ao nosso lado por toda a vida. Acho que, naquele dia,

eu estava em desespero e voc sofrendo, ento o meu anjo se uniu ao seu e

nos aproximou. O melhor de tudo que deu certo! - Marlia disse rindo.

19

As chances que a vida d

- Voc est falando da Doutrina Esprita?

- Sim. Por que, voc conhece?

- Mais ou menos. Minha amiga tambm seguia essa doutrina e me

falou a respeito da necessidade que temos de fazer caridade. Disse,

tambm, algumas coisas que no sei se aceito ou no, como reencarnao.

Acho que difcil aceitar que tivemos outras vidas. Parece mais fico

cientfica.

- Bem, qualquer dia conversaremos a esse respeito, Selma. O que

importa que tenho f de estarmos fazendo a coisa certa e, por isso, tudo

vai dar certo.

- Ento, precisamos manter a f. O seu trabalho muito importante.

Ainda tem muito a fazer.

- Estou preocupada, Selma.

- Preocupada com que, Marlia?

- J estou com quase cinquenta anos, Selma. Estou ficando velha.

- Velha coisa nenhuma! Voc tem ainda muito que trabalhar! Alis,

ns temos! Agora vou para o galpo acompanhar o trabalho das meninas.

Dizendo isso, levantou-se e sob o olhar e o sorriso de Marlia saiu do

escritrio e voltou para o galpo.

20

Rancor desmedido

Enquanto isso, Flora olhou para o relgio e assustada pensou:

Fiquei to envolvida com as lembranas do passado e em como me

vingar de Selma que nem vi o tempo passar e esqueci de ir almoar.

Esmeralda deve estar preocupada, ela no tem ideia de que encontrei Selma.

Vou agora!

Avisou Ndia, a moa que trabalhava na loja, e foi para casa almoar.

Foi recebida por Esmeralda:

- Ainda bem que chegou, Flora. Estava preocupada.

- Preocupada, por que, Esmeralda?

- J so quase duas horas da tarde e voc no veio para o almoo.

- Sabe que a loja est sendo inaugurada e tem muito trabalho para

que fique da maneira que eu quero.

- Voc j almoou?

- No, Esmeralda. Hoje o dia foi complicado e s agora pouco me

dei conta da hora do almoo. Quero que minha loja seja um sucesso!

- Sei disso, mas sei tambm que voc no veio para esta cidade por

causa da loja. Voc tem muito dinheiro, no precisa trabalhar para viver.

21

As chances que a vida d

- No vamos mais falar a esse respeito. Voc sabe por que eu vim e o

que pretendo fazer.

- Sei sim e estou triste por isso. O dio, o rancor e a vingana s

fazem mal a voc mesma, Flora, e nada vai mudar o que aconteceu e

nada, nunca mais, voltar a ser como antes. Viva sua vida e deixe que

Selma viva a dela.

Flora largou a bolsa sobre o sof da sala e, enquanto caminhava, foi

dizendo:

- No venha com essa conversa. Estou muito feliz por finalmente

estar aqui. Vou lavar minhas mos e depois almoar.

Assim que entrou no banheiro, olhou no espelho e, com muita raiva,

pensou:

Achou que ia se esconder de mim, Selma, vindo para esta cidade no

fim do mundo, que quase nem aparece no mapa, mas eu a encontrei e voc

vai pagar por seu crime e por tudo que nos fez sofrer!

Lavou as mos e voltou para junto de Esmeralda, que j havia

colocado a comida sobre a mesa.

- Est tudo bem, Flora?

- Melhor do que imaginei, Esmeralda! Finalmente, encontrei Selma.

- Respondeu sorrindo e com o olhar cheio de dio.

- Encontrou? Ela est bem?

- Quando a vi custei a acreditar que fosse ela. Garanto que voc

tambm iria se assustar, pois ela nem de longe a mesma Selma que

conhecemos. Ela estava vestida com roupas simples, com os cabelos em desalinho

e uma sacola na mo. Parecia uma pessoa comum do povo ou uma

empregada domstica. Disse que ia preparar o almoo para o marido e o filho.

- Ela est casada e tem um filho?

- Sim. No prestei muita ateno, mas parece que ele tem treze anos.

- Est vendo, Flora? Ela est casada e tem um filho. Selma recomeou

a vida, enquanto voc ficou parada sem nada construir, dominada

pelo dio. Ainda h tempo. Siga adiante e tente recomear sua vida.

O que Selma fez est feito e no h como mudar.

- Voc sabe o que vim fazer aqui, Esmeralda. Alis, o que tenho feito

22

Elisa Masselli

todo esse tempo. Estive procurando por ela e finalmente a encontrei!

Agora que a encontrei, nada vai fazer com que eu mude de ideia. Vou

fazer com que pague por tudo que nos fez sofrer!

Disse isso demonstrando um dio profundo nos olhos e na voz. No

imaginava que, ao dizer isso, as duas entidades que estavam ao seu lado

gargalharam e uma delas disse:

- Isso mesmo, Flora! Voc a encontrou, chegou a hora da sua e da

minha vingana! Ela precisa pagar!

- Pare com isso, Flora! J disse milhes de vezes que esse desejo de

vingana s faz mal a voc mesma!

- Pare voc, Esmeralda! Tambm j disse milhes de vezes que no

adianta! Vou me vingar!

- Voc tem dinheiro, poderia ter continuado sua vida, se casado

e tido filhos, uma famlia; mas no fez isso, pelo contrrio: s tem no

pensamento essa vingana intil que nada vai acrescentar sua vida.

Vamos voltar para casa, Flora! Livre-se desse mal que est ao seu lado e

comece a viver!

- Tem razo, Esmeralda! Tenho muito dinheiro e, se for preciso,

usarei cada centavo para fazer com que a vida de Selma seja destruda! Por

favor, no toque mais nesse assunto, a no ser que seja para me ajudar!

- Est bem. Voc sabe que eu jamais faria alguma coisa para ver

voc sofrer.

- Sei disso e espero que, se no quiser me ajudar, ao menos no

atrapalhe! Agora preciso comer, estou faminta!

Sentou-se e comeou a comer. Enquanto comia, no percebeu que

estava envolvida em uma nuvem densa e negra e que as entidades

continuavam ali ao seu lado, rindo e felizes, rodopiando sua volta.

23

Tomada de deciso

Os dias foram passando. Selma no queria se encontrar com Flora;

queria que seu passado continuasse onde esteve at agora: guardado,

bem guardado. Por isso evitava ir rua principal onde estava a loja de

Flora e sempre que precisava de alguma coisa fazia uma lista e pedia que

Carlos ou Roberto fosse at l e trouxesse. Roberto estranhou:

- O que est acontecendo, Selma? Parece que voc no quer mais

fazer compras para casa. Tem algum motivo especial pra isso?

Pega de surpresa por aquela pergunta, ficou algum tempo sem

responder. Depois de alguns segundos, sorrindo, mentiu:

- No tem motivo algum, Roberto. Voc sabe que o dia da exposio

est chegando, temos muito trabalho para que tudo fique pronto. Preciso

ficar mais tempo com as meninas, por isso pedi a vocs que me ajudassem.

Tem algum problema?

- No tem problema, Selma. Quando voltar do trabalho passo por

l. Somente estranhei, voc sempre fez as compras, nunca deixou que eu

fizesse, dizia que eu no sabia escolher.

- Selma tentou sorrir:

24

Elisa Masselli

- E no sabe mesmo, mas agora estou precisando de sua ajuda. Pode

continuar me ajudando?

Ele no respondeu, sorriu e abraando-a pela cintura beijou seus

lbios e chamou:

- Carlos, vamos embora! Est na hora!

Carlos, que estava no quarto preparando-se para ir escola, saiu,

ainda passando as mos pelos cabelos.

Acompanhados por Selma, assim que chegaram ao porto, beijaram

seu rosto e foram embora.

Selma ficou olhando at que desapareceram na esquina. Enquanto

olhava, pensava:

No posso contar a verdade. Eles nunca me perdoaro.

Como fazia todos os dias, voltou para dentro da casa para pegar

feijo e arroz. Cozinhava pela manh, antes de sair, e na hora do almoo s

fazia a mistura e a salada. Fazendo isso, poderia ficar mais tempo com

as meninas. Ao abrir o armrio, porm, notou que no havia mais arroz.

Preocupada, pensou:

No posso ir agora fazer compras, as meninas esto me esperando. Vou

at o orfanato e, quando sair, passo rpido pelo armazm.

Chegou ao orfanato, examinou o trabalho que estava sendo feito e,

feliz, disse:

- Meninas, os trabalhos esto muito bons! Vocs sabem que na nossa

exposio viro muitas pessoas de outras cidades, futuras mames e

noivas que querem comprar o enxoval. Tenho certeza de que ao verem

essas peas to lindas vo ficar encantadas e compraro tudo!

A arrecadao vai ser muito boa!

As meninas, como no poderia deixar de ser, riram felizes.

O tempo passou to rpido que Selma nem percebeu. Olhou o relgio

e lembrou-se que precisava comprar arroz. Tinha medo de encontrar

Flora, mas no tinha como evitar. Despedindo-se das meninas e de

Marlia, saiu apressada e pensando:

J so onze horas, preciso ir ao armazm e preparar o almoo. Roberto

e Carlos chegaro ao meio-dia e meio. Mas antes preciso ir ao armazm.

25

As chances que a vida d

Acelerou os passos. Chegou ao armazm e comprou o que precisava.

J estava saindo quando encontrou Flora e Esmeralda, que entravam.

Assim que a viram, Flora sorriu e Esmeralda abriu os braos:

- Selma, minha filha, quanto tempo.

Selma, por alguns segundos, ficou sem saber o que fazer. Depois

abriu os braos e as duas se abraaram com muita saudade.

- Como voc est linda! Ainda parece aquela mesma menina de antes!

- Qual nada, Esmeralda! J se passaram quinze anos e o tempo no

protege ningum. Estou mais velha, sim! - Disse rindo.

- Claro que sim, mas continua linda como sempre foi. Flora disse

que havia encontrado voc e fiquei feliz.

- Tambm fiquei, Selma, mas no nos encontramos mais. Ficamos

de jantar juntas com a sua famlia, mas voc nunca mais apareceu.

- Verdade, Flora. porque estou envolvida em um trabalho no

orfanato e no tenho tido tempo para coisa alguma. Quando esse trabalho

terminar, poderemos nos encontrar.

- Que espcie de trabalho?

Animada, Selma contou sobre a exposio. Assim que terminou,

Flora, sorrindo, disse:

- Que timo, Selma! Quer dizer que aquilo que aprendemos no

colgio est servindo para ajudar essas meninas?

- Est, sim, Flora. E voc se lembra que, apesar de vocs no gostarem,

eu adorava bordar e costurar?

- Claro que me lembro, e at hoje no entendo como voc podia

gostar daquele trabalho! Ainda bem que eu tinha Matilde para fazer por

mim! Eu achava aquilo uma perda de tempo, nunca teramos onde usar.

Embora as freiras dissessem que poderamos fazer o nosso enxoval de

casamento e dos nossos filhos, para mim no fazia sentido algum. Eu

sabia que quando isso acontecesse eu teria dinheiro para ir at a Ilha da

Madeira comprar um belo enxoval de casamento e um mais lindo ainda

para o meu beb, sem ter de ficar bordando.

- Verdade, Flora, pensvamos assim. Mas hoje o que aprendi est

srvindo para ajudar a essas crianas.

26

Elisa Masselli

- Parabns, Selma! Voc se tornou uma pessoa muito boa, diferente

daquela que conhecemos.

- Mas so elas que me ajudam, Esmeralda. Depois que comecei a

trabalhar no orfanato encontrei um sentido para minha vida e sou, sim,

diferente da Selma que conheceram. Estou muito feliz.

- No entendo o que est dizendo. Flora me disse que voc est

casada e tem um filho. Eles no preenchiam a sua vida?

- Claro que sim. Mas quando conheci o orfanato, senti que poderia

trabalhar ali e fazer muita coisa.

Esmeralda olhou para Flora e, sorrindo, disse:

- Voc pode ajudar tambm, Flora. Pode doar uma quantia em

dinheiro para o orfanato e, assim, ajudar as crianas. Quando ajudamos

algum, na realidade estamos ajudando a ns mesmas.

- Claro que sim, Esmeralda. Vou mandar uma quantia para que voc

use como quiser, Selma.

- Obrigada, Flora, doaes so sempre bem-vindas. Mas, por favor,

antes de dar o dinheiro, quero que v at o orfanato para conhecer as

crianas e o trabalho que estamos fazendo. Assim, voc aproveita e

entrega o dinheiro para Marlia, a diretora do orfanato.

- Vou fazer isso, s que precisa ser esta semana.

- Esta semana, por que Flora?

- Estamos indo embora. Como voc disse, esta cidade no comporta

uma loja como a minha, e j estou com muito prejuzo. Acho melhor voltar

para minha casa e pensar em outra coisa para empregar o meu dinheiro.

- Voc vai embora, Flora?

- Vou sim, Selma. Minha loja no tem futuro aqui, sendo assim no

tenho mais o que fazer. Durante esse tempo em que estou nesta cidade

no consegui entender como voc consegue morar aqui e no entendo

como pode estar feliz aqui, depois de ter tido a vida que sempre teve.

- Estou feliz aqui, Flora. Tenho meu marido, meu filho e o orfanato.

Isso tudo que preciso para ser feliz.

- Voc se conforma com pouco. Eu quero mais, muito mais.

- A vida me ensinou a valorizar o que realmente tem valor.

27

As chances que a vida d

- Bom para voc. S sinto por no ter conhecido seu marido e seu

filho, mas no vai faltar oportunidade. Quem sabe um dia vocs no nos

visitam, no , Esmeralda?

- Verdade, Selma. Quando for nos visitar convidaremos sua me e

faremos uma surpresa! Sei que ela ficar muito feliz!

- Por favor, Esmeralda, no conte a minha me nem a ningum que

me encontrou. Estou bem e feliz aqui longe de tudo e de todos.

- Voc contou ao seu marido o motivo de ter vindo para c?

- No, Flora. Ele nunca perguntou coisa alguma a respeito da minha

vida e eu no achei necessrio contar. Estamos bem.

- Acho que fez bem, talvez ele no entendesse.

Selma se calou e olhou para Esmeralda, que disse:

- Vamos deixar essa histria pra l, Flora. De nada vai adiantar

lembrar o passado. Voc est bem e feliz, Selma, isso que importa.

- Tem razo, Esmeralda. Estou bem e feliz.

Flora, tentando no demonstrar o dio que estava sentindo, sorrindo, disse:

- Vamos, Esmeralda, temos muito a fazer. Precisamos preparar a mudana.

Abraaram-se. Selma foi embora, Flora e Esmeralda entraram no armazm para comprar

algumas coisas.

Depois de comprar e pagar, saram do armazm. Na rua, Esmeralda, ainda surpresa, perguntou:

- Vamos embora mesmo, Flora?

- Vamos, Esmeralda. Cansei de ficar nesta cidade.

- Est dizendo que desistiu de se vingar? Que perdoou?

Flora soltou uma gargalhada:

- Isso mesmo. Como voc sempre disse, estou perdendo um tempo enorme me dedicando a essa

vingana. Vamos embora e vou retomar minha vida, que parou desde aquele dia. Selma est

feliz com seu marido e seu filho, enquanto eu estou aqui triste e sem ningum.

- Como estou feliz em ouvir voc dizer isso, Flora. Graas a Deus, voc entendeu que vingana

no vale a pena e s faz sofrer a quem a deseja.

28

Elisa Masselli

- Depois de conversar com Selma a respeito do orfanato, tive uma

ideia: hoje tarde, vamos at l. Quero dar um cheque para ajudar essas

meninas.

- Vai dar dinheiro para o orfanato?

- Vou, sim, Esmeralda. Perdi muito tempo, tenho tanto dinheiro que

nem sei o que fazer com ele e nada melhor do que se fazer o bem.

O dinheiro que vou dar no vai fazer falta alguma.

- Estou muito feliz por voc ter tomado essa deciso. Agora, vamos

para casa. Depois do almoo vou comear a empacotar as coisas e

guardar outras nas malas.

- Isso mesmo e, enquanto isso, vou ao orfanato. No quer ir comigo?

- Pensando bem, acho que vou, sim. Quero ver o que Selma est

fazendo. Parece que m trabalho muito bom.

- Est bem. Agora, vamos almoar, estou morrendo de fome. Depois,

quando voltarmos do orfanato, eu ajudo voc na arrumao da mudana.

S vou levar algumas roupas; os mveis e tudo o mais vou doar para algum.

- Voc mudou mesmo, Flora. Graas a Deus!

Voltaram para casa. Assim que chegaram e colocaram as compras

sobre a mesa, Esmeralda, preocupada, perguntou:

- O que est acontecendo, Flora?

- Sobre o que voc est falando, Esmeralda?

- Sobre essa sua mudana de comportamento.

- Est falando sobre a nossa volta para casa?

- Sim. Como pode, de repente, querer voltar? Voc passou todos

esses anos somente pensando em encontrar Selma e se vingar, e agora

que a encontrou simplesmente vai embora? Assim, sem nada fazer? Est

muito estranho.

- Estranho por qu? Tem razo, passei todo esse tempo s querendo

vingana e voc tentando me demover dessa ideia, agora que fiz o que

sempre me pediu est achando ruim?

- No estou achando ruim; pelo contrrio, estou achando muito

bom, s no estou entendendo. Sempre que eu dizia que vingana no

levaria a lugar algum, voc ficava nervosa e dizia que s iria descansar

29

As chances que a vida d

no dia em que se vingasse, e agora do nada quer ir embora e deixar que

Selma continue sua vida?

- Tem razo, Esmeralda. Eu ficava braba, quando voc dizia que a

culpa no era s dela; mas agora, vendo que ela est bem e vivendo uma

vida simples que eu nem sonharia viver, dedicando sua vida a cuidar

dessas meninas rfs, acho que ela merece continuar aqui e ser feliz.

Voc sempre teve razo. Eu, realmente, perdi muito tempo; mas agora

est na hora de voltar para casa e retomar minha vida. Por conta dessa

vingana nunca me interessei por rapaz algum, no me casei, no tive

filhos. Selma continuou sua vida e tem o que eu nunca tive ou terei.

Agora chega, Esmeralda. Resolvi fazer o que voc sempre disse. Vou deixar a

vingana por conta de Deus.

- Se voc estiver dizendo a verdade, fico muito feliz. Vamos para

casa, voc vai comear uma nova vida que, vai ver, ser s de felicidade!

- Claro que estou dizendo a verdade, Esmeralda! Por que enganaria

a voc, que esteve ao meu lado desde criana, que praticamente me criou

e sempre soube o que eu sinto? Quando chegarmos em casa, voc vai ver

que vou ser outra pessoa. Cansei de perder tanto tempo somente

pensando na vingana. Entendi, finalmente, que isso s me fez mal.

Esmeralda, feliz, levantou os olhos e disse:

- Obrigada, meu Deus, por ela, finalmente, ter entendido como

estava errada.

- Agora vamos preparar as malas, Esmeralda. Quero me mudar

amanh mesmo.

- Amanh? Pensei que seria durante a semana.

- A princpio achei que seria assim, mas depois pensei bem e acho

que quanto mais rpido nos mudarmos melhor ser.

Esmeralda sorriu, beijou o rosto de Flora e foi para seu quarto

preparar suas malas.

30

A histria de Marlia

Enquanto isso, Selma chegou a sua casa e, rapidamente, preparou o

almoo. Estava tranquila com a partida de Flora, embora um pouco

preocupada, com medo que ela contasse a sua me que a havia encontrado.

Roberto e Carlos chegaram na hora de sempre, e almoaram.

Depois do almoo, antes mesmo que eles sassem, ela se despediu e

foi para o orfanato. Tinha muito trabalho junto s meninas e queria que

tudo ficasse perfeito. Sabia que a exposio era um evento da cidade mas

que atraa pessoas de cidades vizinhas. Sabia que muitas pessoas

importantes e com dinheiro viriam no s para comprar as peas de roupas

mas tambm para darem doaes que eram importantes para a

manuteno do orfanato.

Chegou ao orfanato e, como sempre, foi recebida com muito carinho.

Embora se esforasse para no se apegar s meninas, no conseguia. Amava

cada uma delas e muitas vezes sofreu quando algum foi adotada, mesmo

sabendo que para aquela menina era a melhor coisa que podia acontecer.

Estava ali por algumas horas quando, surpresa, viu que Flora e

Esmeralda entravam no galpo, acompanhadas por Marlia. Sorrindo, foi

31

As chances que a vida d

ao encontro delas, que abriram os braos, e se abraou a elas, dizendo:

- Que surpresa, Flora! No pensei que, realmente, voc viria aqui no

orfanato!

- Eu disse que viria, no disse? Pois bem, estou aqui. - Disse rindo.

Marlia se aproximou e deu para Selma um pacote. Selma o abriu

e viu que havia muitos maos de notas. Surpresa, olhou para Marlia e

perguntou:

- Que dinheiro este, Marlia? Quanto tem aqui?

Marlia, no conseguindo evitar a alegria e emoo que estava

sentindo, respondeu:

- Sua amiga doou para o orfanato. A tem vinte mil!

Selma olhou espantada para Flora, que sorria.

- Vinte mil, Flora?

- Sim. Voc sabe que tenho muito dinheiro e que essa quantia nada

significa para mim, ao passo que para o orfanato muito valiosa.

- Voc no imagina como! Com este dinheiro e o que vamos arrecadar

com a exposio, vamos poder construir mais uma ala e, assim,

poderemos atender a mais meninas, no , Marlia? Temos quinze meninas

e no temos espao para mais.

Marlia estava to emocionada que sua voz quase no saiu:

- Vamos sim, Selma! Finalmente, Deus ouviu nossas preces e o

nosso sonho vai se realizar!

Selma devolveu o dinheiro para Marlia:

- Guarde esse dinheiro, Marlia. Depois da exposio vamos ver

quanto temos e planejar a nova ala.

Marlia pegou o dinheiro e, feliz, se afastou. Selma disse:

- Entrem aqui no galpo e vejam o trabalho das meninas.

Entraram. Flora e Esmeralda se admiraram com a quantidade de

meninas que estavam ali. As meninas, ao verem entrar aquelas pessoas

estranhas, levantaram-se. Selma, sorrindo, disse:

- Meninas, estas so minhas amigas e esto aqui para conhecer

vocs e o nosso trabalho.

- Algumas meninas sorriram; outras, tmidas, abaixaram os olhos.

32

Elisa Masselli

Acompanhadas por Selma, Flora e Esmeralda se aproximaram da

grande mesa e comearam a olhar os trabalhos: roupinhas de recm

-nascidos, colchas e lenis para noivas com bordados lindssimos e

caprichados. Elas ficaram encantadas com a perfeio dos trabalhos.

Esmeralda, admirada, disse:

- Estes trabalhos so lindos! Qualquer noiva ou futura me ao v-los

no poder deixar de querer comprar! So feitos pelas meninas mesmo?

Elas so to pequenas!

- So, Esmeralda. Eu fui ensinando e elas aprenderam com facilidade.

Sabem como importante para o orfanato termos dinheiro.

- Qual a idade delas?

- A menina menor tem doze anos. A maior Sandra, filha de Rita, tem

dezessete anos e j vai para a faculdade. Marlia a mostrou para vocs?

- Mostrou, sim. Notei que vocs s cuidam de meninas, por qu?

No h meninos rfos precisando de abrigo?

- Claro que h, Flora, mas no temos espao. Esta casa pertencia a

Marlia, quando seu marido morreu e como nunca teve filhos, ela doou

para que se transformasse em um orfanato. O sonho dela e agora o meu

construirmos outra ala para que possamos cuidar de meninos tambm.

Com o dinheiro da exposio e, agora, com o que voc nos deu, acredito

que esse sonho possa ser concretizado.

- Fico feliz por ter ajudado. Como vocs fazem para cuidar de todas

essas meninas? De onde vem o dinheiro para manter o orfanato?

- Esta cidade cercada por fazendas, os fazendeiros nos ajudam

mandando alimentos. Temos carne, frutas e verduras, alm do leite que

chega todos os dias. Alm disso, algumas pessoas nos doam dinheiro, do

qual usamos uma parte para outras despesas e a outra parte guardamos

para a construo.

- Pensando bem, Esmeralda, o que acha de mandarmos todo ms

uma quantia para ajudar com as despesas?

- Esse dinheiro vai ser muito bem empregado, Flora. E ajudando as

crianas estaremos ajudando a ns mesmos.

- Est falando srio, Flora? - Selma perguntou, entre admirada e feliz.

33

As chances que a vida d

- Claro que sim, Selma. O trabalho de vocs muito bonito e precisa

ser ajudado. Quando eu voltar para casa, vou ao banco ver como andam

minhas finanas e reservar um dinheiro para que possa ser doado todos

os meses. Assim, alm de construrem a ala dos meninos, tero uma ajuda

para poder mant-los.

- Que felicidade voc est me dando, Flora! Nem sei como agradecer!

- No precisa agradecer. Estou vendo que voc tem uma vida aqui e

que bem produtiva, se posso ajudar.

- Selma, preparei um ch para tomarmos enquanto conversamos. -

Marlia retornou e disse sorrindo.

- Que timo, Marlia!

Olhou para Flora e Esmeralda e perguntou:

- Vamos at a sala?

- Vamos sim. - Flora respondeu, sorrindo.

Saram do galpo e entraram na casa pela porta da cozinha, que era

enorme. Depois de passarem por um corredor, entraram em uma sala

que tambm era bem grande. Em um dos cantos da sala havia uma mesa

e sobre ela uma toalha branca com um bordado delicado e lindo. Sobre

ela, xcaras e bandejas com pes, bolos e salgadinhos. Marlia apontou os

lugares em que deviam se sentar e, depois, sentou-se tambm.

Depois de sentadas, comearam a tomar o ch e a comer as guloseimas.

Enquanto comiam, Flora falou:

- Selma disse que esta casa era sua e que voc a doou para que fosse

criado o orfanato, Marlia.

- Verdade.

- Por que fez isso?

- uma longa histria, Flora.

- Estou curiosa, no quer nos contar?

- No sei. uma histria como outra qualquer, sem muita graa.

- No me parece que seja. Algum que doa uma casa para que se

transforme em um orfanato no assim to comum. Voc deve ter tido

um motivo muito srio para fazer isso.

- - Realmente, tive.

34

Elisa Masselli

- Conte-nos, Marlia! Temos tempo. S vamos nos mudar amanh,

hoje temos toda a tarde livre.

O olhar de Marlia se perdeu no horizonte. Depois de alguns segundos,

voltou a falar:

- Vou contar. Mas se ficarem cansadas basta dizer que eu paro na hora.

- Acredito que no vamos ficar cansadas, mas se isso acontecer eu

mesma peo para voc parar. - Flora disse rindo.

- Est bem, vamos l. Embora eu e o meu marido tenhamos nascido

nesta cidade, s nos conhecemos quando eu tinha dezesseis anos e ele

dezessete. Eu estava indo para a escola e, como estava atrasada, corria.

Ele tambm, atrasado, corria logo atrs. Foi quando uma de minhas amigas

de classe chamou:

-

Marlia, espere!

- Ao ouvir a voz dela parei e me voltei. Ele no teve tempo de parar

e nos trombamos violentamente. Para que eu no casse, ele me abraou,

rindo, e nos olhamos nos olhos. Foi olhar e se apaixonar. Como dizem,

foi amor primeira vista. - Disse sorrindo.

- Que encontro lindo, Marlia.

- Verdade! Selma, at hoje, quando me lembro, fico emocionada.

Pareceu que o destino estava esperando aquele momento para que nos

encontrssemos.

- Deve ter sido o destino mesmo. Dizem que ele tem uma maneira

prpria para fazer com que as pessoas se encontrem.

- No sei se isso verdade, Selma; mas que esse encontro foi estranho,

foi. - Flora disse sorrindo.

- Continue, Marlia!

- Vou continuar, Selma. Depois de alguns segundos abraados e nos

olhando, eu me soltei e ele perguntou:

-

Voc estuda aqui?

- Achei aquela pergunta meio boba, pois eu estava correndo em

direo escola.

Sim, fao o segundo ano de magistrio, quero ser professora, e voc?

- Estou no ltimo ano do colegial. Depois, vou fazer faculdade de Medicina.

35

As chances que a vida d

-

Medicina? Mas aqui no tem faculdade.

- Sei disso, depois que me formar vou ter de ir para a Capital. Depois

de seis anos vou voltar.

-

Vai mesmo? No acha melhor morar na Capital? Esta cidade to

pequena.

-

pequena, mas a minha cidade e gosto de morar aqui.

-

Por que Medicina?

-

Meu pai mdico aqui da cidade, e antes dele meu av tambm foi.

- Voc filho do doutor Alencar?

- Sim. Voc conhece meu pai?

-

Quem no conhece seu pai? Ele o nico mdico da cidade!

- Verdade. Eu, algumas vezes, me esqueo disso.

- Bia, a amiga que ainda estava ali, s que um pouco distante, se

aproximou:

-

Marlia, estamos atrasadas, voc no vai entrar?

- Naquele momento, o que eu queria mesmo era continuar conversando

com ele, mas sabia que no era possvel, ento respondi:

-

Vamos, sim.

- Quando estava me afastando, ele disse:

-

Vou esperar por voc na sada. Precisamos continuar a nossa conversa.

- Ao ouvir aquilo, meu corao bateu mais forte. Queria ficar ali,

mas sabia que no podia. Apenas acenei com a cabea dizendo que sim.

- Nesse dia, voc conseguiu acompanhar a aula, Marlia?

- Claro que no, Esmeralda. No consegui parar um minuto de

pensar nele e nos seus lindos olhos. Quando a aula terminou, apressada, sa

da sala e nem me lembrei de Bia, que me chamou:

-

Marlia, espere! Estou guardando meu material.

-

No d para esperar, Bia. Tenho um compromisso!

- Ela comeou a rir:

-

Sei bem que compromisso esse.

- Tambm ri e me afastei quase correndo, precisava saber se ele estava

me esperando. Quando sa pela porta, olhei para o lugar onde tnhamos

nos encontrado, mas ele no estava ali. Fiquei to decepcionada que

36

Elisa Masselli

quase chorei. Bia se aproximou:

-

Ele no est esperando por voc, Marlia?

- Olhei para ela e, triste, respondi.

-

No, ele no est aqui. Acho que estava brincando. Vamos embora.

- Eu estava de costas para a porta, ela de frente. Quando eu ia me

virar Bia, rindo, disse:

-

Ele est vindo, Marlia, e correndo!

- Meu corpo todo estremeceu. Passei a mo pelos meus olhos para

que ele no percebesse que eu estava chorando. Virei a cabea por cima

dos ombros no momento exato em que ele se aproximou:

-

Desculpe-me, o professor atrasou o final da aula. Faz tempo que est aqui?

- No, acabei de chegar. Estava esperando pela Bia. Ela chegou e j

amos embora.

- No sei por que menti. Acho que estava envergonhada. Ele no

percebeu e perguntou:

-

Ainda no sei seu nome. O meu Pricles e j sabe que sou filho do

doutor Alencar.

- O meu Marlia e sou filha do juiz Loureno.

- Filha do juiz? Como nunca vi voc antes? Devemos ter ido a vrias

festas da cidade!

- Comecei a rir.

-

Verdade, mas no me lembro de ter visto voc. No saio muito de

casa, meus pais no deixam. S saio com a Bia. No , Bia?

- Fiquei surpresa, Bia no estava mais ali. Eu estava to envolvida

com ele que nem percebi quando ela foi embora. Ele tambm no havia

percebido e, rindo, disse:

-

Vamos embora? Que caminho voc faz para ir para casa?

- Eu moro em uma casa l na praa, perto do frum.

-

Moro do outro lado, mas posso acompanhar voc at em casa?

- Claro que sim!

- Naquele dia comeamos a namorar. Ele me levou at a porta da

minha casa. Durante o caminho foi me contando de suas aulas e como

estava ansioso para o dia em que pudesse ir para a Capital. Eu fiquei

37

As chances que a vida d

ouvindo, mas no conseguia prestar ateno no que dizia. Estava encantada

com aquele rosto to lindo e aqueles olhos brilhantes.

- No acredito! Voc est falando a verdade? Ficou boba mesmo? -

Selma perguntou, rindo.

- Fiquei, sim. No se esqueam de que eu tinha dezesseis anos. -

Marlia disse, tambm rindo, e continuou falando:

- Quando chegamos ao meu porto, ele pegou na minha mo, olhou

nos meus olhos e disse:

-

Fiquei encantado assim que vi voc, e olhe que nunca me interessei

por menina alguma. Meu pensamento sempre esteve s nos meus estudos.

Por isso, quero perguntar a voc: quer ser minha namorada?

- Fiquei sem saber o que responder. Ele voltou a repetir:

-

Voc quer ser minha namorada?

- No sei.

-

Como no sabe?

- No sei, nunca namorei.

- No gostou de mim?

-

Gostei, gostei muito, s no sei o que fazer.

- J que gostou, vamos namorar?

- No sei, preciso falar com meus pais.

-

Eu converso com seu pai. Acredito que eles permitiro.

- Ele estava segurando minha mo, quando minha me saiu da casa

e nos viu. Ela se assustou, ficou parada e apenas disse:

-

Marlia! Tudo bem com voc

?

- Eu, ainda perplexa com tudo o que estava acontecendo, olhei para

ela, mas no consegui responder. Assim que a viu, Pricles, sorrindo,

soltou minha mo, abriu o porto e caminhou at ela. Estendeu a mo e

disse sorrindo:

-

Meu nome Pricles, sou filho do doutor Alencar. Conheci sua filha

e desejo comear um namoro srio com ela.

- Minha me, assim perplexa como eu, ficou ali, olhando para mim e para

ele, mas no conseguiu dizer uma palavra sequer. Na porta, que estava aberta,

meu pai apareceu e, parecendo nervoso, olhou para mim e perguntou:

38

Elisa Masselli

-

O que est acontecendo aqui, Marlia?

- Pricles se voltou para ele e disse:

-

Como j disse para sua esposa, Excelncia, meu nome Pricles, sou

filho do doutor Alencar. Conheci sua filha e desejo iniciar um namoro srio

com ela. Podemos conversar?

- Meu pai, surpreso, olhou para mim e perguntou:

-

O que tem a dizer a esse respeito, Marlia?

- Fiquei sem saber o que dizer. Eu queria namorar com ele, mas

sabia que meus pais no deixariam. Ao ver que eu no respondia, meu pai

olhou para Pricles e disse:

-

Voc atrevido, rapaz. Entre, vamos conversar.

- Ao ouvir aquilo, respirei fundo. Conhecia meu pai e soube na hora

que ele havia aceitado Pricles. Entramos e nos sentamos em dois sofs

que havia na sala. Baixou um silncio profundo que, embora durasse

apenas alguns minutos, para mim e acredito que para todos pareceu uma

eternidade. Para quebrar o silncio, Pricles falou:

-

Como disse, conheci sua filha e desejo iniciar um namoro.

- Em seguida contou como foi o nosso encontro e terminou dizendo:

-

Sei que o senhor vai dizer que somos muito jovens, mas no se preocupe

com isso. Vou me formar este ano e como quero ser mdico igual ao meu

pai preciso ir para a Capital. O senhor sabe que aqui no tem faculdade.

- Meu pai olhou para mim e para minha me, sorriu e disse:

-

Berta, pea que seja colocado mais um prato na mesa. Esse jovem vai

almoar conosco.

- Pricles olhou para mim e sorriu. Eu, embora ainda um pouco

nervosa com aquela situao, tambm sorri. Meu pai perguntou:

- Vamos almoar, rapaz. Logo mais preciso ir para o frum.

-

Desculpe-me, senhor, mas hoje no pode ser. Minha me est me

esperando para o almoo e, se eu no chegar, ela vai enlouquecer. Sabe como

, sou filho nico.

- Est certo, mas qualquer dia desses vamos almoar. Alis, vou

conversar com seu pai para que ele e sua me venham tambm.

- Ele vai ficar feliz, senhor. Sempre fala muito bem a seu respeito.

39

As chances que a vida d

- Levantou-se, estendeu a mo para meu pai e depois para minha

me e, sorrindo, disse:

-

Preciso ir embora, mas noite eu volto para podermos conversar mais.

- Ser bem-vindo. Marlia, acompanhe o rapaz at o porto.

- Eu estava feliz por toda aquela conversa. Sabia que meus pais

haviam aceitado Pricles e que iam permitir o nosso namoro. Daquele dia

em diante comeamos a namorar. Ele me esperava, todos os dias, na

sada da escola e me acompanhava at em casa. S nos vamos na escola,

porque ele estava estudando para prestar o vestibular. Mesmo assim, a

cada dia nosso amor foi aumentando. O fim de ano chegou. Eu passei

para o terceiro ano e ele terminou o colegial e precisava ir para a Capital.

Foi difcil, mas sabamos que era preciso. No dia em que ele foi embora

eu o acompanhei at a rodoviria. Ficamos ali por um bom tempo

esperando. O nibus chegou e, antes de entrar, ele disse:

- Voc sabe que eu, se pudesse, no iria, mas preciso. Desde pequeno

quero ser mdico. Estou pedindo que tenha pacincia, vou escrever todos

os dias contando como estou passando e espero que escreva tambm. Nas

frias eu venho e poderemos ficar mais tempo juntos. Seis anos passam

depressa e eu vou estudar muito para me formar e, assim, poder voltar logo.

Promete que vai me esperar?

- Eu estava to emocionada e triste que no consegui responder,

apenas o abracei e beijei com todo carinho e amor. Ele entendeu,

correspondeu ao meu beijo e depois abraou meus pais e os dele que tambm

estavam ali. Entrou no nibus que, logo depois, saiu devagar e eu fiquei

ali, vendo-o desaparecer. Voltei para casa e chorei muito.

- Ele cumpriu a promessa, escreveu todos os dias? - Selma perguntou:

- Claro que no, Selma. Foi impossvel com tanto para estudar,

embora quisesse no havia tempo, mas veio em todas as frias e fins de

semana prolongados.

- Perguntei porque achei que ia ser mesmo complicado.

As trs riram. Marlia continuou:

- Eu me formei no ano seguinte. Estava animada com a minha festa

de formatura e feliz por ter me tornado professora, pois aquele era o

40

Elisa Masselli

meu sonho desde criana. O dia da festa estava prximo e eu muito feliz

porque, alm de ser uma noite especial, tambm estaria com ele.

Mandei fazer um vestido lindo verde-claro. Ficava me imaginando naquele

vestido, na msica e eu em seus braos danando a noite toda. Em uma

tarde, estava em meu quarto lendo quando o telefone tocou. Como o

livro estava em uma parte emocionante no me preocupei em atender.

Depois de algumas chamadas e vendo que ningum atendia, me levantei

e fui at a sala. Peguei o telefone e atendi:

-Al.

-

Al, Marlia! Que bom que est em casa!

- Pricles! No imaginei que fosse voc! S me telefona aos domingos.

-

Sei disso, mas tenho algo para dizer que, sei, vai deix-la triste.

- O que aconteceu?

- No vou poder ir ao seu baile.

-

O qu?

-

Sinto muito, mas isso o que ouviu.

-

Por que no vai poder vir ao baile? Voc prometeu.

- Eu pretendia ir, mas fiquei sabendo hoje que justamente no fim de

semana que vai ser o seu baile vai haver um simpsio com vrios mdicos

famosos. Eu no posso faltar, porque alm de receber uma nota por

comparecer, ouvir a palestra deles vai ser muito bom para o meu histrico escolar

e aprendizado. Preciso aprender o mximo que puder. Quero ser um bom

mdico.

- Mas, Pricles, a minha formatura! Estou sonhando e esperando por

esse dia.

- Eu sei disso, Marlia, mas no posso faltar. muito importante.

- O meu baile no ?

-

Claro que . Estou arrasado, mas no tem outra maneira. Sei que

voc vai estar linda e que ser muito cumprimentada. Na semana seguinte

do baile, vou at a e poderemos passar horas e horas juntos.

- Ele no veio ao seu baile, Marlia?

- No, Flora.

- Voc no ficou braba?

41

As chances que a vida d

- Fiquei triste, mas no braba. Eu sabia que, para ele, estudar era

muito importante, pois assim no repetiria o ano e poderia voltar mais

cedo para casa e para mim. - Marlia respondeu sorrindo e continuou:

- O dia do baile chegou. Embora triste, me arrumei, coloquei o meu

lindo vestido e, olhando para o espelho, sorri e me senti linda. Quando

faltava meia hora para eu sair, o telefone tocou e, desejando que fosse ele,

corri para atender:

-

Al!

-

Al, Marlia! J est pronta para o baile?

-

Estou, e linda! - Respondi sorrindo.

- Sinto muito por no poder estar a, mas prometo que, quando nos

casarmos, para compensar esse dia vou fazer voc muito feliz!

- Sei disso. Vou continuar esperando por voc.

- Fui para o baile e, na medida do possvel, me diverti. Apesar de

tudo, estava feliz por ter conseguido o meu diploma. Sabia que o dia em

que eu seria feliz ao lado dele estava chegando.

Enquanto comiam e tomavam ch, as trs ouviam com ateno

Marlia contar sua histria.

Quando terminou de tomar o ltimo gole de ch, colocou a xcara

sobre o pires e os dois sobre a mesa e continuou falando:

- Aquela era a primeira vez em que moas recebiam o diploma de

professora, o que para todas ns era muito importante. Ser professora

era o ideal das filhas de pessoas de posses da cidade, era motivo de

orgulho para os pais e ainda . Foi ento que o prefeito, sabendo que haveria

muitas professoras no final do ano, resolveu construir mais uma escola,

e foi l que fui dar aula.

- Assim que se formou j foi dar aula, Marlia?

- Sim, Selma. Era o que eu mais queria, e como no havia muitas

professoras porque algumas, assim como aconteceu com Pricles, foram

embora da cidade para poderem fazer a faculdade, outras se casaram e

tambm foram embora. Da minha turma s sobraram cinco professoras

que foram contratadas imediatamente.

- Como foi dar aula sendo to jovem e inexperiente?

42

Elisa Masselli

- No comeo, confesso que foi difcil, Esmeralda; mas com o tempo

fui me acostumando e depois de alguns meses no tive mais problema

algum. Ensinar foi o melhor que poderia ter acontecido comigo. Com

tanto trabalho, no tive tempo de me desesperar com a falta de Pricles.

Continuamos a nos ver nas frias e nos fins de semana prolongados e a

nos falar todos os domingos por telefone.

- Deve ter sido difcil essa separao, j que se gostavam tanto.

- Foi sim, Flora, mas teria sido pior se eu no estivesse trabalhando.

Alm do mais, eu contava os anos, os meses e os dias que faltavam

para ele se formar. O tempo demorou em passar, at que, finalmente,

ele se formou. A nossa alegria foi imensa. Para o baile de sua formatura

comprei outro lindo vestido. E, ao contrrio do que havia acontecido

na minha formatura, eu, minha famlia e a dele fomos para a Capital e

participamos do baile. Eu estava feliz e orgulhosa, porque embora

algumas vezes eu tivesse duvidado do amor dele por mim, sempre acreditei

que um dia nos casaramos. No dia seguinte ao baile, voltamos para c.

Eu e Pricles estvamos felizes e sonhando com nosso futuro. Dois dias

depois que voltamos, ele pediu que sua me fizesse um jantar para mim

e meus pais. Ela atendeu feliz e prontamente:

-

Est bem, vou fazer, mas posso saber por que voc quer esse jantar?

-

Preciso fazer um comunicado e quero que todos estejam presentes.

-

Est bem, mas no pode adiantar do que se trata?

- No, mame! uma surpresa!

-

Surpresa? Espero que seja boa.

- Para mim muito boa; no sei se vai ser para a senhora, nem sei se

vai gostar.

- No vou gostar, por qu?

-

Eu disse que no sei se a senhora vai gostar. No disse que no vai

gostar. Talvez goste.

-

Pare com isso, conte logo!

- Ele, rindo, saiu da sala e foi para seu quarto. Sua me, intrigada,

ficou imaginando que surpresa poderia ser aquela. Conversou com o

marido e marcou um almoo para o domingo seguinte. Fiquei feliz com

43

As chances que a vida d

o convite e, rindo, respondi:

-

Domingo um bom dia, Pricles. Os meus pais e os seus podero

conversar a respeito do nosso namoro.

O pai de Pricles estaria de folga, embora, como mdico, nunca sabia

quando ficaria em casa pois poderia ser chamado a qualquer momento.

Ele trabalhava no nico e pequeno posto de sade que havia na cidade.

Conversei com meus pais e disse que no sabia qual seria essa surpresa,

e no menti, realmente no sabia.

- No ficou preocupada, Marlia? No imaginou que ele poderia

querer desmanchar o namoro?

Marlia comeou a rir:

- No, Flora! Nem por um minuto imaginei isso. Havamos esperado

por tanto tempo que no seria justo se isso acontecesse.

- Pois se fosse eu teria feito uma histria terrvel na minha cabea. -

Flora disse, rindo.

Marlia, tambm rindo, continuou falando:

- Ainda bem que eu no tenho muita imaginao para criar histrias.

Voltaram a tomar ch e a comer os doces e salgadinhos que estavam

sobre a mesa. Depois, Marlia continuou:

- No domingo eu e meus pais fomos para a casa de Pricles, e tanto

dona Maristela, a me de Pricles, como seu pai nos receberam de forma

muito amvel. Dona Maristela havia preparado um almoo delicioso, o que

nos mostrou o carinho com que ela havia preparado. Durante o almoo nos

deliciamos e conversamos sobre vrios assuntos. Pricles, que sempre falou

muito, contou algumas coisas que havia acontecido durante o tempo em que

estudou na faculdade. Depois do almoo e aps comermos a sobremesa,

fomos para a sala de estar. Pricles, sempre muito carinhoso, disse:

-

Sente-se ao meu lado, mame. Vou contar a surpresa que a senhora

est to curiosa para saber.

- No s ela, mas todos ns, meu filho.

- Sei disso, papai, por isso vou ser breve. Eu e Marlia conversamos e

resolvemos marcar o nosso casamento para o ano que vem.

- - Ano que vem? To cedo, meu filho?

44

Elisa Masselli

-

Eu disse que a senhora podia no gostar, mas j esperamos muito.

Est na hora.

-

Mas vocs so ainda to jovens!

- Ele comeou a rir, abraou e beijou a me que, emocionada, disse:

-

Sabe, meu filho, no sei o que estou sentindo por saber que voc vai

sair de casa, mas, ao mesmo tempo, estou tranquila por saber que escolheu

a moa certa e que vai iniciar uma nova famlia. Espero que vocs sejam

muito felizes, a nica coisa que me preocupa que vocs so ainda muito

jovens.

-

No somos to jovens assim, mame. Agora a hora certa.

- Meus pais tambm estavam surpresos pela rapidez com que tudo

aconteceu:

-

Bem, tambm achamos que vocs so muito jovens e que poderiam

esperar mais algum tempo, mas se acham que est na hora, o que vamos

fazer? Gosto de voc, Pricles, e sei que vai fazer minha filha muito feliz, e

isso o que importa.

-

Obrigado, Excelncia, e pode ter certeza de que isso mesmo que vai

acontecer, eu e Marlia vamos ser muito felizes.

- Eu tambm estava surpresa, pois Pricles no havia me dito que

faria aquilo. Olhei para ele, que sorriu. Tambm sorri e fiquei calada, pois,

no fundo, bem l no fundo, era isso o que eu queria: me casar e ser feliz.

- Pricles segurou minha mo:

-

Vamos ser felizes, Marlia. Pode ter certeza disso.

- Aquele ano foi dedicado preparao do casamento. Como minha

me no queria que eu fosse para muito longe, meu pai, que tinha

comprado este terreno, conversou com meu sogro e os dois construram esta

casa, que fica na esquina da praa, bem perto da casa de meus pais. No

dia em que fui ver a casa onde amos morar, me espantei com o tamanho.

-

Quatro quartos, papai? Para que tantos? E esta sala to grande, para

que, papai?

-

Para os meus netos, vou querer muitos e que tenham uma vida feliz

e confortvel. Nesta sala, eles vo poder brincar e correr vontade sem

perigo de se machucarem.

45

As chances que a vida d

- Como nossas famlias eram conhecidas e respeitadas, nosso casamento

foi lindo e um acontecimento na cidade. Nossa lua de mel foi em Paris.

- Vocs foram para Paris, Marlia?

- Fomos, sim, Flora. Foram vinte dias de sonho e de felicidade, que

nunca mais vou me esquecer.

- Que maravilha, Marlia! Nunca estive em Paris; alis, pensando

bem, nunca fui para lugar algum.

- Nunca viajou, Flora?

- No, nunca, Selma.

- No entendo isso, Flora. Voc sempre teve dinheiro, por que nunca

quis viajar, conhecer o mundo?

Esmeralda, demonstrando tristeza, foi quem respondeu:

- Flora nunca se interessou realmente em viajar. Sempre teve outras

coisas para pensar e planejar.

- Esmeralda sempre foi exagerada. Nunca viajei porque nunca senti

vontade. Gosto de ficar em casa, lendo, ouvindo rdio. Gosto da solido. Viajar

muito complicado: avio, hotel, malas; mas agora estou pensando, talvez eu

planeje uma viagem para Paris. Voc vai comigo, no vai, Esmeralda?

- Claro que sim, Flora. Sempre estive ao seu lado e vou continuar at

quando Deus quiser. Estou feliz por voc, finalmente, resolver continuar

com a sua vida que est parada h tanto tempo.

- Vou mudar totalmente, Esmeralda. Voc vai ver. Finalmente,

entendi o que voc sempre me falou. Realmente perdi muito tempo.

- Que bom, Flora. At que enfim voc resolveu comear a viver a vida!

- Bem, continue contando sua histria, Marlia. O que aconteceu

depois que se casaram?

- Vou continuar, Flora. Desde que Pricles voltou para a cidade, com

seu diploma, comeou a atender pacientes ao lado do pai, mas teve

dificuldades, porque as pessoas, por ele ser muito jovem, no confiavam na

sua capacidade. Porm, aos poucos, ele foi conquistando clientes. Depois

de dois anos de casados eu ainda no havia engravidado, o que chamou a

ateno no s minha e de Pricles como tambm de toda a famlia, que

sempre vinha com aquela pergunta:

46

Elisa Masselli

-

Ainda no est grvida, Marlia? No quer um filho? Quando as

crianas vo chegar?

- No comeo, no dei muita ateno. Mas, com o tempo, e vendo

que no engravidava, aquela pergunta comeou a me incomodar.

Resolvemos ir para a Capital para eu me consultar com um colega de Pricles

que havia se especializado em obstetrcia. Depois de alguns exames foi

constatado que no tnhamos problema algum e que, a qualquer

momento, poderamos engravidar. Voltamos para a cidade e continuamos

com a nossa vida, eu como professora e ele como mdico. At hoje no

entendi o porqu de nunca ter tido um filho, j que no havia problemas,

mas eu e Pricles sempre vivemos muito bem e fomos felizes. Vivemos

juntos por dezoito anos. Algumas empresas vieram para c, ento

a cidade cresceu e passou a no depender mais somente dos fazendeiros

que moravam ao seu redor. Um jovem prefeito foi eleito e mudou a cidade

completamente, criando pontos tursticos, o que atraiu muitas pessoas,

assim como aconteceu com voc, Selma.

- Verdade, Marlia. Quando cheguei aqui estava perdida, nem

imaginava o que ia acontecer com a minha vida.

Selma disse isso olhando para Flora e Esmeralda, que tambm olharam

para ela. Marlia, sem imaginar o que havia acontecido na vida

daquelas trs mulheres, continuou:

- Pricles se dedicava muito ao seu trabalho, porque assim como

cuidava dos fazendeiros e de suas famlias, das pessoas de posses da

cidade, tambm cuidava do mais humilde agricultor e de todas as pessoas

que o procurassem.

- O que aconteceu com ele, Marlia?

Certa manh, sentiu forte dor no estmago, mas no ligou, disse que

era apenas um mal-estar, tomou um anticido e foi para o posto de sade.

Durante vrios dias a dor voltou e ele no ligou. Como em casa de

ferreiro o espeto de pau, quando resolveu se consultar e fazer alguns

exames j era tarde, estava com cncer no estmago. Fomos para a Capital

para que ele fizesse um tratamento, que no deu resultado. Depois de

seis meses ele morreu e me deixou sozinha. Sofri muito, fiquei sem cho

47

As chances que a vida d

e no sabia como continuar minha vida sem ele. A nica coisa que eu

queria era tambm morrer para poder ir ao seu encontro. No entendia

por que um homem como ele, que sempre se dedicou a ajudar a quem

precisava, poderia morrer to cedo.

- Verdade, Marlia. Por tudo o que est nos contando, a morte dele

no foi certa nem justa.

- Pensei exatamente isso, Flora. Ele era muito novo e tinha muito o

que fazer. Por mais que eu tentasse, jamais conseguiria entender.

- Deve ter sido difcil mesmo, Marlia. No consigo imaginar o que

seria da minha vida sem Roberto.

- Foi, sim, Selma. Tanto que cheguei a pensar que no conseguira

mais seguir em frente. No conseguia mais lecionar, coisa que, depois de

Pricles, era o que eu mais amava. Eu me vi nesta casa imensa que tinha

sido construda para abrigar crianas que nunca vieram. Vivia chorando e

me revoltei contra tudo, at contra Deus. Passava as noites acordada e

dormia pouco durante o dia. Quando acordada, sempre perguntava a Deus:

- Por que levou o meu amor? Logo ele que passou sua vida ajudando

a todos que precisavam e o procuravam? Um homem to jovem e feliz?

Enquanto outras pessoas, ms e egostas, continuavam vivendo? No est

certo, no!

- Deve ter sido muito difcil mesmo, Marlia.

- Foi, sim, Flora. Eu no entendia nem aceitava como a vida, para mim,

era to injusta e no queria mais viver. Todos os meus sonhos e desejos

tinham sido enterrados com Pricles. Fiquei assim por mais de dois meses.

Meus pais tentaram me animar. Vieram em casa, queriam que eu fizesse

uma viagem para me distrair, mas eu no queria coisa alguma. Queria s

chorar e pensar em Pricles sem parar. No consegui voltar escola. No

sentia mais prazer em lecionar, em preparar as crianas para o futuro,

porque sabia que se preparar e estudar de nada adiantaria, pois a qualquer

momento elas poderiam morrer. Aqueles foram dias muito difceis.

- Imagino como deve ter sido, Marlia.

- Pois , Esmeralda. A gente tinha tantos sonhos, tantos desejos. Eu

e Pricles havamos planejado tantas coisas, viagens que faramos, mas

48

Elisa Masselli

que sempre foram adiadas para depois e que nunca mais seriam realizadas,

tantas conquistas para alcanar e, de repente, tudo se acaba e a vida

perde o sentido.

- Como eu disse, no consigo me ver sem Roberto e Carlos. Quanto

tempo demorou para voc voltar sua vida normal, Marlia?

- Quase seis meses. Embora eu no quisesse, pois no tinha a mnima

vontade de receber ningum ou mesmo de conversar, mas as pessoas

insistiam em me visitar. Professoras da escola, minhas amigas,

preparavam as crianas, que vinham at aqui, faziam versinhos, cantavam

musiquinhas; mas nem aquilo, embora eu tenha achado lindo, me comoveu e

me tirou daquela situao em que eu me encontrava. Meu nico desejo

era ficar ali, quieta, somente esperando a morte chegar. Muitas pessoas

vieram me visitar. Minha me estava sempre ali, tentando me animar,

mas, por mais que ela e todos tentassem, nada conseguia me tirar daquela

apatia, daquele desejo de ficar sozinha e de s pensar nele. A nica que

no veio foi minha sogra. Eu, quando pensava nela, entendia, sabia que

assim como eu ela devia estar sofrendo muito, pois se eu havia perdido

o meu marido, ela tinha perdido um filho e, para uma me, no existe

dor maior e no h como aceitar. Sabia que se para mim estava sendo to

difcil, para ela era pior. Ela no tinha como aceitar. Ela sempre gostou

de mim e tambm me tratou como filha. Achei que ela no tinha vindo

porque no queria que eu a visse sofrendo. Em uma manh, eu estava

deitada, sem vontade de me levantar, tomar banho ou ao menos sair para

o quintal para respirar ar puro, quando a porta se abriu, e ela, minha

sogra, acompanhada por minha me, entrou no quarto. Tanto uma como a

outra tinham a chave da minha casa. Eu j estava ali por vrios dias, com

a janela fechada, pois s queria ficar no escuro, quieta, apenas deitada no

lado da cama em que Pricles dormia. Queria ficar sentindo seu cheiro,

sua presena. Achava que se fizesse aquilo poderia estar ao lado dele.

Quando as vi, estremeci, me sentei na cama e perguntei:

- O

que esto fazendo aqui?

-

Levante-se, Marlia. Viemos tomar um caf com voc! Olhe como

o dia est lindo! um presente de Deus para todos ns. Quem est feia

49

As chances que a vida d

voc! Este quarto e voc esto com um mau cheiro horrvel e precisando de

sol, de ar puro!

- Enquanto dizia isso, abriu as cortinas e o sol invadiu meu quarto.

Por estar no escuro durante muito tempo, fui obrigada a fechar os olhos.

Depois, rindo, perguntou:

-

No est feliz em nos ver?

- Na realidade eu no estava feliz, pois no estava disposta a ver

ningum, mas no podia ser mal educada com ela, que sempre me tratou

com tanto carinho, como filha. Antes de responder, com a claridade do

sol consegui v-la perfeitamente. Fiquei ali, parada, olhando para ela e

tentando entender o que estava acontecendo. Ela estava linda, maquiada,

com os cabelos arrumados e com um lindo vestido de uma estampa

colorida. Olhando para ela, pensei:

Essa mulher no pode estar dessa maneira, depois de ter perdido o

filho. Como ela pode estar to bem? A dor deve t-la deixado louca!

- Ela, sem saber o que eu estava pensando, voltou a perguntar:

-

No est feliz em nos ver, Marlia?

-

Claro que estou, dona Maristela, mas s um pouco intrigada.

- Intrigada com o qu?

- A senhora, desde que Pricles morreu, nunca tinha vindo me visitar.

-

Nem voc foi me visitar. Esqueceu de que eu sou a me dele e que

tambm poderia estar sofrendo?

- Envergonhada, tentei me defender:

-

Ele era meu marido e a senhora sabe como eu o amava.

- Verdade, mas eu sou a me e o amo muito tambm.

-

No estou entendendo, a senhora est falando como se ele no tivesse

morrido.

-

Na realidade, ele no morreu, somente voltou para o seu verdadeiro

lar e est esperando chegar o nosso dia. A morte no existe, Marlia,

apenas uma viagem que todos ns teremos, um dia, de fazer.

- Revoltada, gritei:

-

Como a senhora pode estar assim?

- Assim como, Marlia?

50

Elisa Masselli

-

Toda maquiada, com os cabelos arrumados e com esse vestido

estampado com cores vivas. Nem parece que perdeu seu filho, assim como perdi

meu marido!

- Ela, olhando nos meus olhos, respondeu:

-

Eu no perdi meu filho e voc no perdeu seu marido. Ele apenas fez

uma viagem para um lugar para onde todos ns, um dia, iremos tambm.

- O que a senhora est dizendo? Enlouqueceu?

- No estou louca, s vejo a morte de uma maneira diferente de voc.

Para mim ela uma iluso, no existe. E Pricles continua vivo, s que

vivendo em outra dimenso. Sonhei com ele esta noite, estava lindo e feliz

ao lado de minha irm, Zenaide.

-

Por causa de um sonho a senhora acha que ele est vivo?

- Ela sorriu, se aproximou e me pegando pelos braos fez com que

eu me levantasse e foi dizendo:

-

Venha tomar um banho, vai se sentir melhor.

- Eu me levantei e, sem ter opo, entrei no banheiro, abri o chuveiro

e fiquei l por muito tempo. Ainda no estava entendendo o que estava

acontecendo e pensei:

Preciso fazer o que elas querem, seno no iro embora.

- Quando terminei de tomar banho, realmente, me senti melhor. Fui

at a cozinha e encontrei a mesa posta e as duas conversando

animadamente. Devagar e desconfiada, entrei. Assim que minha me me viu,

sorrindo, disse:

-

Venha, minha filha, sente-se. Preparamos o caf da maneira que

voc gosta. Eu trouxe bolo e po e Maristela trouxe frutas. Voc precisa se

alimentar, est muito abatida.

- Sentei-me, coloquei caf com leite na xcara, peguei um pedao do

bolo de laranja que minha me sabia que eu gostava e, em silncio,

comecei a comer e a beber. Eu no entendia o que estava acontecendo, por

isso me calei. S queria que fossem embora. Elas, ao contrrio de mim,

enquanto comiam e bebiam, conversavam alegremente. Eu continuava

sem entender aquela situao que, para mim, parecia sem cabimento.

Minha sogra disse:

51

As chances que a vida d

-

Sabe, Marlia, eu e sua me estivemos conversando e resolvemos

fazer uma viagem por vinte ou trinta dias pela Europa. Ir at Roma, Paris

e, quem sabe, darmos uma escapadinha para Lisboa. Essas cidades, por

coincidncia, ns duas adoramos. Nelas, podemos reviver a Histria. O

difcil vai ser convencer seu pai e seu sogro.

- verdade, filha. Seu pai, apesar de ter se aposentado, no consegue

largar os livros e ainda est, de vez em quando, ajudando o juiz Eduardo.

Ele veio da Capital para assumir o lugar de seu pai. Como ele ainda

muito jovem, algumas vezes tem dificuldade e seu pai sempre o ajuda.

- O mesmo acontece com Alencar, vai ser difcil convenc-lo. Sempre

quisemos fazer uma viagem como essa e sempre adiamos, achvamos que

tnhamos bastante tempo. Agora, acho que est na hora. Depois que o

Hospital da cidade foi construdo, vieram novos mdicos e ele est atendendo

a poucos pacientes. Vai poder tirar alguns dias para que possamos viajar.

Voc no quer ir, Marlia?

- Eu estava confusa com aquela situao. Nervosa, respondi:

-

No! No quero viajar! Quero ficar em paz, aqui na minha casa! No

estou entendendo como podem ficar calmas assim, parecendo que nada

aconteceu! Meu marido e seu filho morreu, dona Maristela! Ser que a senhora no

est dando ateno a isso, no est sentindo? No gostava de seu filho?

- Para minha surpresa, ela, sorrindo, disse:

-

Demonstrar sofrimento, chorar e se lastimar no significa que voc

gostava dele mais do que eu. Eu no gostava do meu filho, eu o amei desde

o dia em que soube que estava grvida e durante toda sua vida e, agora,

eu o amo ainda mais. Por am-lo muito que no fico chorando, sofrendo

e me revoltando. Como sempre quis que ele fosse feliz, agora quero muito

mais e isso s vai acontecer se ele souber que estou bem; caso contrrio, se

souber que estamos sofrendo, que paramos nossas vidas, tambm sofrer e

no conseguir continuar sua misso na Espiritualidade.

- Como assim "souber"? O que a senhora est falando? Ele est morto!

- No, ele no est morto, Marlia. Ele simplesmente est vivendo em

outro plano e, como eu j disse, est em um lugar para onde todos ns

iremos um dia.

52

Elisa Masselli

-

No estou entendendo. De onde a senhora tirou essa ideia?

- J h algum tempo, tenho estudado a Doutrina Esprita e com ela

estou aprendendo muitas coisas que esto me ajudando a viver e a entender

alguns fatos que aconteceram e acontecem e que, provavelmente, ainda vo

acontecer na minha vida.

- Doutrina Esprita? Aquela em que as pessoas dizem que conversam

com os mortos?

- Ela, rindo, tirou da bolsa alguns livros e, colocando sobre a mesa, disse:

-

Essa mesma. Porm, no bem assim como est pensando. Trouxe

est