[artigo] contribuições e limites da obra de galtung

Athenea Digital - 13(2): 169-177 (julio 2013) -ARTCULOS- ISSN: 1578-8946

Os conceitos de paz e violncia cultural: Contribuies elimites da obra de Johan Galtung para a anlise de conflitos

violentos

The concepts of peace and cultural violence: contributionsand limits of Johan Galtungs work for the analysis of violent

conflicts

Felipe Tavares Paes Lopes

Universidade de So Paulo, [email protected]

Historia editorial ResumoRecibido: 19/06/2012Primera revisin: 09/02/2013Aceptado: 16/03/2013

Neste trabalho, objetivo analisar as contribuies e limites dos conceitos de paz e violncia cultural propostos por Johan Galtung para o estudo de conflitos violentos. Ao realizar tal anlise, busco no apenas realar suas vantagens e desvantagens, mas, tambm, reformul-los de tal modo que no percam muito de seus sentidos originais e, ao mesmo tempo, escapem de algumas limitaes tericas iniciais. Mais exatamente, argumento em favor da substituio dos conceitos de violncia e paz cultural por o sentido a servio da violncia e o sentido a servio da paz, respectivamente.

Palabras clavePazViolnciaCulturaJohan Galtung

AbstractKeywordsPeaceViolenceCultureJohan Galtung

In this paper, I aim to analyze the contributions and limits of the concepts of peace and violence proposed by Johan Galtung for the study of violent conflicts. In doing so, I try to emphasize not only their advantages and disadvantages, but also reformulate them in a way that they dont loose their original meanings. More specifically, I argue that instead of using the concepts of cultural violence and cultural peace, we should use the expressions meaning in the service of violence and meaning in the service of peace.

Introduo1

As noes de paz e violncia tm sido abordadas desde os primrdios da Filosofia. Hoje em dia, elas so estudadas pelas mais diversas disciplinas do conhecimento, como o Direito, a Sociologia, a Antropologia, a Psicologia e a Psiquiatria, alm da prpria Filosofia. Entre os autores que tm se debruado sobre elas, Johan Galtung tem se destacado pela sua originalidade e profundidade terica. Nascido em 1930, o socilogo noruegus possui extensa produo e um dos mais influentes estudiosos do assunto. Conforme destaca Juan Gutirrez (1996/2003), qualquer pessoa que desponta nesse campo de investigao se encontra com alguma de suas teses, com as que pode ou no estar de acordo, porm com as que inevitvel estabelecer um dilogo para poder elaborar e assumir uma abordagem prpria (p. 9, traduo prpria).

1 Agncia de patrocnio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq).

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Tavares Paes Lopes, Felipe (2013). Os conceitos de paz e violncia cultural: Contribuies e limites da obrade Johan Galtung para a anlise de conflitos violentos. Athenea Digital, 13(2), 169-177. Disponible en http://psicologiasocial.uab.es/athenea/index.php/atheneaDigital/article/view/Tavares

Os conceitos de paz e violncia cultural: Contribuies e limites da obra de Johan Galtung para a anlise de conflitos violentos

Entre os inmeros textos de autoria de Galtung, o artigo Violencia, paz e investigacin sobre la paz (1969/1985) um dos que tiveram maior repercusso. O ensaio suscitou mltiplos comentrios e polmicas na dcada de 1970 e continua sendo uma referncia muito importante para as investigaes sobre a paz. De acordo com Vincen Fisas e Rafael Grasa (1985), a razo disto simples: nesse ensaio, o autor rompe com a tradio secular de identificar a paz com a ausncia de guerra sendo esta entendida como uma forma orquestrada de violncia e que, geralmente, conta com a participao de, ao menos, um ator: um governo. Tal ruptura provm do fato de ele no utilizar um conceito restrito de violncia, que a reduz agresso fsica e pessoal. Pelo contrrio, Galtung introduz um novo enfoque analtico, mostrando a diferena entre violncia direta e estrutural, com a que definiu um sistema bipolar, que foi durante vinte anos determinante na investigao pela paz (Gutirrez, 1996/2003, p. 10, traduo prpria). Essa diferena, assim como outras ideias desenvolvidas no ensaio, foi retomada e aprofundada por Galtung em diversos trabalhos monogrficos. Muitos dos temas tratados nesses trabalhos esto reunidos no livro Paz por medios pacficos (1996/2003)2.

Resultado de exaustivos programas de investigao nas principais reas das cincias da paz, o livro aborda, entre outras coisas, os aspectos simblicos da existncia que podem ser utilizados para justificar ou legitimar a violncia, assim como aqueles que, inversamente, podem ser utilizados para justificar ou legitimar a paz. Ao abordar esses aspectos, Galtung (1996/2003) converte os dois polos que at ento formavam o seu sistema de anlise em um tringulo com trs vrtices: violncia e paz direta, violncia e paz estrutural e violncia e paz cultural. De acordo com Gutirrez (1996/2003), o desenvolvimento dos conceitos de paz e violncia cultural uma decorrncia de uma mutao na obra do autor, que, aps a queda do muro de Berlim, em 1989, passa a enfatizar novos tipos de conflitos, como os tnicos.

Hoje em dia, os conceitos de violncia e paz cultural tm embasado e ensejado interessantes estudos sobre a cobertura miditica de conflitos violentos, como os ocorridos na Guerra do Iraque (Lynch & Mcgoldrick, 2005) ou como os referentes imigrao de fora da Unio Europeia na Espanha (Gir & Jarque, 2007). No entanto, a fertilidade desses conceitos no se esgota nos estudos sobre o papel dos meios de comunicao nesses conflitos. Eles podem, por exemplo, ser muito teis para analisar os modos como a religio, a arte, o direito, a escola, a universidade etc. podem estimular a conteno ou acirramento da violncia. Diante disso, parece ser oportuno o desenvolvimento de novas reflexes que tomem esses conceitos como objetos de investigao. Sendo assim, neste trabalho, analisarei suas contribuies e limites para o estudo de conflitos violentos.

Ao realizar tal anlise, no tenho apenas a inteno de realar as vantagens e desvantagens dos conceitos de paz e violncia cultural de Galtung (1996/2003), mas, tambm, tenho a pretenso de preparar caminho para um enfoque mais amplo e construtivo. No quero ir apenas s origens e desenvolvimentos desses conceitos, mas tambm buscarei reformul-los, reconceitualizando-os de tal modo que no percam muito de seus sentidos originais e, ao mesmo tempo, escapem de algumas limitaes tericas iniciais. Para realizar tal reconceitualizao, apoiar-me-ei nas reflexes de John B. Thompson (1990/2000) acerca das estratgias de construo simblica. Antes de realizar tal anlise, considero, todavia, ser pertinente oferecer um panorama das principais ideias e pressupostos que embasam a teoria de Galtung, enfocando sua definio inicial de paz e violncia.

2 Assim, como tal livro uma espcie de antologia, reunindo em um s volume muitos dos temas que Galtung se ocupou durante dcadas, considerei que, para os objetivos deste trabalho, no seria necessrio recorrer a vrias outras obras de sua extensa produo.

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Os conceitos de paz e violnciaEm Violence, Peace and Peace Research, Galtung (1969/1985) vincula as noes de paz e violncia, compreendendo a primeira como ausncia da segunda. Ou seja, para ele, a paz a negao ou a reduo de todo tipo de violncia. Na sua perspectiva, esta concepo de paz se justifica uma vez que simples e est de acordo com o uso corrente do termo, alm de definir uma ordem social pacfica no como um ponto, mas como uma regio, como a vasta regio das ordens sociais nas quais a violncia est ausente (p. 29, traduo prpria). Regio que, segundo ele, pode ser caracterizada por uma tremenda abundancia de variaes, o que faz com que uma orientao em favor da paz seja compatvel com numerosas ideologias que sublinham outros aspectos da ordem social (p. 10, traduo prpria).

Uma vez que compreende a paz como ausncia de violncia, Galtung (1969/1985) precisa, ento, definir violncia. No artigo supracitado, apresenta uma concepo de violncia ao mesmo tempo ampla a fim de incluir as variedades mais significativas do termo e especfica a fim de servir de base para a ao concreta. Mais concretamente, define violncia como:

A causa da diferena entre o potencial e o efetivo, entre aquilo que poderia ter sido e aquilo que realmente . A violncia aquilo que aumenta a distancia entre o potencial e o efetivo, e aquilo que cria obstculo para o decrescimento desta distncia (p. 31, traduo prpria).

Conforme exemplifica o autor, se uma pessoa morre de tuberculose no sculo XVIII, esta ocorrncia dificilmente pode ser considerada uma violncia, dado que ela era praticamente inevitvel. Porm, se uma pessoa morre hoje de tuberculose, apesar de todos os recursos mdicos disponveis, ento podemos dizer que, neste caso, existiu sim violncia. De modo anlogo, se hoje ocorre uma catstrofe natural, que no era possvel prever, as mortes consequentes dessa catstrofe no podem ser compreendidas como uma violncia. Agora, se essa catstrofe ocorrer num futuro, quando ela j for evitvel, a essas mortes podero ser interpretadas como o resultado de uma violncia. Em outras palavras: quando o potencial maior que o efetivo e ele for evitvel, existe violncia. (Galtung, 1969/1985, p. 31, traduo prpria).

Sendo assim,

Quando o efetivo inevitvel, no existe violncia ainda que o efetivo esteja situado em um nvel muito baixo. Uma esperana de vida de trinta anos, no perodo neoltico, no era uma expresso de violncia; porm a mesma esperana de vida na atualidade (devido s guerras, injustia social, ou a ambas as coisas) deveria entender-se, segundo nossa definio, como violncia. Assim, o nvel potencial de realizao aquele que possvel com um nvel dado de conhecimentos e recursos. Se o conhecimento e/ou os recursos esto monopolizados por um grupo ou uma classe, ou se so utilizados para outros propsitos, ento o nvel efetivo cai por debaixo do nvel potencial, e existe violncia no sistema. (Galtung, 1969/1985, pp. 31-32, traduo prpria).

Conforme reconhece o prprio Galtung (1969/1985), o significado de realizao potencial pode ser altamente problemtico, principalmente quando nos distanciamos dos aspectos somticos da vida terreno que, de acordo com ele, mais fcil obter algum acordo e focamos outros aspectos, como o cultural. Neste caso, sugere que levemos em considerao se o que se deve realizar ou no objeto de amplo consenso, ainda que, em sua opinio, isto no seja suficiente.

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Por exemplo, o saber ler e escrever uma coisa muito valorada quase em todas as partes, enquanto que o valor de ser cristo muito suscetvel de controvrsia. Assim, falaramos de violncia se o nvel de alfabetizao for menor do que o que poderia ser, porm no no caso de o nvel de cristianizao for inferior ao que poderia ser. (Galtung, 1969/1985, p. 33, traduo prpria).

Embora suscite alguns problemas analticos, a definio de violncia proposta por Galtung evita uma tendncia, prevalente na literatura acadmica e tambm no senso-comum, de reduzir a violncia incapacidade somtica ou privao de sade imposta intencionalmente por um agente determinado. Em outras palavras, evita reduzir a violncia apenas uma de suas formas: a violncia direta e fsica. Conforme observa o autor, se a reduzimos a isto, corremos o risco de aceitar que praticas sociais inaceitveis, a pesar de tudo, podem ser compatveis com a paz. Se a paz a negao da violncia, e se ela um ideal, ento seria demasiadamente pouco rechaar apenas a violncia direta e fsica. preciso, tambm, rechaar outras formas de violncia (Galtung, 1969/1985).

A violncia psicolgica, por exemplo, pode produzir tanto ou mais sofrimento humano do que a fsica, ainda que opere sobre a alma e no propriamente sobre o corpo3. No podemos subestimar os efeitos (nocivos) das ameaas, da lavagem cerebral, das mentiras e dos diferentes tipos de doutrinamento. O uso (e abuso) da palavra no fere somaticamente (ao menos de forma direta), mas pode servir para desinformar, manipular, controlar e estimular o dio ou a indiferena. Conforme destaca Irene Vasilachis de Gialdino (2004),

As guerras destroem os laos solidrios entre iguais porm as palavras tambm geram guerras, j que muitos indivduos morrem ainda que permaneam com vida porque so negados, ocultados, destrudos por detrs de representaes, de imagens construdas sobre eles que produzem repulso e rechao em quem as recebem. As lutas, tanto materiais como simblicas, atravs das quais se tenta colocar limites visveis entre os que possuem os bens socialmente valorados e aqueles outros que carecem deles acabam por engendrar uma cada vez mais acentuada violncia. Essas lutas terminam por elevar uns e por submeter outros ao esquecimento, a desesperana, ao abandono, por matar-lhes de outra morte, a da ignorncia, a da negao de seu direito de uma vida digna. mister recordar que di tanto a ferida como o desprezo, a chicotada como a indiferena (pp. 110-111, traduo prpria).

Alm de chamar a nossa ateno para a violncia no fsica, a conceituao de violncia de Galtung (1969/1985) abre-nos, conforme sugeri acima, a possibilidade de refletirmos sobre um tipo de violncia que no pessoal, ou seja, que no cometida diretamente por uma pessoa ou por um grupo de pessoas. Este tipo de violncia no pessoal sumamente significativo e denominado por ele de violncia estrutural. Tal violncia constitui um dos aspectos centrais de sua obra e pode ser compreendida como uma violncia indireta presente na injustia social e que, nas suas palavras, est edificada dentro da estrutura, e se manifesta como um poder desigual, e consequentemente como oportunidades de vida distintas. (p. 36, traduo prpria). Assim como a violncia pessoal, a violncia estrutural pode ser tanto fsica quanto no fsica, no entanto, diferentemente da primeira, ela no possui uma clara relao sujeito-ao-objeto, embora esta relao exista. A violncia estrutural, como o prprio nome indica, est impressa na estrutura.

3 Aqui, cabe observar que, embora trace uma linha divisria entre a violncia fsica e a psicolgica, Galtung (1985) observa que esta linha no muita clara. Afinal, de acordo com ele, possvel influenciar os movimentos fsicos por meio de tcnicas psicolgicas e vice-versa.

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Assim, quando um marido golpeia sua mulher temos diante de ns um caso claro de violncia pessoal; porm se um milho de maridos mantm um milho de mulheres na ignorncia estamos lidando com uma violncia estrutural. Igualmente, em uma sociedade em que a esperana de vida das classes superiores o dobro das inferiores, a violncia est sendo exercida, ainda que no haja atores concretos aos que se possam assinalar como atuantes de outras pessoas, como sucede quando uma pessoa mata outra. (Galtung, 1969/1985, p. 39, traduo prpria).

Sem dvida, o conceito de violncia estrutural pode ser interpretado, em termos discursivos, como uma forma de nominalizao, que, no caso, esconderia a autoria de atos efetivos de injustia social, representando-os como acontecimentos que ocorreriam na ausncia de um sujeito. No entanto, afirmar que a relao sujeito-ao-objeto no clara no significa, necessariamente, afirmar que ela no exista, como se a referida violncia fosse um acontecimento de tipo permanente, natural e atemporal. Mas significa afirmar que a (enorme) diversidade de fatores que a influenciam no pode (e no deve) ser facilmente domesticada em um esquema simplificador de causalidade direta, sob o risco de se perder de vista a complexidade do fenmeno. Parafraseando Bruno Latour (2005/2008), o fato de atores (sejam eles humanos ou no) incidirem sobre aes estruturalmente violentas no significa que eles a determinem diretamente. Afinal, existem muitos matizes metafsicos entre a plena causalidade e a mera inexistncia: alm de determinar, ou de servir como pano de fundo para a ao humana, as coisas podem autorizar, permitir, sugerir, dar recursos, influenciar, proibir, bloquear (Spink & Cordeiro, 2009, p. 229).

De acordo com Galtung (1969/1985), enquanto a violncia pessoal mais visvel, a violncia estrutural costuma ser mais silenciosa. s vezes, pode parecer to natural quanto o ar que respiramos e, por esta razo, mais difcil de ser percebida. Escreve o autor: o objeto da violncia pessoal percebe usualmente a violncia, e pode queixar-se; porm o objeto da violncia estrutural pode ser persuadido para no v-la em absoluto. (p. 43, traduo prpria). A violncia pessoal, portanto, representa, em geral, mudana e transformao; j a estrutural essencialmente esttica. Na sua metfora: a ltima gua tranquila enquanto a primeira so ondas em guas em que em outras circunstncias seriam tranquilas.

Diferentemente do que poderamos imaginar num primeiro momento, para Galtung (1969/1985), no existe uma interdependncia emprica entre esses dois tipos de violncia. Afinal, segundo ele, existem sociedades estruturalmente violentas que no necessitam da violncia pessoal nem da ameaa de violncia pessoal. Igualmente existiriam pessoas que parecem ser violentas em quase todos os contextos estruturais. Dado que a discusso da existncia ou no dessa interdependncia complexa e escapa dos limites deste trabalho, no me alongarei no tema. Todavia, no posso deixar de sublinhar que a posio de Galtung parece-me problemtica, dado que ela envolve certa naturalizao das estruturas sociais. Afinal, advogar que uma sociedade pode ser estruturalmente violenta, com independncia das pessoas que a constituem, pressupe que as assimetrias e diferenas que a caracterizam no so o produto de atividades humanas, mas sim acontecimentos de um tipo quase natural. De forma similar, defender a existncia de um grupo de pessoas com uma propenso violenta pressupe que o comportamento dessas pessoas o resultado inevitvel de suas caractersticas fisiolgicas, ofuscando seu carter scio-histrico. De qualquer forma, independentemente de haver ou no essa interdependncia, o trabalho pela paz consistiria em justamente reduzir essas violncias por meios pacficos. J as cincias da paz (peace research) seriam o estudo das condies desse trabalho.

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Em produes mais recentes, Galtung (1996/2003) d um giro nessas cincias e reconhece que a paz possui dois lados: um positivo e outro negativo. Com isso, amplia a conceituao do termo e prope uma segunda definio de paz, que no deixa de ser compatvel com a primeira. Alm de ausncia de violncia, a paz seria tambm a transformao criativa e no violenta do conflito, espcie de desdobrar da vida: seu alargamento e aprofundamento. Esta segunda definio mais dinmica do que a primeira, e est orientada em direo ao conflito e no somente violncia. Por esta razo, aqui, para conhecer a paz temos que conhecer o conflito e saber como possvel transform-lo, tanto de maneira no violenta como de maneira criativa. (p. 31, traduo prpria). E o conhecimento dos novos conflitos decorrentes da queda do muro de Berlim que fazem Galtung refletir sobre um tipo de violncia que, at ento, no havia sido abordado por ele: a violncia cultural. Violncia que tem como seu oposto a paz cultural.

Os conceitos de paz e violncia culturalDe acordo com Galtung (1996/2003), o conceito de violncia cultural refere-se aos aspectos da cultura, ao mbito simblico da nossa existncia (materializado na religio e ideologia, lngua e arte, cincias empricas e cincias formais lgica, matemticas ), que so utilizados para justificar e legitimar a violncia, seja ela pessoal ou estrutural. (p. 261, traduo prpria). Inversamente, a paz cultural refere-se aos aspectos de uma cultura que servem para justificar e legitimar a paz direta e a paz estrutural. (Galtung, 1996/2003, p. 261, traduo prpria). Por exemplo, estrelas, cruzes, cartazes, bandeiras, hinos, obras de arte etc. podem servir tanto para legitimar a violncia quanto a paz. Tratam-se, portanto, de aspectos da cultura que podem ser classificados tanto como formas de violncia cultural quanto de paz cultural. Notemos, aqui, que Galtung fala em aspectos da cultura. Dificilmente podemos classificar uma cultura em sua totalidade como violenta ou pacfica, por esta razo o autor prefere a expresso o aspecto A da cultura C uma amostra de violncia cultural frente a esteretipos culturais como a cultura C violenta (p. 261, traduo prpria).

Ao desenvolver os conceitos de paz e violncia cultural, Galtung (1996/2003) reestabelece a dimenso da cultura no prprio corao dos conflitos violentos. Longe de ser um acontecimento objetivo, de tipo natural, o processo de formao, manuteno ou transformao desses conflitos est intrinsecamente relacionado ao mbito simblico. Por exemplo, dificilmente poderamos compreender a ascenso do nazismo sem compreendermos como que a propaganda nazista conseguiu legitimar e justificar o extermnio em massa. No entanto, embora sejam frteis analiticamente, esses conceitos so demasiadamente limitados. Isto se deve ao fato de Galtung (1996/2003) colocar a legitimao como um modo de operao necessrio deles, quando esse modo de operao apenas uma possibilidade contingente. Em outras palavras, tal como so definidos pelo autor, esses conceitos so demasiadamente restritos pois fazem crer que as formas simblicas esto a servio da paz ou da violncia (direta ou estrutural) somente quando ajudam a representar esses estados como legtimos, isto , como justos e dignos de apoio (Thompson, 1990/2000). Mas penso que no essencial que essas formas representem esses estados de tal maneira para que elas sejam culturalmente violentas ou pacficas.

Tomando como base as anlises de Thompson (1990/2000) acerca das estratgias de construo simblica, podemos visualizar outras maneiras de aspectos culturais contriburem para o estabelecimento da paz ou da violncia: eles podem operar, por exemplo, atravs da unificao, da fragmentao, da dissimulao e da reificao4. A ttulo de exemplo: no Brasil, existem leis que visam

4 Em circunstanciais particulares, esses modos de operao podem sobrepor-se e reforar-se mutuamente. Por exemplo, a fragmentao, atravs da estratgia do expurgo do outro, muitas vezes, sobrepe-se com estratgias que tm como fim a unificao, pois o inimigo tratado como desafio, ou ameaa, diante do qual as pessoas devem se unir (Thompson, 1990/2000, p. 87).

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combater a discriminao contra pessoas com deficincia, como a chamada Lei de Cotas. Esta determina que empresas com cem ou mais funcionrios devem preencher de dois a cinco por cento de seus cargos com beneficirios reabilitados e/ou pessoas com deficincia. Embora essa lei vise promover a incluso dessas pessoas no mercado de trabalho, frequentemente, ela produz prticas excludentes. H, por exemplo, empresas que contratam pessoas com deficincia apenas para no pagar multas. Algumas consideram que esses funcionrios so to inteis que os pagam para ficar em casa. Outras lhes atribuem funes que esto muito aqum de sua formao e capacitao. No raro encontrarmos, por exemplo, cadeirantes com formao superior e conhecimento de idiomas estrangeiros trabalhando como telefonistas. Nesse sentido, podemos dizer que, ainda que no legitime a discriminao, a lei em questo enseja prticas laborais que estabelecem diferenas entre pessoas com e sem deficincia, apoiando as caractersticas que os desunem e os impedem de constituir um desafio efetivo s relaes existentes (Thompson, 1990/2000, p. 87).

A anlise de Pedrinho Guareschi (1999) sobre o Casseta & Planeta, um programa humorstico da televiso brasileira, tambm pode auxiliar na compreenso do argumento. Em tal programa, o cenrio poltico do Brasil mostrado de forma pejorativa. Por meio da ironia e do deboche, critica-se, sistematicamente, o envolvimento de polticos com a prtica da corrupo. Neste sentido, podemos afirmar que o referido programa no legitima essa forma de violncia contra a populao brasileira; pelo contrrio, deixa claro que ela indigna de apoio. Todavia, segundo o autor, tal rotulao refora sobremaneira a avaliao j negativa que a populao brasileira possui a respeito dos polticos e da poltica em geral, o que pode ser extramente contraproducente. Afinal, conforme sustenta, dificilmente algum (bem-intencionado) motivado a entrar para grupos onde as pessoas so sabidamente desonestas e s agem em causa prpria, o que pode afastar esse tipo de pessoa da ao e da militncia poltica. Consequentemente, ao expurgar os polticos, possvel que tal programa esteja ajudando a manter intacta a estrutura da poltica brasileira. Neste caso, o que sustenta a violncia (no caso, a corrupo), portanto, no o apoio dado a ela, mas sim a generalizao do expurgo.

As anlises de Teun van Dijk (2008) sobre o racismo tambm so ilustrativas. Segundo o autor, uma vez que as normas e valores gerais (e, muitas vezes, a prpria lei) probem formas explcitas de racismo, e uma vez que a maioria das pessoas est consciente dessas restries sociais e, at certo ponto, compartilha e reconhece essas restries, o discurso racista contemporneo tende a apresentar negaes ou, ao menos, mitigaes do racismo. Assim, ao invs de se posicionar explicitamente a favor do preconceito, da discriminao, da escravido ou de qualquer outra forma de violncia tnica ou racial, esse discurso tende a abordar, persuasivamente, o status quo como tnico e racialmente democrtico e no como algo profundamente injusto e violento. Neste caso, a violncia contra grupos tnicos no estabelecida e sustentada pelo fato de ser abertamente defendida e legitimada, mas pelo fato de ser ofuscada ou, simplesmente, negada, como se ela no existisse realmente.

H muitos exemplos bastante conhecidos desses processos. Em relao ao processo de ofuscamento, ele pode ser notado, por exemplo, quando desigualdades institucionalizadas, baseadas em divises tnicas, so descritas como desenvolvimento paralelo; [quando] trabalhadores estrangeiros sem direitos de cidadania so descritos como trabalhadores hspedes (Thompson, 1990/2000, p. 84). J o processo de negao pode ser visto, por exemplo, quando escutamos um falante branco defender a si mesmo e ao seu grupo racial como um todo proferindo algo do tipo: no somos racistas, apesar de inmeras evidncias contrrias. Este tipo de negao , segundo Van Dijk (2008), extremamente perniciosa e contribui para a construo do consenso branco dominante. Tanto neste exemplo quanto no anterior, a violncia racial no , vale reforar, apoiada diretamente. Pelo contrrio, ela , em certa

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medida, deslegitimada, escapando do alcance do conceito de violncia cultural tal como definido por Galtung.

O exame dos modos de operao do racismo contemporneo chama, portanto, nossa ateno para algumas outras maneiras como o sentido pode alimentar a violncia (direta ou estrutural) sem necessariamente legitim-la. H inmeros modos em que o sentido pode, em condies scio-histricas especficas, estabelecer e sustentar a violncia. De modo anlogo, h inmeros modos em que ele pode contribuir com a paz. Sendo assim, considero til a ampliao dos conceitos de violncia e paz cultural para o sentido a servio da violncia e o sentido a servio da paz, respectivamente5. Com isso, possvel tornar a legitimao apenas um dos modos de operao da violncia e paz cultural e no parte constitutiva dessas conceituaes. A partir dessas reformulaes conceituais, a violncia cultural passaria a se referir queles aspectos da cultura que estabelecem e sustentam formas de violncia direta ou estrutural. J a paz cultural, queles que estabelecem e sustentam formas de paz direta ou estrutural. Parafraseando Thompson (1990/2000), com estabelecer, quero dizer que aspectos culturais podem criar ativamente e instituir a violncia ou a paz e, com sustentar, quero dizer que eles podem servir para manter e reproduzir a paz ou a violncia.

Ao destacar o carter eminentemente ativo da cultura na constituio da paz ou da violncia, a reformulao proposta joga luz sobre um aspecto pouco explorado por Galtung (1996/2003). Quando o autor volta a sua ateno para o papel do mbito simblico em conflitos violentos, o que parece lhe interessar, primeiramente, so as maneiras como aspectos culturais servem para justificar e legitimar um conjunto de relaes pacficas ou violentas que j foram anteriormente estabelecidas. No entanto, longe de apenas manter essas relaes, as formas simblicas ajudam a cri-las. Os conflitos violentos no so estabelecidos antes e independentemente dos sentidos mobilizados pela cultura, como se eles pudessem ocorrer em um nvel pr-simblico. Ao contrrio, conforme observa Thompson (1990/2000), as formas simblicas esto, contnua e criativamente, implicadas nas constituies das relaes sociais como tais (p. 78). Ou seja, a paz e a violncia cultural no so apenas constitutivas, mas, tambm, constituintes da paz e violncia (direta e estrutural), respectivamente.

Consideraes finaisNeste trabalho, busquei analisar as contribuies e limites dos conceitos de paz e violncia cultural para o estudo de conflitos violentos. Ao fazer isto, tive a inteno de preparar caminho para a reformulao desses conceitos, de tal modo que eles evitassem algumas limitaes impostas pelas definies propostas por Galtung (1996/2003). Certamente, a reformulao desses conceitos pode ser considerada como ingnua ou, pior, como um atrevimento indevido. No entanto, gostaria de lembrar que, conforme afirma o prprio Galtung, quando desenvolvemos um estudo cientfico, uma de nossas principais tarefas deve ser nos libertar de uma das mais nefastas formas de violncia: a violncia cultural acadmica. Por mais que ocupe um lugar central no desenvolvimento do pensamento social e poltico, nenhuma obra ou conceito est imune de crticas e reformulaes. Em ltima instncia, a discrdia que estimula a reflexo e o debate de ideias.

5 Estas definies de paz e violncia cultural tm inspirao na definio de ideologia de Thompson (1990/2000). Para o autor, ideologia o sentido a servio da dominao, sendo que uma situao pode ser descrita como de dominao quando grupos particulares de agentes possuem poder de uma maneira permanente, e em grau significativo, permanecendo inacessvel a outros agentes, ou a grupos de agentes, independentemente da base sobre a qual tal excluso levada a efeito (p. 80). Assim definida, a ideologia pode ser entendida como uma forma particular de violncia cultural: aquela que est a servio da violncia estrutural.

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Introduo1Os conceitos de paz e violnciaOs conceitos de paz e violncia culturalConsideraes finaisRefernciais

[artigo] contribuições e limites da obra de galtung

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