arthur conan doyle o enigma do coronel hayter e outras aventuras

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Arthur Conan Doyle

Tradução de Antonio Carlos Vilela

MELHORAMENTOS

ÍNDICE

O ESTRELA DE PRATA A CAIXA DE PAPELÃO

A TRAGÉDIA DO GLORIA SCOTT O CORCUNDA

O CORRETOR O ENIGMA DO CORONEL HAYTER

O ESTRELA DE PRATA

- Receio, Watson, que terei de ir - disse Holmes quando estávamos à mesa do café da manhã.

- Ir! Aonde? - Dartmoor; King’s Pyland.

Não fiquei surpreso. Na verdade, eu até me perguntava por

que ele ainda não fora envolvido nesse caso extraordinário, assunto das conversas em toda a Inglaterra. Durante um dia

inteiro meu amigo perambulou pela sala com a cabeça baixa e a testa franzida, carregando e recarregando seu cachimbo

com o fumo mais forte de que dispunha e permanecendo

absolutamente surdo ao que eu perguntava e dizia. As novas edições de cada jornal foram enviadas por nosso jornaleiro,

apenas para serem rapidamente olhadas e postas de lado. Ainda assim, mergulhado em seu silêncio, eu sabia o que

estava fazendo Sherlock Holmes refletir dessa forma. Havia somente um problema público que poderia estar desafiando

tanto sua capacidade analítica: o desaparecimento do cavalo

favorito para a Copa Wessex junto com o trágico assassinato

de seu treinador. Portanto, quando ele anunciou sua intenção de ir para o local do crime, isso era o que eu

esperava e até desejava.

- Gostaria muito de ir com você, se não o atrapalhar - eu disse.

- Meu caro Watson, você me faria um grande favor se viesse. Acredito que não irá desperdiçar seu tempo, pois esse

caso tem diversos aspectos que prometem torná-lo

incomparável. Acho que estamos em cima da hora para pegar o trem em Paddington. Assim, vamos nos aprofundar

no assunto durante a viagem. Faça o favor de levar seu excelente binóculo de campanha.

Foi assim que, cerca de uma hora depois, eu estava num vagão de primeira classe, a caminho de Exeter,

acompanhando Sherlock Holmes. Ansioso e concentrado,

vestindo um boné de abas largas para proteger as orelhas, mergulhou nos novos jornais adquiridos em Paddington.

Fazia tempo que passáramos por Reading quando ele jogou o último jornal sob o banco e me ofereceu um charuto.

- Estamos indo bem - disse, olhando pela janela e

consultando o relógio. - Nossa velocidade, no momento, é de oitenta e cinco quilômetros por hora.

- Não vi os postes de marcação - eu disse. - Eu também não. Mas os postes telegráficos ficam a

intervalos de sessenta metros, nesta linha, e o cálculo é simples. Acredito que você está ciente das notícias sobre o

assassinato de John Straker e o desaparecimento do Estrela

de Prata. - Li as matérias do Telegraph e do Chronicle.

- Este é um daqueles casos em que o raciocínio deve ser usado para peneirar detalhes em vez de adquirir novas

evidências. Essa tragédia foi tão incomum e total, com tanta

importância para tantas pessoas, que estaremos sob influência de uma multidão de conjecturas, suposições e

hipóteses. A dificuldade estará em separar os fatos, absolutos e inegáveis, das divagações de teóricos e repórteres. Então,

quando tivermos estabelecido essa base sólida, nossa tarefa

será ver quais inferências podem ser tiradas e quais os pontos principais desse mistério. Na terça à noite recebi um

telegrama do coronel Ross, proprietário do cavalo, e outro do inspetor Gregory, responsável pelo caso, ambos pedindo

minha cooperação. - Terça à noite! - exclamei. - E estamos na manhã de

quinta. Por que não foi ontem mesmo?

- Porque fiz uma besteira, meu caro Watson, o que me acontece mais normalmente do que poderia supor alguém

que só me conhece pelos casos que você escreve. A verdade é que eu não acreditei ser possível que o cavalo mais famoso

da Inglaterra pudesse permanecer muito tempo escondido,

ainda mais num lugar tão pouco habitado como Dartmoor. Fiquei o dia de ontem esperando, a qualquer minuto,

chegarem notícias sobre o animal, que ele fora localizado e que seu seqüestrador assassinara John Straker. Contudo,

quando mais um dia se passou e vi que, depois de prenderem o jovem Fitzroy Simpson, nada mais fizeram, percebi ser a

hora de entrar em ação. De qualquer modo, acho que não

desperdicei o dia de ontem. - Então já tem uma teoria?

- Pelo menos conheço os fatos principais do caso. Vou enumerá-los para você, pois nada esclarece mais uma

situação do que expô-la para outra pessoa. Também não

posso esperar sua cooperação se não lhe mostrar em que pé estamos.

Recostei-me no assento, dando baforadas no charuto, enquanto Holmes, projetando-se para a frente, gesticulava

com seus dedos longos enquanto me expunha os fatos que

nos colocaram naquele trem. - Estrela de Prata - ele começou - descende de Isonomy e

tem um currículo tão brilhante quanto o de seu ancestral. Está agora em seu quinto ano e tem ganhado todos os

prêmios do turfe para o coronel Ross, seu feliz proprietário. Até acontecer essa catástrofe, ele era o favorito para a Copa

Wessex, pagando um para três nas apostas. Ele sempre foi o

preferido do público, de forma que, mesmo com essa proporção, enormes quantias de dinheiro foram apostadas

nele. Portanto, é óbvio que existem muitas pessoas com fortes interesses para evitar que Estrela de Prata esteja no

prado na próxima terça-feira.

"É claro que isso não foi negligenciado em King’s Pyland, onde fica o campo de treinos do coronel. Tomaram-se todas

as precauções para guardar o favorito. O treinador. John Straker, é um jóquei aposentado, que cavalgou para o

coronel Ross antes de se tornar pesado demais. Ele serviu ao coronel por cinco anos como jóquei e sete como treinador,

sempre demonstrando ser um funcionário fiel e zeloso.

Straker tinha apenas três rapazes como auxiliares, pois o haras é pequeno, contando apenas com quatro cavalos.

Todas as noites, um desses rapazes monta guarda em frente ao estábulo, enquanto os outros dormem no andar de cima.

Todos têm excelente caráter. John Straker, que era casado,

morava numa casinha a cerca de duzentos metros dos estábulos. Não tinha filhos, vivia confortavelmente e

empregava uma criada. A região é bastante desolada, mas, a uns oitocentos metros ao norte, há um amontoado de

casinhas, que foram construídas por um empreiteiro

deTavistock para serem usadas por doentes que queiram desfrutar do ar puro de Dartmoor. Tavistock fica três

quilômetros a oeste, enquanto, também a três quilômetros, através do pântano, fica o grande campo de treinamento de

Mapleton, pertencente a lorde Backwater e gerenciado por Silas Brown. Em todas as outras direções o pântano é

completamente deserto, habitado apenas por alguns ciganos

nômades. Essa era a situação na noite de segunda-feira, quando a catástrofe aconteceu.

"Naquela noite os cavalos foram exercitados e tratados como de costume, sendo que os estábulos foram fechados às nove

horas. Dois dos auxiliares foram até a casa do treinador,

onde jantaram na cozinha, enquanto o terceiro, Ned Hunter, ficou de guarda. Alguns minutos depois das nove Edith

Baxter, a criada, levou para o rapaz seu jantar, que consistia de cozido de carneiro ao curry. Ela não levou nada de beber,

pois há uma torneira no estábulo e a regra é que quem estiver de guarda não pode tomar nada além de água. A

empregada levava uma lanterna, pois estava muito escuro e

o caminho passava pelo pântano.

"Edith Baxter estava a trinta metros do estábulo quando um homem surgiu das sombras e mandou-lhe parar. Quando ele

entrou na frente da lanterna ela pôde reparar que ele se

vestia como um cavalheiro, usando terno cinza de tweed e chapéu de tecido. Usava polainas e carregava uma bengala

pesada com castão. Contudo o que a impressionou foi sua extrema palidez e seu nervosismo. Ela calculou que a idade

do estranho seria mais de trinta.

'Pode me dizer onde estou?', ele perguntou. 'Já tinha me decidido a dormir no pântano quando vi a luz de sua

lanterna.' "'Está perto dos estábulos de King's Pyland', ela respondeu.

'Oh, que bom! Que sorte a minha!', ele exclamou. 'Sei que um empregado dorme lá sozinho, todas as noites. Talvez

esse seja o jantar dele que está levando. Acho que você não

se importaria de ganhar um vestido novo, se importaria?' Ele pegou no bolso um pedaço de papel, dobrado. 'Faça com que

o rapaz receba isto hoje e você poderá comprar o vestido mais bonito que existe.'

"Ela se assustou com o jeito ansioso do homem e continuou

andando, chegando até a janela por onde costumava entregar as refeições. Ela já estava aberta e Hunter

aguardava sentado à mesa, lá dentro. Edith Baxter apenas começara a lhe contar sobre o que acontecera, quando o

estranho apareceu novamente. 'Boa noite', ele disse, olhando pela janela. 'Gostaria de

conversar com você.' A garota jura que, enquanto ele falava,

ela viu um pedaço de papel aparecendo em sua mão fechada. 'O que o senhor quer aqui?', perguntou o rapaz.

'Um assunto que pode lhe render algo', disse o estranho. 'Vocês têm dois cavalos inscritos na Copa Wessex - Estrela

de Prata e Bayard. Dê a dica e você ganha o seu. É verdade

que Bayard pode ganhar folgado do outro, e que o estábulo apostou nele?'

'Então você é um desses malditos espiões!', gritou o rapaz. 'Vou lhe mostrar como vocês são tratados em King's Pyland!'

Ele se ergueu e correu pelo estábulo para soltar o cachorro.

A garota correu para casa e, no caminho, olhou para trás, vendo o estranho se projetar pela janela. Um minuto depois,

contudo, quando Hunter voltou com o cão, ele já tinha ido e, embora o rapaz rondasse os estábulos com o animal, não

encontrou nenhum rasto do intruso." - Um minuto - eu interrompi. - O cavalariço, quando saiu

com o cão, deixou a porta destrancada atrás de si?

- Excelente, Watson, excelente! - disse meu amigo. - Esse ponto me pareceu tão crucial que telegrafei ontem a

Dartmoor só para esclarecê-lo. O rapaz trancou a porta atrás de si. Devo acrescentar que a janela não é grande o

suficiente para permitir a entrada de um homem.

"Hunter esperou até que seus colegas voltassem para mandar uma mensagem ao treinador dizendo o que acontecera.

Straker ficou agitado ao ouvir o relato, embora pareça não ter compreendido o que realmente significava. Contudo

aquilo o incomodou, e a sra. Straker, tendo acordado à uma da manhã, encontrou o marido se vestindo. Este lhe falou

que não conseguia dormir por causa da preocupação com os

cavalos e que pretendia ir até o estábulo para ver se estava tudo bem. Ela lhe pediu para ficar em casa, pois chovia

forte. Apesar dos pedidos da mulher, ele vestiu sua capa e saiu.

"A sra. Straker acordou às sete da manhã e viu que seu

marido não voltara. Vestiu-se rapidamente, chamou a empregada e foi para o estábulo. A porta estava aberta.

Dentro, encolhido numa cadeira, Hunter estava em estado de absoluto torpor e a baia do favorito encontrava-se vazia.

"Os dois rapazes que dormiam no quarto acima da selaria

logo acordaram. Nada ouviram durante a noite, pois ambos têm o sono pesado. Obviamente, Hunter estava sob efeito de

alguma droga poderosa e, como não se conseguia nada com ele, deixaram-no dormindo enquanto os dois rapazes e as

duas mulheres saíram para procurar o treinador. Ainda havia a esperança de que Straker tivesse levado o cavalo para

algum exercício, mas, ao subirem a colina perto da casa, de

onde os campos em redor eram visíveis, não só não viram qualquer sinal do cavalo como também perceberam que

acontecera alguma tragédia. "A cerca de quatrocentos metros do estábulo, o casaco de

John Straker flutuava ao vento, enroscado num arbusto. Um

pouco mais adiante havia uma depressão no pântano, onde foi encontrado o corpo do infeliz treinador. Sua cabeça fora

estraçalhada por um golpe violento, dado com arma pesada. Exibia, também, um grande corte na coxa, infligido por

instrumento muito afiado. Ficou claro, contudo, que Straker defendeu-se desesperadamente, pois tinha uma pequena faca

na mão direita, suja de sangue até o cabo, enquanto sua mão

esquerda segurava uma gravata de seda vermelha e preta,

reconhecido pela empregada como sendo do estranho que ela encontrara no estábulo na noite anterior.

"Hunter, ao se recuperar, também identificou a gravata. Ele

acredita que o estranho, enquanto estava junto à janela, colocou uma droga no seu cozido de carneiro, privando

assim o estábulo de seu guarda. "Quanto ao cavalo desaparecido, existiam evidências

abundantes, no chão do buraco, de que ele estava ali durante

a luta. Mas continua desaparecido desde aquela manhã, embora tenham oferecido uma generosa recompensa e

alertado os ciganos de Dartmoor. Finalmente, uma análise dos restos do jantar de Hunter mostrou que ele continha

uma quantidade apreciável de ópio, enquanto as pessoas que comeram a mesma refeição na casa do treinador não

sofreram qualquer mal.

"Esses são os principais fatos do caso, isentos de qualquer suposição. Agora vou recapitular o que a polícia já fez.

"O inspetor Gregory, que foi designado para o caso, é um investigador muito competente. Se tivesse um pouco mais

de imaginação, iria longe em sua profissão. Assim que

chegou, prendeu o suspeito natural. Não foi difícil encontrá-lo, pois estava numa daquelas casinhas que mencionei. Seu

nome é Fitzroy Simpson. Trata-se de um homem bem-nascido e educado, que torrou uma fortuna nas corridas e

virou bookmaker em Londres. Ao se examinar seu livro de apostas, descobriu-se que ele apostara cinco mil libras contra

o favorito.

"Ao ser preso declarou, voluntariamente, que viera a Dartmoor para obter informações sobre os cavalos de King's

Pyland e também de Desborough, o segundo favorito, que

fica sob os cuidados de Silas Brown, no estábulo Mapleton. Ele não tentou negar seu encontro com a empregada e com

o rapaz, na noite anterior, mas declarou que não tinha intenções criminosas e desejava apenas obter informações

em primeira mão. Quando lhe mostraram sua gravata, ficou

muito pálido e não conseguiu explicar como fora parar na mão do homem assassinado. Suas roupas molhadas

mostravam que estivera na chuva, durante a noite. Sua bengala, do tipo Penang Lawyer, reforçada com chumbo,

poderia ser a arma que, com diversos golpes, destroçara a cabeça do treinador.

"Por outro lado, ele não apresentava nenhum ferimento,

enquanto as condições da faca de Straker evidenciavam que pelo menos um de seus agressores deveria estar ferido. Esses

são todos os fatos, Watson. Se você puder contribuir com alguma idéia, ficarei imensamente grato."

Ouvi com o maior interesse Holmes expor seu relatório,

com a característica clareza de sempre. Embora eu conhecesse a maioria dos fatos, não tinha refletido

suficientemente sobre eles até então, nem relacionado uns aos outros.

- Não seria possível - sugeri - que o corte em Straker tenha sido causado por sua própria faca, durante convulsões que se

seguiram ao ferimento no cérebro?

- E mais do que possível; é provável - disse Holmes. - Nesse caso, um dos principais pontos a favor do acusado

desaparece.

- Mesmo assim - eu disse não consigo entender a teoria da polícia.

- Receio que, qualquer que seja, haverá sérias objeções a ela - respondeu meu amigo. - A polícia acredita, eu imagino,

que Fitzroy Simpson, tendo drogado o cavalariço e

conseguido de alguma forma uma cópia da chave, abriu o estábulo e retirou o cavalo com a intenção de raptá-lo.

Como as rédeas sumiram, acredita-se que Simpson as tenha colocado no animal. Então, tendo deixado a porta aberta,

estava levando o cavalo pelo pântano quando foi encontrado pelo treinador. Seguiu-se uma luta, Simpson amassou o

crânio do treinador com sua bengala e conseguiu se esquivar

da faquinha que Straker usou para se defender. Em seguida, o ladrão levou o cavalo para algum esconderijo ou este

escapou durante a luta e está vagueando pelo pântano. E assim que a polícia vê o caso. Embora pareça improvável,

outras explicações são ainda piores. No entanto vou colocar

essa teoria à prova assim que chegarmos, e até lá acho que não podemos ir além.

A tarde já avançava quando chegamos à cidadezinha deTavistock, localizada no centro do grande círculo formado

por Dartmoor. Dois homens nos esperavam na estação. Um deles era alto, com barba e cabelo lembrando a juba de um

leão e estranhos olhos azuis. O outro era mais baixo e alerta,

e vestia elegante casaco e polainas. Usava, também, suíças e pincenê. Este era o coronel Ross, conhecido esportista. O

primeiro tratava-se do inspetor Gregory, homem que rapidamente se destacou na polícia inglesa.

- Fico muito feliz que tenha vindo, sr. Holmes - disse o

coronel. - O inspetor aqui já fez tudo que se pode pensar, mas eu gostaria de revirar absolutamente todos os cantos do

pântano para vingar o pobre Straker e recuperar meu cavalo. - Alguma novidade? - perguntou Holmes.

- Sinto dizer que fizemos pouquíssimos progressos - disse o

inspetor. - Temos uma carruagem aberta esperando por nós. Imagino que o senhor queira examinar a cena do crime

antes que anoiteça. Portanto, é melhor conversarmos no caminho.

Logo depois estávamos todos sentados num carro confortável passando pelas ruas da velha cidade. O inspetor

Gregory tinha muito a dizer e derramou um dilúvio de

informações sobre Holmes, que, de vez em quando, fazia algum comentário ou pergunta. O coronel Ross permaneceu

recostado, de braços cruzados e chapéu caído sobre os olhos. Eu escutava interessadíssimo a conversa entre os dois deteti-

ves. Gregory estava formulando sua teoria, praticamente a

mesma que Holmes me expusera no trem. - As evidências apontam, sem dúvida, para Fitzroy Simpson

- disse o inspetor. - Particularmente, acredito mesmo que ele é culpado. Por outro lado, reconheço que as evidências

são circunstanciais e que novas descobertas podem abalá-las. - E quanto à faca de Straker?

- Estamos quase convencidos de que ele se machucou

quando caiu.

- Meu amigo aqui, o dr. Watson, expressou a mesma opinião durante nossa viagem. Se realmente foi assim, isso

vai contra Simpson.

- Sem dúvida. Ele não tem nenhum ferimento. As evidências contra ele são muito fortes. Simpson tinha muito

interesse no desaparecimento do favorito, é suspeito de ter drogado o rapaz, molhou-se durante a chuva, usava uma

bengala poderosa e sua gravata apareceu na mão da vítima.

Realmente acredito termos o bastante para irmos a julgamento.

- Um advogado esperto acabaria com essas provas - disse Holmes, balançando a cabeça. - Por que ele tirou o cavalo do

estábulo? Se quisesse machucá-lo, poderia fazê-lo lá mesmo. Encontraram uma cópia da chave com ele? Quem lhe

vendeu o ópio? Acima de tudo, como ele, um estranho na

região, poderia esconder um cavalo? Ainda mais esse cavalo? Qual explicação ele deu para o papel que pediu à empregada

para entregar ao cavalariço? - Disse que era uma nota de dez libras. Encontraram uma

com ele. As outras dificuldades que o senhor coloca, porém,

não são tão formidáveis assim. Ele não é totalmente estranho à região. Já esteve em Tavistock duas vezes durante o verão.

Provavelmente, trouxe o ópio de Londres. A chave, após ter sido usada, foi jogada fora. O cavalo pode estar no fundo de

algum poço ou numa das minas abandonadas do pântano. - O que Simpson disse sobre a gravata?

- Reconhece que é sua, mas disse que a perdera. Apareceu

um novo elemento no caso que pode explicar como ele sumiu com o cavalo.

Holmes se aproximou do policial. - Descobrimos indícios continuou o inspetor - de que

ciganos estiveram acampados, na segunda-feira à noite, a

cerca de um quilômetro do local onde ocorreu o assassinato. Na terça já não estavam mais lá. Presumindo-se que

houvesse algo entre Simpson e os ciganos, será que ele não estava levando o cavalo para eles quando foi surpreendido

pelo treinador? E será que os ciganos não estão, agora, com o

cavalo? - É possível.

- Estamos vasculhando todo o pântano atrás dos ciganos. Também examinei cada estábulo e depósito em Tavistock

num raio de quinze quilômetros. - Há um outro centro de treinamento bem perto, pelo que

entendi?

- Exato. Isso é algo que não podíamos ignorar. Como Desborough, o cavalo deles, era o segundo favorito, tinham

um interesse óbvio no desaparecimento do Estrela de Prata. Sabe-se que Silas Brown, o treinador, apostou pesado na

corrida e não se dava bem com o infeliz Straker.

Investigamos o estábulo Mapleton, contudo, e não encontra-mos nada que pudesse ligá-lo ao crime.

- E não existe algo que possa ligar Simpson aos interesses do estábulo Mapleton?

- Não. Nada. Holmes recostou-se no assento, e a conversa acabou. Alguns

minutos depois, o cocheiro parou perto de uma casa de

tijolos vermelhos. Um pouco além, depois de um paddock, havia uma comprida edificação cinzenta. Em todas as outras

direções, estendia-se o pântano, com suas nuanças de cobre devido às samambaias envelhecidas, até a linha do

horizonte, interrompido apenas pelas torres de Tavistock e

por um aglomerado de casas a oeste, que marcavam a localização do estábulo Mapleton. Todos descemos da

carruagem, à exceção de Holmes, que permaneceu recostado com os olhos fixos no céu, totalmente absorvido em suas

reflexões. Somente quando lhe toquei no braço ele se

levantou, subitamente, e saiu da carruagem. - Perdão - ele disse, virando-se para o coronel Ross, que o

observava um pouco surpreso estava sonhando acordado. Sherlock Holmes tinha um brilho nos olhos e uma agitação

contida em seus movimentos que me convenceram, pois eu bem o conhecia, que ele descobrira alguma pista, embora eu

não conseguisse imaginar qual fosse.

-Talvez queira ir imediatamente até a cena do crime, sr. Holmes? - perguntou Gregory.

- Acho que prefiro ficar e fazer algumas perguntas. O corpo de Straker foi trazido de volta, eu imagino?

- Sim, está lá em cima. O exame do corpo será amanhã.

- Ele trabalha para o senhor há alguns anos, certo, coronel Ross?

- Sempre o considerei um excelente funcionário. - Fizeram uma relação do que ele tinha nos bolsos na hora

da morte, inspetor? - As coisas estão na sala de estar, se quiser vê-las.

- Quero, sim.

Entramos na casa e nos sentamos em volta da mesa, enquanto o inspetor abria uma caixa de metal e depositava

seu conteúdo à nossa frente: uma caixa de fósforos, uma vela de cinco centímetros, um cachimbo A.D P. de roseira brava,

uma bolsa de pele de foca com um punhado de fumo

Cavendish, um relógio de prata com correia de ouro, cinco soberanos1 de ouro, um estojo de alumínio, alguns papéis e

uma faca com cabo de marfim, de lâmina muito rígida e delicada, da marca Weiss and Co., Londres.

- Esta é uma faca muito peculiar - disse Holmes, pegando-a

e examinando-a minuciosamente. - Presumo, pelas manchas de sangue, que era ela que estava na mão da vítima. Watson,

acho que esta faca é um instrumento cirúrgico. - E o que chamamos de bisturi de catarata - eu disse.

- Foi o que pensei. Uma lâmina muito delicada, normalmente empregada em trabalhos muito delicados. É

uma coisa estranha para se usar numa situação de perigo,

especialmente porque ficaria aberta no bolso. - A ponta estava protegida por um disco de cortiça que foi

encontrado ao lado do corpo - disse o inspetor. - Sua mulher nos contou que a faca ficou alguns dias sobre a cômoda e

Straker a pegou ao sair do quarto. Não é grande coisa como

arma, mas talvez fosse a única que ele encontrou naquele momento.

- Muito possivelmente. E esses papéis? - Três deles são recibos de fornecedores de feno. Há uma

carta com instruções do coronel Ross e uma conta da butique de Madame Lesurier, na rua Bond, para William

1 1 Soberano = moeda inglesa de ouro equivalente a vinte xelins (1 libra). Não é mais cunhada.

Darbyshire. A sra. Straker nos contou que Darbyshire era amigo de seu marido e que, eventualmente, sua

correspondência era endereçada para cá.

- A sra. Darbyshire tinha gostos dispendiosos - disse Holmes, olhando para a conta. - Vinte e dois guinéus é

muito dinheiro por um vestido. Mas parece que não há mais nada para se ver por aqui. Podemos ir à cena do crime.

Ao sairmos da sala de estar, uma mulher, que estivera

esperando no corredor, adiantou-se e segurou o braço do inspetor. Seu rosto estava encovado, torturado e ansioso,

devido à tragédia recente. - Já os pegou? O senhor os encontrou? - ela gemeu.

- Não, sra. Straker. Mas o sr. Holmes, aqui, veio de Londres para nos ajudar e faremos todo o possível.

- Acho que já nos conhecemos antes, num parque em

Plymouth, há algum tempo, sra. Straker - disse Holmes. - Não, senhor. Está se confundindo.

- Ora essa! Podia jurar. A senhora vestia um traje de seda cinzento, enfeitado com penas de avestruz.

- Nunca tive um vestido assim, meu senhor - ela respondeu.

- Ah, então está bem - disse Holmes, desculpando-se e seguindo o inspetor.

Após uma curta caminhada pelo pântano, chegamos à depressão onde o corpo fora encontrado. À sua borda estava

o arbusto onde ficara pendurado o casaco do treinador. - Pelo que sei - disse Holmes não ventava naquela noite.

- Não. Mas chovia muito.

- Nesse caso, o casaco não foi carregado pelo vento até o arbusto. Ele foi colocado ali.

- Exato. Estava por cima da moita. - Hum, isso está ficando interessante. Vejo que o chão está

todo pisoteado. Sem dúvida muitos pés passaram por aqui

desde a noite de segunda. - Colocamos uma esteira ao lado e todos pisamos sobre ela.

- Muito bem! - Nesta sacola coloquei as botas que Straker usava, um dos

sapatos de Fitzroy Simpson e uma ferradura perdida pelo

Estrela de Prata. - Meu caro inspetor, o senhor está se superando!

Holmes pegou a sacola e desceu até o fundo da depressão. Então ele centralizou a esteira e se deitou sobre ela,

estudando cuidadosamente o solo pisoteado à sua frente. - Opa! - exclamou, de repente. - O que é isto?

Era um palito de fósforo riscado, tão coberto de lama que

parecia apenas uma lasquinha de madeira. - Não sei como deixamos isso passar - disse o inspetor,

parecendo incomodado. - Estava invisível, enterrado na lama. Só o vi porque estava

procurando por ele.

- Como? Esperava encontrá-lo? - Não achei que isso fosse improvável.

Holmes pegou os calçados na sacola e comparou cada um com as marcas no solo. Depois ele foi até a borda da

depressão e ficou engatinhando entre arbustos e samambaias.

- Temo que não existam outros rastos - disse o inspetor. - Já

examinei o solo cuidadosamente num raio de cem metros.

- Muito bem! - disse Holmes, levantando-se. - Não terei a impertinência de fazê-lo novamente. Gostaria, porém, de

dar uma caminhada pelo pântano antes que escureça, para

reconhecer o terreno. Acho que vou colocar essa ferradura no bolso, para me dar sorte.

O coronel Ross, que já demonstrara impaciência ao observar o método de trabalho de meu amigo, consultou o relógio.

- Gostaria que viesse comigo, inspetor - ele disse. - Preciso

lhe pedir conselhos sobre diversos assuntos e, principalmente, se não devemos cancelar o registro de nosso

cavalo na Copa, em respeito ao público. - Claro que não - exclamou, decidido, Sherlock Holmes. -

Deixe o registro como está. O coronel fez uma reverência.

- Fico contente com sua opinião, sr. Holmes - ele disse. - O

senhor nos encontrará na casa do infeliz Straker quando terminar sua caminhada. Então poderemos voltar juntos a

Tavistock. Ele voltou com o inspetor enquanto eu e Holmes

começamos a andar pelo pântano. O sol se punha atrás dos

estábulos de Mapleton, tingindo de dourado a planície à nossa frente e acentuando os tons acobreados das

samambaias. Entretanto a beleza da paisagem era desperdiçada por meu amigo, imerso em suas reflexões.

- Por aqui, Watson - ele disse, afinal. - Precisamos deixar de lado, por um instante, a questão sobre quem matou John

Straker. Vamos nos restringir a descobrir onde está o cavalo.

Supondo-se que ele se soltou durante ou depois da tragédia, onde poderia ter ido? Cavalos são criaturas gregárias. Por sua

conta, ele teria voltado a King's Pyland ou ido para Mapleton. Por que ficaria correndo pelo pântano? Já teria

sido visto, se fosse esse o caso. E por que os ciganos o

roubariam? Essas pessoas sempre desaparecem quando surge a polícia. E eles não podiam ter esperanças de vender o ani-

mal. Estariam correndo muito risco para não ganhar nada, ficando com o cavalo. Isso está claro.

- Onde ele está, então?

- Eu já disse que ele dever ter ido para King's Pyland ou Mapleton. Como não está em King's Pyland, só pode estar

em Mapleton. Vamos assumir essa hipótese para começar. Essa parte do pântano é muito seca e dura, como disse o

inspetor. Mas há um declive na direção de Mapleton e, como pode ver, há uma depressão lá adiante, que deve ter

ficado muito úmida na segunda à noite. Se nossa suposição

estiver correta, o animal passou por ali, que é onde devemos procurar sua pista.

Andamos rapidamente durante a conversa e, minutos depois, alcançamos a tal depressão. A pedido de Holmes,

desci pela direita enquanto ele ia pela esquerda, mas não

cheguei a andar cinqüenta metros quando Holmes gritou e acenou para mim. Havia uma pegada de cavalo bem

delineada no solo fofo à sua frente. A ferradura que ele tirou do bolso encaixava perfeitamente.

- Veja o valor da imaginação - disse Holmes. - É a qualidade que falta a Gregory. Imaginamos o que podia ter acontecido,

agimos de acordo com a suposição e fomos recompensados.

Continuemos.

Cruzamos o solo barrento e passamos por uns quatrocentos metros de turfa seca e dura. Em outra depressão voltamos a

encontrar a trilha. Tornamos a perdê-la por oitocentos

metros, mas a reencontramos muito perto de Mapleton. Foi Holmes quem a viu primeiro e a apontou para mim com um

olhar triunfante. Havia nítidas pegadas de um homem ao lado das do cavalo.

- Antes o cavalo estava só! - exclamei.

- Exato. Estava só antes. Opa! O que é isto? A trilha das pegadas fazia uma curva e seguia em direção a

King's Pyland. Holmes assobiou e nós tomamos a nova direção. Ele estava com os olhos fixos nos rastos, mas eu dei

uma olhada para o lado e vi, para minha surpresa, as mesmas pegadas voltando em sentido oposto.

- Ponto para você, Watson - disse Holmes, quando lhe

chamei a atenção para o fato. - Você nos economizou uma longa caminhada. Vamos seguir a trilha de volta.

Não precisamos ir muito longe. As pegadas terminavam no asfalto que conduzia aos portões do estábulo Mapleton. Ao

nos aproximar, um cavalariço saiu correndo de lá.

- Não queremos vagabundos por aqui - ele disse. - Só quero fazer uma pergunta - disse Holmes, enfiando a

mão no bolso. - Se eu aparecer amanhã, às cinco horas, seria muito cedo para encontrar seu chefe, o sr. Silas Brown?

- Ora essa, meu senhor. Se alguém estiver de pé nesse horário é ele, que é sempre o primeiro a levantar. Lá vem ele

para responder a suas perguntas. E por favor, guarde seu

dinheiro, pois posso perder o emprego se ele me vir tocar nessa moeda. Depois vemos isso, se o senhor quiser.

Sherlock Holmes devolveu ao bolso o meio soberano ao mesmo tempo que um senhor de idade de aspecto violento

saiu pelo portão brandindo um chicote.

- O que há, Dawson? - ele gritou. - Não quero fofoca! Vá cuidar das suas tarefas! E vocês... que diabos querem aqui?

- Dez minutos de prosa, meu amigo - disse Holmes, com a mais doce das vozes.

- Não tenho tempo para falar com todo folgado que me

aparece! Não queremos estranhos por aqui. Caia fora ou coloco os cachorros nos seus calcanhares!

Holmes se inclinou para a frente e sussurrou alguma coisa no ouvido do treinador. Este tremeu e ficou todo vermelho.

- É mentira! ele gritou. - Uma mentira grossa! Muito bem! Devemos discutir sobre isso em público ou lá

dentro?

- Ah, entre, se quiser. Holmes sorriu.

- Não vou deixá-lo esperando mais que alguns minutos, Watson - ele disse. - Agora, sr. Brown, estou à sua

disposição.

Passaram-se vinte minutos e os reflexos dourados do sol transformaram-se em tons cinzentos antes que Holmes e o

treinador voltassem. Nunca vi mudança maior de atitude do que a de Silas Brown. Seu rosto estava branco como cera,

com gotas de suor brilhando em sua testa enquanto as mãos tremiam fazendo o chicote balançar como um galho ao

vento. Seu comportamento intimidante e valentão também

desaparecera. Ele vinha timidamente ao lado do meu amigo, como um cachorro e seu dono.

- Suas ordens serão executadas. Será feito - ele disse. - Não pode haver confusão - disse Holmes, olhando para

ele. O outro tremeu, como se percebesse alguma ameaça nos

olhos de Sherlock Holmes. - Oh, não. Não haverá confusão. Estará lá. Devo fazer a

mudança antes ou não? Holmes pensou um pouco e depois começou a rir.

- Não, não precisa - ele disse. - Vou lhe escrever a respeito.

Agora, sem truques, ou... - Ah, pode confiar em mim, pode confiar em mim!

- É, acho que posso. Bem, vai receber notícias minhas amanhã - Holmes se virou, ignorando a mão trêmula que o

outro lhe estendia, e partimos para King's Pyland. -Acho que nunca encontrei mistura mais perfeita de

fanfarronice, covardia e dissimulação do que em Silas Brown

- ele comentou enquanto caminhávamos. - Ele tentou negar, mas eu descrevi tão perfeitamente suas ações naquela manhã

que ele está convencido de que eu o estava observando, na ocasião. Obviamente, você observou o bico quadrado das

pegadas. As botas de Silas Brown se encaixam perfeitamente

nelas. E claro que nenhum empregado ousaria fazer algo assim. Descrevi-lhe como, de acordo com seus hábitos, ele

foi o primeiro a acordar. Viu, então, um cavalo estranho à solta no pântano. Foi verificar do que se tratava e ficou

estupefato ao reconhecer o Estrela de Prata pela mancha branca que lhe valeu o nome. A sorte colocara em suas mãos

o único cavalo que poderia vencer aquele em que Brown

apostou seu dinheiro. Então eu lhe descrevi como seu primeiro impulso fora devolvê-lo a King's Pyland, mas que o

diabo soprou-lhe no ouvido que ele poderia esconder o animal até depois da corrida. Assim, ele escondeu Estrela de

Prata em Mapleton. Quando lhe contei todos esses detalhes,

ele se entregou e só pensa em salvar a própria pele. - Mas a polícia procurou em Mapleton!

- Ah, um velho treinador como ele sabe disfarçar um cavalo e já enganou muita gente!

- E você não tem medo de deixar o cavalo em seu poder,

sendo que ele tem todo o interesse em machucá-lo? - Meu caro amigo, ele irá guardá-lo como sua menina dos

olhos. Ele sabe que sua única esperança de misericórdia é entregar o animal em perfeitas condições.

- O coronel Ross não me pareceu um homem disposto a mostrar misericórdia de modo algum.

- O assunto não está nas mãos do coronel Ross. Sigo meus

próprios métodos e vou contar só o que me interessa. Essa é a vantagem de ser um detetive particular. Não sei se você

reparou, Watson, mas o coronel tem se mostrado um pouco arrogante para comigo. Agora quero me divertir um pouco

às custas dele. Não lhe diga nada sobre o cavalo.

- Claro que não, sem sua permissão. - É claro que essa é uma questão menor, comparada à quem

matou John Straker. - E você vai investigá-la?

- Pelo contrário. Vamos voltar a Londres pelo trem noturno.

Fiquei pasmo com as palavras de meu amigo. Estávamos

havia

poucas horas em Devonshire, e eu não conseguia aceitar que ele desistisse de uma investigação que começara tão bem.

Não consegui lhe arrancar mais nada até chegarmos à casa

do treinador. O coronel e o inspetor esperavam por nós na sala.

- Eu e meu amigo voltaremos a Londres pelo expresso da meia- noite - anunciou Holmes. - Renovamos os pulmões

com o maravilhoso ar de Dartmoor.

O inspetor arregalou os olhos, e o coronel torceu a boca com desdém.

- Então o senhor desiste de capturar o assassino de Straker? Holmes encolheu os ombros.

- Certamente existem muitas dificuldades - ele disse. - Mas tenho grandes esperanças de que seu cavalo estará na corrida

de terça- feira, de modo que lhe aconselho a preparar o

jóquei. Posso lhe pedir uma fotografia de John Straker? O inspetor pegou uma de um envelope em seu bolso e a

entregou a Holmes. - Meu caro Gregory, o senhor antecipa todos os meus

pensamentos. Posso lhes pedir que aguardem um instante?

Gostaria de fazer uma pergunta à empregada. - Devo dizer que estou muito desapontado com nosso

consultor londrino - disse o coronel Ross, quando meu amigo saiu da sala. - Acho que nada progredimos desde que

ele chegou. - Pelo menos tem a garantia dele de que o cavalo irá correr

- eu disse.

- É, eu tenho a garantia - disse o coronel, dando de ombros. - Mas preferia ter o cavalo.

Eu estava para fazer algum comentário defendendo meu amigo quando ele entrou na sala.

- Bom, senhores. Estou pronto para voltar a Tavistock - ele

disse. Enquanto subíamos na carruagem, um dos cavalariços

mantinha a porta aberta para nós. Pareceu-me que Holmes teve uma

idéia repentina, pois ele se inclinou para a frente e segurou o

jovem pelo braço. - Vocês têm algumas ovelhas no paddock - disse Holmes. -

Quem cuida delas? - Eu mesmo.

- Reparou em algo de errado nelas, ultimamente? - Bem, meu senhor, nada de muito grave, mas três delas

estão coxeando.

Vi que Holmes ficou extremamente satisfeito, pois riu e esfregou as mãos.

- Na mosca, Watson! Na mosca - ele disse, me beliscando o braço. - Gregory, deixe-me recomendar-lhe que preste

atenção nessa estranha epidemia entre as ovelhas. Vamos em

frente, cocheiro! O coronel Ross continuava com uma expressão que

demonstrava sua opinião desfavorável sobre a habilidade de meu amigo, mas vi, pelo rosto do inspetor, que sua atenção

fora atraída. - Considera isso importante? - ele perguntou.

- Extremamente - respondeu Holmes.

- Há alguma outra coisa para a qual queira me chamar a atenção?

- Sim, para a curiosa ação do cachorro naquela noite. - O cachorro não fez nada.

- Isso é curioso - observou Sherlock Holmes.

Quatro dias depois, Holmes e eu fomos de trem até Winchester, para assistir às corridas da Copa Wessex.

Conforme combinado, o coronel Ross nos esperava fora da estação e fomos em sua carruagem até o hipódromo, na

periferia da cidade. Seu rosto estava muito sério e sua

atitude era extremamente fria. - Ainda não vi nenhum sinal do meu cavalo - ele disse.

- O senhor o reconheceria, se o visse? - perguntou Holmes. O coronel ficou muito bravo.

- Estou no turfe há vinte anos e nunca me fizeram pergunta como essa! - ele disse. - Uma criança reconheceria Estrela de

Prata, com a mancha branca na testa e a perna dianteira

malhada. - Como estão as apostas?

- Bem, isso é que é estranho. Ontem conseguia-se até quinze para um, mas as apostas caíram e hoje quase não se

consegue três para um.

- Hum! - fez Holmes. - Alguém sabe de alguma coisa, é evidente!

A carruagem se aproximou do hipódromo e aproveitei para ler a placa com os inscritos:

TAÇA DE WESSEX. 50 soberanos por animal, com 1000 soberanos para os de quatro e cinco anos. Segundo, 300 libras. Terceiro, 300 libras. Pista nova (dois mil e seiscentos metros).

1. O Negro, do sr. Heath Newton (boné vermelho, jaqueta marrom). 2. Pugilista, do coronel Wardlaw (boné rosa, jaqueta preta e azul). 3. Desbomugh, do lorde BackM ater (boné e mangas amarelos). 4. Estrela de Prata, do coronel Ross (boné preto e jaqueta vermelha). 5. Íris, do duque de Balmoral (listras amarelas e pretas). 6. Ralador, do lorde Singleford (boné púrpura e mangas pretas). - Retiramos nosso outro animal e pusemos toda nossa esperança na sua palavra - disse o coronel. - O que é isso?

Estrela de Prata favorito?

- Cinco a quatro contra Estrela de Prata! - anunciaram. - Cinco a quatro contra Estrela de Prata! Quinze a cinco

contra Desborough! Cinco a quatro na pista. - Ergueram os números - eu disse. - Estão todos os seis, lá.

- Todos os seis! Então meu cavalo vai correr - exclamou o

coronel, agitado. - Mas não o vejo. Minhas cores não passaram.

- Só passaram cinco. O próximo deve ser ele. Enquanto eu falava, um magnífico animal saiu da baia de

pesagem e passou por nós, com o jóquei ostentando as cores vermelha e preta do coronel.

- Esse não é meu cavalo - ele exclamou. - Esse animal não

tem nenhuma mancha branca. O que foi que aprontou, sr. Holmes?

- Ora, ora. Vamos ver como ele se sai - disse, imperturbável, meu amigo. Por alguns minutos ele ficou

olhando através de meu binóculo de campanha. - Excelente!

Uma largada muito boa! - ele exclamou. - Lá vêm eles, fazendo a curva.

De nossa carruagem, tínhamos uma vista maravilhosa dos animais correndo. Eles estavam tão próximos que se poderia

estender um colchão e dormir sobre eles. Na metade do

caminho, o amarelo de Mapleton abriu vantagem. Na reta final, porém, Desborough mostrou que tinha disparado cedo

demais e o Estrela de Prata deu a arrancada final, cruzando o disco com seis corpos de vantagem, sendo que Íris, do duque

de Balmoral, chegou num distante terceiro lugar. - Ganhei a corrida - gaguejou o coronel, esfregando os

olhos. - Confesso que não entendi nada. Não acha que já fez

mistério demais, sr. Holmes? - Claro que sim, coronel. Vamos até lá ver o cavalo. Aqui

está - ele continuou, quando chegamos à área reservada, onde só eram admitidos criadores e seus convidados. - Basta

lavar-lhe a cabeça e a perna com vinho para descobrir que

este é o bom e velho Estrela de Prata. - É de tirar o fôlego!

- Encontrei-o nas mãos de um vigarista e tomei a liberdade de mandá-lo correr assim mesmo, disfarçado.

- Meu caro senhor, o que fez foi maravilhoso! O cavalo parece em ótimas condições. Devo-lhe um milhão de

desculpas por ter duvidado de sua capacidade. Prestou-me

um grande serviço ao recuperar meu cavalo, e faria um ainda maior se pegasse o assassino de John Straker.

- Já peguei - disse Holmes, calmamente. Eu e o coronel arregalamos os olhos, espantados.

- Você o pegou! Onde está, então?

- Aqui. - Aqui! Onde?

- Junto comigo, neste momento. O coronel ficou vermelho de raiva.

- Reconheço que lhe devo muito, sr. Holmes - ele disse -,

mas tomarei o que disse como um insulto ou, no mínimo, uma piada de péssimo gosto.

Sherlock Holmes riu. - Garanto-lhe que não o associei ao crime, coronel - ele

disse. - O verdadeiro assassino está logo atrás do senhor. Holmes passou pelo coronel e pôs a mão no pescoço

brilhante do puro-sangue.

- O cavalo! - exclamamos eu e o coronel. - Sim, o cavalo. Sua culpa pode ser abrandada se levarmos

em conta que ele agiu em defesa própria e que John Straker não era digno de sua confiança. Entretanto essa é a

campainha e, como apostei na próxima corrida, prefiro

deixar uma explicação mais demorada para ocasião mais oportuna.

Voltamos para Londres naquela noite, a bordo de um vagão de primeira classe. Creio que a viagem foi curta tanto para o

coronel Ross como para mim, pois ouvimos maravilhados a narrativa de Sherlock Holmes sobre os fatos que ocorreram

nos estábulos de treinamento em Dartmoor, na segunda-

feira à noite, e como ele os desvendou.

- Confesso - ele disse - que as teorias que formulei a partir das notícias de jornais estavam totalmente erradas. Ainda

assim, havia indícios lá que foram ocultos por outros

detalhes sem importância. Fui para Devonshire convencido de que Fitzroy Simpson era o verdadeiro culpado, embora

faltassem provas definitivas contra ele. "Enquanto eu ainda estava na carruagem, quando chegamos

à casa do treinador, bateu-me a imensa importância do

carneiro ao curry. Talvez o senhor se lembre como eu estava distraído e permaneci sentado após todos terem descido.

Estava pensando como pude ignorar pista tão óbvia." - Confesso - disse o coronel - que mesmo agora não vejo o

que isso poderia sugerir. - Esse foi o primeiro elo em minha cadeia de raciocínio.

Ópio em pó não é algo sem sabor. Não é desagradável, mas é

perceptível. Se misturado a um alimento normal, a pessoa que o ingerisse perceberia algo de estranho e pararia de

comer. Mas curry foi exatamente o modo de disfarçar o sabor. Não havia como esse estranho, Fitzroy Simpson, fazer

com que curry fosse servido naquela noite, e seria muita

coincidência supor que ele aparecera com ópio em pó na mesma ocasião em que seria preparado um prato que

poderia lhe disfarçar o sabor. Isso seria inconcebível. Portanto, Sinipson está eliminado do

caso e nossa atenção se volta para Straker e sua mulher, os únicos que poderiam ter determinado carneiro ao curry

como jantar daquela noite. O ópio foi acrescentado depois

que o prato do rapaz foi feito, pois os outros que jantaram

nada sofreram. Qual deles teve acesso ao prato sem que a empregada visse?

"Antes de esclarecer essa questão, percebi a importância do

silêncio do cachorro, pois uma inferência verdadeira normalmente sugere outras. O incidente com Simpson

mostrou que havia um cachorro no estábulo. Mesmo assim, alguém entrou, saiu com o cavalo e o cão não latiu, o que

acordaria os cavalariços que dormiam no andar de cima.

Obviamente, o visitante noturno era bem conhecido pelo cachorro.

"Eu já estava convencido, ou quase convencido, de que John Straker fora ao estábulo na calada da noite e pegara Estrela

de Prata. Mas por quê? Por algum motivo desonesto, sem dúvida, ou não teria drogado seu funcionário. Ainda assim,

eu não sabia por que ele o fizera. Já houve casos em que

treinadores fizeram fortunas apostando contra seus próprios cavalos, por meio de agentes, e evitando que os animais

ganhassem mediante alguma fraude. Pode ser um jóquei que segure o animal. No entanto, às vezes, é empregado algum

método mais eficiente e sutil. E, neste caso, seria? Eu

esperava que o conteúdo dos bolsos de Straker me ajudasse a formar uma conclusão.

"E foi o que aconteceu. Acho que vocês não se esqueceram da faca peculiar que foi encontrada na mão do morto, uma

faca que nenhum homem mentalmente sadio escolheria como arma. Como o dr. Watson nos informou, aquilo se

tratava de um bisturi utilizado nas cirurgias mais delicadas.

E seria usado numa operação delicadíssima, naquela noite. Com sua experiência em corridas de cavalo, coronel Ross, o

senhor sabe que é possível fazer um cortezinho subcutâneo no tendão de um cavalo de modo que não deixe sinais. Um

cavalo sabotado dessa forma começaria a coxear, e o

problema seria atribuído a alguma contusão durante o treinamento ou a um princípio de reumatismo, mas nunca a

sabotagem!" - Miserável! Vagabundo! - exclamou o coronel.

- Isso explica também por que John Straker levou o cavalo

para o pântano. Animal tão altivo certamente faria acordar os maiores dorminhocos quando sentisse o corte do bisturi.

Portanto, era absolutamente necessário fazer a operação ao ar livre.

- Como fui cego! - exclamou o coronel. - É claro! Por isso ele precisava da vela e dos fósforos!

- Sem dúvida. Examinando seus pertences, tive a sorte de

descobrir não só o método que pretendia empregar na sabotagem do Estrela de Prata, mas também o motivo. Sendo

um homem vivido, coronel, o senhor sabe que ninguém anda por aí com as contas dos outros no bolso. A maioria de

nós já se preocupa bastante com as próprias contas.

Portanto, concluí que Straker levava uma vida dupla, com um segundo lar. A origem daquela nota mostrava que havia

uma mulher envolvida e uma de gostos dispendiosos. Ainda que o senhor pague bem seus empregados, não podemos

imaginar que um deles possa comprar vestidos de vinte guinéus para sua esposa. Perguntei para a sra. Straker sobre

o vestido, sem que ela soubesse o motivo e, ao perceber que

ela nunca o vira, anotei o endereço da butique com a sensação de que, se aparecesse lá com uma fotografia de

Straker, facilmente estabeleceria que ele e Darbyshire eram a mesma pessoa.

"Os outros fatos eram muito simples. Straker levou o cavalo

para a depressão para que a luz não fosse vista de longe. Simpson, quando fugiu, deixou cair a gravata, que Straker

pegou com alguma finalidade. Talvez usá-la para segurar a perna do cavalo. Ao chegar na depressão, Straker ficou atrás

do cavalo e acendeu um fósforo. O animal, porém, assustado

pelo brilho repentino e com o instinto que normalmente os animais têm, percebeu a má intenção do treinador. Ele o

escoiceou e a ferradura de aço acertou em cheio a testa de Straker. Este, por sua vez, tirara o casaco, apesar da chuva,

preparando-se para a cirurgia. Quando caiu, o bisturi cortou-lhe a coxa. Está claro?"

- Maravilhosamente! - exclamou o coronel. -

Maravilhosamente claro! Até parece que o senhor esteve lá! - Minha última dedução foi, confesso, um pouco arriscada.

Ocorreu-me que um homem tão astuto quanto Straker não tentaria essa operação sem praticar. Mas onde ele praticaria?

Quando vi as ovelhas, desconfiei, e fiz aquela pergunta a um

dos cavalariços que, para minha surpresa, confirmou minha conjectura com sua resposta.

- O senhor esclareceu tudo, sr. Holmes. - Quando voltei a Londres fui até a butique, que

reconheceu imediatamente Straker como um ótimo cliente, mas sob o nome de Darbyshire, que tinha uma esposa que

gostava de vestidos caros. Não tive dúvida de que essa

mulher o fizera se atolar até o pescoço em dívidas, o que o fez imaginar esse plano desastrado.

- O senhor explicou tudo menos uma coisa - exclamou o coronel. - Onde estava o cavalo?

- Ah, ele disparou e foi acolhido por um de seus vizinhos.

Acho que podemos esquecer essa parte. Este é o entroncamento de Clapham. Se não me engano, chegaremos

à estação Vitória em menos de dez minutos. Se quiser fumar um charuto em nossa casa, coronel, ficarei feliz em contar

outros detalhes que possam lhe interessar.

A CAIXA DE PAPELÃO

Ao escolher alguns casos típicos que esbocem a capacidade intelectual de meu amigo Sherlock Holmes, esforcei-me

para selecionar, tanto quanto possível, aqueles que

contivessem o mínimo de sensacionalismo e que, ao mesmo tempo, servissem para demonstrar seu talento. Infelizmente,

contudo, é impossível separar totalmente o sensacional do crime. O escritor, assim, fica no dilema de optar entre

sacrificar detalhes que são essenciais para o caso, e assim fazer um registro impreciso do problema, e usar todos os

fatos que a realidade, e não sua criatividade, lhe forneceu.

Depois desse curto prefácio, volto-me para minhas anotações sobre uma série de acontecimentos estranhos e

especialmente assustadores. Era um dia muito quente de agosto. A rua Baker parecia um

forno e o brilho do sol nas casas de tijolos amarelos, do outro

lado da rua, doía nos olhos. Era difícil de acreditar que essas eram as mesmas paredes que se escondiam, tão

tenebrosamente, nos nevoeiros de inverno. Nossas cortinas

estavam semicerradas e Holmes largara-se deitado no sofá, lendo e relendo uma carta que recebera pela manhã. Quanto

a mim, o tempo que servi na índia ensinou-me a suportar o

calor melhor que o frio, e o termômetro a 35° não era grande coisa. Mas o jornal não estaya interessante. O Parlamento

entrara em recesso. Todo o mundo saíra da cidade, e eu sonhava com os prados da New Forest e com as praias de

Southsea. As péssimas condições de minha conta bancária

fizeram-me adiar as férias. Quanto ao meu amigo, nem campo nem praia lhe atraíam. Ele adorava ficar entre cinco

milhões de pessoas, atento a elas e pronto para agir a qualquer rumor ou suspeita de crime. Ainda que Sherlock

Holmes tivesse muitos dons, entre eles não estava a apreciação da natureza e só se mexia quando em vez de

perseguir o bandido metropolitano saía à caça do marginal

interiorano. Pensando que Holmes estava muito absorto para papear, pus

o jornal de lado e, recostando-me na poltrona, abandonei-me em divagações melancólicas. De repente, a voz de meu

amigo interrompeu meus pensamentos.

- Tem razão, Watson - ele disse -, realmente parece uma forma absurda de resolver uma contenda.

- Realmente absurda! - confirmei, e então, percebendo que ele respondera a um pensamento meu, endireitei-me na

poltrona e o encarei, totalmente pasmo. - O que é isso Holmes? - exclamei. - Você está superando

tudo que eu podia imaginar.

Ele riu com gosto da minha perplexidade.

-Você se lembra - ele disse - que há algum tempo eu li para você o trecho de um livro de Poe em que um personagem,

de bom raciocínio, acompanha os pensamentos de seu

amigo? Você estava achando que o autor forçara a situação. Quando eu disse que constantemente fazia o mesmo, você

expressou sua incredulidade. - Eu não disse nada!

- Não com a boca, meu caro Watson, mas o fez com as

sobrancelhas. Assim, quando o vi pôr o jornal de lado, percebi que essa era uma oportunidade de acompanhar seus

pensamentos e, eventualmente, me intrometer neles, para lhe provar que eu estava "ligado" a você.

Mas aquela resposta em nada me satisfez. - No exemplo que me leu - eu disse o raciocinador tirou

suas conclusões das ações do homem que ele observava. Se

bem me lembro, o sujeito tropeçou num monte de pedras, olhou para as estrelas, e assim por diante. Eu estava sentado

imóvel em minha poltrona. Que pistas posso ter lhe dado? - Está sendo injusto consigo mesmo. As feições de um

homem servem-lhe como meio de expressar suas emoções, e

você usa muito bem as suas. - Quer me dizer que leu meus pensamentos simplesmente

observando meu rosto? - Observando sua expressão e principalmente seus olhos.

Talvez você mesmo não se lembre de como seus devaneios começaram?

- Não, não me lembro.

- Então vou lhe contar. Após colocar o jornal de lado, que foi o que me chamou a atenção, você ficou meio minuto

com uma expressão vaga. Então seus olhos se fixaram no retrato recém-emoldurado do general Gordon. Vi, por uma

alteração de seu rosto, que uma cadeia de pensamentos fora

iniciada. Mas ela não foi longe. Seus olhos, então, foram até o retrato sem moldura de Henry Ward Beecher, que está

acima dos seus livros. Então você olhou para a parede e, é óbvio, o significado estava claro. Você pensou que, se o

retrato dele fosse emoldurado, poderia ocupar o espaço vazio

e contrabalançar com o quadro do general Gordon. -Você seguiu maravilhosamente meus pensamentos! -

exclamei. - Até aí era impossível que eu me enganasse. Então, você se

concentrou em Beecher, parecendo, pelo modo como olhava, que estava estudando o rosto dele. Seus olhos

perderam a firmeza, mas você continuava a observar o

retrato, ao mesmo tempo que sua expressão era reflexiva. Você se recordava dos incidentes da vida de Beecher. Eu

bem sabia que não poderia fazer isso sem pensar na missão que ele desempenhou pelo Norte durante a Guerra Civil,

pois lembro-me de que você se mostrou extremamente

indignado pela forma como ele foi recebido por aquelas pessoas violentas. Na ocasião esse fato o incomodou tanto

que eu sabia que você não pensaria em Beecher sem se lembrar daquilo. Quando, logo depois, seus olhos afastaram-

se do retrato, imaginei que estava pensando na Guerra Civil e, quando observei seus lábios apertados, os olhos chispando

e as mãos crispadas, tive certeza de que você pensava na

bravura demonstrada pelos dois lados durante aquela luta desesperada. Em seguida, seu rosto ficou triste e você

balançou a cabeça. Estava expressando a tristeza e o horror pelo desperdício inútil de vidas. Sua mão foi em direção ao

seu velho ferimento de guerra e um sorriso desenhou-se nos

lábios, mostrando-me que pensava como são ridículas essas formas de resolver contendas internacionais. Nesse

momento, concordei com você como elas são realmente absurdas e fiquei feliz de saber que todas as minhas

deduções estavam corretas.

- Absolutamente corretas! - eu disse. - E confesso que agora, após sua explicação, estou mais estupefato que antes.

- Foi tudo muito superficial, meu caro Watson. Garanto-lhe. Não teria me intrometido nas suas idéias se você não

tivesse se mostrado incrédulo no outro dia. No entanto tenho um probleminha em mãos que talvez se mostre mais

difícil do que meu exercício de leitura de pensamentos. Viu,

no jornal, alguma referência sobre o impressionante conteúdo de um pacote enviado à srta. Susan Cushing, da

rua Cross, em Croydon? - Não, não vi nada sobre isso.

- Ah! Então deve ter lhe escapado. Jogue o jornal para mim.

Aqui está, na seção de finanças. Faria o favor de ler em voz alta?

Peguei o jornal que ele me devolvera e li o parágrafo indicado. "Pacote macabro" era o título:

"A srta. Susan Cushing, moradora da rua Cross, em Croydon, foi vítima do que se considera, até agora, como uma piada

especialmente revoltante, a menos que o acontecido tenha

algum significado mais sinistro e ainda não descoberto. Às catorze horas de ontem, ela recebeu, pelo carteiro, um

pacote embrulhado em papel pardo. Dentro havia uma caixa de papelão cheia de sal grosso. Esvaziando a caixa, a srta.

Cushing ficou horrorizada ao encontrar duas orelhas

humanas recém-cortadas. A caixa fora enviada pelo correio de Belfast na manhã do dia anterior. Não há qualquer

indicação quanto ao remetente e o caso fica ainda mais misterioso por se tratar da srta. Cushing, que, solteira aos

cinqüenta anos, leva uma vida retirada, tem poucos conhe-

cidos e raramente se corresponde pelo correio. Há alguns anos, contudo, ela morou em Penge e alugou quartos de sua

casa para três estudantes de Medicina, que precisou mandar embora por serem barulhentos e de hábitos estranhos. A

polícia acredita que esse ultraje, portanto, tenha sido efetua-do pelos jovens, que desejavam se vingar por terem sido

expulsos pela locadora. Assim, esperavam assustá-la

enviando-lhe artefatos da sala de dissecação. Essa teoria é provável porque um dos estudantes é originário do norte da

Irlanda, possivelmente, acredita a srta. Cushing, de Belfast. De qualquer forma, o caso está sendo investigado, sendo que

o responsável é o sr. Lestrade, um dos mais ativos detetives

da nossa polícia". - É tudo o que diz o Daily Chronicle - disse Holmes,

quando terminei de ler. - Quanto a nosso amigo Lestrade, recebi um bilhete seu esta manhã, no qual diz: "Acho que

este caso pode lhe interessar. Esperamos esclarecer tudo, mas não sabemos por onde começar. É claro que já

telegrafamos ao correio de Belfast, mas muitos pacotes

foram despachados naquele dia, de modo que não podem identificar aquele nem seu remetente. A caixa em questão é

de fumo para cachimbo e não nos ajuda em nada. A teoria sobre os estudantes de Medicina ainda me parece a mais

provável, mas, se você tiver algum tempo livre, gostaria que

viesse até aqui. Estarei em casa ou na delegacia o dia todo". O que me diz, Watson? Consegue enfrentar o calor e me

acompanhar até Croydon para, talvez, registrar mais um caso em seus anais?

- Eu queria mesmo alguma coisa para fazer.

- Então, aí está. Mande o criado trazer nossos sapatos e diga-lhe para chamar um cabriolé. Volto num instante, só

preciso me trocar e encher a cigarreira. Caiu uma pancada de chuva enquanto seguíamos no trem e

o calor estava muito menos infernal em Croydon do que na cidade. Holmes enviara um telegrama avisando que iríamos,

de modo que Lestrade, nervoso, enérgico e cara de fuinha

como nunca, estava nos esperando na estação. Uma caminhada de cinco minutos nos levou à rua Cross, onde

morava a srta. Cushing. Era uma rua comprida, com sobrados de tijolo aparente e

escadas de pedra branca. Havia pequenos grupos de

mulheres de avental fofocando nas portas. Tínhamos descido metade da rua quando Lestrade parou e bateu numa porta,

que foi aberta por uma criada baixinha. A srta. Cushing estava sentada na sala a que fomos levados. Era uma mulher

de olhos grandes e bondosos, com cabelo grisalho caindo sobre as têmporas. Estava trabalhando num bordado e a seu

lado, sobre uma banqueta, jazia uma cesta com linhas de

seda de diversas cores.

- Aquelas coisas horríveis estão no depósito, lá fora - ela disse, ao ver Lestrade. - Gostaria que o senhor as levasse

embora.

- É o que farei, srta. Cushing. Só as deixei aqui para que meu amigo, o sr. Holmes, pudesse vê-las na sua presença.

- Por que na minha presença? - Para o caso de ele querer lhe fazer alguma pergunta.

- De que adianta me fazerem perguntas, se já lhes disse que

não sei nada sobre isso? - É o que acho, minha senhora - disse Holmes, com voz

tranqüila. - Sei que já se aborreceu demais com esse assunto. - O senhor não imagina como! Sou uma mulher tranqüila,

que leva uma vida retirada. E novidade para mim ver meu nome nos jornais e encontrar policiais em casa. Não quero

essas coisas aqui dentro, sr. Lestrade. Se quiserem vê-las,

terão de ir ao depósito. O depósito era um barracão no estreito jardim atrás da casa.

Lestrade entrou e voltou com uma caixa amarela de papelão, um pedaço de papel pardo e barbante. Havia um banco no

jardim, onde nos sentamos enquanto Holmes examinava,

um a um, os artigos que Lestrade lhe entregara. - O barbante é muito interessante - disse Holmes,

erguendo-o contra a luz e cheirando-o. - O que ele lhe diz, Lestrade?

- Passaram alcatrão nele. - Exato. Trata-se de um barbante com alcatrão. Você

também percebeu, sem dúvida, que a srta. Cushing cortou-o

com uma tesoura, o que pode ser comprovado pelas pontas esfiapadas. Isso é importante.

- Não vejo a importância - disse Lestrade. - A importância está no fato de o nó ter ficado intato.

Trata-se de um nó especial.

- Está muito bem amarrado. Já havia anotado isso disse Lestrade, com ar complacente.

- Chega de barbante, então disse Holmes, sorrindo. Vamos ver o papel de embrulho. Pardo, com cheiro distinto de café.

O quê, não sentiu? Não há dúvida. O endereço foi anotado

com garranchos: "Srta. S. Cushing, R. Cross, Croydon". Foi escrito com caneta de ponta grossa, provavelmente uma J,

com tinta de baixa qualidade. A palavra Croydon foi primeiro escrita com "i", que depois corrigiram para "y". O

pacote foi sobrescrito por um homem, a letra é claramente masculina. Ele é pouco instruído e não conhece a cidade de

Croydon. Até aqui, vamos bem! A caixa é uma embalagem

de meia libra de fumo para cachimbo, com nada de interessante a não ser duas marcas de polegar no canto

inferior esquerdo. Está cheia de sal grosso, do tipo usado para conservar peles e outros artigos desse tipo. Imerso nele

estavam estas duas coisas interessantes.

Enquanto falava, Holmes pegou as orelhas e depositou-as sobre uma tábua que colocara sobre os joelhos, examinando-

as minuciosamente enquanto Lestrade e eu, um de cada lado, nos aproximamos para ver aqueles itens macabros e

observar o rosto atento e pensativo de nosso amigo. Finalmente, ele devolveu as orelhas à caixa e permaneceu

pensativo.

Você percebeu, Lestrade, é claro, que as orelhas são diferentes.

- Percebi, mas, se for alguma piada de estudante de Medicina, não seria difícil para ele conseguir orelhas nas

aulas de Anatomia.

- Exatamente. Isso, porém, não é uma piada. - Tem certeza?

- As evidências estão contra essa hipótese. Corpos em aulas de Anatomia são conservados com um fluido do qual essas

orelhas não apresentam nenhum traço. Além do mais, foram

cortadas há pouco tempo, com instrumento pouco afiado, o que não seria o caso se fosse feito por um estudante de

Medicina. Também, existem vários conservantes que seriam usados por uma pessoa da área de Saúde e nenhum deles

seria sal grosso. Repito que isto não se trata de nenhuma piada. Estamos investigando um crime sério.

Aquelas palavras e o rosto endurecido de meu amigo fizeram

um calafrio me percorrer a espinha. Esse aperitivo revoltante prometia mais horrores estranhos por vir.

Contudo Lestrade balançou a cabeça, como se não estivesse totalmente convencido.

- Sem dúvida que a teoria da piada tem objeções ele disse.

Mas há outras, mais fortes, contra a idéia de crime. Sabemos que essa mulher levou uma vida sossegada e respeitável em

Penge e aqui nesses últimos vinte anos. Ela quase não saiu de casa durante todo esse tempo. Por que então algum

criminoso lhe enviaria provas de sua culpa, principalmente se sabe tanto do que se trata quanto nós, a menos que seja

uma grande atriz?

Esse é o problema que precisamos resolver Holmes respon-deu. - De minha parte, vou começar assumindo que meu

raciocínio está correto e que um duplo homicídio foi cometido. Uma dessas orelhas é pequena, de mulher, com

furo de brinco. A outra é de homem, bronzeada, desbotada e

também com furo de brinco. Essas duas pessoas estão mortas, ou já teríamos ouvido falar nelas. Hoje é sexta-feira.

O pacote foi enviado na manhã de quinta. Então a tragédia aconteceu na quarta ou na terça. Ou antes, ainda. Se essas

pessoas foram assassinadas, por que o assassino enviaria

provas de seu trabalho para a srta. Cushing? Podemos assumir que o remetente é o homem que procuramos. Mas

ele precisaria ter razões fortes para enviar-lhe esse pacote. Quais seriam, portanto? Informar-lhe que o crime fora

realizado, ou então fazê-la sofrer. Nesse caso ela saberia do que se trata. Será que ela sabe? Se soubesse, por que

chamaria a polícia? Poderia ter enterrado as orelhas e

ninguém ficaria sabendo de nada. Isso é o que faria se desejasse proteger o criminoso. Entretanto, se não quisesse

protegê-lo, saberia nos dizer seu nome. Esse é o nó que precisa ser desfeito.

Holmes estivera falando alto e muito rápido, olhando

vagamente para a cerca do jardim. Então de repente ele se levantou e se encaminhou para a casa.

- Preciso fazer umas perguntas à srta. Cushing ele disse. - Nesse caso vou deixá-lo - disse Lestrade pois tenho outros

assuntos para tratar. Acho que a srta. Cushing não lhe dará nenhuma informação que eu já não tenha. Estarei na

delegacia.

- Passaremos por lá a caminho da estação respondeu Holmes.

Logo depois, estávamos de volta àquela sala, onde a impassível

senhora continuava seu bordado. Ao entrarmos, ela o

colocou sobre as pernas e nos encarou com seus curiosos olhos azuis.

Estou convencida, meu senhor - ela disse de que tudo isso é um engano, e que o pacote não era para mim. Eu repeti isso

diversas vezes para aquele cavalheiro da Scotland Yard, mas

ele simplesmente riu de mim. Pelo que sei, não tenho inimigos neste mundo. Por que, então, alguém me passaria

esse trote? - Estou chegando a essa conclusão, srta. Cushing disse

Holmes, sentando-se a seu lado. - Acho que é mais provável... - parou de falar, e fiquei surpreso ao ver que ele

observava intensamente o perfil da mulher. Seu rosto

ansioso demonstrava surpresa e satisfação, embora tenha reassumido sua expressão normal quando a mulher olhou

para ele, estranhando seu silêncio. Então foi a minha vez de olhá-la fixamente, analisando seu cabelo grisalho, a touca

enfeitada e os brinquinhos dourados. Mas não consegui

enxergar nada que pudesse explicar a agitação do meu amigo.

Só preciso lhe fazer algumas perguntas... - Ah, estou cansada de perguntas! - ela interrompeu,

impaciente. A senhora tem duas irmãs, pelo que parece.

- Como sabe disso?

- No momento em que entrei na sala reparei naquela foto, sobre a lareira. Uma delas é, sem dúvida, a senhora. As

outras duas se parecem tanto consigo que só podem ser suas parentes.

Tem razão. São minhas irmãs, Sarah e Mary.

E aqui, ao meu lado, há outro retrato apenas de sua irmã mais nova, Mary, tirado em Liverpool, na companhia de um

homem que parece ser um marinheiro, pelo uniforme. Vejo que ela estava solteira, na época.

É muito bom observador!

- Essa é a minha profissão. Bem, está certo mais uma vez. Ela se casou dias depois com o

sr. Browner. Quando essa foto foi tirada, ele trabalhava na linha para a América do Sul. Ele gostava tanto de minha

irmã que não conseguia ficar no mar tanto tempo. Então se transferiu para os barcos de Liverpool e Londres.

- Ah, no Conqueror, talvez?

Na verdade, não. Estava no May Day, da última vez que soube. James veio me visitar nesta casa, uma vez. Isso foi

antes de ele quebrar a promessa. Depois, bastava desembarcar para começar a beber, o que o transformava

num louco violento. Ah! Foi uma pena ele ter voltado a

beber. Primeiro ele parou de me visitar. Depois brigou com Sarah e, agora que Mary parou de me escrever, não sei como

estão as coisas entre eles. Estava claro que a srta. Cushing falava de um assunto que

lhe doía profundamente. Como a maioria das pessoas que leva uma vida solitária, ela estava retraída a princípio, mas

logo tornou-se muito comunicativa. Contou-nos detalhes de

seu cunhado marinheiro; depois, mudando de assunto para seus antigos inquilinos, os estudantes de Medicina, fez uma

longa lista das travessuras deles, citando seus nomes e os hospitais em que as praticavam. Holmes ouvia a tudo

atentamente, fazendo perguntas de vez em quando.

- Quanto à sua outra irmã, Sarali disse ele, pergunto-me por que não moram juntas, já que são solteiras.

Ah! O senhor não conhece o gênio de Sarah! No contrário não teria essa dúvida. Tentei morar com ela quando vim

para Croydon. Insistimos até cerca de dois meses atrás,

quando tivemos de nos separar. Não quero falar da minha irmã, mas Sarah sempre foi intrometida e difícil de agradar.

A senhora me disse que ela brigou com os parentes de Liverpool.

Exato, e eram ótimos amigos naquela época. Ora, ela foi morar lá só para estar perto deles. E agora não fala com

James Browner. Nos últimos seis meses que morou aqui, ela

não falava de outra coisa a não ser sobre as bebedeiras e os modos dele. Acho que Sarah se intrometeu na vida dos dois,

por isso James reagiu dizendo tudo o que achava sobre ela. Talvez isso tenha sido o começo de tudo.

- Obrigado, srta. Cushing disse Holmes, levantando-se e

fazendo uma reverência. - Disse que sua irmã Sarah mora na rua Nova, em Wallington? Obrigado, e sinto que tenha se

aborrecido com um caso, como diz, que não lhe diz respeito. Um carro estava passando quando saímos à rua e Holmes

acenou para ele. - Qual a distância até Wallington? - ele perguntou.

Cerca de um quilômetro e meio respondeu o condutor.

- Muito bem. Suba, Watson. Precisamos agir rápido. Ainda que o caso seja muito simples, apresenta alguns detalhes

instrutivos. Condutor, no caminho, pare na agência de telégrafo.

Holmes enviou um telegrama curto e, durante o resto do

percurso, ficou reclinado com o chapéu sobre o rosto, para se proteger do sol. O cocheiro parou junto a uma casa não

muito diferente da que estivéramos há pouco. Meu amigo pediu-lhe para esperar e bateu na porta, que foi aberta por

um jovem senhor vestido de preto c usando um chapéu

muito brilhante. - A srta. Sarah Cushing está? perguntou Holmes.

- A srta. Sarah Cushing está muito doente ele respondeu. Desde ontem apresenta problemas cerebrais seriíssimos.

Como seu conselheiro médico, não posso permitir que receba visitas. Recomendo que volte dentro de dez dias.

O jovem vestiu suas luvas e partiu.

Bem, já que não podemos, não podemos disse Holmes, despreocupado.

-Talvez ela não pudesse, ou não quisesse, lhe ajudar. - Não esperava que ela me dissesse algo. Só queria vê-la.

Mas acho que consegui o que queria. Leve-nos a um bom

hotel, condutor; um lugar onde possamos almoçar. Depois visitaremos nosso amigo Lestrade na delegacia.

Nosso almoço foi bem agradável. Durante a refeição, Holmes só falou de violinos e contou, exultante, como adquiriu seu

Stradivarius, que valia pelo menos quinhentos guinéus, numa loja de penhores, por cinqüenta e cinco xelins. Daí

para Paganini foi um pulo. Ficamos uma hora diante de uma

garrafa de vinho enquanto Holmes me contava anedota após anedota sobre a vida desse homem extraordinário.

Já estava entardecendo e a luz quente do sol se transformara em brilho suave, quando chegamos à delegacia. Lestrade

esperava por nós à porta.

-Telegrama para você, Holmes - ele anunciou. - Ah! É a resposta ele abriu o papel e percorreu-o

rapidamente com os olhos. Depois dobrou-o e enfiou-o no bolso. - Está tudo bem - ele disse.

- Descobriu algo? - perguntou Lestrade.

- Descobri tudo! Quê! Lestrade ficou olhando fixamente para Holmes,

estupefato. - Está brincando comigo. Nunca falei mais sério. Um crime chocante foi cometido e

penso ter descoberto todos os detalhes relacionados a ele. - E o criminoso?

Holmes rabiscou algumas palavras no verso de um de seus

cartões de visita e entregou-o a Lestrade. Aí está. Não poderá prendê-lo até amanhã à noite, no

mínimo. Prefiro que você, de modo algum, relacione meu nome ao crime, pois gosto de ser associado apenas aos casos

que apresentam alguma dificuldade na sua solução. Vamos

embora, Watson. Fomos caminhando até a estação de trem, deixando

Lestrade, que, admirado, ficou analisando o cartão que Holmes lhe entregara.

O caso começou Sherlock I lolmes, enquanto fumávamos charuto, já de volta a nosso apartamento na rua Baker - é do

tipo que precisamos investigar retroativamente, dos efeitos

para suas causas, como aqueles que você transformou em livro: Um Estudo em Vermelho e O Signo dos Quatro.

Escrevi a Lestrade pedindo-lhe que nos forneça os detalhes que ainda faltam e que só poderemos saber depois de

prender o assassino. Podemos ficar tranqüilos quanto a ele

realizar a prisão, pois é tenaz como um buldogue quando compreende o que deve fazer. Foi essa tenacidade, na

verdade, que o fez subir na Scotland Yard. - Então sua investigação não está completa? perguntei.

- Está completa no que é essencial. Sabemos quem é o autor

desse crime revoltante, embora desconheçamos uma das vítimas. Mas é claro que você já tirou suas próprias

conclusões. Presumo que James Browner, marinheiro num barco de

Liverpool, é o suspeito. - Ah, ele é mais que um suspeito.

- Mesmo assim, só consigo ver indícios muito vagos.

- Pelo contrário, tudo está muito definido para mim. Deixe-me rever os principais fatos. Ingressamos no caso sem

qualquer idéia preconcebida, o que é sempre uma vantagem. Assim não temos teorias que nos atrapalhem. Simplesmente

fomos até lá para observar e fazer inferências a partir de

nossas observações. O que vimos em primeiro lugar? Uma senhora reservada e respeitável, que parecia inocente e não

procura esconder nada. Havia, ainda, um retrato que mostrava ter ela duas irmãs mais novas. Naquele momento,

ocorreu- me que a caixa poderia ter sido enviada para uma delas. Então vimos o singular conteúdo daquela caixinha

amarela.

"O cordel era do tipo usado no velame dos navios, o que nos fez perceber imediatamente o cheiro de maresia no crime.

Quando percebi que o nó usado é comum entre marinheiros, que o pacote fora remetido de um porto e que a

orelha masculina tinha um furo de brinco, o que é mais

comum entre homens do mar que de terra, fui tomado pela certeza de que os atores dessa tragédia seriam encontrados

em atividades relacionadas ao mar e à navegação. "Quando examinei o endereço no pacote, vi que era

destinado à srta. S. Cushing. A irmã mais velha poderia ser,

é claro, a srta. Cushing. E, embora sua inicial seja S, essa poderia ser, também, a inicial de uma das outras irmãs.

Portanto, voltei a casa para esclarecer isso com a srta. Cushing. Eu estava para dizer a ela que acreditava ser tudo

um engano, quando você se lembra que emudeci. Algo que vi, naquele momento, surpreendeu-me totalmente e

estreitou tremendamente nosso campo investigativo.

"Como médico. Watson, você deve saber que não existe parte do corpo humano que apresente mais variações que a

orelha. Cada orelha é única e difere de todas as outras. No

Caderno Antropológico do ano passado você encontrará duas

monografias minhas sobre o assunto. Portanto, examinei as

orelhas da caixa como um perito, observando cuidadosamente suas características anatômicas. Imagine

minha surpresa quando, ao olhar para a srta. Cushing, percebi que sua orelha correspondia exatamente à orelha

feminina que eu acabara de examinar. Obviamente que aquilo não se tratava de coincidência. Lá estavam o

encurtamento da aurícula, a curva larga do lóbulo superior,

a mesma convolução da cartilagem interna. Na essência, tratava-se da mesma orelha.

"É claro que logo vi a importância dessa observação. A vítima era parente da srta. Cushing e, provavelmente,

parente próxima. Comecei a falar com ela sobre sua família

e, você se lembra, obtive detalhes muito valiosos. "Em primeiro lugar, o nome da irmã é Sarah e, até

recentemente, o endereço dela era aquele. Assim, ficou bastante óbvio como aconteceu o engano e para quem era o

pacote. Depois soubemos desse marinheiro, casado com a

terceira irmã, que se tornou tão amigo da srta. Sarah que esta foi morar com os Browners, embora uma briga os tenha

afastado depois. Essa briga interrompeu a comunicação entre eles durante alguns meses, de modo que se Browner quisesse

enviar alguma correspondência para a srta. Sarah, ele teria, sem dúvida, enviado para seu endereço antigo.

"Dessa forma, o caso começou a se mostrar de forma mara-

vilhosamente clara. Soubemos da existência desse marinheiro, um homem impulsivo, de atitudes apaixonadas

- lembre-se de como ele abandonou um posto muito superior para ficar próximo à mulher , e sujeito a bebedeiras

ocasionais. Temos razões para acreditar que sua mulher foi

assassinada, e que um homem, provavelmente um marinheiro, também, foi morto na mesma ocasião. E claro

que tudo isso sugere que o motivo do crime foi ciúme. E por que as provas do duplo assassinato seriam enviadas para a

srta. Sarah Cushing? Provavelmente porque durante o tem-po em que residiu em Liverpool ela participou dos fatos que

acabaram desembocando nesta tragédia. Repare que a linha

em que Browner trabalha atende os portos de Belfast, Dublin e Waterford. Presumindo-se que ele tenha cometido

o crime e embarcado em seguida, Belfast seria o primeiro lugar onde poderia postar o horrendo pacote.

"Nesse estágio, havia uma segunda solução possível, embora

eu a julgasse muito improvável. Mesmo assim, quis elucidá-la antes de prosseguir. Um amante rejeitado poderia ter

matado o sr. e a sra. Browner, e a orelha masculina pertenceria ao marido. Havia sérias objeções a essa teoria,

mas era possível. Portanto enviei um telegrama ao meu

amigo Algar, da polícia de Liverpool, e pedi-lhe que des-cobrisse se a sra. Browner estava em casa e se o sr. Browner

embarcara no May Day. Depois disso nós dois fomos até Wallington visitar a srta. Sarah.

"A princípio, eu estava curioso para ver como os traços familiares se reproduziam em sua orelha. É claro que,

também, ela poderia nos fornecer informações

importantíssimas, embora eu duvidasse disso. Ela deve ter ouvido falar no caso no dia anterior, pois toda Croydon não

falava de outra coisa, e entendeu imediatamente para quem aquele pacote estava, na verdade, endereçado. Se ela

quisesse colaborar com a Justiça, já teria se comunicado com

a polícia. De qualquer modo, era nosso dever falar com ela, e lá fomos nós. Descobrimos que a notícia sobre a chegada do

pacote provocou-lhe forte febre emocional - pois sua doença data do dia em que os jornais noticiaram o caso. Assim, ficou

mais do que claro que ela entendeu completamente o que aquilo significava e também que teríamos de esperar para

conseguir qualquer ajuda dela.

"Contudo, não dependíamos disso para prosseguir. Nossas respostas estavam esperando na delegacia de polícia, para

onde tinha pedido a Algar que as enviasse. Elas foram conclusivas. A casa da sra. Browner estava fechada há mais

de três dias, e os vizinhos achavam que ela viajara para o sul

para visitar parentes. Algar também confirmou, no escritório de navegação, que Browner embarcou no May

Day, que deve estar entrando no rio Tâmisa amanhã à noite. Quando chegar, ele vai encontrar o obtuso mas decidido

Lestrade, e estou certo de que, então, saberemos dos

detalhes que faltam." A expectativa de Sherlock Holmes foi correspondida. Dois

dias depois, ele recebeu um volumoso envelope, contendo uma carta do detetive e diversas páginas datilografadas.

Meu caro Holmes,

De acordo com o esquema que propusemos para testar

nossas teorias... - O "nossas" está bem empregado aqui, hein, Watson?

comentou Holmes. "...fui até o cais Albert", a carta continuava, "ontem às dezoi-

to horas e subi a bordo do SS May Day. pertencente à

Companhia de Vapores Liverpool. Dublin e Londres. Ao perguntar, descobri que havia, a bordo, um marinheiro

chamado James Browner, que se comportara dc forma tão inusitada durante a viagem que o capitão precisou dispensá-

lo de seus deveres. Ao descer até seus aposentos, encontrei-o sentado sobre um baú com a cabeça apoiada nas mãos,

balançando-se para a frente e para trás. Trata-se de um

sujeito grande, forte e de pele bronzeada - parecido com Aldridge, que nos ajudou no caso da lavanderia falsa.

Quando lhe disse por que estava lá, ele se ergueu de um pulo, o que me fez usar o apito para chamar dois guardas do

rio que estavam por perto. Entretanto Browner estava muito

deprimido, e estendeu calmamente os punhos para ser algemado. Trouxemos o homem para a delegacia, bem como

seu baú, pois poderia haver nele alguma prova. No entanto, exceto uma faca grande, do tipo que todo marinheiro usa,

não encontramos mais nada. Contudo logo vimos que

nenhuma evidência seria necessária, pois ao chegar na delegacia Browner pediu para confessar. Nosso estenógrafo

anotou seu depoimento, do qual fizemos três cópias datilografadas. Uma delas está anexada a esta carta. O caso se

provou, como eu sempre pensei, extremamente simples. Contudo agradeço-lhe por ajudar em minhas investigações.

Atenciosamente, G. Lestrade.

Hum! A investigação era realmente muito simples - disse

Holmes, mas não acredito que ele tinha percebido isso quando nos chamou. Vamos ver, porém, o que James

Browner tem para dizer. Este é seu depoimento, prestado ao

inspetor Montgomery, na Delegacia de Polícia de Shadwell, e tem a vantagem de reproduzir fielmente suas palavras.

"Tenho algo a dizer? Sim, tenho muito o que dizer. Preciso desabafar tudo isso. Vocês podem me enforcar ou me deixar

em paz. Não dou a mínima para o que vão fazer. Não consigo mais dormir, desde que fiz o que fiz, e não acho que

conseguirei até passar desta para melhor. Às vezes é o rosto

dele, mas normalmente é o rosto dela. Nunca estou sem um ou outro diante de mim. Ele me olha com a cara fechada e

ameaçadora, mas ela parece surpresa. Ah, coitadinha, deve ter ficado surpresa ao ver a morte num rosto que antes só

mostrava amor.

"Foi tudo culpa de Sarah, e que a praga deste condenado faça com que adoeça e que o sangue lhe apodreça nas veias! Não

é que eu queira me livrar. Sei que voltei a beber, a besta que sempre fui. Mas ela teria me perdoado, teria ficado ao meu

lado se não fosse aquela mulher maldita que apareceu na

nossa porta. Sarah Cushing me amava; isso foi a causa de tudo. Ela me amava, e todo o seu amor se transformou em

veneno raivoso quando percebeu que eu apreciava mais uma pegada de minha mulher na lama do que ela de corpo e

alma. "Eram três, as irmãs. A mais velha é apenas uma boa mulher.

A segunda é o diabo, e a terceira era um anjo. Sarah tinha

trinta e três, e Mary, vinte e nove quando nos casamos. Nossa felicidade era plena, desde que começamos a vida de

casados. Em toda Liverpool não havia mulher melhor que a minha Mary. Então convidamos Sarah para passar uma

semana conosco. A semana se transformou em mês, uma

coisa levou à outra e ela estava fazendo parte de nossa vida. "Na época eu tinha parado de beber, estávamos

economizando dinheiro e tudo ia bem. Meu Deus, como eu poderia pensar que chegaria a isto? Quem teria sonhado com

isso? "Freqüentemente, eu ficava em casa nos fins dc semana. Às

vezes, se o navio ficasse retido para ser carregado, eu passava

a semana inteira em Liverpool, de modo que via com freqüência a minha cunhada, Sarah. Era uma mulher bonita,

morena, inteligente e decidida, com uma postura orgulhosa e um brilho encantador no olhar. Mas, juro por Deus, com a

pequena Mary por perto eu nem pensava em Sarah.

"Às vezes eu tinha a impressão de que ela gostava de ficar a sós comigo, ou de sair para passear, mas nunca imaginei

nada. Certa noite, contudo, caí em mim. Cheguei de viagem e minha mulher não estava em casa. Sarah estava. 'Onde está

Mary?', perguntei. 'Ah, foi pagar algumas contas."

Impaciente, comecei a andar pela sala. 'Será que não consegue ficar feliz por cinco minutos sem Mary, James?',

ela perguntou. 'Não é muito elogioso, para mim, saber que você não se contenta com minha companhia nem por tão

pouco tempo.' 'Está tudo bem, garota', eu disse, acenando com minha mão de modo gentil. Mas Sarah pegou-a entre as

suas, que estavam quentes como se ela tivesse febre. Olhei

em seus olhos e compreendi tudo. Ela não precisou falar nada, nem eu. Franzi o rosto e tirei a mão de entre as suas.

Então ela se aproximou e bateu no meu ombro. 'Bom e velho James', ela disse, rindo num tom de zombaria. Depois

saiu da sala.

"A partir de então Sarah começou a me odiar de paixão. E como ela sabe fazer isso! Fui um tolo em permitir que

continuasse conosco um grande tolo, mas nunca disse a Mary o que acontecera. Sabia que isso a magoaria. As coisas

continuaram mais ou menos como antes, mas Mary começou a mudar. Ela, que sempre fora confiante e

inocente, foi se tornando estranha e desconfiada. Queria

saber onde eu estivera e o que fizera, para quem eram minhas cartas e o que tinha nos bolsos, além de milhares de

outras bobagens. Dia após dia ela foi se tornando mais irritante c estranha. Brigávamos por nada e por tudo. Aquilo

me deixou confuso. Sarah me evitava, mas ela e Mary

tornaram-se inseparáveis. Agora vejo como ela estava armando e envenenando minha mulher contra mim, e fui

tão cego que na época não compreendi. Foi então que recomecei a beber, mas acho que não o teria feito se Mary

continuasse a mesma de sempre, l'or alguma razão ela

andava contrariada comigo e começamos a nos afastar. Então apareceu esse Alec Fairbairn. e as coisas ficaram

muito piores. "Primeiro ele apareceu em nossa casa para ver Sarah, mas

logo estava vindo visitar a todos, pois era um sujeito encantador, que fazia amigos onde quer que fosse. Rapaz

agradável, elegante e inteligente, já estivera em meio

mundo, e sabia contar bem suas histórias. Era boa companhia, não há como negar. Era educado demais para

um marinheiro, mas acho que já houve época em que ele viajou mais como passageiro do que como tripulante.

Durante um mês freqüentou diariamente minha casa, e

nunca imaginei que algum dano pudesse vir de suas maneiras gentis e bem-educadas. Finalmente. porém, algo

me fez suspeitar, e daquele dia em diante minha paz acabou. "Foi uma coisinha à toa. Cheguei em casa meio

inesperadamente e, ao cruzar a soleira, vi o rosto de minha esposa se iluminar de alegria. Contudo, quando viu quem

era, seu rosto murchou e ela se virou, parecendo

desapontada. Aquilo me bastou. Não havia outro modo de andar, a não ser o de Alec Fairbairn. que ela poderia con-

fundir com o meu. Se o tivesse visto naquele momento, eu o teria matado, pois enlouqueço quando fico furioso. Mary viu

o brilho maligno nos meus olhos, pois ela correu para mim e

me segurou pelo braço. 'Não, James, não!', ela disse. 'Onde está Sarah?', perguntei. 'Na cozinha', Mary respondeu.

'Sarah', eu disse, ao entrar, 'nunca mais quero ver esse Fairbairn na minha casa.' 'Por que não?', ela quis saber.

'Porque estou mandando.' 'Oh!, ela fez, 'se meus amigos não

são bem-vindos nesta casa, eu também não sou.' 'Faça o que quiser', eu disse, 'mas, se esse Fairbairn mostrar a cara por

aqui novamente, vou lhe mandar uma orelha dele como lembrança.' Acho que minha carranca a assustou, pois não

me respondeu e, na mesma noite, foi embora. "Bem, não sei se foi por pura maldade dessa mulher, ou se

ela pensou que poderia virar minha mulher contra mim,

encorajando-a a se portar indignamente. De qualquer modo, ela arrumou uma casa a apenas dois quarteirões e começou a

alugar os quartos para marinheiros. Fairbairn costumava se hospedar lá, e Mary, quando visitava a irmã, tomava chá

com ela e com o sujeito. Não sei quantas vezes ela foi, mas

um dia a segui e, quando irrompi pela porta, Fairbairn fugiu pulando o muro do jardim, numa atitude covarde digna do

gambá fedorento que ele era. Jurei para minha mulher que a mataria se a visse na companhia dele novamente e a levei de

volta para casa, chorosa e trêmula, branca como uma folha de papel. Já não havia amor entre nós. Percebi que ela me

odiava e me temia. Quando isso me fez voltar a beber, ela

passou a me desprezar.

"Bem, logo Sarah percebeu que não conseguiria sobreviver em Liverpool e voltou, se estou certo, para morar com a

irmã em Croydon. Em casa, as coisas voltaram quase ao

normal. Então na semana passada veio a desgraça. "Foi assim: embarquei no May Day para uma viagem de ida e

volta de sete dias. O barco, no entanto, apresentou problemas e tivemos de voltar ao porto, onde ficaríamos por

mais doze horas. Desembarquei e voltei para casa, pensando

na surpresa que minha esposa teria, e esperando que, em breve, ela voltaria a ficar feliz ao me ver. Estava com o

pensamento na cabeça quando entrei na minha rua. Passou por mim uma carruagem com Mary dentro. A seu lado

estava Fairbairn. Os dois conversavam e riam, sem repararem que eu estava na calçada, observando-os.

"Dou-lhes minha palavra que daquele momento em diante

eu já não respondia por mim mesmo. Quando penso no que aconteceu, tudo me parece um sonho confuso. Lu estivera

bebendo até tarde, e as duas coisas juntas viraram minha cabeça. Meu cérebro está latejando neste momento e sinto

como se fosse um martelo batendo dentro dele. Naquela

manhã, contudo, senti milhares de martelos. "Bem, eu sai correndo atrás da carruagem. Eu tinha um

pesado bastão de carvalho e, posso lhes dizer, já sabia que aquilo acabaria mal. Enquanto corria, comecei a me preparar

e me posicionei de modo que eles não conseguissem me ver. Logo pararam na estação de trem. Havia muita gente em

volta da bilheteria, assim pude me aproximar sem ser visto.

Eles compraram bilhetes para New Brighton. Fiz o mesmo, mas fiquei três vagões atrás deles. Ao chegar lá, passearam

pelo quebra-mar. Segui-os mantendo-me a uns cem metros. Por fim, vi-os alugar um barco. Estava um dia muito quente

e eles devem ter pensado que estaria mais fresco na água.

"Era como se eles estivessem se pondo em minhas mãos. Ha-via uma certa neblina e era impossível enxergar muito

longe. Também aluguei um barco e fui atrás deles. Podia vê-los ao longe, mas iam quase tão rápido quanto eu. Quando os

alcancei, estavam a cerca de mil e quinhentos metros da

costa. A neblina parecia uma cortina à nossa volta, isolando nós três do mundo. Meu Deus, será que conseguirei

esquecer o rosto deles, quando viram quem estava se aproximando? Ela gritou e ele xingou como um louco.

Tentou me acertar com o remo, pois deve ter visto a morte em meus olhos. Esquivei-me e deitei-lhe meu bastão, que

esmagou sua cabeça como um ovo. Eu a teria poupado,

talvez, apesar da minha loucura, mas ela o abraçou, chorando por ele e gritando 'Alec!'. Soltei novo golpe e ela

caiu ao lado dele. Eu parecia uma fera que sentira o gosto do sangue. Se Sarah estivesse lá, por Deus, faria companhia a

eles. Então puxei minha faca e... bem! Acho que já falei o

suficiente. Senti uma alegria selvagem ao pensar em como Sarah se sentiria ao receber aqueles sinais mostrando-lhe o

resultado de suas intrigas e fofocas. Em seguida, amarrei os corpos ao barco, fiz um buraco nele e fiquei lá, esperando-o

afundar. Imaginei que o proprietário pensaria que os dois tinham-se perdido no nevoeiro, indo parar em alto-mar.

Limpei-me, voltei para a terra e embarquei no May Day sem

que ninguém desconfiasse do que se passara. Naquela noite

preparei o pacote para Sarah Cushing, e no dia seguinte o despachei de Belfast.

"Essa é toda a verdade. Vocês podem me enforcar ou fazer o

que quiserem. Só não conseguirão me punir mais do que já fui punido. Não consigo fechar os olhos sem ver aqueles dois

rostos me encarando da mesma forma que encararam quando me viram surgir no meio do nevoeiro. Matei-os

rapidamente e eles estão me matando aos poucos. Mais uma

noite dessas e amanhecerei morto ou louco. Por favor, não me coloque sozinho numa cela. Por piedade, que Deus seja

bondoso com o senhor se me ajudar." - Qual o sentido disso tudo, Watson? - disse Holmes

solenemente, colocando os papéis de lado. Qual o sentido desse círculo de violência e medo? Deve haver um objetivo

nisso tudo, ou então nosso universo não faz nenhum

sentido, o que é inconcebível. Qual será o sentido? Essa é a grande questão, cuja resposta continua tão longe da

compreensão humana como sempre.

A TRAGÉDIA DO GLORIA SCOTT

Separei alguns papéis, Watson disse meu amigo, Sherlock Holmes, quando estávamos sentados diante da lareira, numa

noite de inverno, nos quais acredito que você gostaria de dar uma olhada. São documentos desse caso extraordinário do

Gloria Scott. Esta é a mensagem que aterrorizou o juiz de

paz Trevor.

Holmes tirou da gaveta um cilindro escurecido e, removendo a fita, me entregou um bilhete rabiscado em

meia folha de papel de embrulho grosseiro.

"A provisão de caça para Londres acabou", informava o bilhete. "O guarda Hudson, pelo visto, contou, mas não

tudo. Que ele fuja, faz sentido. Para podermos tentar salvar em tempo sua faisoa com vida."

Quando terminei de ler essa mensagem enigmática, vi

Holmes rindo da expressão em meu rosto. Você parece um pouco confuso ele disse.

Não entendo como essa mensagem pode aterrorizar alguém. Ela me parece mais esquisita que outra coisa.

Pode ser. O fato é que o leitor, um homem saudável e robusto, foi abatido por ela, como se tivesse levado uma

coronhada.

Isso está ficando interessante eu disse. Por que você disse que havia razões específicas para eu estudar esse caso?

Porque foi o primeiro de todos em que eu trabalhei. Diversas vezes tentei fazer meu amigo contar o que, pela

primeira vez, fez com que se dedicasse à criminologia, mas

nunca o encontrei disposto. Agora estava sentado diante da lareira com os documentos sobre os joelhos. Então ele

acendeu o cachimbo e ficou fumando e revirando os papéis. Nunca me ouviu falar de Victor Trevor? - perguntou

Holmes. - Ele foi o único amigo que fiz durante os dois anos em que freqüentei a faculdade. Nunca fui um sujeito muito

sociável, Watson. Sempre preferi ficar no meu quarto,

refletindo sobre meus métodos de raciocínio. Assim, nunca me misturei com os colegas da minha turma.

Além de esgrima e boxe, não gostava de esportes, e minha linha de estudos era tão diferente da de meus colegas que

não tínhamos pontos de contato. Trevor foi o único sujeito

que conheci, e ainda assim porque seu bull-terrier mordeu meu calcanhar quando eu estava indo para a capela. Foi um

jeito meio bobo de começar uma amizade, mas funcionou. Tive de ficar deitado, com os pés para cima, por dez dias, e

Trevor vinha me visitar. No começo ele ficava apenas um

minuto, mas depois suas visitas começaram a se estender e antes do final do semestre já éramos amigos. Era um sujeito

caloroso, bem disposto e bem-humorado, o oposto de mim em vários aspectos. Tínhamos, porém, alguns pontos em

comum. Contudo o que nos aproximou mesmo foi eu saber que ele, como eu não tinha amigos. Finalmente, ele me

convidou para ir à propriedade de seu pai em Donnithorpe,

em Norfolk. Eu aceitei e fiquei lá um mês, durante as férias de verão.

"O velho Trevor era um homem de evidente riqueza e prestígio. Era juiz de paz, além de proprietário de terras.

Donnithorpe é um vilarejo ao norte de Langmere, na região

de Broads. A casa era antiga e grande, com colunas de carvalho e tijolos aparentes. Uma bela alameda de tílias

levava até a entrada. A lagoa era excelente para pescaria e caça de patos selvagens. Havia, na casa, uma biblioteca

pequena, mas de qualidade, pelo que entendi comprada do antigo morador. Além disso, a cozinheira era boa. Assim,

seria preciso ser muito rabugento para não se passar um mês

agradável naquela propriedade.

"O velho Trevor era viúvo, e meu amigo, seu único filho. Ele tinha uma filha, mas soube que ela morreu de difteria numa

visita a Birmingham. O pai era um sujeito muito

interessante. Não era muito culto, mas possuía uma força bruta impressionante, tanto física quanto mental. Quase não

lera nenhum livro, mas viajara muito, visitara grande parte do mundo e se lembrava de tudo o que aprendera. Era

corpulento, tinha os cabelos grisalhos e o rosto curtido pelo

tempo, com olhos azuis tão agudos que eram quase agressivos. Ainda assim tinha reputação de bondoso e

caridoso na região, e era conhecido pela suavidade de suas sentenças no tribunal.

"Em determinada noite, pouco depois que cheguei, estávamos tomando vinho do porto após o jantar quando o

jovem Trevor começou a falar sobre os hábitos de

observação e inferência que eu transformara num sistema, embora ainda não soubesse o papel que representariam na

minha vida. O velho, evidentemente, pensou que seu filho estava exagerando na descrição de uma ou duas façanhas que

eu desempenhara.

'Vamos lá. sr. Holmes', ele disse, rindo-se a valer. 'Sou um ótimo tipo para se estudar. Se puder deduzir algo de mim...'

'Receio que não haja muito', respondi. 'No entanto posso sugerir que o senhor tem estado temeroso de sofrer algum

ataque pessoal nos últimos doze meses.' "O sorriso sumiu dos lábios de meu anfitrião, que me olhou

muito surpreso."

'Ora, é verdade', ele disse. 'Desde que desfizemos aquela quadrilha de ladrões de caça, eles têm ameaçado nos

esfaquear. E Sir Edward lloby realmente foi atacado. Desde então tenho mantido a guarda, embora não saiba como você

descobriu isso.'

'O senhor tem uma bonita bengala', respondi. 'Pela inscrição, percebi que a possui há menos de um ano. Mas o

senhor teve o trabalho de retirar o castão e despejar chumbo derretido no buraco, transformando-a numa arma. Imaginei

que não teria feito isso se não temesse algo.'

'Que mais?', perguntou, sorrindo. 'Lutou muito boxe na juventude.'

'Certo mais uma vez. Como descobriu? Meu nariz está um pouco fora do lugar?'

'Não', eu disse. 'São suas orelhas. Elas estão achatadas e grossas, o que é característica de boxeadores.'

'E o que mais?'

'Por seus calos posso dizer que cavou bastante.' 'Fiz minha fortuna nas minas de ouro.'

'Esteve na Nova Zelândia.' 'Certo de novo.'

'E no Japão.'

'Correto.' 'E foi muito amigo de alguém cujas iniciais eram J. A., de

quem agora quer se esquecer completamente.' "O Sr. Trevor ergueu-se lentamente, encarando-me de modo

estranho com seus grandes olhos azuis. Então caiu para a frente, desmaiando com o rosto entre as cascas de nozes que

jaziam sobre a toalha de mesa."

- Você pode imaginar. Watson, como eu e o filho dele ficamos chocados. Mas o ataque não durou muito. Foi

suficiente e abrirmos seu colarinho e respingarmos água em seu rosto para que ele desse umas duas tossidas e se sentasse.

'Ah, garotos!', ele disse, forçando um sorriso. 'Espero não ter

assustado vocês. Ainda que eu pareça forte, meu coração tem suas fraquezas, e não precisa muito para me derrubar.

Não sei como faz isso. Holmes, mas me parece que todos os detetives, de verdade ou de ficção, são aprendizes perto de

você. Isso é o que fará na vida, meu amigo, e pode acreditar

na palavra de um homem que conhece o mundo.' - É aquela recomendação, Watson, acompanhada da

apreciação exagerada da minha habilidade, foi o que me fez pensar, pela primeira vez, que uma profissão poderia surgir

daquilo que até então eu considerava apenas um passatempo. Naquele momento, contudo, eu estava muito

preocupado com aquele ataque repentino do meu anfitrião

para continuar pensando no assunto. 'Espero não ter dito nada que lhe perturbe', eu disse ao sr.

Trevor. 'Bem, com certeza você tocou num assunto delicado. Posso

perguntar como ficou sabendo? E até onde sabe?', ele

procurava falar de modo casual, mas o terror se escondia no fundo dos seus olhos.

'Na verdade foi muito simples', eu disse. 'Quando arregaçou as mangas para puxar aquele peixe para o barco, vi que as

iniciais J. A. haviam sido tatuadas na dobra do cotovelo. As letras ainda estavam visíveis, embora fosse claro, por sua

aparência borrada, que o senhor tentara apagá-las. Ficou

claro para mim, portanto, que essas iniciais já lhe foram

muito próximas, mas que depois o senhor desejou esquecê-las.'

'Que olho você tem!', ele exclamou, com um suspiro de

alívio. 'E exatamente isso, mas vamos mudar de assunto. De todos os fantasmas, os de amores antigos são os piores.

Vamos para a sala de jogos fumar um charuto.' "Daquele dia em diante, embora permanecesse muito

cordial, havia sempre um toque de suspeita no sr. Trevor em

relação a mim. Até seu filho reparou nisso. 'Você desconcertou meu pai de tal forma', ele disse, 'que ele

nunca mais terá certeza do que você realmente sabe.' "O velho não queria demonstrar isso, tenho certeza. Mas era

algo que o incomodava tanto que a desconfiança aparecia em tudo o que fazia. Afinal, convencido de que minha

presença o estava incomodando, resolvi encerrar minha

visita. No dia em que tomei essa decisão, contudo, ocorreu um incidente que acabou, mais tarde, se mostrando

importante. "Estávamos os três sentados em cadeiras de jardim, no

gramado, tomando um pouco de sol e admirando a vista de

Broads, quando a empregada veio dizer que havia um homem na porta e que ele desejava ver o sr. Trevor.

'Qual é o nome dele?', perguntou meu anfitrião. 'Ele não disse.'

'O que quer, então?' 'Ele disse que o senhor o conhece e que quer somente um

minuto de sua atenção.'

'Traga-o aqui, então.'

"Um instante depois apareceu um sujeito estranho, de aparência servil e andar bamboleante. Vestia uma jaqueta

aberta, com mancha de alcatrão na manga, camisa xadrez de

vermelho e preto, calças de algodão e botas muito gastas. Seu rosto era magro e bronzeado, ostentando um sorriso

perpétuo, que mostrava uma linha irregular de dentes amarelos. Suas mãos enrugadas eram exemplo de mãos de

marinheiro. Enquanto ele vinha se arrastando pelo gramado,

ouvi o sr. Trevor pigarrear e, pulando de sua cadeira, correu para a casa. Voltou em seguida, e pude sentir um cheiro

forte de conhaque quando passou por mim. 'E então, meu amigo?', ele disse ao visitante. 'O que posso

fazer por você?' "O marinheiro ficou olhando para ele, com os olhos

franzidos e o mesmo sorriso frouxo no rosto.

'Não me reconhece?', ele perguntou. 'Ora essa, se não é o Hudson!', disse o sr. Trevor, num tom

surpreso. 'Eu mesmo', disse o marujo. 'Ora, faz trinta anos ou mais que

o vi pela última vez. E aqui está em sua bela casa, enquanto

eu continuo ganhando meu pão no convés de um navio.' 'Deixe disso, você verá que eu não me esqueci dos velhos

tempos', exclamou o sr. Trevor e, andando na direção do homem, cochichou-lhe algo. 'Vá até a cozinha", continuou

em voz alta, 'e sirva-se de comida e bebida. Não tenha dúvida de que lhe arrumarei um emprego."

'Obrigado, meu senhor', disse o marujo, mexendo no cabelo.

'Acabo de chegar de uma viagem de dois anos a bordo de um navio de oito nós, com pouca tripulação, e preciso de um

descanso. Pensei que arrumaria algo com o senhor ou com Beddoes.'

'Ah!', exclamou o sr. Trevor. 'Sabe onde Beddoes está?'

'Deus o abençoe, meu senhor, pois sei onde todos os velhos amigos estão', disse o sujeito, com um sorriso sinistro e, em

seguida, arrastou-se atrás da empregada até a cozinha. O sr. Trevor, então, disse-nos qualquer coisa sobre ele e aquele

homem terem sido colegas num navio enquanto ia para as

minas. Depois, deixou-nos no jardim e entrou na casa. Uma hora depois, quando entramos, ele estava bêbado, jogado

sobre o sofá da sala de jantar. Todo o acontecido causou-me péssima impressão, e não fiquei triste de sair de

Donnithorpe no dia seguinte, pois achei que minha presença estava embaraçando meu amigo.

"Tudo isso aconteceu durante o primeiro mês das férias de

verão. Voltei para Londres, onde passei sete semanas trabalhando em experiências de química orgânica. Um dia,

contudo, com o fim das férias se aproximando à medida que entrávamos no outono, recebi um telegrama de meu amigo

implorando-me para retornar a Donnithorpe, dizendo que

precisava muito da minha ajuda. E claro que larguei tudo e me pus, mais uma vez, a caminho do norte.

"Ele foi me encontrar na estação com uma charrete e logo vi que os últimos dois meses haviam sido extenuantes para ele.

Estava magro e preocupado, tendo perdido sua atitude alegre e calorosa, que era sua marca pessoal.

'Papai está morrendo', foram suas primeiras palavras.

'Impossível!', exclamei. 'De quê?'

'Apoplexia. Choque nervoso. Esteve à beira da morte todo o dia. Duvido que o encontremos vivo.' Como pode imaginar,

Watson, fiquei horrorizado com essa novidade inesperada.

'Qual foi a causa?', perguntei. 'Ah, aí é que está. Suba e conversaremos a respeito no

caminho. Lembra-se daquele sujeito que chegou na tarde anterior à sua partida?'

'Perfeitamente.'

'Sabe quem foi que acolhemos em nossa casa, naquele dia?' 'Não faço idéia.'

'O Diabo, Holmes!', ele exclamou. Simplesmente o encarei, atônito.

'Isso mesmo; o próprio Diabo. Não tivemos um minuto de sossego desde então. Papai nunca mais ergueu a cabeça, e

agora a vida o está abandonando, com o coração arruinado

por esse maldito Hudson.' 'Mas que poder ele tem?'

'Ah! Isso é o que eu gostaria de saber. Meu bondoso, caridoso e velho pai! Como pode ter caído nas garras desse

bandido? Estou feliz que tenha vindo. Holmes. Confio muito

no seu juízo e sei que me aconselhará da melhor forma possível.'

"Corríamos pela estrada lisa e branca, com a planície de Broads se estendendo à nossa frente, brilhando sob o sol

vermelho do entardecer. Além do bosque à nossa esquerda, já podia ver as chaminés altas e o mastro da bandeira da casa

dos Trevors.

'Meu pai empregou o marujo como jardineiro', disse meu amigo, 'e depois, como isso não lhe foi o bastante,

promoveu-o a mordomo. A casa parecia estar à sua disposição. Ele vadiava o dia inteiro, fazendo o que quisesse.

As empregadas reclamavam de seu hábito beberrão e de seu

linguajar grosseiro. Papai aumentou o salário de todos para compensar o aborrecimento. Ele pegava o barco e a melhor

arma de papai e saía para caçar. E tudo isso com tal atrevimento e zombaria estampados na cara que só não o

esmurrei por ser velho. Sabe, Holmes, precisei de muito

esforço para me controlar todo esse tempo, e agora me pergunto se não teria sido mais sábio ter me soltado. Bem, as

coisas vão de mal a pior conosco, e esse animal, Hudson, torna-se cada vez mais intrometido. Um dia, ao vê-lo dar

uma resposta malcriada a meu pai, peguei-o pelos ombros e o pus para fora da sala. Ele saiu com o rosto muito pálido,

com olhos tão cheios de veneno que soltavam mais ameaças

do que sua boca conseguiria. Não sei o que se passou entre ele e meu pobre pai depois disso, mas este veio me perguntar

se eu não poderia me desculpar com Hudson. Recusei-me, como pode imaginar, e perguntei a papai por que ele

permitia que aquele infeliz tomasse tantas liberdades com

ele e com a casa.' 'Ah, meu filho', ele disse. 'E fácil falar, mas você não

conhece minha situação. Em breve saberá de tudo, Victor. Farei com que saiba, aconteça o que acontecer. Você não

quereria mal a seu pai, não é?' 'Ele estava muito emocionado e se trancou no escritório

durante todo o dia, onde ficou escrevendo febrilmente,

como pude observar pela janela.

'Naquela noite aconteceu o que me pareceu um grande alívio. Hudson nos disse que iria embora. Ele entrou na sala

de jantar, onde estávamos após comer, e anunciou suas

intenções com a voz grossa de bêbado. 'Já me enchi de Norfolk', ele disse. 'Vou procurar o sr.

Beddoes, em Hampshire. Ele ficará tão feliz em me ver quanto você, imagino.'

'Espero que não leve mágoas desta casa, Hudson', disse

papai, com uma brandura que fez meu sangue ferver. 'Ainda não me pediram desculpas', ele disse, emburrado,

olhando-me com o canto do olho. 'Victor, reconhece que tratou mal nosso valioso amigo?',

perguntou papai, virando-se para mim. 'Pelo contrário', respondi, 'acho que demonstramos

paciência extraordinária para com ele.'

'Ah, você acha?', Hudson rosnou. 'Muito bem, meu amigo. Vamos ver isso!'

'Ele se arrastou para fora da sala, saindo da casa meia hora depois, deixando papai num estado de nervos terrível. Noite

após noite ouvi-o andando, sem conseguir dormir, em seu

quarto. Já estava recuperando a confiança quando um golpe, afinal, o atingiu.

'Como?', perguntei, ansioso. 'Da forma mais extraordinária. Chegou uma carta para ele,

ontem à tarde, com o carimbo de Fordingbridge. Meu pai a leu, levou as duas mãos à cabeça e começou a correr em

círculos pela sala, parecendo ter perdido a razão. Quando,

finalmente, consegui fazê-lo se sentar no sofá, vi que seus olhos e boca estavam repuxados para um lado, e percebi que

ele tivera um derrame. O dr. Fordham veio imediatamente e o colocamos na cama. A paralisia se espalhou e ele não dá

sinais de recobrar a consciência. Por isso acho que não o

encontraremos vivo. 'Conseguiu me assustar, Trevor!', exclamei. 'O que havia

nessa carta que pudesse provocar reação tão terrível?' 'Nada. Essa é a parte inexplicável. A mensagem era absurda.

Ah, meu Deus! Era o que eu temia!'

Enquanto ele falava tínhamos entrado na alameda que levava à casa. Todas as cortinas haviam sido fechadas.

Enquanto corríamos para a porta, o rosto do meu amigo se transfigurou de pesar. Um senhor, vestido de preto, estava

saindo da casa. 'Quando aconteceu?', perguntou Trevor.

'Logo depois que você saiu.'

'Ele recobrou a consciência?' 'Um instante antes do final.'

'Alguma mensagem para mim?' 'Apenas que os documentos estão na gaveta de trás do

armário japonês.'

"Meu amigo subiu com o médico até o quarto do morto, enquanto eu permaneci no escritório, revirando os

acontecimentos em minha cabeça, sentindo-me triste como nunca. Qual era o passado desse Trevor: boxeador, viajante,

minerador de ouro. Como aconteceu de ele se colocar sob o poder daquele marujo? Por que, também, ele desmaiou à

menção das iniciais semi-apagadas em seu braço e morreu de

medo ao receber uma carta de Fordingbridge? Então me lembrei que Fordingbridge fica em Hampshire e que esse sr.

Beddoes, a quem o marujo fora visitar e, provavelmente, chantagear, também morava em Hampshire. A carta,

portanto, poderia ser de Hudson, o marujo, dizendo que

revelara o segredo que parecia existir, ou poderia ser de Beddoes, avisando o velho amigo que a traição era iminente.

Até ali parecia claro. Entretanto como a carta poderia ser descrita como absurda por Victor? Talvez ele não tenha

sabido interpretá-la. Se fosse esse o caso, ela deveria estar

cifrada, de modo que signifique uma coisa para quem conhece o código e outra para as demais pessoas.

Precisava ver aquela carta. Estava confiante de que, se houvesse um significado oculto nela, poderia decifrá-la.

Fiquei uma hora no escuro refletindo sobre o assunto, até que uma empregada trouxe uma luminária. Logo atrás dela

veio meu amigo Victor, pálido mas controlado, trazendo

estes papéis que agora tenho sobre as pernas. Ele se sentou à minha frente, trouxe a luminária para mais perto e me

entregou um bilhete curto, rabiscado, como pode ver, em papel de embrulho grosseiro."

"A provisão de caça para Londres acabou", informava o

bilhete. "O guarda Hudson, pelo visto, contou mas não tudo. Que ele fuja, faz sentido. Para podermos tentar salvar em

tempo sua faisoa com vida." "Confesso que fiquei tão confuso quanto você, Watson,

quando leu a mensagem pela primeira vez. Então reli-a cuidadosamente. Pareceu-me evidente que havia algum

duplo sentido naquela estranha combinação de palavras. Ou

será que havia algum significado pré-combinado em expressões como 'provisão de caça' e 'faisoa"? Se fosse assim,

o sentido seria arbitrário, não podendo ser deduzido. De qualquer modo, o assunto da mensagem era o que eu adivi-

nhara, e a presença da palavra 'Hudson' indicava que o

bilhete era de Beddoes e não do marinheiro. Tentei 1er de trás para a frente, mas a combinação 'vida com faisoa' não

foi encorajadora. Tentei pular palavras, mas nem 'a de para', nem 'provisão caça Londres' pareciam fazer qualquer

sentido. Então, logo percebi qual era a chave do enigma. Vi

que cada terceira palavra, começando pela primeira do bilhete, formava uma mensagem que bem poderia ter levado

o velho Trevor ao desespero. Era uma mensagem concisa e forte, a que li para meu amigo:

"A caça acabou. Hudson contou tudo. Fuja para salvar sua vida."

"Victor Trevor escondeu o rosto nas mãos trêmulas.

'Deve ser isso, eu suponho', ele disse. 'E pior que a morte, pois significa desgraça, além de tudo. Mas qual o significado

de 'provisão de caça' e 'faisoa'? 'Na mensagem essas expressões nada significam, mas podem

nos ajudar a descobrir o remetente. Veja que ele começou

escrevendo 'A... caça... acabou', e assim por diante. Depois disso, usou quaisquer duas palavras para preencher os

espaços. Naturalmente, usou as primeiras palavras que lhe vieram à mente. Mas há tanta referência a caça que, ou ele é

um aficionado nesse esporte ou em criação. Sabe alguma coisa desse Beddoes?

'Ora, agora que você o mencionou', ele disse, 'lembro-me de

que papai costumava ser convidado por ele para caçar em sua propriedade todos os outonos.'

'Então é ele mesmo o remetente deste bilhete', eu disse. 'Só nos resta descobrir qual segredo era esse que fez com que o

marinheiro Hudson tivesse tanto poder sobre dois homens

tão ricos e respeitados.' 'Ah, Holmes! Receio que se trate de pecado e vergonha!',

exclamou meu amigo. 'Mas não terei segredos com você. Esse depoimento foi feito por meu pai quando percebeu que

o perigo personificado em Hudson se tornava iminente.

Encontrei-o no armário japonês, conforme ele contou ao médico. Pegue e leia-o, pois não tenho força nem coragem

de fazê-lo.'" - Esses são os papéis que ele me entregou, Watson. Vou ler

para você, da mesma forma que o fiz naquele escritório, naquela noite triste. Estão identificados por fora, como pode

ver:

"Alguns detalhes da viagem do barco Gloria Scott, desde sua partida de Falmouth, em 8 de outubro de 1855, até sua

destruição, na lat. N 15° 20', W 25" 14', em 6 de novembro." Está escrito na forma dc uma carta, e diz o seguinte: "Meu

querido filho,

Agora que a desgraça iminente começa a nublar os anos finais da minha vida, posso lhe escrever com toda a

sinceridade e honestidade. Não é o medo da lei, nem a perspectiva de perder minha posição na comarca ou de me

rebaixar perante os olhos de todos que me afligem o coração. Meu medo é envergonhar você, que me ama e, espero,

raramente teve motivos para não respeitar seu pai. No

entanto, se o golpe que há tempos está suspenso sobre minha cabeça realmente cair, desejo que saiba, por mim, por meio

desta carta, o tamanho da minha culpa. Por outro lado, se tudo correr bem (graça que o bom e todo-poderoso Deus

pode me conceder!) e se por qualquer motivo este

documento não for destruído e cair em suas mãos, peço-lhe, por tudo o que é mais sagrado, pela memória de sua querida

mãe e pelo amor que sempre houve entre nós, jogue-o no fogo e nunca mais pense nele.

Se, então, seus olhos estiverem lendo a partir desta linha,

isso significa que fui exposto e levado de minha casa ou, como é mais provável, pois sabe que meu coração é fraco,

estarei morto com a boca selada para sempre. Em qualquer caso, não há por que continuar o segredo, e tudo o que digo

doravante é a mais pura verdade. Juro isto da mesma forma que espero misericórdia.

Meu nome, caro rapaz, não é Trevor. Chamava-me James

Armitage na juventude, e agora você pode compreender o choque que levei quando seu colega de faculdade disse

palavras que pareciam demonstrar que ele deduzira meu segredo. Foi como Armitage que eu entrei num banco

londrino e como Armitage fui condenado por quebrar as leis

do meu pais e sentenciado ao degredo. Não me julgue muito mal, meu rapaz. Lu tinha de pagar uma dívida de honra,

como dizem, e usei dinheiro que não era meu para fazê-lo, na certeza de poder repô-lo antes que dessem por sua falta.

O azar, porém, me perseguia. O dinheiro que eu esperava nunca veio para as minhas mãos e um exame antecipado das

contas expôs meu desfalque. O caso poderia ter sido tratado

com mais brandura, mas as leis, há trinta anos, eram administradas com mais severidade que agora. Assim foi que

no vigésimo terceiro aniversário eu me achei acorrentado com outros trinta e sete condenados no convés do navio

Gloria Scott, com destino à Austrália.

Foi no ano de 1X55, quando a Guerra da Criméia estava no seu auge. Os antigos navios-prisão eram usados para o

transporte de tropas no mar Negro. Portanto, o governo foi obrigado a usar barcos menores e menos adequados para

enviar seus prisioneiros ao degredo. O Gloria Scott fora

empregado no comércio de chá com a China, mas estava obsoleto, era pesado e os novos veleiros o deixavam para trás

com facilidade. Era uma nave de quinhentas toneladas e, além dos trinta e oito presos, carregava vinte e seis

tripulantes, dezoito soldados, o capitão, três oficiais, o médico, o capelão e quatro carcereiros. Somando tudo, quase

cem almas estavam a bordo quando zarpamos de Falmouth.

As divisórias entre as celas dos detentos, em vez de serem de carvalho grosso, como é costume nos navios de condenados,

eram finas e frágeis. O homem ao meu lado já me chamara a atenção quando nos levaram ao cais. Era um jovem de rosto

claro e imberbe, com nariz comprido e fino e mandíbulas

poderosas. Mantinha a cabeça orgulhosamente erguida e andava com certa petulância acima de todos, pois era muito

alto. Acho que nenhum dos outros chegava a seu ombro. Acredito que ele media mais de um metro e noventa. Era

estranho ver, entre tantos rostos tristes e desanimados, alguém cheio de energia e determinação. Era reconfortante

observá-lo. Fiquei feliz de estar ao lado dele e mais feliz

ainda quando, na calada da noite, ouvi-o sussurrar,

descobrindo que fizera uma abertura na tábua que nos separava.

'Ei, colega!', ele disse. 'Como se chama e por que está aqui?'

Respondi-lhe e perguntei com quem estava falando. 'Sou Jack Prendergast', ele disse, 'e, por Deus, vai aprender a

abençoar meu nome antes de nos separarmos.' Lembrei-me de ter ouvido a respeito de seu caso, pois

provocara grande sensação em todo o país, algum tempo

antes da minha prisão. Era um homem de boa família e de grande capacidade.

Contudo tinha hábitos terríveis e, usando um elaborado sistema de fraude, tirou grandes quantias de dinheiro dos

maiores comerciantes de Londres. 'Ah! Então se lembra de mim?', ele perguntou, orgulhoso.

'Lembro-me muito bem.'

'Então talvez se lembre de algo engraçado a respeito?' 'O quê?'

'Eu consegui umas duzentas e cinqüenta mil libras, não foi?' 'Foi o que eu soube.'

'Mas não conseguiram recuperar o dinheiro, certo?'

'Não.' 'Bem. onde acha que está?'

'Não faço idéia', respondi. 'Na minha mão!', exclamou. 'Por Deus, tenho mais libras do

que você tem cabelo. E quem tem dinheiro, meu filho, e sabe se virar, consegue fazer qualquer coisa! Agora, você

não acha que um homem que pode tudo vai ficar vestindo

esta roupa de presidiário, sentado nesta prisão fedorenta, infestada de ratos e insetos, que é este costeiro chinês? Não,

senhor! Um homem como eu tem de saber cuidar de si e de seus amigos. Pode apostar nisso! Confie nele, e pode beijar a

Bíblia que ele tira você daqui!'

Esse era seu estilo de falar. A princípio não achei nada de-mais, mas logo depois, tendo me testado e feito jurar

solenemente, deixou-me saber que havia um plano para tomar o comando do navio. Doze dos prisioneiros já estavam

acertados antes mesmo de embarcar. Prendergast era o líder,

e o dinheiro, sua fonte de poder. 'Tenho um parceiro', ele disse. 'Um homem bom, unha e

carne comigo. Ele está com o dinheiro, e onde você acha que ele está agora? Ora, ele é o capelão do navio! Nada menos

que o capelão! Ele embarcou com os documentos em ordem e tanto dinheiro que dá para comprar tudo e todos! A

tripulação está com ele, de corpo e alma. Ele os comprou no

atacado, com desconto por pagamento à vista, cm dinheiro. Assinaram com ele antes mesmo de assinarem com o

governo. Também comprou dois carcereiros e Mercer, o se-gundo oficial. Teria comprado o capitão, também, se valesse

a pena.'

'O que vamos fazer, então?', perguntei. 'O que acha?', ele disse. 'Vamos deixar os casacos desses

soldados mais vermelhos do que o alfaiate os fez.' 'Mas eles estão armados!'

'E nós também estaremos, meu garoto. Cada um de nós terá um par de pistolas à disposição e, se não conseguirmos tomar

conta deste navio, é melhor que nos mandem logo para uma

escola de moças! Fale com seu colega da esquerda, esta noite, e veja se é confiável.'

Foi o que eu fiz e descobri que meu outro vizinho era jovem como eu e seu crime, falsificação. Seu nome era Evans, que

depois trocou, como eu, e hoje 6 um homem rico e próspero

vivendo no sul da Inglaterra. Estava totalmente disposto a se juntar à conspiração, pois esse era o único meio de nos

salvarmos. Antes que cruzássemos a baía, somente dois prisioneiros não

estavam no esquema. Um era fraco da cabeça, não sendo

confiável, portanto. O outro estava com icterícia, de modo que não nos seria útil.

Realmente, não havia nada que pudesse evitar a tomada do navio. A tripulação só tinha bandidos, especialmente

escolhidos para aquela viagem. O falso capelão veio às nossas celas, teoricamente para nos aconselhar, carregando uma

bolsa supostamente cheia de folhetos religiosos. Ele veio

tantas vezes que no terceiro dia cada um de nós tinha uma lixa, duas pistolas, uma libra de pólvora e vinte balas. Dois

dos carcereiros eram homens de Prendergast e o segundo oficial, seu braço direito. O capitão, os outros dois

carcereiros, o tenente Martin, seus dezoito soldados e o

médico era tudo o que tínhamos contra nós. Mesmo assim, estávamos determinados a não correr riscos e combinamos

fazer o ataque à noite. Entretanto ele aconteceu antes do que esperávamos.

Uma noite, na terceira semana depois da partida, o médico veio ver um dos prisioneiros que ficara doente. Ao colocar a

mão sob o catre, o doutor sentiu a pistola. Se tivesse ficado

quieto, poderia ter frustrado toda a conspiração. Mas era um sujeitinho nervoso, que soltou um grito de surpresa e ficou

tão pálido que o prisioneiro percebeu que ele compreendera o que estava sendo armado e pulou sobre o doutor,

imobilizando-o e pondo-lhe uma mordaça, antes que

pudesse dar o alarme. Como havia destrancado a porta que levava ao convés superior, logo estávamos todos lá. Os dois

sentinelas foram abatidos a tiros, da mesma forma que um cabo do Exército, que veio correndo ver o que se passava.

Havia dois soldados à porta da sala dos oficiais, mas pareceu

que seus mosquetes não estavam carregados, pois não dispararam, e foram mortos enquanto tentavam calar as

baionetas. Então corremos para a cabina do capitão, mas, ao abrirmos a porta, ouvimos um estampido lá dentro. Lá

estava ele com a cabeça caída sobre o mapa do Atlântico, que fora pregado sobre a mesa. O capelão estava à seu lado,

com uma pistola fumegante na mão. Os dois carcereiros

foram dominados pela tripulação e tudo parecia sob controle.

A sala dos oficiais ficava ao lado daquela cabina. Corremos para lá e nos jogamos nos sofás, todos falando ao mesmo

tempo, pois estávamos loucos de alegria com o sentimento

de liberdade. Na sala havia armários que Wilson, o falso capelão, abriu, descobrindo, assim, uma dúzia de garrafas de

licor. Quebramos os gargalos e servimos o líquido em copos. Estávamos bebendo e brindando quando mosquetes rugiram

em nossos ouvidos. A sala ficou tão enfumaçada que era impossível enxergar. Quando a fumaça se dissipou, o lugar

estava um horror. Wilson e mais oito rapazes estavam

caídos, se retorcendo um por cima do outro no chão. Sangue e licor se misturaram, o que me faz enjoar, ainda hoje,

quando me lembro da cena. Ficamos tão assustados pela situação que, se não fosse Prendergast, teríamos abandonado

a rebelião. Ele saiu em disparada pela porta, como um touro,

e todos o seguimos. Corremos para fora e encontramos, no tombadilho, o tenente e dez de seus homens. As clarabóias

da sala dos oficiais estavam entreabertas e, por ali, os soldados haviam atirado em nós. Chegamos neles antes que

pudessem recarregar. Mesmo assim resistiram bravamente,

mas a vantagem era nossa e, em cinco minutos, estava tudo acabado. Meu Deus! Em que matadouro fora transformado

aquele navio! Prendergast parecia um diabo raivoso. Ele pegava os soldados como se fossem crianças e os jogava no

mar, estivessem vivos ou mortos. Um sargento, que estava terrivelmente ferido, continuou nadando por um tempo

surpreendentemente longo, até que alguém lhe deu um tiro

de misericórdia na cabeça. Quando a luta terminou já não tínhamos inimigos, a não ser os carcereiros, os oficiais e o

médico. E foi por causa deles que começou a discussão. Muitos de

nós estávamos felizes por recuperar a liberdade e não

queríamos carregar o peso de homicídios. Uma coisa era matar soldados armados. Outra era ficar ali, vendo homens

serem mortos a sangue-frio. Oito de nós - cinco condenados e três marinheiros disseram não querer fazer parte daquilo.

Contudo não havia o que convencesse Prendergast e os que estavam com ele, pois dizia que nossa única chance de

escapar em segurança era fazer um serviço limpo, sem

deixar testemunhas. Chegou no ponto em que quase tivemos o mesmo destino dos prisioneiros, mas no fim ele disse que,

se desejássemos, podíamos pegar um bote e partir. Aceitamos a oferta, pois estávamos cheios daquela sangria e

percebemos que a coisa ainda iria piorar. Recebemos uni-

formes de marinheiro, um barril de água, uma barrica de carne seca e outra de biscoitos e uma bússola. Prendergast

nos jogou um mapa, disse-nos que éramos náufragos de um navio que afundara na latitude 15°N e longitude 25oW,

cortou a corda e nos liberou.

E agora entro na parte mais surpreendente da minha história, filho querido. Os marujos haviam recolhido as velas

do navio durante a rebelião, mas, logo depois que saímos com o bote, içaram-nas novamente. Como uma brisa leve

estava soprando, logo o barco começou a se distanciar de nós. Nosso bote permaneceu ao sabor das ondas, enquanto

Evans e eu, que éramos os mais instruídos, estudávamos

nossa posição no mapa para decidirmos para que costa iríamos. Estávamos em dúvida, pois as ilhas do Cabo Verde

estavam a quinhentas milhas ao norte, enquanto a costa africana permanecia a setecentas milhas a leste. Como o

vento vinha do norte, decidimos que o melhor seria rumar

para Serra Leoa e viramos a proa naquela direção, sendo que, naquele momento, só víamos os mastros do Gloria Scott a

estibordo. De repente, enquanto olhávamos para ele, vimos uma densa nuvem negra ser lançada do navio, que

permaneceu suspensa no céu como uma árvore monstruosa.

Alguns segundos depois ouvimos o estrondo da explosão e, quando a fumaça começou a se dissipar, não havia mais sinal

do Gloria Scott. Então mudamos novamente a direção do bote

e remamos com toda a força para onde aquela nuvem tenebrosa, que sumia aos poucos, marcava o local da

catástrofe. Demoramos uma hora para chegar até lá e tememos ser tarde

demais para salvar alguém. Pedaços de um bote e de algumas caixas marcavam onde o barco afundara, mas não havia sinal

de sobreviventes. Já estávamos nos afastando, desanimados,

quando ouvimos um grito de socorro e vimos, à distância, um homem agarrado a destroços. Quando o puxamos a bordo,

soubemos que era um jovem marujo chamado Hudson, tão queimado e exausto que só conseguiu nos contar o que

ocorrera na manhã seguinte.

Parece que, após nossa partida. Prendergast e seus homens continuaram com a execução dos cinco prisioneiros: os dois

carcereiros foram fuzilados e jogados ao mar, assim como o terceiro oficial. Então Prendergast desceu ao convés inferior e

degolou, com suas próprias mãos, o infeliz médico. Só restou o primeiro oficial, que era homem ativo e corajoso. Ao ver o

condenado se aproximando, com a faca ensangüentada na

mão, livrou-se da corda que o amarrava que antes, de alguma forma, conseguira afrouxar e fugiu para o paiol.

Cerca de doze condenados correram atrás dele, de pistolas nas mãos. Encontraram-no com uma caixa de fósforos sentado ao

lado de um barril de pólvora aberto. Havia outros noventa e

nove embarcados no navio. O oficial jurou que explodiria com todo mundo se tentassem colocar as mãos nele. Logo depois

ocorreu a explosão, mas Hudson acredita que ela foi causada por um tiro disparado por algum dos condenados, e não pelo

fósforo do oficial. Seja como for, aquele foi o fim do Gloria

Scoll e dos bandidos que o controlavam. Em poucas palavras, meu filho, essa é a terrível história em

que estive envolvido. No dia seguinte fomos recolhidos pelo navio Hotspur, com destino à Austrália. Não foi difícil fazer o

capitão acreditar que éramos os sobreviventes de um navio de passageiros que afundara. O Gloria Scoll foi dado pelo

Almirantado como perdido 110 mar e nunca se falou nada

sobre seu verdadeiro destino. Depois de uma excelente viagem, o Hotspur aportou em Sydney, onde Evans e eu

trocamos de nomes e fomos para as minas onde, entre multidões provenientes de todas as nações, não encontramos

dificuldades em esconder nossa antiga identidade.

Não preciso contar o resto. Prosperamos, viajamos c voltamos colonos ricos para a Inglaterra, onde compramos propriedades

rurais. Levamos nossa vida tranqüila e produtiva durante vinte anos, esperando que o passado estivesse enterrado para

sempre. Imagine, então, o que senti quando reconheci o homem que foi recolhido dentre os destroços! De alguma

forma ele nos localizara e decidira viver às custas de nossos

temores. Agora você pode entender por que eu fiz o possível para aturá-lo e talvez compreenda o medo que me toma, no

momento em que ele procura sua outra vítima cheio de ameaças.

Abaixo estava escrito, com letra tão trêmula que era quase

ilegível:

"Beddoes escreveu em código para dizer que H. contou tudo. Bom Deus, tenha piedade de nossas almas!"

Essa foi a história que li, naquela noite, para o jovem Trevor.

E acho, Watson, que naquelas circunstâncias foi algo bem dramático. Meu bom amigo ficou desiludido e, então, partiu

para plantar chá em Terai, na Índia, onde sei que está se dando muito bem. Quanto ao marinheiro e Beddoes, nunca

mais se ouviu falar de nenhum deles, depois que aquela carta cifrada foi recebida. Os dois desapareceram completamente.

Nenhuma queixa foi formalizada na polícia. Assim, parece

que Beddoes, em sua carta, confundiu uma ameaça com a denúncia, que não ocorreu, fludson fora visto à espreita, de

modo que a polícia acredita que ele deu fim em Beddoes e depois fugiu. De meu lado, acredito que a verdade é

exatamente outra. Creio que é mais provável que Beddoes,

levado ao desespero, e acreditando já ter sido entregue à polícia, vingou-se de Hudson e fugiu do país com todo o

dinheiro que conseguiu levantar. Bem, esses são os fatos do caso, doutor, e, se achar que cabem em sua coleção, estão ao

seu inteiro dispor.

O CORCUNDA

Numa noite de verão, alguns meses depois do meu casamento, eu estava sentado sozinho, fumando cachimbo e atento à

leitura de um romance, após um dia de trabalho exaustivo. Minha mulher já subira para o quarto e o som da porta do

vestíbulo sendo trancada me avisara que as empregadas

também haviam se recolhido. Eu me levantei. e batia as cinzas do cachimbo quando ouvi a campainha soar.

Olhei para o relógio. Faltavam quinze para a meia-noite. Não

podia ser uma visita àquela hora. Era, com certeza, um paciente, o que significava trabalho por toda a noite. De cara

fechada fui até o vestíbulo e abri a porta. Para minha surpresa, era Sherlock Holmes.

Ah, Watson ele disse , esperava que não fosse muito tarde para encontrá-lo acordado.

Meu caro amigo, por favor, entre.

Você parece surpreso e, não é de admirar, aliviado. Hum! Ainda fuma a mistura Arcadia, dos tempos de solteiro. Não há

como confundir essa cinza fofa no seu paletó. E fácil dizer que você esteve no Exército, Watson. Nunca passará por completo

civil enquanto mantiver esse hábito de carregar o lenço na

manga. Consegue me agüentar por esta noite? - Com prazer.

Você me disse que tinha um quarto para visitas e posso ver que não está ocupado, pois o porta-chapéus está vazio.

Ficarei contente se você ficar. Obrigado. Vou usar um cabide vazio. Lamento ver que esteve

com a casa em obras. Esses operários são terríveis. Não foi o

esgoto, espero. - Não, foi o gás.

Ah! O sujeito deixou duas marquinhas de seus sapatos no linóleo, bem onde bate a luz. Não, obrigado, já jantei em

Waterloo, mas, com prazer, fumaria com você.

Passei-lhe minha tabaqueira e ele se sentou à minha frente, fumando em silêncio durante algum tempo. Eu sabia que

nada, a não ser algo muito importante, faria com que ele aparecesse a tal hora. Então, esperei pacientemente até que

ele decidisse falar do assunto.

Vejo que esteve trabalhando muito hoje ele disse, olhando-me firmemente.

É verdade, tive um dia cheio respondi. Pode parecer tolo para você acrescentei , mas não sei como deduziu isso.

Holmes riu. - Tenho a vantagem de conhecer seus hábitos, meu caro

Watson ele respondeu. - Quando tem poucos pacientes para

visitar vai a pé, mas quando tem muitos usa uma carruagem. Percebi que seus sapatos estão usados, mas não sujos.

Portanto, sei que esteve ocupado o bastante para usar a carruagem.

- Excelente! - exclamei.

Elementar - ele disse. Este é um dos exemplos em que o lógico produz efeito notável na pessoa que o observa, justamente

porque esta não reparou no detalhe que é a base da dedução. Pode-se dizer o mesmo, meu caro amigo, sobre o efeito que

alguns de seus escritos causam no leitor, pois você retém alguns fatos do problema que são essenciais à sua

compreensão. No momento estou na mesma situação de seus

leitores, pois tenho diversas pistas para um dos casos mais estranhos que já confundiram a mente de um homem, mas me

faltam ainda uma ou duas necessárias para que eu complete minha teoria. No entanto logo as terei, Watson, logo as terei!

Seus olhos brilharam e um leve rubor assomou-lhe às faces.

Por um instante, caíra o véu de frieza que ele vestia. Apenas por um instante, porém, pois, quando olhei novamente para

ele, já havia se recomposto, assumindo a expressão que muitos dizem ser mais de máquina que de homem.

O problema apresenta características interessantes ele disse.

Posso dizer, até que as características são excepcionalmente interessantes. Já estudei o assunto e estou, acredito, perto de

solucioná-lo. Se puder me acompanhar nesse último estágio, estará me prestando um grande auxílio.

- Gostaria muito de ajudar. - Pode ir comigo até Aldershot, amanhã?

Não tenho dúvida de que Jackson pode atender meus clientes.

- Ótimo. Gostaria de pegar o trem das onze e dez, em Waterloo.

- Isso me daria tempo. - Então, se não estiver com muito sono, vou lhe contar em

linhas gerais o que aconteceu até aqui e o que falta ser feito.

Estava com sono antes de você chegar. Agora estou bem acordado.

Vou resumir a história ao máximo sem omitir os fatos vitais ao caso. É possível que você já tenha lido algo a respeito. Estou

investigando o suposto assassinato do coronel Barclay, do Malva Real, em Aldershot.

Não soube de nada a respeito.

Ainda não atraiu muita atenção, a não ser na região. Os acontecimentos foram há apenas dois dias. Resumidamente, o

que aconteceu foi o seguinte: "O Malva Real é, como você sabe, um dos mais famosos

regimentos irlandeses do Exército britânico. Saiu-se

maravilhosamente tanto na Criméia como no Motim, e desde então tem se destacado em todas as ocasiões possíveis. Até

segunda-feira à noite era comandado por James Barclay, um valoroso veterano, que começou como soldado raso e foi

promovido a oficial na época do Motim, chegando ao

comando do regimento em que começou carregando mosquetes.

"O coronel Barclay casou-se no tempo em que era sargento. Sua mulher, cujo nome de solteira era Nancy Devoy, era filha

de um antigo sargento porta-bandeira do mesmo regimento. Houve, portanto, como se pode imaginar, certo atrito social

quando o jovem casal (pois ainda eram jovens) se viu no novo

ambiente. Parece, contudo, que logo se adaptaram. A sra. Barclay, pelo que soube, era tão popular entre as mulheres dos

oficiais quanto o marido entre seus colegas. Devo acrescentar que era uma mulher muito bonita e que mesmo agora, após

permanecer casada por mais de trinta anos, conserva ótima

aparência. "A vida cm família do coronel Barclay parece ter sido

constantemente feliz. O major Murphy, que me forneceu a maioria dos fatos, garantiu que nunca soube de qualquer

desentendimento entre o casal. Contudo, de modo geral, ele acha que a devoção de Barclay por sua mulher era maior do

que a devoção dela pelo marido. O coronel ficava incomodado

se permanecesse afastado dela ainda que por um dia. Ela, por outro lado, embora amorosa e fiel, impunha menos seu afeto.

De qualquer forma, eram tidos, no regimento, como modelo de casal de meia-idade. Nada havia em seu relacionamento

que preparasse as pessoas para a tragédia que se seguiria.

"O coronel Barclay parecia ter algumas singularidades em seu caráter. Era um velho soldado, jovial e arrojado, mas havia

ocasiões em que parecia capaz de se tornar violento e vingativo. Contudo parece que nunca voltou esse lado de sua

natureza para a mulher. Outra coisa que impressionava o

major Murphy, e três em cada cinco dos outros oficiais com que conversei, era a depressão que de tempos em tempos

tomava conta de Barclay. Como o major exemplificou, em ocasiões em que o coronel estava se divertindo com os outros,

parecia que uma mão invisível vinha e retirava-lhe o sorriso do rosto, permanecendo durante dias mergulhado na mais

profunda tristeza, isso e uma certa superstição eram os únicos

traços estranhos de personalidade que seus colegas oficiais observaram. Quanto à superstição, ele não gostava de ficar

sozinho, particularmente depois que escurecia. Essa característica infantil, num homem em todo o resto másculo,

freqüentemente dava margem a comentários e suposições.

"O primeiro batalhão do Malva Real (o velho 117º) está estacionado há anos em Aldershot. Os oficiais casados vivem

fora do quartel, e o coronel ocupou, durante todo o tempo em que esteve lá. uma propriedade chamada Lachine, de

oitocentos metros do Campo Norte. A casa fica num terreno vasto, mas seu lado oeste fica a não mais de trinta metros da

estrada. O conjunto de funcionários é formado pelo cocheiro

e duas empregadas. Eles, mais o patrão e a patroa, eram os únicos moradores de Lachine, pois os Barclays não tinham

filhos nem abrigavam visitantes. "Agora, os acontecimentos em Lachine entre nove e dez da

noite da última segunda.

"A sra. Barclay é, pelo que se sabe, católica romana e se dedicou ao estabelecimento da Liga de São Jorge que, formada

em conjunto com a capela da rua Watt, tinha como missão fornecer roupas de segunda mão aos pobres. Havia uma

reunião da Liga marcada para aquela noite, às oito horas, e a

sra. Barclay jantou às pressas para nela comparecer. Ao sair de casa, foi ouvida pelo cocheiro fazendo alguma observação

trivial ao marido, garantindo-lhe que não demoraria. Então ela foi buscara srta. Morrison, uma jovem que mora na

propriedade ao lado, e as duas foram juntas para a reunião. Esta durou quarenta minutos e, às nove e quinze, a sra.

Barclay estava de volta a casa, tendo deixado a srta. Morrison

no caminho. "Há uma sala, em Lachine, que usavam para tomar o café da

manhã. Ela fica de frente para a estrada e tem uma grande porta de vidro que se abre para o gramado. Este tem trinta

metros de comprimento c é separado da estrada por uma

mureta com um gradil. Foi nesse quarto que a sra. Barclay entrou ao voltar. A cortina não estava fechada, pois o quarto

raramente era usado à tarde. De qualquer modo, a sra. Barclay acendeu a lâmpada e tocou a campainha, pedindo a Jane

Stewart, a empregada, para lhe trazer uma xícara de chá, o que não era habitual. O coronel, que estava na sala de jantar,

ouviu que a mulher retornara e foi ter com ela na saleta. O

cocheiro viu-o passar pelo vestíbulo e entrar. Ele nunca mais foi visto com vida.

"O chá foi trazido em dez minutos, mas a empregada, ao se aproximar da porta, ficou surpresa ao ouvir as vozes do patrão

e da patroa furiosamente alteradas. Ela bateu na porta, sem ter

resposta, e até tentou abri-la, mas estava trancada por dentro. Naturalmente, ela desceu para contar o que se passava à

cozinheira. As duas mulheres, mais o cocheiro, foram até o vestíbulo e escutaram a discussão, ainda quente. Os três

concordam que só ouviram duas vozes, do coronel e de sua

mulher. As observações do oficial eram abafadas e espasmódicas, de modo que nenhuma delas foi ouvida pelos

empregados. Por outro lado, os comentários da senhora eram violentos e, quando elevava a voz, podiam ser claramente

escutados. 'Seu covarde!', ela repetiu diversas vezes. 'O que vamos fazer agora? O que vamos fazer agora? Devolva minha

vida! Nunca mais vou respirar o mesmo ar que você. Seu

covarde! Seu covarde!' Esses foram alguns pedaços da conversa, que terminou com um grito repentino do homem,

uma batida e um grito penetrante da mulher. Convencido de que alguma tragédia acontecera, o cocheiro correu para a

porta, tentando forçá-la enquanto novos gritos vinham lá de

dentro. Contudo ele não conseguiu abrir a porta, e as empregadas estavam muito amedrontadas para poderem lhe

ajudar. Entretanto ele pensou rápido, saiu pela porta da frente e contornou a casa pelo gramado, para onde a grande janela

francesa daquele aposento se abria. Uma folha da janela estava aberta, o que, pelo que soube, é comum no verão. Assim, ele

entrou sem dificuldades na sala. A patroa parara de gritar e

estava caída, sem sentidos, sobre o sofá, enquanto o velho soldado, com o pé dobrado ao lado de uma poltrona e a cabeça

no chão, próxima à proteção da lareira, jazia morto em uma poça de seu próprio sangue.

"Naturalmente, a primeira idéia do cocheiro, ao perceber que

nada poderia fazer por seu patrão, foi abrir a porta. Surgiu então uma dificuldade inesperada: a chave não estava na

fechadura nem em qualquer outro lugar do quarto. Ele saiu novamente pela janela e foi chamar ajuda, trazendo consigo

um policial e um médico. A senhora, em quem caíram as

maiores suspeitas, foi levada para seu quarto ainda inconsciente. O corpo do coronel foi colocado no sofá e o

local cuidadosamente examinado. "O ferimento sofrido pelo infeliz veterano consistia em um

corte com cinco centímetros de comprimento na parte de trás da cabeça, evidentemente causado por um golpe violento

desfechado com arma sem corte. Não foi difícil adivinhar que

arma foi usada. No chão, junto ao corpo, havia um estranho porrete, feito de madeira entalhada com cabo de osso. O

coronel possuía uma coleção diversificada de armas, trazidas dos diversos países em que ele lutou. A polícia considera que

esse porrete fazia parte de sua coleção. Os empregados negam

tê-lo visto antes, mas é possível que nunca tenham lhe dado importância entre todos os itens estranhos existentes na casa.

A polícia não descobriu nada mais que fosse significativo naquela sala. Também não conseguiu achar a chave, que não

estava com a vítima, nem com a sra. Barclay nem em qualquer outra parte do aposento. A porta teve de ser aberta por um

chaveiro de Aldershot.

"Assim estavam as coisas, Watson, quando, na manhã de terça-feira, atendendo à solicitação do major Murphy, fui para

Aldershot colaborar com a polícia. Acho que você concorda que o problema já era bastante interessante, mas minhas

investigações logo me fizeram perceber que a coisa era, na

verdade, mais extraordinária do que parecia.

"Antes de examinar a sala eu interroguei os empregados, mas consegui apenas levantar os fatos que já lhe contei. Jane

Stewart, a criada, lembrou-se de outro detalhe curioso. Você

se lembra de que ela, ao ouvir a discussão, desceu para falar com os outros empregados. Ela afirma que nessa primeira

ocasião, quando sozinha, as vozes dos patrões estavam abafadas, de modo que quase não conseguia ouvir nada, e

avaliou mais pelo tom do que por palavras que os dois brigavam. Ao pressioná-la, contudo, ela se lembrou de que

ouviu a senhora pronunciar duas vezes a palavra 'Davi'. Esse

ponto é extremamente importante para que determinemos a razão da repentina discussão. O nome do coronel, como se

lembra, é James. "O caso tem uma característica que impressionou

profundamente os empregados e a polícia. Trata-se da

contorção do rosto do coronel. Este estava, de acordo com os depoimentos, totalmente transfigurado de medo e horror.

Mais de uma pessoa desmaiou ao vê-lo, de tão assustador. E certo que ele antevira seu destino, o que lhe provocou o mais

profundo medo. E claro que isso condiz com a teoria da polícia, se o coronel tivesse visto a mulher preparando-lhe o

ataque assassino. O fato de o ferimento ser na parte de trás da

cabeça não é uma objeção à teoria, pois a vítima pode ter se virado para tentar fugir ao golpe. Não se conseguiu obter

nenhuma informação da mulher, que está temporariamente insana devido à extrema agitação mental.

"Soube, pela polícia, que a srta. Morrison - que, como você se

lembra, saiu naquela noite em companhia da sra. Barclay

negou saber o que teria provocado a mudança de humor na sua amiga.

"Após reunir esses fatos, Watson, eu fumei muito cachimbo

enquanto pensava neles, tentando separar o essencial do trivial. Não havia dúvida de que o ponto mais sugestivo era o

desaparecimento da chave da porta. Buscas cuidadosas não conseguiram encontrá-la na saleta. Portanto, ela deve ter sido

levada. Mas nem o coronel nem sua mulher poderiam tê-lo feito. Isso é claro. Portanto, uma terceira pessoa deve ter

entrado pela janela. Pareceu-me que um exame cuidadoso do

gramado e da sala poderia revelar traços desse indivíduo misterioso. Você conhece meus métodos, Watson. Não deixei

de empregar nenhum deles na investigação. E terminei descobrindo vestígios, embora diferentes do que esperava. Um

homem esteve naquela sala e ele veio da estrada pelo

gramado. Consegui obter cinco impressões bastante claras de suas pegadas. Uma na estrada, no ponto em que ele pulou a

mureta, duas no gramado e duas, bem apagadas, sobre as tábuas junto à janela pela qual entrou. Aparentemente, ele

atravessou o gramado correndo, pois as marcas dos dedos eram mais profundas que as dos calcanhares. Não foi esse

homem, porém, que me surpreendeu. Foi seu acompanhante."

- Seu acompanhante! Holmes tirou do bolso uma grande folha de papel de seda e

abriu-a cuidadosamente sobre os joelhos. - O que acha disto? ele perguntou.

O papel estava coberto de pegadas de algum animal pequeno.

Cada uma tinha cinco manchas arredondadas, indícios de

unhas compridas e era, aproximadamente, do tamanho de uma colher de sobremesa.

- É um cachorro eu disse.

- Já ouviu falar de algum cachorro subir por uma cortina? Encontrei indícios claros de que esta criatura fez isso.

- Um macaco, então? Estas não são pegadas de um macaco.

- O que pode ser? Nem cachorro, nem gato, nem macaco, nem qualquer outra

criatura que conheçamos. Tentei reconstituí-la por

intermédio das medidas. Aqui estão quatro pegadas de um momento em que o animal estava parado. Veja que há cerca

de quarenta centímetros entre as patas da frente e as de trás. Acrescente pescoço e cabeça e teremos uma criatura com mais

de sessenta centímetros; mais, até, se tiver cauda. Agora

observe esta outra medida. O animal se moveu e temos o tamanho do seu passo. Todos eles têm por volta de sete

centímetros. Isso nos indica um corpo comprido com pernas curtas. Por outro lado, o animal não teve a gentileza de deixar

amostras de seu pêlo, mas suas características gerais devem ser essas que sugeri, consegue subir em cortinas e é carnívoro.

- Como deduziu isso?

- Ele subiu a cortina. Havia uma gaiola com um canário na janela, e parece que o animal tentava chegar até o pássaro.

- Que bicho é esse, então? - Ah, se eu pudesse lhe atribuir um nome, teria percorrido

uma grande distância na solução do caso. Provavelmente é

uma criatura aparentada com doninhas ou arminhos, embora seja maior do que qualquer um desses que já vi.

- E o que ela teria com o crime? Isso também precisa ser esclarecido. No entanto descobrimos

bastante, como pode ver. Sabemos que esse homem ficou, na

estrada, observando a briga dos Barclays, pois as cortinas estavam abertas e a sala iluminada. Sabemos também que ele

correu pelo gramado, entrou na sala, acompanhado por um animal estranho, e acertou um golpe no coronel. Também é

possível que o coronel tinha caído, assustado ao vê-lo, e batido a cabeça no canto da proteção da lareira. Finalmente, temos o

fato curioso de o intruso carregar a chave consigo ao fugir.

Parece que suas descobertas tornaram o caso mais obscuro do que era - eu disse.

- É verdade. Elas mostraram que o negócio é mais profundo do que se pensou a princípio. Repensei o assunto e cheguei à

conclusão de que devo me aproximar do caso por outro lado.

Ora, Watson, estou mantendo você acordado quando poderia lhe contar tudo isso durante a viagem para Aldershot,

amanhã. - Obrigado, mas você já foi longe demais para parar agora.

- Quando a sra. Barclay saiu de casa, às sete e meia, estava de bem com o marido. Como acredito já ter dito, ela não era

demasiadamente afetuosa, e foi ouvida pelo cocheiro

conversando amistosamente com o coronel. Agora, quando ela voltou, foi para a sala onde provavelmente não encontraria

o marido e pediu chá, como faria qualquer mulher agitada. Finalmente, quando ele apareceu, a sra. Barclay começou a

recriminá-lo violentamente. A srta. Morrison esteve com ela

durante toda aquela hora e meia, portanto era evidente que, apesar de sua negativa, ela deveria saber algo sobre o assunto.

"Minha primeira conjectura foi que possivelmente haveria algo entre a jovem e o velho soldado que a moça confessou à

esposa traída. Isso explicaria a raiva demonstrada na volta da

sra. Barclay e a negativa da srta. Morrison de que algo ocorrera. Também seria compatível com a maioria das

palavras ouvidas pelos empregados. Houve também aquela referência a um certo Davi, e todos sabem da devoção do

coronel à sua mulher. Isso para não falar da invasão desse outro homem, que poderia não estar relacionada à discussão

do casal. Não foi fácil decidir o que fazer mas, no geral, eu

estava inclinado a dispensar a idéia de que o coronel e a srta. Morrison tiveram qualquer coisa. Além disso, estava

convencido de que a moça sabia o que fizera a sra. Barclay se irritar com o marido. Assim, fiz o óbvio e fui visitá-la,

explicando-lhe que eu estava certo de que ela tinha

conhecimento dos fatos e que sua amiga, a sra. Barclay, enfrentaria uma acusação de homicídio se a questão não fosse

esclarecida. "A srta. Morrison é uma garota miúda e etérea, loira e de

olhos tímidos. Contudo não achei que lhe faltem perspicácia e bom senso. Depois que eu falei, ela permaneceu pensativa por

algum tempo, até que se virou para mim, parecendo decidida,

e deu um depoimento importante que vou condensar para seu bem.

'Prometi à minha amiga', ela começou, 'que nada diria sobre esse assunto, e uma promessa é uma promessa. Mas se posso

ajudá-la no momento em que acusação tão séria é levantada

contra ela, que não pode se defender por estar doente, então

acho que estou absolvida de minha promessa. Vou lhe contar exatamente o que aconteceu na segunda-feira à noite.

'Estávamos voltando da Missão na rua Watt, perto de quinze

para as nove. Tínhamos de passar pela rua Hudson, que é bastante sossegada. Lá só há um poste de iluminação à

esquerda. Quando nos aproximamos desse poste, vi um homem caminhando em nossa direção. Ele tinha as costas

bem curvas e trazia algo como uma caixa no ombro. Parecia bastante deformado, pois vinha com a cabeça muito baixa e

andava com os joelhos dobrados. Estávamos passando por ele

quando ergueu seu rosto para nos observar à luz do poste. Ao fazê-lo, parou e gritou, numa voz terrível: 'Meu Deus, é você

Nancy!' A sra. Barclay ficou branca como papel e teria caído se aquela criatura de aparência assustadora não a tivesse

segurado. Eu estava para chamar a polícia quando, para minha

surpresa, ela começou a falar educadamente com o sujeito. 'Pensei que estava morto há trinta anos. Henry', ela disse, com

a voz trêmula. 'E estava', ele disse, num tom de voz horrível de se ouvir. Seu

rosto era triste e amedrontador. Tinha um brilho nos olhos que sempre aparece para me assustar em sonhos. Seu cabelo e

bigode eram grisalhos e o rosto todo vincado e marcado como

uma maçã seca. 'Deixe-nos um pouco a sós, querida', disse-me a sra. Barclay.

'Preciso conversar com este homem. Não há nada que se temer', ela tentava parecer corajosa, mas continuava pálida

como um cadáver e tinha dificuldade em falar, pois seus lábios

tremiam.

'Fiz o que ela me pediu e eles conversaram durante alguns minutos. Então ela veio na minha direção, com os olhos

chispando, e vi o sujeito parado junto ao poste sacudindo o

punho no ar, como se estivesse louco de raiva. Ela nada me disse até que chegamos à porta de casa, quando me segurou a

mão e implorou que eu não contasse a ninguém o que se passara.

'Trata-se de um velho conhecido meu, que se perdeu na vida', explicou-me a sra. Barclay.

'Quando prometi que nada falaria', continuou a srta.

Morrison, 'ela me beijou e não a vi desde então. Contei-lhe toda a verdade e se a escondi da polícia foi porque não

imaginei que minha amiga corresse tanto perigo. Entretanto sei que tudo deve vir às claras para o próprio bem dela." "

- Esse foi o depoimento dela, Watson. Para mim, foi uma luz

na escuridão. Tudo, que antes parecia desconexo, começou a fazer sentido e intuí toda a seqüência de acontecimentos. Meu

passo seguinte foi tentar encontrar o homem que produziu impressão tão grande na sra. Barclay. Caso ainda estivesse em

Aldershot não seria difícil achá-lo. Não há muitos civis por lá, e um homem deformado atrairia a atenção. Passei um dia

procurando e, à noite, esta noite, Watson, encontrei-o. O

nome dele é Henry Wood e mora na mesma rua em que aquelas senhoras o encontraram. Estava há apenas cinco dias

hospedado ali. Passando-me por inspetor de hotéis e pensões, tive uma conversa muito interessante com a proprietária. Ele

é mágico e ator, e faz seus espetáculos nos bares à noite.

Carrega alguma criatura consigo naquela caixa. Sobre ela, a proprietária pareceu um pouco amedrontada, pois nunca viu

animal como aquele. O sr. Wood usa-o em alguns de seus truques, de acordo com ela. Isso foi tudo o que a mulher pôde

me dizer, além de comentar que é um milagre ele estar vivo,

sendo tão deformado, e que às vezes fala uma língua estranha e nas duas últimas noites ouviu-o gemendo e chorando em seu

quarto. Tudo vai bem quanto a dinheiro, mas no depósito inicial ele lhe deu uma moeda estranha. A proprietária me

mostrou e trata-se de uma rúpia indiana. Agora, meu caro amigo, você já sabe em que pé está a situação e por que

preciso de você. Está perfeitamente claro que, após as

mulheres partirem, esse homem as seguiu à distância, viu a briga entre marido e mulher pela janela, correu pelo gramado

e seu animal se soltou. Tudo isso está certo. Mas ele é a única pessoa neste mundo que pode nos contar exatamente o que

aconteceu naquele quarto.

- E você pretende lhe perguntar? - Claro que sim, mas na presença de uma testemunha.

- E eu sou a testemunha? Se puder fazer essa bondade. Se ele quiser esclarecer o

assunto, ótimo. Caso se recuse, não haverá alternativa senão pedir um mandado de prisão.

Como sabe que ele estará lá quando você voltar?

Pode ficar tranqüilo que tomei minhas precauções. Um dos meus garotos da rua Baker está montando guarda e vai grudar

nele, seja para onde o sujeito for. Vamos encontrá-lo na rua Mudson amanhã, Watson. Enquanto isso, eu mesmo seria um

criminoso se o mantivesse acordado por mais tempo.

- E eu sou a testemunha?

Se puder fazer essa bondade. Se ele quiser esclarecer o assunto, ótimo. Caso se recuse, não haverá alternativa senão

pedir um mandado de prisão.

Como sabe que ele estará lá quando você voltar? Pode ficar tranqüilo que tomei minhas precauções. Um dos

meus garotos da rua Baker está montando guarda e vai grudar nele, seja para onde o sujeito for. Vamos encontrá-lo na rua

Mudson amanhã, Watson. Enquanto isso, eu mesmo seria um criminoso se o mantivesse acordado por mais tempo.

Ao meio-dia estávamos no local da tragédia e, sob a

orientação do meu amigo, logo chegamos à rua Mudson. Apesar de sua capacidade em esconder suas emoções, pude

facilmente constatar a agitação em que Holmes estava, enquanto eu mesmo sentia um prazer meio esportivo, meio

intelectual que sempre experimentava quando colaborava em

suas investigações. - É aqui - ele disse ao entrarmos na rua com casas de dois

andaras e tijolos aparentes. - E aqui está Simpson. - Está tudo bem, sr. Holmes - exclamou um menino ao se

aproximar de nós. Muito bom, Simpson disse Holmes, passando-lhe a mão na

cabeça. - Venha, Watson. A casa é esta.

Ele enviou seu cartão dizendo que precisava tratar de negócios importantes. Logo estávamos cara a cara com o

homem que fôramos ver. Apesar do tempo quente, ele estava

encolhido perto da lareira e o quarto parecia um forno. O sujeito estava sentado todo retorcido, dando-nos uma

impressão indescritível de deformidade. Contudo o rosto que virou para nós, apesar de abatido e triste, devia ter sido

atraente no passado. Encarou-nos ressabiado com seus olhos

amarelados de bílis e, sem fazer menção de se levantar, indicou-nos duas cadeiras.

Sr. Henry Wood, proveniente da índia, eu acredito! disse Holmes, amigavelmente. Vim para conversar sobre esse caso

da morte do coronel Barclay. - O que eu sei disso?

- É o que vim descobrir. O senhor sabe, acredito, que, a

menos que o assunto seja esclarecido, a sra. Barclay, uma velha amiga sua. será provavelmente julgada por assassinato.

O homem deu um pulo na cadeira. - Não sei quem são vocês ele exclamou , nem como sabem o

que sabem, mas juram que é verdade isso que me dizem?

- Ora, estão apenas esperando ela recobrar os sentidos para prendê-la.

Meu Deus! Os senhores são da polícia? - Não.

- Então o que têm a ver com isso? Todo homem deve querer que a justiça seja feita.

Dou-lhes minha palavra que ela é inocente.

Então o senhor é culpado? Não, não sou.

Quem matou o coronel James Barclay, então? Foi a Providência que o matou. Saibam disto: se eu tivesse

arrebentado sua cabeça, como desejava fazê-lo, ele teria

recebido o que merecia de mim. Se sua própria consciência culpada não o tivesse abatido, eu estaria com seu sangue em

minhas mãos. Os senhores querem ouvir minha história. Ora, não sei porquê não deva contar- lhes, pois não há nada nela

que me envergonhe.

"Tudo aconteceu do jeito que vou contar. Os senhores me vêem agora que estou corcunda como um camelo e com as

costelas tortas, mas já houve um tempo em que o cabo Henry Wood era o melhor homem do 117º de Infantaria. Estávamos

acampados na Índia, num local chamado Bhurtee. Barclay, esse que morreu, era sargento na mesma companhia que eu, e

ela era a bela do regimento - Nancy Devoy, filha do sargento

porta-bandeira. Ah, era a garota mais linda que já existira. Havia dois homens que a amavam e apenas um que ela amava.

Os senhores podem rir ao olhar para esta coisa disforme diante do fogo, mas saibam que ela me amava e me achava

lindo!

"Bem, embora ela me amasse, seu pai queria que se casasse com Barclay. Eu era um jovem irresponsável, despreocupado,

enquanto Barclay era instruído e estava destinado a se tornar oficial. No entanto a garota realmente me queria, e parecia

mesmo que eu a teria, quando irrompeu o Motim e aquele país virou um inferno.

"Nosso regimento ficou preso em Bhurtee, com meia bateria

de artilharia, uma companhia de sikhs e muitos civis e mulheres. Havia dez mil rebeldes à nossa volta, excitados

como gatos à espreita de uma gaiola. Na segunda semana de sítio nossa água acabou e precisávamos descobrir como nos

comunicar com as tropas do general Neill, que subia pelo país.

Aquela era nossa única chance, pois não podíamos abrir caminho entre os rebeldes levando mulheres e crianças.

Assim, ofereci-me como voluntário para ir até o general Neill e avisar sobre nossa situação desesperada. Aceitaram-me e

discuti o assunto com o sargento Barclay, que supostamente

conhecia o território melhor que qualquer outro homem e traçou uma rota para que eu conseguisse atravessar as linhas

inimigas. Às dez da noite comecei minha aventura. Havia mil vidas para serem salvas, mas eu só pensava numa delas quando

pulei a murada naquela noite. "Minha rota levava-me pelo leito seco de um rio que, eu

esperava, me esconderia dos sentinelas inimigos. Quando virei

uma curva, porém, dei de encontro com seis deles, agachados na escuridão à minha espera. Instantaneamente levei um

golpe e tive mãos e pés amarrados. O verdadeiro golpe, no entanto, foi no coração e não na cabeça, pois, ouvindo o que

conseguia compreender do que falavam, soube que meu

camarada, o mesmo homem que traçara uma rota para mim, traiu-me, por intermédio de um criado nativo, fazendo com

que eu caísse nas mãos do inimigo. "Bem, não é preciso nos aprofundarmos nessa parte. Os

senhores já sabem do que James Barclay era capaz. Bhurtee foi libertada pelo general Neill no dia seguinte, mas os rebeldes

me levaram com eles na fuga, e se passou um ano inteiro antes

que eu visse outro europeu. Fui torturado e tentei fugir. Fui capturado e torturado novamente. Os senhores mesmos

podem ver o estado em que fui deixado. Alguns que fugiram para o Nepal me levaram junto. Depois de um tempo já

havíamos passado de Darjeeling. Os montanheses de lá

mataram os rebeldes que me aprisionavam e me fizeram escravo por um tempo, até que consegui escapar. Em vez de

voltar para o sul, entretanto, tive de ir para o norte, onde acabei me encontrando entre os afeganes. Andei por lá

durante mais de um ano, até que retornei ao Punjab, onde vivi

entre os nativos ganhando a vida com os truques que aprendera. De que me adiantava, sendo um aleijado, voltar

para a Inglaterra e rever meus velhos camaradas? Nem mesmo minha vontade de vingança foi suficiente para me fazer

voltar. Preferia que Nancy e meus velhos amigos lembrassem de mim como o Henry Wood que morreu ereto e não que me

vissem andando de quatro com uma bengala e parecendo um

chimpanzé. Eles nunca duvidaram que eu morrera e achei melhor continuar assim. Soube que Barclay casara com Nancy

e que estava subindo rapidamente no regimento, mas mesmo isso não me fez querer aparecer.

"Contudo, ao se envelhecer, a saudade de casa aperta. Durante

anos sonhei com os campos e cercas verdes da Inglaterra. Afinal, decidi-me a revê-los antes de morrer. Economizei o

suficiente para a viagem e cheguei aqui onde os soldados estão, pois sei como eles são e como poderia diverti-los, de

modo a ganhar meu sustento." Sua história é interessante disse Sherlock Holmes. - Já soube

de seu encontro com a sra. Barclay, quando se reconheceram.

Imagino que a seguiu até em casa e viu, pela janela, a briga do casal quando provavelmente, ela o recriminou violentamente

pela conduta que teve com o senhor. Seus próprios sentimentos afloraram e o senhor correu pelo gramado,

entrando na casa.

Foi isso que fiz, sim senhor. Quando me viu, ele fez uma cara que nunca vi na vida e caiu com a cabeça na proteção da

lareira. Mas estava morto antes de cair. Li a morte em seu rosto com a mesma facilidade que leio aquele aviso sobre o

fogo. A mera visão de mim foi como uma bala em seu coração

culpado. - E depois?

Nancy desmaiou e eu peguei a chave da porta, pretendendo destrancá-la e pedir ajuda. Entretanto, do jeito que as coisas

estavam, achei que poderiam se virar contra mim e que o melhor era cair fora. Na pressa, enfiei a chave no bolso e

derrubei a bengala enquanto pegava Teddy, que subira pela

cortina. Quando o coloquei de volta à caixa, de onde escapara, saí correndo o mais rápido que podia.

- Quem é Teddy? perguntou Holmes. O homem se inclinou e puxou a tampa de uma espécie de

gaiola, no canto da sala. Logo apareceu uma linda criatura, de

pêlo castanho avermelhado, magra, com pernas curtas e focinho comprido, além de um par de belos olhos vermelhos,

como nunca vi antes. - É um mangusto! - exclamei.

Bem, alguns o chamam assim, e outros de ienêumon - disse Henry Wood. Caça-cobras é como o chamo, e Teddy é

espantosamente rápido com cobras. Tenho uma sem as presas,

que Teddy captura todas as noites para divertir os sujeitos nos bares. O senhor deseja saber alguma outra coisa?

- Bem, pode ser que precisemos conversar novamente, se realmente a sra. Barclay enfrentar dificuldades.

Nesse caso é claro que me apresentarei.

Caso não seja necessário, não precisaremos levantar um escândalo contra o morto, ainda que tenha agido como agiu.

O senhor tem, pelo menos, a satisfação de saber que, por trinta anos, a consciência culpada dele o recriminou

amargamente pelo que fez. Ah, mas lá está o major Murphy,

do outro lado da rua. Até logo, Wood. Quero saber se algo mais aconteceu desde ontem.

Conseguimos alcançar o major antes que dobrasse a esquina. - Ah, Holmes - ele disse. - Suponho que você já saiba que

toda essa confusão deu em nada? - O que aconteceu?

- O inquérito foi encerrado. O legista declarou que a causa da

morte foi apoplexia. Como vê, no fim era um caso bastante simples.

- Ah, sim, bastante simples - disse llolmes, sorrindo. Vamos, Watson. Acho que não somos mais necessários em Aldershot.

Só mais uma coisa eu disse, enquanto caminhávamos até a

estação. Se o nome do marido era James e do outro é Henry, quem é Davi?

- Essa única palavra, meu caro Watson, teria me contado toda a história se eu fosse um raciocinador tão perfeito como

você gosta de descrever. Foi, evidentemente, uma forma de repreender o coronel.

- Uma forma de repreender?

- Exato. Davi cometeu seus errinhos e, em certa ocasião, agiu como o sargento James Barclay. Lembra-se do incidente de

Urias e Betsabé? Meu conhecimento bíblico está um pouco enferrujado, mas você encontrará a história em Samuel I ou

II.

O CORRETOR

Logo depois do meu casamento comprei uma clínica no distrito de Paddington. Houve uma época em que o velho

dr. Farquhar, de quem a comprei, tinha uma excelente

clientela. Mas, com a chegada da idade e de uma doença parecida com a dança de São Vito, os pacientes foram

escasseando. As pessoas, naturalmente, parecem acreditar que o médico precisa estar inteiro para poder curar os outros

e duvidam de suas capacidades terapêuticas se não consegue

tratar de si mesmo. Assim, ao mesmo tempo que meu predecessor enfraquecia, sua clientela minguava. Quando

comprei sua clínica, o negócio tinha ido de mil e duzentos para trezentos ao ano. Contudo eu confiava na minha

juventude e força de vontade, e estava convencido de que em poucos anos conseguiria pôr tudo nos eixos.

Nos três meses seguintes à compra, a clínica me absorveu

completamente, de modo que pouco vi meu amigo Sherlock Holmes, pois eu estava muito ocupado para ir até seu

apartamento na rua Baker, e ele raramente sai, a não ser por razões profissionais. Fiquei surpreso, portanto, quando,

numa manhã de junho, eu lia o British Medical Journal,

depois do café, e ouvi a campainha seguida pela voz aguda e até mesmo estridente do meu velho companheiro.

Ah, meu caro Watson ele disse, entrando na sala -, fico feliz em revê-lo. Espero que a sra. Watson esteja totalmente

recuperada das emoções decorrentes de nossa aventura com

o Signo dos Quatro.

Nós dois estamos bem, obrigado - eu disse, apertando-lhe a

mão calorosamente. Espero, também - ele continuou, sentando-se na cadeira de

balanço , que a prática da medicina não lhe tenha diminuído

o interesse que você costumava ter em nossos probleminhas dedutivos.

Pelo contrário – respondi, ontem à noite mesmo eu estava revendo minhas anotações e classificando alguns de nossos

casos. Espero que não considere sua coleção encerrada.

- Claro que não. Quero mesmo participar de outras

experiências dessas. - Hoje, por exemplo?

- Claro. Hoje, se você quiser. - Pode ir até Birmingham?

- Claro, se for necessário.

- E seus pacientes? - Eu atendo os do meu vizinho, quando ele precisa sair. Ele

pode me ajudar, também, quando preciso. - Ah, não poderia ser mais conveniente! disse Holmes,

recostando-se na cadeira e me observando através das pálpebras semicerradas. Percebo que você não esteve bem

de saúde, recentemente. Esses resfriados de verão são um

problema!

- Realmente, fiquei confinado em casa por três dias, na semana passada, devido a um forte resfriado. Pensei que

minha aparência já estava totalmente recuperada.

Está mesmo. Você parece estar muito bem. - Então como sabe?

- Meu caro amigo, já conhece meus métodos. - Deduziu, então?

- Claro que sim.

- Como? - Observando seus chinelos.

Olhei para os chinelos novos de couro que usava. - Como é que... - comecei, mas Holmes respondeu antes

que eu concluísse a pergunta. - Seus chinelos são novos ele disse. Você não os tem há

mais do que algumas semanas. O solado, que nesse momento

está virado para mim, apresenta-se levemente queimado. Por um minuto pensei que eles se molharam e foram

queimados ao serem postos para secar. No entanto, do lado interno há um pedacinho de papel com a marca da loja onde

comprou. A umidade teria removido essa etiqueta. Portanto,

você ficou alguns dias com os pés estendidos para a lareira, o que ninguém faria, num mês quente como junho, se

estivesse com a saúde perfeita. Como todas as deduções de Holmes, esta também me pare-

ceu extremamente simples depois que ele a esmiuçou. Holmes leu meus pensamentos e um sorriso amargo

apareceu em seus lábios.

Acho que acabo com o encanto do meu trabalho quando o explico ele disse. Os resultados são mais impressionantes

quando o mistério é mantido. Está pronto para ir a Birmingham, então?

- Claro, qual é o caso?

Vou lhe contar no trem. Meu cliente está esperando aí fora, numa carruagem. Pode sair imediatamente?

Num instante escrevi um bilhete para meu vizinho médico, corri escada acima para contar à minha mulher e me reuni a

Holmes na entrada de casa.

Então, seu vizinho é médico ele disse, apontando para a placa de metal na casa ao lado.

- Exato. Ele comprou a clínica, do mesmo jeito que eu. - É muito antiga?

Tanto quanto a minha. As clinicas funcionam aqui desde que as casas foram construídas.

Ah, então você ficou com a melhor das duas.

- Foi o que achei. Como sabe? Pelos degraus, meu amigo. Os seus estão mais gastos que os

dele. Mas... o cavalheiro no carro é meu cliente, o sr. Hall Pycroft. Deixe-me apresentá-los. Condutor, força com os

cavalos, pois temos pouco tempo para pegar o trem.

O homem em cuja companhia me encontrava era jovem e forte, com rosto franco e um bigodinho loiro. Usava uma

cartola brilhante e um belo terno preto, que lhe faziam parecer o que era: um jovem da City, pertencente à classe

que chamavam de cockneys, que nos davam os melhores soldados dos regimentos de voluntários, e também os

melhores atletas e esportistas destas ilhas. Seu rosto redondo

e corado parecia conter uma alegria natural, mas os cantos da boca estavam caídos, numa expressão quase cômica de

preocupação. Contudo somente quando ficamos instalados num carro de primeira classe no trem para Birmingham, já

em movimento, que pude saber qual o problema que fizera

aquele homem procurar Sherlock Holmes. Temos, à nossa frente, uma jornada de setenta minutos -

observou Holmes. Sr. Pycroft, quero que conte sua interessante experiência a meu amigo, da mesma forma que

que contou, ou com mais detalhes, se possível. Será útil, para

mim, ouvir a sucessão dos fatos novamente. Trata-se de um caso, Watson, que pode significar algo, mas também pode

não ter significado algum. De qualquer modo, apresenta aquelas características estranhas e incomuns que tanto nos

interessam. Por favor, sr. Pycroft, prometo não interromper novamente.

Nosso jovem acompanhante fitou-me com um brilho no

olhar. - O pior disso tudo - começou é que eu apareço nessa histó-

ria como um tolo confuso. É claro que tudo pode terminar bem e não vejo como poderia ter agido de outra forma.

Contudo, se perdi minha posição sem conseguir nada cm

troca, terei sido um bobalhão. Não sou muito bom para contar uma história, dr. Watson, mas vamos lá.

Eu trabalhava na Coxon & Woodhouse, em Draper’s Garden. A firma foi incorporada na primavera, durante

aquela transação com o empréstimo venezuelano, como o senhor, sem dúvida, se lembra. Então, vieram as demissões.

Eu estava na empresa há cinco anos e o velho Coxon me deu

uma ótima carta de recomendação quando veio o golpe, mas todos nós, os vinte e sete funcionários, fomos postos na rua.

Procurei emprego aqui e ali, mas havia muitos outros na mesma situação que eu e não consegui nada por muito

tempo. Recebia, na Coxon, três libras por semana, e tinha

economizado setenta, que logo acabaram. Eu estava praticamente arruinado, sem ter dinheiro para comprar selos

e envelopes para responder aos anúncios de emprego. Gastei meus sapatos correndo de escritório em escritório e parecia

tão longe de conseguir algo como no começo.

"Finalmente, soube de uma vaga em Mawson & Williams, a grande firma de corretagem na rua Lombard. Acredito que o

senhor não entende muito desse negócio, dr. Watson, mas posso lhe dizer que essa é, provavelmente, a empresa mais

rica de Londres. O anúncio deveria ser respondido apenas por carta. Enviei meu currículo e a carta de recomendação

sem ter, contudo, a menor esperança de conseguir aquela

vaga. Recebi uma resposta dizendo que eu deveria me apresentar na próxima segunda-feira para começar a

trabalhar imediatamente, desde que minha aparência fosse satisfatória. Ninguém sabe ao certo como isso funciona.

Alguns dizem que o gerente simplesmente escolhe o

primeiro currículo da pilha. De qualquer forma, aquela era minha vez e não podia estar mais feliz. O salário era uma

libra por semana maior que o anterior e as obrigações praticamente as mesmas que tinha na Coxon.

"E agora começa a parte estranha da história. Estava no meu apartamento, em Potter's Terrace, número 17 esse é o

endereço. Bem. eu estava lá, fumando, na mesma noite em

que recebi a resposta, quando apareceu a senhoria com um cartão pessoal de 'Arthur Pinner, Agente Financeiro'. Nunca

ouvira falar dele e não podia imaginar o que ele queria comigo, mas é claro que pedi a ela que o fizesse entrar. Era

um sujeito de estatura média, olhos escuros e barba negra,

com o nariz brilhante. Tinha os modos ríspidos e um jeito direto de falar, parecendo alguém que sabe o valor do

tempo. 'Sr. Hall Pycroft, eu acredito!', ele disse.

'Eu mesmo', respondi, empurrando uma cadeira para ele.

'Até recentemente empregado na Coxon & Woodhouse?' 'Sim, senhor.'

'E agora no time da Mawson's?' 'Isso mesmo.'

'Bem', ele disse. 'O fato é que tenho ouvido algumas histórias realmente extraordinárias sobre sua habilidade

financeira. Lembra- se de Parker, que era o gerente da

Coxon? Não se cansa de falar de você.' Ora, é claro que fiquei satisfeito de ouvir isso. Sempre fui

eficiente no escritório, mas nem imaginava que fizessem tais comentários a meu respeito na City2.

'Tem boa memória?', ele perguntou.

'Acho que é boa', respondi modestamente. 'Tem estado atualizado com o mercado durante esse período

em que está afastado?' 'Claro, leio o boletim da bolsa todas as manhãs.'

'Ora, isso mostra verdadeira aplicação!', ele exclamou. 'E as-sim que se sobe na vida! Não se importa se eu o testar?

Deixe-me ver! Como está Ayrshires?'

2 City = centro financeiro de Londres.

'Cento e seis e um quarto para cento e cinco e sete oitavos', respondi.

'E a New Zealand Consolidated?'

'Cento e quatro.' 'E British Broken Hills?'

'Sete para sete e seis.' 'Maravilhoso!', ele exclamou, jogando as mãos para cima.

'Realmente, faz jus a tudo que ouvi a seu respeito. Meu

garoto, meu garoto, você é muito bom para ser um empregado da Mawson's!'

Essa explosão me deixou estupefato, como os senhores podem imaginar.

'Bem', eu disse, 'outras pessoas não me têm em tão alta conta como o senhor. Dei duro para conseguir esse emprego e

estou feliz em tê-lo.'

'Bah, homem, precisa almejar mais que isso. Não está fazendo justiça a si mesmo. Vou lhe dizer qual o meu

negócio. O que tenho para lhe oferecer é pouco, se medido por sua habilidade, mas, se compararmos com a Mawson's, é

a luz no fim do túnel! Quando você vai se apresentar?'

'Segunda.' 'Ah. ah! Acho que vou arriscar uma aposta. Você não vai

estar lá no dia.' 'Não vou para Mawson's?'

'Não vai, não. Segunda você já será o gerente geral da Franco- Midland Hardware Company Ltd., com cento e

trinta e quatro filiais nas cidades e vilas da França, sem

contar uma em Bruxelas e outra em San Remo.' Isso me tirou o fôlego.

'Nunca ouvi falar dessa empresa', eu disse. 'Provavelmente não. Até agora ela tem se mantido discreta,

pois o capital foi subscrito muito reservadamente, e não se

podia deixar a coisa ficar muito pública. Meu irmão, Harry Pinner, é promotor, e participa do conselho como diretor.

Ele soube que eu vinha para Londres e me pediu para contratar um homem bom e barato; um jovem cheio de

energia e força de vontade. Parker me falou de você, o que

me trouxe aqui esta noite. Só podemos lhe oferecer míseras quinhentas libras por ano, para começar...'

'Quinhentas libras por ano!', gritei. 'Somente para começar. Você também receberá uma

comissão de um por cento sobre o total faturado por seus representantes. Pode acreditar que isso representará mais

que seu salário.'

'Mas eu não sei nada sobre os negócios de sua empresa.' 'Ora. meu jovem, você é bom com números.'

Eu ouvia um zumbido dentro da cabeça, e mal conseguia me manter sentado na cadeira. De repente, um calafrio de

dúvida me percorreu.

'Vou ser sincero com o senhor", eu disse. 'Mawson's vai me pagar apenas duzentas libras por ano. Mas na Mawson's

estarei seguro. Agora, francamente, sei tão pouco da sua empresa que...'

'Ah. esperto, muito esperto!', ele gritou, numa espécie de êxtase. 'E o homem exato para a posição. Não é convencido

facilmente, o que é bom. Agora, aqui está uma nota de cem

libras. E se achar que poderemos trabalhar juntos, basta colocá-la no bolso, como adiantamento do seu salário.'

'Isso é muito simpático", eu disse. 'Quando devo assumir mi-nhas novas funções?"

'Esteja em Birmingham amanhã, uma da tarde’, ele disse.

'Leve este bilhete para meu irmão. Você o encontrará na rua Corporation, 126B. onde os escritórios temporários da

empresa estão localizados. É claro que ele precisa confirmar sua contratação, mas, cá entre nós, já está tudo certo.'

'Ora, sr. Pinner, não sei como expressar minha gratidão, eu

disse. 'Não se preocupe com isso, meu jovem. Está recebendo

apenas o que merece. Só há duas coisinhas, meras formalidades, que preciso ver com você. Pegue esse pedaço

de papel ao seu lado e faça a bondade de escrever nele: 'Desejo trabalhar como gerente geral da Franco-Midland

Hardware Company Ltd., por um salário de no mínimo qui-

nhentas libras'. "Fiz o que ele mandou e ele guardou o papel no bolso.

'Agora, o outro detalhe', ele disse. 'O que pretende fazer a respeito da Mawson's?'

Em minha alegria, esquecera-me totalmente da Mawson's.

'Vou escrever-lhes abrindo mão do emprego', eu disse. 'É exatamente isso que não queremos que você faça. Já tive

uma discussão com um dos gerentes de lá. Fui perguntar a seu respeito e foram muito agressivos. Acusaram-me de

tentar roubar um funcionário deles, essas coisas. Afinal, perdi a cabeça e disse 'se querem bons profissionais,

deveriam pagar melhor', eu disse. 'Ele vai preferir nosso

salário, embora menor, àquilo que você oferece', ele retrucou. 'Aposto cinco libras', eu continuei, 'que vocês

nunca mais vão ouvir falar dele depois que eu fizer minha oferta.' 'Fechado', ele disse, 'nós o tiramos da sarjeta e ele

não nos deixará assim tão fácil.' Foi isso mesmo que ele

falou.' 'O. miserável!', exclamei. 'Nunca o vi em toda a minha vida.

Por que deveria lhes dar preferência? Não escreverei, se prefere assim.'

'Ótimo! E um compromisso, então", ele disse, levantando-se.

'Bem, estou muito satisfeito de ter contratado profissional tão bom para meu irmão. Pegue seu adiantamento de cem

libras e esta carta. Anote o endereço: rua Corporation, 126B. Lembre-se de que sua entrevista será amanhã à uma hora.

Boa noite e boa sorte. Você merece.' Isso foi o que aconteceu, exatamente como me lembro. Pode

imaginar, dr. Watson, como estava satisfeito com tamanha

sorte. Permaneci acordado metade da noite, acalentando a idéia. No dia seguinte, peguei um trem para Birmingham

que me levaria até lá com tempo de sobra para a entrevista. Levei minhas coisas para um hotel na rua Nova e me

encaminhei para o endereço que me fora fornecido.

Cheguei lá quinze minutos antes do horário, mas achei que não faria diferença. O número 126B era um corredor entre

duas lojas grandes, que levava até uma escada em espiral, por onde se chegava a vários conjuntos, alugados como

escritórios a empresas e profissionais. Os nomes dos locadores estavam pintados embaixo, na parede, mas não

havia nenhuma Franco-Midland Hardware Company Ltda.

Fiquei ali alguns minutos, desanimado, considerando se tudo não passava de uma piada, quando um homem se dirigiu a

mim. Ele se parecia muito com o sujeito da noite anterior, tinha a mesma aparência e voz, embora não tivesse barba e

seu cabelo fosse mais claro.

'E o sr. Hall Pycroft?', ele perguntou. 'Sim', eu disse.

'Ah! Eu o estava esperando, mas está um pouco adiantado. Recebi um bilhete de meu irmão esta manhã, no qual ele

ressaltava entusiasticamente suas qualidades.'

'Eu estava procurando o escritório nesta lista quando o senhor apareceu.'

'Nosso nome ainda não está aí, pois alugamos esse conjunto só temporariamente, e foi na semana passada. Suba comigo e

vamos discutir o assunto.' Segui-o até o topo de uma escada bem alta, chegando até

embaixo do telhado, onde havia duas salas vazias e

empoeiradas, sem tapete ou cortina, para onde ele me levou. Eu imaginara um escritório grande, com mesas brilhantes e

diversos funcionários, como estava acostumado. Fiquei olhando para as duas cadeiras baratas e para a mesinha que,

com o livro-razão e a cesta de papel, compunham toda a

mobília. 'Não desanime, sr. Pycroft', disse o homem, vendo a

expressão do meu rosto. 'Roma não foi feita em um dia, e temos muito dinheiro nos garantindo, embora ainda não

tenhamos gastado muito em escritórios. Por favor, sente-se e deixe-me ver a carta.'

Entreguei-a a ele, que a leu com muita atenção.

'Parece que você impressionou bastante meu irmão, Arthur', ele disse. 'E eu sei como ele é judicioso. Temos nossas

diferenças de opinião, o senhor compreende, mas desta vez vou seguir seu conselho. Considere-se definitivamente

contratado.'

'E quais serão meus afazeres?', perguntei. 'Oportunamente, deverá gerenciar o grande depósito em

Paris, que escoará o fluxo de cerâmica inglesa nas cento e trinta e quatro filiais francesas. A compra estará fechada em

uma semana. Enquanto isso, você deve permanecer em

Birmingham e se fazer útil.' 'Como?'

"Como resposta, ele pegou um grande livro vermelho de uma gaveta.

'Este é um catálogo dc Paris', ele disse. 'Os ramos de atividade estão ao lado dos nomes das pessoas. Quero que o

leve para casa e marque todos os possíveis revendedores de

cerâmica, bem como seus endereços. Isso me será muito útil.'

'Com certeza já existem listas organizadas', sugeri. 'Não são confiáveis. O sistema que usam é diferente do

nosso. Faça isso e me entregue as listas na segunda-feira, ao

meio-dia. Tenha um bom dia, sr. Pycroft. Se continuar a mostrar empenho e inteligência, terá nesta empresa uma boa

empregadora.' Voltei para o hotel com o livro debaixo do braço e sensações

conflituosas no peito. Por um lado estava definitivamente contratado, com cem libras no bolso. Pelo outro, a aparência

do escritório, a ausência do nome da empresa na parede e

outros pontos que chamam a atenção dc um homem de negócios compuseram má impressão dos meus

empregadores. Contudo, fosse o que fosse, eu já recebera um adiantamento do salário, de modo que me pus a trabalhar.

Dei duro todo o domingo, mas, mesmo assim, na segunda só

tinha chegado à letra H. Fui ver meu patrão. Encontrei-o no mesmo escritório desolado. Ele me mandou continuar e

voltar na quarta. Mas na quarta o trabalho continuava incompleto. Continuei até sexta, ou seja, ontem. Então, levei

a lista para o sr. Harry Pinner.

'Muito obrigado', ele disse. 'Acho que subestimei a dificuldade da tarefa. Esta lista muito me ajudará.'

'Demorei um pouco', eu disse. 'E agora', ele disse, 'quero que você faça uma lista das lojas

de móveis, pois elas também podem vender cerâmica.' 'Muito bem.'

'E você pode vir amanhã à noite, às sete, para que eu saiba

como está indo. Não se mate de trabalhar. Algum tempo no Day's Music Hall à noite, depois do trabalho, não lhe fará

mal nenhum', ele riu enquanto falava, e vi, sentindo um arrepio, que seu dente molar superior. do lado esquerdo,

tinha uma obturação de ouro."

Sherlock Holmes esfregou as mãos. Estava adorando a história. Eu olhei surpreso para nosso cliente.

Compreendo sua surpresa, dr. Watson disse Pycroft. Acontece que quando conversei com o outro patrão, em

Londres, reparei, no momento em que ele riu por eu não ir trabalhar na Mawson's, que ele tinha uma obturação de ouro

no mesmo dente. Foi o brilho do ouro que me chamou a

atenção, nos dois casos. Quando juntei isso á voz e à aparência, que eram as mesmas, e sendo que as únicas coisas

que os diferenciavam podiam ser alteradas por um barbeiro ou uma peruca, não tive dúvidas de que se tratava do mesmo

homem. É claro que dois irmãos podem se parecer, mas seria

estranho que tivessem o mesmo tipo de obturação no mesmo dente. Bem, então ele se despediu de mim e a próxima coisa

de que me lembro é estar na rua, sem saber como cheguei lá, tão confuso eu estava. Voltei para o hotel, onde enfiei a

cabeça numa bacia de água fria, tentando extrair algum

sentido daquilo tudo. Por que ele me mandou de Londres para Birmingham? Por que chegou lá antes de mim? E por

que escreveu uma carta para si mesmo? Tudo aquilo era demais para mim. De repente, ocorreu-me que talvez o sr.

Sherlock Holmes pudesse enxergar onde eu só via trevas. Então voltei pelo trem noturno e fui procurá-lo pela manhã.

E aqui estamos, todos nós, em Birmingham.

Houve uma pausa depois que o corretor concluiu sua surpreendente narrativa. Então Holmes olhou para mim e se

recostou no assento, com uma expressão ao mesmo tempo crítica e satisfeita, como um enólogo que acaba de tomar o

primeiro gole de um vinho excepcional.

Não é espantoso, Watson? ele disse. Há pontos que me agradam. Acho que concordará comigo que uma entrevista

com o sr. Arthur Harry Pinner, nos escritórios temporários da Franco-Midland Hardware Company Ltda., será uma

experiência muito interessante para nós dois. - Como vamos fazer isso? - perguntei.

- Ah, vai ser fácil disse Hall Pycroft. Vocês são meus amigos

que precisam de um emprego. Não seria natural que eu os trouxesse comigo, para falar com o patrão?

- É claro! É claro! - disse Holmes. Gostaria de dar uma olha-da nesse sujeito, para ver se consigo adivinhar seu joguinho.

Quais são suas qualidades, meu amigo, que o tornam tão

valioso? Ou será que... - então Holmes começou a roer as unhas e a olhar pela janela, e não conseguimos lhe fazer

falar mais nada até chegarmos ao hotel da rua Nova. As sete da noite estávamos os três a caminho do escritório da

empresa, na rua Corporation.

Não adianta chegarmos lá antes da hora disse nosso cliente. Parece que ele só vai até lá para me ver, pois o local fica

vazio até a hora marcada. - Isso é sugestivo - disse Holmes.

- Por Deus, eu lhes disse! - exclamou o corretor. Lá está ele, andando à nossa frente.

Ele apontou um sujeito de pouca estatura e cabelos claros,

do outro lado da rua. Enquanto o observávamos, ele olhou para um garoto que vendia a edição mais recente do jornal

vespertino. Correndo entre carruagens e ônibus, ele comprou um exemplar. Então desapareceu por uma porta.

Lá vai ele exclamou Hall Pycroft. - Ele está indo para os

escritórios da empresa. Venham comigo e vamos esclarecer essa história.

Subimos cinco andares atrás dele, até que nos encontramos diante de uma porta entreaberta, na qual nosso cliente

bateu. Uma voz nos mandou entrar e nos vimos numa sala praticamente vazia, como Pycroft havia descrito. O homem

que víramos na rua sentava-se à única mesa, com o jornal

aberto diante de si. Ele olhou para nós e me espantou sua expressão de pesar - na verdade, algo maior que pesar.

Estava aterrorizado como poucos homens ficam. Sua testa estava molhada de suor e as faces brancas como a barriga de

um peixe. Os olhos encaravam-nos fixos e assustados. Ele

fitou Pycroft como se não o reconhecesse, e percebi, pelo espanto demonstrado por nosso cliente, que essa não era a

aparência normal de seu patrão. Está parecendo doente, sr. Pinner ele exclamou.

- De fato, não estou muito bem - respondeu o outro,

fazendo um esforço óbvio para se controlar e passando a língua pelos lábios secos antes de falar. Quem são esses

cavalheiros? Este é o sr. Harris, de Bermondsey, e o outro é o sr. Price,

daqui mesmo inventou Pycroft. São amigos meus, experientes, mas desempregados há algum tempo. Querem

saber se há alguma vaga na empresa.

Possivelmente! Muito possivelmente! exclamou o sr. Pinner, com um sorriso forçado. Acredito que poderemos fazer algo

por vocês. O que faz, sr. Harris? - Sou contador respondeu Holmes.

- Ah, claro, precisaremos de algo assim. E o sr. Price?

- Sou escriturário - respondi. Acredito mesmo que a empresa poderá empregá-los.

Mandaremos notícias assim que chegarmos a uma conclusão. E agora eu lhes peço para irem embora. Pelo amor de Deus,

deixem-me sozinho! As últimas palavras foram gritadas, como se o nervosismo

que ele procurava conter finalmente escapara de controle.

Eu e Holmes nos entreolhamos. Hall Pycroft deu um passo adiante.

- Esqueceu-se, sr. Pinner, que estou aqui a seu pedido, para receber instruções?

- Claro, sr. Pycroft, claro o outro respondeu num tom mais

calmo. - Só peço que espere um momento, e não há por que seus amigos não possam esperar com você. Peço-lhes que

tenham a paciência de aguardar três minutos. Ele se levantou e, fazendo uma reverência para nós, saiu por

uma porta nos fundos do escritório, que fechou atrás de si.

- E agora - sussurrou Holmes. Será que está tentando fugir? Impossível - respondeu Pycroft.

- Por quê? Aquela porta dá para uma sala interna.

- Sem saída? - Nenhuma.

-Tem alguma mobília?

- Ontem estava vazia. - Então o que ele pode estar aprontando? disse Holmes.

Tem algo que não entendo, nessa história. Se já vi um homem transfigurado pelo terror, esse era Pinner. O que

pode tê-lo deixado assim?

- Talvez suspeite que somos detetives sugeri. - É isso! - concordou Pycroft.

Ele não ficou pálido disse Holmes. balançando a cabeça. - Ele já estava pálido quando entramos na sala. Será que...

Suas palavras foram interrompidas por batidas fortes vindas da saleta interna.

- Por que diabos ele está batendo na sua própria porta?

exclamou Pycroft.

De novo e mais alto ouvimos as batidas. Ficamos olhando, na expectativa, para a porta fechada. Olhando para Holmes,

percebi seu rosto ficar sério e ele, agitado. Então ouvimos

um gargarejo abafado e mais batidas na madeira. Holmes atravessou a sala de um pulo e empurrou a porta, que estava

trancada. Seguindo seu exemplo, todos nós pulamos com todo nosso peso na porta. Uma dobradiça cedeu, depois

outra e a porta veio abaixo. Passando por ela, encontramo-

nos na saleta interna. Estava vazia.

Ficamos desorientados apenas por um instante. No outro canto, próximo à sala onde estávamos, havia outra porta.

Holmes abriu-a. No chão havia um paletó e um colete. Num gancho atrás da porta, pendurado pelo pescoço com seus

próprios suspensórios, estava o diretor da Franco-Midland

Hardware Company. Os joelhos estavam dobrados, a cabeça caída num ângulo assustador. Os calcanhares batiam contra

a porta, o que produziu o barulho que interrompeu nossa conversa. Assim que o vi, segurei-o pela cintura e o ergui,

enquanto

Holmes e Pycroft desamarravam as tiras elásticas, que haviam sumido entre as dobras pálidas de pele. Então o

carregamos para a outra sala, onde o deitamos. Estava mortalmente pálido, com os lábios arroxeados tremendo a

cada respiração curta. Eram os restos do homem com quem conversáramos há cinco minutos.

O que acha, Watson? perguntou Holmes.

Debrucei-me sobre ele e o examinei. O pulso estava fraco e irregular, mas a respiração melhorava e suas pálpebras

tremiam, mostrando um pedaço do olho.

Ele esteve por um fio respondi , mas vai ficar bem. Abra a janela e me dê a garrafa de água.

Abri seu colarinho, joguei água fria em seu rosto e fiquei levantando e abaixando seus braços, até que a respiração se

normalizasse.

Logo ele vai estar bem eu disse, afastando-me dele. Holmes permaneceu junto á mesa, com as mãos nos bolsos

da calça e o queixo enterrado no peito. Acho que precisamos chamar a polícia ele disse. Mas gosta-

ria de ter concluído quando eles chegarem. - E um maldito mistério para mim exclamou Pycroft,

coçando a cabeça. O que eles queriam, fazendo-me vir até

aqui, e depois... Ora! Isso está muito claro disse Holmes, impacientemente. -

E esse último ato que não entendo. - Compreendeu o resto, então?

- Acho que é bastante óbvio. O que me diz. Watson?

Dei de ombros. - Confesso que não compreendi nada.

Ora, se refletirmos sobre os eventos, eles só podem apontar para uma conclusão.

- E qual é? Bem, toda a coisa se apóia em dois pontos. O primeiro foi

fazerem Pycroft escrever uma declaração solicitando sua

entrada na empresa fictícia. Não percebem como isso é sugestivo?

- Receio que não. - Bem, o que eles queriam? Certamente que isso nada tinha

a ver com o trabalho, pois declarações desse tipo não são

pedidas. Havia uma razão, porém, para que neste caso fosse necessário. Não percebe, meu amigo, que estavam ansiosos

para obter uma amostra da sua caligrafia, e não havia outro modo de fazê-lo?

- Para quê?

Isso mesmo. Para quê? Ao respondermos a essa pergunta, progredimos na elucidação do problema. Para quê? Só pode

haver uma razão. Alguém queria aprender a imitar sua escrita, e para tanto necessitava de uma amostra. Agora, se

passarmos para o segundo ponto, veremos que um ilumina o outro. Trata-se do pedido, feito por Pinner, que você não

deveria escrever para a Mawsons renunciando ao emprego,

mas que deixasse o gerente dessa importante organização aguardando um certo sr. Hall Pycroft. que eles nunca

tinham visto, aparecer no escritório na manhã de segunda-feira.

Oh, Deus! exclamou nosso cliente. - Que idiota eu fui!

Agora já compreendeu o porquê da necessidade de uma amostra da sua caligrafia. Suponha que alguém aparecesse no

seu lugar escrevendo com uma letra totalmente diferente daquela que estava na carta solicitando o emprego. É claro

que isso complicaria o joguinho deles. Entretanto, nesse meio tempo, o bandido aprendeu a imitá-lo, estando assim

seguro, pois, presumo, ninguém no escritório conhecia você

pessoalmente. - Ninguém mesmo - gemeu Hall Pycroft.

Muito bem. Era da maior importância evitar que você repensasse o assunto e que não tentasse entrar em contato

com alguém que pudesse lhe contar sobre seu dublê que

estava trabalhando no escritório da Mawsons. Para isso deram-lhe um belo adiantamento de salário e fizeram-no vir

até Birmingham, onde lhe deram trabalho o bastante para evitar que voltasse a Londres, onde poderia colocar em perigo

os planos deles. Tudo isso está muito evidente.

- Mas por que esse homem fingiu ser seu próprio irmão? Ora, isso também é óbvio. Evidentemente, há apenas dois

envolvidos nesse golpe. Um deles está representando você, na Mawsons. Este aqui atuou como recrutador. Os dois

perceberam que não conseguiriam arrumar um patrão para você sem colocar uma terceira pessoa no esquema. Isso eles

não queriam fazer. Então este se disfarçou o melhor que

podia, esperando que você creditasse a semelhança entre eles ao fato de serem irmãos. Contudo tivemos sorte, porque se

não fosse a obturação de ouro, talvez você nunca suspeitasse de nada.

Bom Deus! exclamou Hall Pycroft, balançando os punhos

fechados no ar. — Enquanto fui iludido dessa forma, o que o outro Hall Pycroft esteve fazendo na Mawsons? O que devo

fazer, sr. Holmes? Diga-me o que fazer. Devemos telegrafar à Mawson’s.

Eles fecham ao meio-dia, aos sábados. - Por isso, não. Deve haver um porteiro ou guarda...

- Ah, sim. Eles mantêm guardas vinte e quatro horas por dia.

devido a ações e títulos que guardam. Lembro-me de ter ouvido falar a respeito, na City.

- Então vamos lhe passar um telegrama, perguntando se está tudo bem e se trabalha, lá, um funcionário com seu nome. Até

aqui está tudo esclarecido, só não entendo é por que um dos

bandidos, ao nos ver, sai da sala e tenta se enforcar. - O jornal! - rangeu uma voz atrás de nós. O homem se

sentara, branco como um fantasma, a lucidez voltando aos seus olhos. Com as mãos ele massageou o vergão vermelho

que lhe circundava a garganta.

- O jornal, é claro! gritou Holmes, agitadíssimo. Que idiota eu fui! Pensei tanto em nossa visita que o jornal nem me

passou pela cabeça. E claro que a resposta está nele. Holmes abriu o jornal sobre a mesa e soltou uma exclamação

de triunfo. -Veja isto. Watson! É um jornal de Londres, o Evening

Standard. Aqui está o que procuramos. Veja as manchetes:

"Crime na City. Assassinato na Mawson & Williams. Gigantesca Tentativa de Roubo. Captura do Criminoso". Por

favor. Watson, leia para nós. Estamos todos ansiosos para saber o que se passou.

Pelo destaque no jornal, aquele fora o evento mais importante

do dia. A reportagem informava o seguinte: "Uma tentativa desesperada de roubo, que culminou com a

morte de um homem e a captura do criminoso, ocorreu esta tarde na City. Há algum tempo a Mawson & Williams, famosa

corretora de valores, tornou-se guardiã de títulos e ações que somam um valor superior a um milhão de libras esterlinas. O

diretor da empresa, consciente da responsabilidade com que

arcava, em conseqüência dos grandes interesses envolvidos, adquiriu modernos cofres e empregou uma guarda armada,

que mantém um homem vinte e quatro horas por dia dentro da empresa. Aparentemente, um novo funcionário, chamado

Hall Pycroft, foi contratado na semana passada. Essa pessoa

tratava-se, pelo que se apurou, de ninguém menos que Beddington. famoso falsificador e arrombador que,

juntamente com seu irmão, acaba de cumprir pena de cinco anos. De algum modo, ainda não esclarecido, ele conseguiu

um emprego na financeira, com nome falso, que utilizou para

obter moldes de várias fechaduras e a localização dos cofres. "É costume, na Mawson’s, que os funcionários, aos sábados,

saiam ao meio-dia. O sargento Tuson, da Polícia londrina, ficou surpreso, portanto, ao ver um homem saindo da

financeira com uma bolsa às treze c vinte. Como isso levantou suas suspeitas, o sargento seguiu o homem, conseguindo, com

a ajuda do policial Pollock, prendê-lo, após desesperada

resistência. Imediatamente, ficou claro que uni roubo audacioso e gigantesco fora cometido. Ações ao portador de

ferrovias americanas, minas c outras empresas, no valor aproximado de cem mil libras, foram encontradas na sacola.

Ao se examinar o local do crime, foi encontrado o corpo do

guarda dentro de um dos cofres, onde permaneceria até a manhã de segunda-feira se não fosse pela entrada em ação do

sargento Tuson. O crânio do vigia foi esmagado por um bastão, com um golpe dado pelas costas. Acredita-se que

Beddington tenha conseguido entrar fingindo que esquecera algo no escritório e, após assassinar o guarda, foi até o cofre

maior, de onde retirou as ações. Seu irmão, que normalmente

trabalha com ele, não apareceu neste crime, pelo que se sabe

até aqui. Contudo a polícia investiga para descobrir seu paradeiro".

Bem, acho que pouparemos trabalho à polícia - disse Holmes,

olhando para o sujeito caído junto à janela. - A natureza humana é estranha, Watson. Veja que até um bandido

assassino pode inspirar tal afeto que seu irmão tenta o suicídio quando fica sabendo que o outro enfrentará a forca. Não

temos escolha quanto ao que fazer. Eu e o dr. Watson

estaremos ao seu lado, sr. Pycroft, se fizer a bondade de se apresentar à polícia.

O ENIGMA DO CORONEL HAYTER

Demorou algum tempo até que a saúde de meu amigo,

Sherlock Holmes, se recuperasse do desgaste causado por seus imensos esforços na primavera de 1897. A questão da

Netherland-Sumatra Conipany e dos colossais esquemas do barão Maupertins está ainda muito viva na memória do

público, e suas ligações com política e finanças fazem com que não seja adequada para constar na série de casos que tenho

descrito. Mesmo assim, ela levou, de modo indireto, a um

problema único e bastante complexo, que deu ao meu amigo a oportunidade de demonstrar o valor de uma nova arma, entre

tantas que tem empregado em sua vida contra o crime. Ao consultar minhas anotações, vi que em 14 de abril recebi

um telegrama de Lyon, informando-me que Holmes estava

doente no Hotel Dulong. Em menos de vinte e quatro horas eu estava à seu lado e tranqüilo após constatar que seus

sintomas nada tinham de extraordinário. Sua forte

constituição, no entanto, sentira o desgaste proporcionado por uma investigação que se estendeu por dois meses, durante os

quais ele nunca trabalhou menos que quinze horas por dia.

Mais de uma vez, ele me contou, trabalhou por cinco dias seguidos, sem descanso. O triunfo de sua missão, contudo, não

conseguiu salvá-lo da reação que seu organismo mostrou após esforço tão terrível. Assim, enquanto a Europa inteira

festejava seu nome, e seu apartamento permanecia entupido

de telegramas de felicitações, encontrei-o vítima da mais profunda depressão. Não foi suficiente, para tirá-lo daquela

prostração nervosa, ele saber que tivera sucesso onde as po-lícias de três países falharam e que conseguira desmontar

todas as manobras do vigarista mais habilidoso do continente. Três dias depois estávamos de volta à rua Baker. Era evidente,

porém, que meu amigo precisava de novos ares. Pensei que

uma semana de primavera no campo faria bem também para mim. O coronel Hayter, um bom e velho amigo que esteve

sob meus cuidados médicos no Afeganistão e que no momento residia em uma casa em Reigate, Surrey, freqüentemente me

convidava para visitá-lo. Na última oportunidade disse-me

que, se Holmes quisesse me acompanhar, ele ficaria feliz em hospedá-lo também. Precisei usar de certa diplomacia para

convencer Holmes. Mas ele acabou concordando quando soube que o coronel era solteiro e que teria liberdade total

enquanto lá estivesse. Uma semana depois que voltamos de Lyon, portanto, estávamos sob os cuidados do coronel. Hayter

era um velho soldado que conhecia muito do mundo. Logo

descobriu, como eu esperava, que ele e Holmes tinham muito cm comum.

Na noite de nossa chegada fomos para a sala de armas, depois do jantar. Holmes esticou-se no sofá, enquanto Hayter e eu

apreciávamos sua coleção de armas de fogo.

- Por falar nisso - ele disse, de repente -, acho que vou levar uma destas pistolas para o quarto, para o caso de termos algum

problema. - Algum problema! - exclamei.

- É, tivemos alguns sustos por aqui, recentemente. O velho

Acton, um dos magnatas da região, teve sua casa invadida na última segunda-feira. Não foi nada demais, mas os bandidos

continuam à solta. - Nenhuma pista? - perguntou Holmes, olhando para o

coronel. - Ainda não. O crime foi insignificante, coisa de ladrão de

galinhas. Algo muito pequeno para merecer sua atenção,

Holmes, ainda mais depois desse grande caso internacional. Holmes acenou, recusando o cumprimento, mas seu sorriso

deixou claro que ficou satisfeito. - O crime teve algo de interessante? ele perguntou.

Acho que não. Os ladrões saquearam a biblioteca c

conseguiram muito pouco por tanto trabalho. Botaram o lugar de ponta-cabeça, revirando gavetas e armários. Pegaram um

volume de Homero, com tradução de Pope, dois candelabros folheados, um peso de papel de marfim, um pequeno

barômetro de carvalho e um rolo de barbante. É só. - Que roubo estranho! exclamei.

- Ah, evidentemente os ladrões pegaram o que conseguiram

encontrar. Do sofá, Holmes resmungou qualquer coisa.

- A polícia local deve deduzir algo disso ele falou. Ora, é bastante óbvio que...

Eu o interrompi levantando a mão.

- Está aqui para descansar, meu caro. Pelo amor de Deus, não comece outro problema, quando seus nervos ainda estão em

frangalhos. Holmes deu de ombros, lançando um olhar cômico de

resignação para o coronel, e a conversa mudou para assuntos

menos perigosos. Quis o destino, contudo, que todo meu cuidado profissional se

perdesse, pois na manhã seguinte o problema se colocou diante de nós de tal forma que não podia ser ignorado, e nosso

feriado no campo tomou um rumo que nenhum de nós tinha previsto. Tomávamos o café da manhã quando o mordomo do

coronel irrompeu na sala quase fora de si.

- O senhor já soube? ele gaguejou. - Foi no Cunningham, meu senhor!

- Roubo? exclamou o coronel, ainda com a xícara no ar. - Assassinato!

O coronel assobiou.

- Por Deus - ele disse. - Quem morreu, então? J. P. ou o filho?

- Nenhum dos dois. Foi William, o cocheiro. Levou um tiro no coração, senhor, e silenciou para sempre.

- Mas quem atirou? - O ladrão. Fugiu como uma bala e escapou. Estava no

terraço quando William o surpreendeu e encontrou a morte

defendendo a propriedade do patrão. - A que horas foi isso?

- Tarde, perto de meia-noite. Ah, vamos até lá agora mesmo - disse o coronel, voltando-se

novamente à sua refeição. Isso não vai bem acrescentou,

quando o mordomo saiu. O velho Cunningham é nosso principal fidalgo e também uma pessoa muito decente. Isso

vai abalá-lo bastante, pois William estava com ele há anos e era um bom empregado. Evidentemente, são os mesmos

bandidos que invadiram a casa de Acton.

Que roubaram aqueles objetos singulares? perguntou Holmes, pensativo.

- Exatamente. Hum! Talvez a coisa seja muito simples. De qualquer modo,

assim, à primeira vista, trata-se de algo estranho, não acha? Uma quadrilha de ladrões, agindo no interior, normalmente

muda de local e não arromba duas casas no mesmo distrito

com intervalo de poucos dias. Quando você falou, na noite passada, de tomar precauções, me ocorreu que,

provavelmente, esta seria a última comunidade da Inglaterra para a qual o ladrão, ou os ladrões, voltaria sua atenção. Isso

mostra o quanto eu ainda tenho de aprender.

Acho que são criminosos da região disse o coronel. - Nesse caso, é claro que as casas de Acton e Cunningham seriam suas

primeiras escolhas. Elas são, de longe, as maiores por aqui. - Eles são os mais ricos, também?

- Bem, devem ser. Travaram uma batalha judicial, durante anos, que lhes sugou o sangue. O velho Acton tem uma

demanda sobre metade da propriedade de Cunningham, e os

advogados se agarraram à disputa com todas as forças.

Se for um bandido local, não será difícil pegá-lo disse Holmes, bocejando. - Tudo bem, Watson, não pretendo me intrometer.

- O inspetor Forrester, meu senhor anunciou o mordomo,

abrindo a porta. O oficial, um jovem de aparência inteligente, entrou na sala.

- Bom dia, coronel ele disse. Espero não estar atrapalhando, mas soube que o sr. Holmes, de Londres, está aqui.

O coronel apontou meu amigo e o inspetor cumprimentou-o.

Pensamos que, talvez, gostasse de dar uma olhada nisso, sr. Holmes.

- O destino está contra você, Watson Holmes disse, rindo. Conversávamos sobre o assunto quando chegou, inspetor.

Talvez possa nos fornecer os detalhes. Quando Holmes se recostou, em sua atitude costumeira, eu

soube que não adiantava protestar.

- Não tivemos pistas no caso de Acton, mas neste temos muitas e não há dúvida de que se trata da mesma quadrilha.

Viram o homem. -Ah!

- Sim, senhor. Ele desapareceu como um raio, depois de

disparar o tiro que matou o pobre William Kirwan. O sr. Cunningham viu-o pela janela do quarto e o sr. Alec

Cunningham viu-o pelo corredor de trás. Faltavam quinze para a meia-noite quando deram o alarme. O sr. Cunningham

acabara de deitar e o sr. Alec fumava charuto, já de roupão. Os dois ouviram William, o cocheiro, gritar por ajuda. O sr. Alec

correu escada abaixo para ver do que se tratava. A porta de

trás estava aberta e quando ele chegou ao pé da escada viu os dois homens brigando lá fora. Um deles disparou o tiro, o

outro caiu e o assassino correu pelo jardim, pulando a cerca. O sr. Cunningham, olhando pela janela do quarto, viu o

assassino quando este chegava à estrada, mas logo perdeu-o de

vista. O sr. Alec parou para ver se conseguia ajudar o ferido, e assim o criminoso conseguiu escapar. Além de ser um homem

de tamanho médio, vestindo roupa escura, não conseguimos nenhuma descrição. Contudo estamos nos empenhando nas

investigações e, se for um estranho à região, logo o pegaremos.

O que William estava fazendo ali? Ele disse algo antes de morrer?

- Nem uma palavra. Ele morava na edícula, com a mãe. Como era um empregado muito fiel, imaginamos que foi até a

casa para ver se estava tudo bem. Depois desse incidente com o Acton, todos estamos de guarda. O ladrão devia ter acabado

de arrombar a porta, pois a fechadura foi forçada, quando

William o surpreendeu. - William disse algo à mãe, antes de sair?

Ela é muito velha e surda. Não conseguimos nenhuma informação com ela. Agora está em choque, mas ela nunca foi

muito esperta. Temos, porém, uma evidência muito

importante. Vejam isto! Ele tirou um pedaço de papel de dentro de seu caderninho e

colocou-o sobre a mesa. Encontramos entre o polegar e o indicador do morto. Parece o

fragmento de uma folha maior. Observem que a hora mencionada é a mesma em que o cocheiro foi morto. O

assassino provavelmente arrancou o resto da folha de sua mão

ou ele tirou esse fragmento do assassino. Parece que se trata de um encontro.

Presumindo-se que se trata de um encontro continuou o inspetor -, é uma teoria possível que William Kirwan, embora

tivesse a reputação de ser homem honesto, podia estar de

acordo com o ladrão. Pode ter se encontrado com ele e até o ajudado a forçar a porta. Depois, por algum motivo.

desentenderam-se. - Esse papel é muito importante disse Holmes, que o estivera

examinando extremamente concentrado. - Trata-se de assunto

mais sério do que eu pensava, ele apoiou a cabeça nas mãos, enquanto o inspetor sorria ao observar o efeito que o caso

produzia no famoso especialista londrino. Seu último comentário - disse Holmes, afinal, sobre a possibilidade de

haver um arranjo entre o ladrão e o empregado, é sagaz e totalmente possível. Mas o bilhete começa... - ele novamente

apoiou a cabeça nas mãos e permaneceu assim,

profundamente concentrado, por alguns minutos. Quando ergueu a cabeça, surpreendi-me ao ver que suas faces estavam

coradas e os olhos brilhantes como antes do seu esgotamento nervoso. Ele se pós de pé com o mesmo entusiasmo de

sempre.

- Vou lhe dizer uma coisa: gostaria de dar uma olhada mais de perto nesse caso. Ele tem algo que me fascina. Se me

permite, coronel, vou deixar meu amigo Watson com o senhor e irei com o inspetor testar algumas suposições

minhas. Estarei de volta em meia hora. Uma hora e meia se passaram antes que o inspetor voltasse

sozinho.

O sr. Holmes está andando para cima e para baixo no jardim ele disse. - Quer que nós todos vamos até a casa com ele.

- Até a casa de Cunningham? - Sim, senhor.

- Para quê?

O inspetor encolheu os ombros. - Não sei ao certo. Cá entre nós, acho que o sr. Holmes ainda

não se recuperou totalmente. Está se comportando de modo estranho e está muito agitado.

- Não precisa se assustar eu disse. Já descobri que há método

na loucura de Holmes. Talvez haja loucura no método dele murmurou o inspetor. Ele

está ansioso para começar, coronel. É melhor irmos logo, se o senhor estiver pronto.

Encontramos Holmes andando para cima e para baixo no jardim, com o queixo enfiado no peito e as mãos nos bolsos da

calça.

- O caso fica cada vez mais interessante ele disse. Watson, sua viagem ao campo está sendo um sucesso e tanto. Tive uma

manhã encantadora. - Você já viu a cena do crime? perguntou o coronel.

- Já. Eu e o inspetor fizemos, juntos, o reconhecimento.

-Alguma novidade? Bem, vimos coisas muito interessantes. Vou lhes contar o que

fizemos enquanto caminhamos. Em primeiro lugar, vimos o corpo do infeliz. Realmente, morreu devido ao disparo, como

foi dito. - Duvidava disso, então?

Nunca faz mal testar tudo. Nossa inspeção não foi perdida.

Depois conversamos com o sr. Cunningham e seu filho, que

souberam indicar o ponto exato onde o assassino pulou a cerca em sua fuga. Isso ajudou muito.

- Naturalmente.

Então fomos ver a mãe do infeliz. Nada conseguimos dela, contudo, pois está muito velha e fragilizada.

li qual resultado obteve de suas investigações? A convicção de que se trata de um crime muito peculiar.

Talvez nossa visita, agora, possa ajudar a esclarecê-lo. Acho

que nós dois concordamos, inspetor, que o fragmento de papel, encontrado na mão do morto, trazendo a hora do

crime, é extremamente importante. Deve nos dar uma pista, sr. Holmes.

Ele nos dá uma pista. Quem quer que tenha escrito esse bilhete foi o homem que tirou William Kirwan da cama

naquela hora. No entanto onde está o resto dele?

Examinei a cena do crime cuidadosamente na esperança de achá-lo - informou o inspetor.

Foi arrancado da mão do morto. Por que alguém estava tão ansioso para pegá-lo? Porque o incriminava. E o que ele faria

com o restante do bilhete? Provavelmente enfiaria no bolso,

sem reparar que parte dele ficara em poder do cadáver. Se conseguirmos o restante, avançaremos bastante na solução do

mistério. É verdade. Mas como poderemos chegar ao bolso do

criminoso sem antes chegar ao criminoso? Ora, ora. Vale a pena pensar nisso. Existe outro ponto óbvio.

O bilhete foi enviado a William. Quem o escreveu não pode

ser quem o pegou. Do contrário, poderia ter dado a mensagem

verbalmente. Quem trouxe a carta, então? Ou ela veio pelo correio?

Eu perguntei, disse o inspetor e soube que William recebeu

uma carta ontem pelo correio da tarde. Ele mesmo destruiu o envelope.

Excelente! exclamou Holmes, batendo nas costas do inspetor. Falou com o carteiro. E um prazer trabalhar com o senhor.

Bem, aqui estamos, na edícula. Se quiser me acompanhar,

coronel, vou mostrar-lhe a cena do crime. Passamos pelo chalé onde o morto vivia e andamos pela

alameda de carvalhos até a bela casa do tempo da rainha Anne, que indicava sua data de construção numa plaquinha

acima da porta. Holmes e o inspetor nos fizeram circundar a casa até chegarmos ao portão lateral, que fica separado do

jardim por uma cerca viva paralela à estrada. Um policial

estava de guarda junto à porta da cozinha. Abra a porta, oficial disse Holmes. Foi daquela escada que o

jovem sr. Cunningham viu os dois homens lutando, aqui onde estamos. O velho sr. Cunningham estava naquela janela, a

segunda à esquerda, e viu o assassino fugir pela esquerda

daquele arbusto. Foi o mesmo que seu filho viu. Os dois têm certeza disso e têm o arbusto como referência. Então, o sr.

Alec correu e se ajoelhou ao lado do homem baleado. O solo está muito duro, como vêem, e não há sinais para nos

orientar. Enquanto ele falava, dois homens vieram andando da casa

pelo jardim. Um era mais velho e tinha o rosto todo enrugado.

O outro era jovem e extrovertido, cuja expressão sorridente,

aliada à sua roupa extravagante, contrastava estranhamente com o fato que nos levara até lá.

- Ainda com isso? Ele perguntou a Holmes. Eu pensava que

vocês londrinos nunca falhassem. O senhor está me parecendo um tanto lerdo, por outro lado.

- Ah! Precisa nos dar um tempinho disse Holmes, bem- humorado.

- Será mesmo necessário disse o jovem Alec Cunningham.

Afinal, não vejo que tenhamos qualquer pista. - Somente uma respondeu o inspetor. Pensamos que se fosse

possível obter... Meu Deus! O que tem. sr. Holmes? O rosto de meu amigo assumiu uma expressão assustadora.

Seus olhos viraram, as feições contraíram-se e ele gemeu, caindo de rosto no chão. Assustados pelo ataque repentino e

violento, carregamos Holmes para a cozinha, colocando-o

numa poltrona, onde ficou respirando pesadamente por alguns minutos. Finalmente, envergonhado por demonstrar

sua fraqueza, levantou-se. - Watson pode lhes contar que ainda estou me recuperando

de uma enfermidade séria ele explicou. Estou sujeito a esses

ataques nervosos repentinos. - Quer que o mande de volta na minha carruagem?

perguntou o velho Cunningham. Bem. já que estou aqui. gostaria de me certificar sobre uma

coisa. Podemos verificá-la facilmente. - O que é?

Parece-me possível que o pobre William tenha chegado

depois, e não antes, de o ladrão invadir a casa. Parece-me que

vocês aceitaram simplesmente que, embora tenha arrombado a porta, ele não chegou a entrar na casa.

- Isso me parece muito óbvio disse o sr. Cunningham,

seriamente. Ora, meu filho Alec ainda não fora para a cama e teria ouvido se alguém estivesse andando pela casa.

- Onde ele estava? - Fumando, no meu vestiário respondeu o jovem Alec.

- Qual é a janela?

- A última, à esquerda. Ao lado do quarto de papai. As luminárias estavam acesas?

- Claro. Isso é estranho disse Holmes, sorrindo. Não é formidável que

um ladrão, que já tinha alguma experiência, tenha deliberadamente invadido uma casa quando podia ver, pelas

janelas iluminadas, que duas pessoas da casa ainda estavam

acordadas? - Deve ser um homem frio.

Ora, certamente que se o caso não fosse estranho não teríamos pedido sua colaboração disse o jovem Alec. Quanto à sua

idéia, no entanto, de que ele tenha roubado a casa antes que

William o surpreendesse, ela é absurda. Não teríamos encontrado tudo revirado e dado por falta de alguma coisa?

Depende do que ele roubou - disse Holmes. - Devem se lembrar de que estão lidando com um ladrão bastante

particular, que parece seguir um raciocínio próprio. Vejam, por exemplo, as coisas estranhas que ele roubou na casa de

Acton: um rolo de barbante, um peso de papel e não sei mais

que esquisitices!

Bem, estamos nas suas mãos, sr. Holmes - disse o sr. Cunningham. Qualquer coisa que o senhor ou o inspetor

sugerirem será feita.

- Em primeiro lugar disse Holmes gostaria que o senhor oferecesse uma recompensa. E paga pelo senhor, pois a polícia

pode demorar a concordar com a quantia, e ela sempre demora a fazer essas coisas. Já rascunhei a proposta aqui. O

senhor precisa apenas assiná-la. Acho que cinqüenta libras são

suficientes. Daria quinhentas de boa vontade - disse o sr. Cunningham,

pegando o pedaço de papel e a caneta que Holmes lhe entregou. - Contudo isto aqui está errado - ele disse, ao ler o

escrito. - Escrevi apressadamente.

Veja que o senhor começa: "Aproximadamente às quinze para

uma da manhã de terça-feira tentaram...", e assim por diante. Na verdade. foi às quinze para a meia-noite.

Fiquei consternado com o erro, pois sabia que Holmes ficaria embaraçado por cometer tal engano. Sua especialidade era ser

preciso, mas sua doença realmente o abalara e esse incidente

me mostrava que ele ainda estava longe de ser o Holmes de sempre. Ele ficou evidentemente sem jeito por um instante,

quando o inspetor ergueu as sobrancelhas e o jovem Alec Cunningham irrompeu em risadas. O velho cavalheiro

corrigiu o erro e entregou o papel a Holmes. - Mande publicar o quanto antes - disse. - Acho excelente

sua idéia.

Holmes guardou o pedaço de papel cuidadosamente em seu caderno de notas.

- É agora - ele disse - acho que deveríamos todos entrar e verificar se esse estranho ladrão realmente não carregou nada

consigo.

Antes de entrar. Holmes examinou a porta que fora forçada. Era evidente que tinham enfiado um formão ou canivete na

fechadura. As marcas na madeira, onde a ferramenta foi apoiada, eram evidentes.

- O senhor não usa grades? - ele perguntou.

- Nunca achamos necessário. - Não tem um cachorro?

Temos, mas fica acorrentado do outro lado da casa. - Quando os empregados se recolhem?

- Por volta de dez horas. Imagino que William também costumava se deitar nessa hora.

- Isso mesmo.

- É interessante que nessa noite em especial ele estivesse de pé. Agora eu gostaria que o senhor fizesse a gentileza de nos

mostrar a casa, sr. Cunningham. Um corredor de laje, com a cozinha começando nele, levava,

pela escada de madeira, diretamente ao andar superior da

casa, chegando a um outro corredor onde terminava uma segunda escada, mais enfeitada, que começava no vestíbulo de

entrada. Desse corredor abriam-se uma sala íntima e diversos quartos, entre eles os do sr. Cunningham e de seu filho.

Holmes andava devagar, observando cuidadosamente a arquitetura do local. Eu sabia, por sua expressão, que ele

estava quente no rasto. Mesmo assim, não imaginava em que

direção suas inferências o levavam.

Meu bom senhor - disse, com certa impaciência, o sr. Cunningham -, isso é certamente desnecessário. Aquele é o

meu quarto e depois fica o do meu filho. Deixo a seu critério

se era possível que o ladrão subisse até aqui sem chamar nossa atenção.

Acho que deveria fazer meia-volta e tentar achar uma pista nova - disse o filho, com um sorriso irônico.

- Preciso pedir que me agüentem um pouco mais. Preciso

verificar, por exemplo, o quanto as janelas dos quartos têm de visão da frente da casa. Este, pelo que compreendi, é o quarto

de seu filho Holmes abriu a porta e aquele, suponho, é o vestiário onde ele fumava quando o alarme foi dado. Para

onde a janela se abre? Ele atravessou o quarto e abriu a porta do vestiário, examinando o novo cômodo.

Espero que esteja satisfeito agora disse o sr. Cunningham de

mau humor. Obrigado, acho que vi tudo o que precisava.

Então, se realmente é necessário, vamos para o meu quarto. Se não for muito incômodo.

O sr. Cunningham deu de ombros e nos levou até seus

aposentos. Era um quarto comum e mobiliado normalmente. Enquanto o grupo se dirigia à janela. Holmes ficou parado até

que nós fôssemos os últimos. Perto do pé da cama havia uma mesinha, sobre a qual estavam uma tigela de laranjas e uma

garrafa de água. Ao passarmos por ela, Holmes, para meu espanto, debruçou-se á minha frente e deliberadamente jogou

tudo no chão. O vidro se espatifou em milhares de pedaços e

as frutas rolaram para todos os cantos do quarto.

Você aprontou uma boa agora. Watson - ele disse. - Olhe a bagunça que você fez no carpete.

Confuso, abaixei-me e comecei a recolher as frutas,

compreendendo que, por alguma razão, meu amigo desejava que eu levasse a culpa. Os outros ajudaram e colocaram a

mesa de pé. Ora essa! exclamou o inspetor. - Onde ele foi?

Holmes desaparecera.

Esperem um instante disse o jovem Alec Cunningham. Acho que ele está doente da cabeça. Venha comigo, papai. Vamos

ver onde ele se meteu. Os dois correram para fora do quarto, deixando eu, o coronel

e o inspetor olhando um para o outro. Estou para concordar com o sr. Alec - disse o oficial. - Pode

ser efeito da doença, mas me parece que...

Suas palavras foram interrompidas por um repentino grito de "Socorro! Socorro! Assassinos!" Com um arrepio, reconheci a

voz como sendo de meu amigo. Saí em disparada do quarto para o corredor. Os gritos foram abafados e transformaram-se

em exclamações ásperas e vinham do primeiro quarto que

visitamos. Entrei nele e depois no vestiário anexo. Os dois Cunninghams estavam debruçados sobre Sherlock Holmes,

este prostrado no chão. O filho apertava sua garganta com as duas mãos, enquanto o pai parecia estar lhe torcendo um dos

pulsos. Num instante, nós três tiramos os dois de cima de Holmes, que se colocou de pé, muito pálido e exausto.

Prenda esses homens, inspetor ele falou.

Sob que acusação? - De terem matado o cocheiro, William Kirwan.

O inspetor encarou-o, pasmo. - Vamos lá, sr. Holmes - disse, afinal. O senhor realmente

não acha...

- Ora essa. homem. Olhe para eles! cortou Holmes. Certamente, nunca antes vi confissão de culpa tão clara

estampada em rostos. O mais velho parecia alienado e confuso, com uma expressão desanimada no rosto vincado de

rugas. O filho, por outro lado, perdera toda a pomposidade

que o caracterizava. Seu olhar brilhava com a ferocidade de uma besta selvagem, o que lhe distorcia as feições antes

simpáticas. O inspetor nada disse, apenas foi até a porta e assoprou seu apito. Dois de seus policiais atenderam ao

chamado. Não tenho outra alternativa, sr. Cunningham ele disse.

Acredito que isto vai se mostrar algum engano absurdo, mas

veja que... ah, nem tente! ele disparou um golpe com a mão, fazendo o jovem Alec derrubar o revólver que começava a

sacar. Guarde-o disse Holmes, rapidamente pondo o pé sobre a

arma. - Será útil no tribunal. Era isto que realmente

queríamos ele mostrou um pedaço de papel amassado. - O resto da mensagem! - exclamou o inspetor.

- Exatamente. - Onde estava?

Onde eu sabia que estava. Já vou lhe explicar tudo. Acredito, coronel, que você e Watson já podem voltar. Estarei com

vocês em uma hora, no mais tardar. Eu e o inspetor

precisamos trocar uma palavrinha com os prisioneiros, mas, com certeza, estaremos juntos para almoçar.

Sherlock Holmes manteve sua palavra, pois à uma hora da tarde ele estava conosco na sala de estar do coronel. Apareceu

acompanhado de um senhor idoso e miúdo, que me foi

apresentado como sendo o sr. Acton, cuja casa fora invadida no primeiro roubo.

Eu quis que o sr. Acton estivesse presente durante minha explicação desse pequeno caso a vocês disse Holmes. Receio,

meu caro coronel, que você se arrependa da hora em que

convidou para sua casa um arrumador de confusão como eu. - Pelo contrário o coronel respondeu calorosamente,

considero um grande privilégio poder estudar seus métodos de trabalho. Confesso que eles superam minhas expectativas e

não consigo imaginar como você chegou à solução. Nem imagino quais pistas o guiaram.

- Receio que minha explicação irá desiludi-lo. E meu hábito

não esconder meus métodos, seja de Watson ou de qualquer pessoa que demonstre um interesse genuíno neles. Antes,

contudo, confesso que ainda estou abalado pela agressão que sofri naquela casa. Acho que vou me servir de uma dose do

seu conhaque, coronel. Minhas forças foram muito exigidas

nas últimas semanas. Espero que não tenha mais nenhum daqueles ataques

nervosos. Sherlock Holmes riu com gosto.

Falaremos disso quando for o momento ele disse. - Vou lhes apresentar o caso preservando a ordem dos fatos e mostrando-

lhes os diversos pontos que orientaram minha decisão.

Sintam-se à vontade para me interromper se alguma inferência não Ficar perfeitamente clara.

"É extremamente importante, na arte da investigação, ser capaz de reconhecer quais fatos são incidentais e quais são

essenciais. Do contrário, atenção e energia são dispersadas em

vez de concentradas. Quanto a este caso, não tive a menor dúvida, desde o início, de que a chave do mistério estava no

papel encontrado na mão do cadáver. "Antes de chegarmos a isso, gostaria de chamar-lhes a atenção

para o fato de que, se o depoimento de Alec Cunningham

estava correto, e o criminoso fugira imediatamente depois de atirar em William Kirwan, então, obviamente, não podia ser

ele quem arrancara o papel da mão do morto. Se não foi o assaltante, porém, tinha de ser o próprio Alec Cunningham,

pois, na hora em que seu pai desceu, diversos empregados já estavam no local. Esse é um ponto simples, mas o inspetor o

ignorou porque não podia conceber que esses magnatas rurais

estivessem relacionados ao crime. Por outro lado, um dos meus princípios é não ter qualquer preconceito e seguir

obedientemente para onde os fatos me levam. Assim, logo no primeiro estágio da minha investigação eu já encarava com

reservas a atuação do sr. Alec Cunningham.

"Em seguida, examinei cuidadosamente o pedaço de papel que o inspetor nos mostrou. Logo ficou claro para mim que ele

fazia parte de um documento muito importante. Aqui está. Agora vocês vêem algo de muito sugestivo nele?"

E um bocado estranho - disse o coronel. Meu caro amigo exclamou Holmes , não pode haver a menor

dúvida de que ele foi escrito por duas pessoas fazendo palavras

alternadas. Quando eu chamar sua atenção para os 't' forte de "meia-noite" e lhe pedir para comparar com o de 'quanto',

perceberá isso imediatamente. Uma rápida análise dessas palavras permitirá reconhecer que 'verá' e 'pode' foram

escritas pela mão forte e 'quanto' pela mão fraca.

Por Deus, é claro como o dia! exclamou o coronel. - Mas por que dois homens escreveriam uma carta dessa forma?

Obviamente, o negócio era sujo, e os dois, que não confiavam um no outro, queriam, acontecesse o que fosse, estar

igualmente envolvidos. Está claro, por outro lado, que quem

escreveu "meia-noite" era o cabeça. - Como chegou a essa conclusão?

- Podemos deduzir isso simplesmente comparando o caráter de uma escrita com a outra. Contudo, temos razões mais

palpáveis. Se examinar esse pedaço de papel, verá que o homem de letra mais forte escreveu primeiro, deixando

lacunas para o outro preencher. Nem sempre as lacunas foram

suficientes. Veja que o segundo teve de espremer "para" entre "quinze" e "meia-noite", mostrando que essas palavras já

estavam escritas. O homem que escreveu primeiro foi, sem dúvida. quem planejou o crime.

- Excelente! - exclamou o sr. Acton.

Mas muito superficial disse I lolmes. Contudo isso nos traz a um ponto realmente importante. Talvez vocês não saibam que

peritos podem, normalmente, deduzir a idade de um homem, por meio de sua escrita, com bastante precisão. Digo

"normalmente" porque doenças e outros problemas físicos podem "envelhecer" a escrita mesmo quando a pessoa é

jovem. Neste caso, observando a escrita firme e forte de um e

a aparência hesitante da outra, que ainda mantém sua legibilidade, embora comece a perder suas características,

podemos dizer que um era jovem e o outro, idoso, sem ser decrépito.

- Excelente! - exclamou novamente o sr. Acton.

- Contudo existe outro ponto, ainda mais sutil e interessante. Existe algo em comum entre essas mãos. Seus donos são

parentes consanguíneos. Os "es" deixam isso bem claro para vocês, mas muitos detalhes menores me dizem a mesma coisa.

Não tenho dúvida de que podemos encontrar um maneirismo

familiar nessas duas amostras de escrita. É claro que apenas estou lhes dando os principais resultados do exame que fiz do

papel. Lá outras vinte e três deduções que interessariam mais à peritos do que a vocês. Todas elas, entretanto, ajudaram a

me convencer que os Cunninghams, pai e filho, escreveram esta carta.

"Tendo chegado até aqui, meu próximo passo era, é claro,

examinar os detalhes do crime e verificar como poderiam nos ajudar. Fui até a casa com o inspetor e vi tudo o que precisava.

O ferimento no cadáver fora produzido, como pude perceber com absoluta certeza. pelo disparo de um revólver a uma

distância de uns quatro metros. A roupa não apresentava

nenhum escurecimento devido â pólvora. Portanto, ficou evidente que Alec Cunningham mentira ao dizer que os dois

homens brigavam quando o tiro foi disparado. Tanto pai como filho concordaram sobre o local onde o criminoso teria fugido

para a estrada. Acontece que naquele lugar há uma fossa larga, com lama no fundo. Como não havia indícios de pegadas ao

redor da fossa, convenci-me de que os Cunninghams não

apenas mentiam novamente, mas que nunca houvera qualquer outro homem envolvido no crime.

"Então eu precisava ponderar sobre o motivo desse crime singular. Para chegar a isso primeiro procurei entender o

motivo do roubo na casa do sr. Acton. Eu já sabia, por algo

que o coronel comentara, que havia um processo envolvendo o sr. Acton e os Cunninghams. Instantaneamente me ocorreu

que eles invadiram sua biblioteca com a intenção de encontrar algum documento que pudesse ser importante no processo.

E isso mesmo disse o sr. Acton , não há dúvida quanto às

intenções deles. Tenho legítimos direitos à metade da propriedade deles e, se tivessem encontrado um certo

documento (que, felizmente, está no cofre do meu advogado), teriam invalidado nossa ação.

Aí está! disse Holmes, sorrindo. - Foi uma ação perigosa, ousada, na qual enxergo a influência do jovem Alec. Como

não encontraram o que buscavam, tentaram desviar a atenção

procurando fazer parecer um roubo comum. Assim, levaram as primeiras coisas que viram pela frente. Isso estava claro,

mas era necessário resolver outras dúvidas. O que eu mais queria era recuperar o restante do bilhete. Tinha certeza de

que Alec o arrancara da mão do morto e quase tão certo que o

colocara no bolso de seu roupão. Onde mais poderia ter colocado? Só restava saber se ainda estava lá. Valia a pena

tentar descobrir e por isso todos nós entramos na casa. "Os Cunninghams nos receberam, como se lembram, junto à

porta da cozinha. Era muito importante que eles não fossem lembrados da existência desse papel, pois, do contrário,

destruiriam o restante sem demora. O inspetor estava para

contar a eles sobre a importância que dávamos a esse papel

quando tive a sorte de ter um ataque nervoso e mudar o rumo da conversa.

Bom Deus! exclamou, rindo, o coronel. - Quer dizer que nos

preocupamos à toa e que seu ataque era fingimento? Minha opinião profissional é que foi muito bem imitado eu

disse, olhando admirado para aquele homem que estava sempre me surpreendendo.

-Trata-se de uma arte sempre útil disse Holmes. - Quando me

"recuperei", fiz com que o velho Cunningham, usando um expediente que acredito engenhoso, escrevesse 'meia-noite',

de modo que eu pudesse comparar com a 'meia-noite' no outro papel.

- Oh, como fui bobo! - cu disse. Percebi que estava com pena da minha fraqueza disse Holmes,

rindo. - Senti ter de fazê-lo passar por isso. Então fomos para

o andar superior e, tendo entrado no quarto e visto o roupão pendurado atrás da porta, desviei-lhe a atenção derrubando

aquela mesinha e escapei, para examinar os bolsos do roupão. No entanto mal tinha pegado o papel, que realmente estava

num dos bolsos, quando os dois Cunninghams pularam em

cima de mim. Acredito que teriam me matado se vocês não tivessem chegado logo, pois até agora sinto o aperto do jovem

Alec na garganta, enquanto o pai torcia meu pulso para me fazer soltar o papel. Eles perceberam que eu sabia de tudo e

entraram em total desespero. "Depois, conversei brevemente com o velho Cunningham

sobre o motivo do crime. Embora o jovem Alec estivesse

enraivecido, pronto a estourar os miolos de alguém, se pudesse pôr as mãos num revólver, seu pai estava mais

tratável. Quando o sr. Cunningham percebeu que as evidências contra ele eram tão fortes, desanimou totalmente e

contou tudo. Parece que William seguira secretamente seus

patrões na noite em que invadiram a casa do sr. Acton e, tendo-os sob seu poder, começou a chantageá-los. Alec,

contudo, é um homem muito perigoso para se fazer esse tipo de jogo com ele, que viu na histeria que tomava conta da

região, devido ao primeiro roubo, uma oportunidade para se

livrar do homem que os ameaçava. William foi atraído e morto. Se os dois tivessem recuperado o bilhete inteiro e

prestado mais atenção aos detalhes, possivelmente nunca teria suspeitado deles."

- E o bilhete? - perguntei. Sherlock Holmes juntou os dois pedaços de papel à nossa

frente:

- Era mais ou menos o que eu esperava - disse Holmes. - Contudo não sabemos quais as relações entre Alec

Cunningham, William Kirwan e Annie Morrison. O resultado

mostra que a armadilha foi muito bem armada. Estou certo de

que os senhores não podem deixar de se deleitarem com os traços de hereditariedade mostrados nos "Pês" e nos "Gês". A

ausência de pingos nos "is" é o mais característico. Watson,

acho que nosso descanso tranqüilo no campo foi um sucesso. Com certeza amanhã voltarei revigorado à rua Baker.