a capoeira e os mestres - ilneteppaiva
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8/13/2019 A Capoeira e Os Mestres - Ilneteppaiva
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTECENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRA E ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS
A CAPOEIRA E OS MESTRES
ILNETE PORPINO DE PAIVA
Natal2007
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Catalogao da Publicao na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial Especializada do Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
Paiva, Ilnete Porpino de.A capoeira e os mestres / Ilnete Porpino de Paiva. Natal, RN, 2007.166 f.
Orientador: Prof.Dr. Edmilson Lopes Jnior.
Tese (Doutorado em Cincias Sociais) Universidade Federal do Rio Gran-de do Norte. Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes. Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais. rea de Concentrao: Cultura e Representa-
es.
1. Tradio Tese. 2. Capoeira Mestres Tese. 3. Cultura Tese. 3. Cul-tura popular - Tese. 4. Sociologia da cultura Tese. II. Lopes Jnior, EdmilsonIII. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. IV. Ttulo.
RN/BSE-CCHLA CDU 39SNBSE-CCHLA
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Dedico
A Raul, meu filho, que a cada dia meensina a ser aprendiz.
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AGRADECIMENTOS
- Quero expressar minha gratido, especialmente, aos Mestres deCapoeira, que de forma generosa me acolheram, me permitiram invadiras suas vidas.
- Ao professor Dr Edmilson Lopes Jnior, orientador que com sua calmaconseguiu estar ao meu lado, ao mesmo tempo em que me fazia
caminhar com minhas prprias pernas.
- Ao professor Dr Joo Bosco Arajo da Costa, auto declarado ateu-filhode Oxossi que me abriu os caminhos para a escolha do tema de estudo.
- A Base de Cultura Popular pela acolhida que me proporcionou momentossingulares de apreenso do conhecimento.
- A todos os professores do programa da ps-graduao que lecionaramas disciplinas de maneira a tornar o tempo de estudo um prazer.
- banca de qualificao, professora Dr Terezinha Petrscia Nbrega eprofessor Dr. Luiz Assuno pelas valiosas observaes, que mefacilitaram tecer o resultado final do trabalho.
- A Cyro Almeida, pela prestatividade com que fez o abstract.
- A Hilanete Porpino, minha irm que, como em tantas outrascaminhadas, me deu beijo e abrigo; dessa vez pela dedicao com quefez a reviso do trabalho.
- A minha me, Ivonete que com fora e simplicidade tornou mais leve osmomentos que se anunciavam difceis.
- As amigas Isabel, Ksia, Patrcia, Cidinha que a maneira de cada uma,
me deram fora e incentivo para continuar a caminhada.
- A amiga Jaquilene Linhares por ter me acolhido em sua residnciadurante a minha estada em Salvador.
- Ao Coco Maracaj, especialmente a Cacau Arcoverde, por ter mepossibilitado experimentar no corpo atravs dos ritmos, danas e cantos,a Cultura Popular. Momentos de incentivo e prazer, que me ajudaram naconstruo do conhecimento terico.
- A CAPES, pela concesso da bolsa durante 3 anos e meio do curso.
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A TODOS aqueles que de vrias formas deram sua ajuda para a realizaodeste trabalho nas diversas fases.
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RESUMO
A Capoeira, considerada uma manifestao da Cultura Popular - heranade povos africanos - uma prtica cultural e social presente no Brasildesde a poca colonial. Este estudo dedicado Capoeira e seusmestres. Trabalhamos a Capoeira como um campo social na perspectivaterica da Sociologia de Pierre Bourdieu. Procuramos apreender aconstruo social do mestre, a legitimidade do seu saber, as disputas eas representaes que elaboram no espao redefinido pelas mudanasmateriais e simblicas ocorridas com a Capoeira nas ltimas dcadas.As noes operatrias de campo social, habitus, capital e tradio foram
pertinentes para pensar os jogos de poder, as relaes sociais e astramas simblicas no campo da Capoeira. Do ponto de vistametodolgico, embora as entrevistas com os mestres e a observaodireta tenham tido um lugar especial na pesquisa, outras estratgiasforam utilizadas: pesquisa em jornais, revistas temticas,documentrios, composies musicais e trabalhos acadmicos. Aatuao dos mestres no processo de reinveno de tradies temredefinido o seu lugar social em relao s geraes anteriores. Estesso percebidos como atores sociais responsveis pela manuteno,dinamicidade, afirmao, divulgao e expanso da prtica capoeirstica.
Palavras-chave: Capoeira - Mestres - Cultura Popular CampoCapoeirstico - Tradio
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ABSTRACT
The Capoeira considered as a manifestation of the Popular Culture -inheritance of African peoples - is a cultural and social practice presentin Brazil since the colonial time. This study is dedicated to the Capoeiraand its masters. We work the Capoeira as a social field through thetheoretical perspective of the Sociology of Pierre Bourdieu. We try toapprehend the social construction of the master, the legitimacy of hisknowledge, the disputes and the representations that theyve elaboratedover the space which was redefined for material and symbolic changesthat occurred with the Capoeira through the last decades. The operatingnotions of social field, habitus, capital and tradition had been pertinentto think the power games , the social relations and the symbolic plots inthe Field of Capoeira. From the methodological standpoint, although theinterviews with the masters and the direct observation have had aspecial place in the research, other strategies had been used:researches in newspapers, thematic magazines and periodic, musicalcompositions and academic works. The performance of the masters inthe process of reinvention of traditions has redefined their social place inrelation to the previous generations. These are perceived as socialactors responsible for the maintenance, dynamicity, affirmation,spreading and expansion of the capoeirstic practice.
Key words: Capoeira Masters Popular Culture Capoeiristic field Tradition.
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SUMRIO
INTRODUO............................................................................11
CAPTULO 1: A TRAJETRIA DA CAPOEIRA: ENTRE A TRADIO
E A MODERNIZAO .................................................................42
1.1. A ORIGEM DA CAPOEIRA: O DEBATE CONTINUA .......................44
1.2. A NECESSIDADE A ME DA INVENO .................................48
1.3. CONTANDO HISTRIAS DE CAPOEIRA .....................................50
1.4. DA GINGA DA CAPOEIRA AO PASSO DO FREVO........................ 521.5.CAPOEIRA E CAPOEIRAS.........................................................54
1.6. CAPOEIRA ANGOLA: CADA UM CADA UM ..............................56
1.6.1. Centro Esportivo de Capoeira Angola Joo Pequeno de
Pastinha.................................................................................. 57
1.6.2. Grupo de Capoeira Angola Pelourinho
GCAP........................................................................................62
1.6.3. Escola de Capoeira Angola IrmosGmeos....................................................................................66
1.7.CLASSIFICANDO A CAPOEIRA.................................................67
1.8. REDEFINIES MARCAM A CAPOEIRA - ALGUMAS NOTAS SOBRE A
CAPOEIRA REGIONAL...................................................................69
CAPTULO 2 : A CAPOEIRA E OS DESLOCAMENTOS
SOCIOCULTURAIS.....................................................................81
2.1. A CAPOEIRA E OS ESPAOS SOCIAIS OCUPADOS: RUAS,ACADEMIAS, ESCOLAS E UNIVERSIDADES......................................83
2.1.1. A capoeira e a rua ..........................................................85
2.1.2. A Capoeira e as academias.............................................89
2.1.3. A Capoeira e as escolas ..................................................92
2.1.4. A Capoeira e a universidade ...........................................96
2.2. TEM MULHER NA RODA: A PRESENA FEMININA NA
CAPOEIRA...................................................................................99
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2.3.DA BAHIA PARA O MUNDO: A EXPANSO DA CAPOEIRA............103
2.4. A CAPOEIRA TAMBM PROFISSO .....................................111
2.5. A CAPOEIRA E SEUS MESTRES: UMA APROXIMAO TERICA .113
CAPTULO 3: A CONSTRUO SOCIAL DO MESTRE DE
CAPOEIRA...............................................................................119
3.1. MESTRES DA CAPOEIRA: MESTRES DA CULTURA POPULAR.......122
3.2. O MESTRE E A CAPOEIRA ....................................................129
3.3. RECONHECIMENTO E LEGITIMAO: O TTULO DE MESTRE E A
COMUNIDADE .......................................................................... 134
3.4. COMO TORNAR-SE UM MESTRE DE CAPOEIRA ........................137
3.5. O TEMPO E A CONSTRUO DO MESTRE ...............................140
3.6. AS GRADUAES NO SO IMUTVEIS ................................143
3.7. AS ACUSAES AOS FALSOS MESTRES.................................149
3.9. A CAPOEIRA NA VIDA DO MESTRE ..................................151
CONSIDERAES FINAIS ......................................................154
REFERNCIAS..........................................................................160
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INTRODUO
Eu louvo os mestres das danas,lhes dou todo meu carinho.Pastinha e Z Alfaiate,Capoeira e Caboclinho.Eu louvo Mateus Guariba,do meu Cavalo-Marinho.
Antonio Nbrega e Wilson Freire
Mais do que homenagem, a composio Sambada dos Mestres1
uma louvao aos mestres. Sejam eles, poetas, msicos, danarinos,
cantadores, atores. So mestres de diferentes saberes, linguagens e
expresses da Cultura Popular. Cada um com sua histria. Celebrada
como dana, na Capoeira a saudao para Vicente Ferreira Pastinha
(1889-1981), o Mestre Pastinha, consagrado como um dos
representantes maior da Capoeira Angola.
oportuno ressaltar que at os anos 20 no se falava em
Capoeira Angola. Era apenas Capoeira. Esta, considerada por
praticantes como a Capoeira Me, aCapoeira Primeira. Na dcada de
30Manoel dos Reis Machado (1900-1974), o Mestre Bimba, cria2a luta
regional baiana -conhecida como a Capoeira Regional - uma espcie
de modalidade ou estilo de Capoeira idealizada a partir da Capoeira
que existia. Os capoeiristas que escolheram permanecer fiel Capoeiraque praticavam, no se envolvendo com a novidade proposta por
Mestre Bimba; possivelmente pr uma questo poltica, passaram a
1Versos de uma faixa do CD de Antnio Nbrega intituladoMadeira que cupim nori, gravado em 1997.2 O mrito de criao da Capoeira Regional atribudo ao Mestre Bimba. No
entanto, h trabalhos questionando essa exclusividade. A esse respeito, ver SrgioLuiz Vieira, em Capoeira: Matriz Cultural para uma Educao Fsica Brasileira; e AndrLuiz Lac Lopes em Capoeiragem no Rio de Janeiro.
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acrescentar ao nome Capoeira, o termo Angola, demarcando uma
identidade, uma singularidade, uma diferena.
Pesquisar Capoeira um desafio. So sculos de histria. Quem
construiu e como foi construda? Qual era o seu sentido? Que prticas
a constituram e a constituem? Que usos foram feitos dela no passado?
E hoje, onde se insere? Onde se situa o mestre nessa histria? So
questes que inspiram a criao de uma narrativa sobre Capoeira,
contribuindo para compor mais um fragmento da sua histria.
Capoeira, relacionamos fatos, acontecimentos, histrias. Ao
longo da sua existncia, ela tem desempenhado papis: social, poltico
e cultural. Ora identificada/identificados (capoeira e capoeiristas) com
a ordem, ora com a desordem. Ora lutando pelos seus, ora do lado de
l. Estudos dedicados Histria do Brasil e Capoeira confirmam a
presena dos capoeiras em episdios como a Revolta dos Mercenrios3
(1828) a Guerra do Paraguai4 (1865-1870). Estiveram envolvidos na
disputa do poder entre monarquistas e republicanos (segunda metadedo sculo XIX), na Revolta da Vacina5 (1904). Nessas ocasies, com
exceo do ltimo episdio, eram cooptados para servir aos interesses
da classe dirigente do pas - uma histria pouco explorada ou quase
no mencionada.
corrente a idia de que Capoeira sinnimo de resistncia ao
opressor, a uma ordem escravista. De fato, isso ocorreu; porm,
importante relativizar um pouco o peso dessa representao elevarmos em conta o quanto tal resistncia , em certo sentido, uma
construo idealizada do passado para justificar e legitimar prticas
presentes.
3 A respeito da Revolta dos Mercenrios ver Eduardo M. da Silva, em o ImprioSubterrneo do Rio de Janeiro no sculo XIX, 2006.4Sobre a Guerra do Paraguai, ver Soares emA negregada instituio: os capoeiras
no Rio de Janeiro, 1850-1890.5Sobre a Revolta da Vacina, ver Jos Murilo de Carvalho, em Os bestializados: o Riode Janeiro e a Repblica que no foi. So Paulo: Companhia das Letras, 1987.
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Nesse sentido, vale a pena levar em conta as elaboraes que
apontam para o envolvimento da Capoeira por grupos polticos e
sociais dominantes.Em determinadas situaes, os capoeiras serviam
aos interesses destes, o que afasta a idia de a Capoeira ser apenas
smbolo de resistncia. Conforme Soares6 (2004), em poca de
eleies os capoeiras eram convocados por polticos conservadores
para serem seus capangas.
(...) ao mesmo tempo em que enfrentavam o aparatopolicial e a ordem escravista, o capoeira participavaativamente das lutas polticas dentro dos gruposdominantes, como capangas dos senhores da Crte, emesmo incorporava termos e trejeitos do vocabulrio
pedante de juzes e doutores da poltica da poca(SOARES, 2004, p.17).
Esses fatos no circulam no meio capoeirstico. So pouco
conhecidos. H capoeiristas que no tm interesse em divulgar
determinadas passagens da sua histria. como se estas viessem
diminu-la. Estudos voltados para o fenmeno da Capoeira tm
desconstrudo algumas histrias, questionado verdades e evidenciando
fatos omitidos. No se trata de privilegiar a histria encontrada em
livros, teses, dissertaes mesmo porque h limites em detrimento
da histria contada pelos capoeiras, mestres ou no, histrias que eles
ouviram, algumas j escritas. Histrias de um tempo distante,
passadas atravs da oralidade. Histrias que tm alimentado teses.
Para compor o presente trabalho, um dos caminhamos
percorridos foi o de realizar leituras de obras que tratassem da
Capoeira. Um jeito brasileiro de aprender a ser,estudo realizado por
6Soares historiador que se dedicou ao estudo do fenmeno da Capoeira no Rio deJaneiro do sculo XIX.
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Csar Barbieri7 em 1993, foi uma delas. L, encontrei a fala de um
mestre que contribuiu para a definio deste estudo. Tratava-se da
resposta do Mestre Joo Grande8a respeito do que ser um mestre de
Capoeira. A partir da, decidi entrar na Roda, e jogando com as
palavras, construir um estudo, no conclusivo, mas que tivesse a
pretenso de ser revelador da Capoeira, com ateno especial para a
figura do mestre.
A construo das representaes que o mestre tem de si
enquanto mestre sugere que h uma relao de dependncia entre a
Capoeira e o mestre. como se a Capoeira s existisse porque tem o
mestre. Eles contam que so eles os responsveis pela preservao da
Capoeira atravs do tempo. Diante desse fato e em meio ao contexto
em que a Capoeira se encontra, veio o interesse em compreender o
papel do mestre na histria da Capoeira. Como tudo comeou? Quem
produziu os mestres? Como se forma um mestre? Qual o lugar do
mestre no campo da Capoeira e fora dela? A Capoeira sobrevive sem afigura do mestre? Algumas dessas questes mereceram ateno
especial ao longo da construo do trabalho.
Os mestres no esto ancorados apenas na Capoeira. As
manifestaes da Cultura Popular so depositrias deles. Mestre de
Boi, Mestre de Maracatu, Mestre de Cavalo-Marinho, Mestre de
Caboclinho, Mestre de Coco, Mestre de Capoeira. So os mestres
7 Csar Barbieri graduado em Educao Fsica (1973) com doutorado emEducao (2003). Atualmente professor titular da Faculdade Cenecista de Braslia.Em 1993 o autor publicou Um jeito brasileiro de aprender a ser, um estudodedicado Capoeira.8Joo Oliveira dos Santos (1934), um dos alunos do Mestre Pastinha que se tornouJoo Grande para diferenci-lo do outro Joo o Joo Pequeno de Pastinha. Mestrede Capoeira Angola, deixou Salvador em 1990 para se dedicar Capoeira em NovaYork. Em 1995, atravs de seu trabalho com a Capoeira, recebeu o ttulo de doutor
Honoris Causa da Universidade de Upsala, Nova Jersey. (Revista PraticandoCapoeira,ano 1, n 9, 2000, p.18).
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brincantes9 fazedores de cantos, danarinos e atores populares.
Portadores de uma imaginao criadora, esses guardies de um saber
e de uma tradio, reinventam com msica, dana e teatro o seu
mundo; tradio compreendida aqui no como coisa cristalizada, mas
viva e dinmica. um erro imaginar a tradio dissociada da
mudana. Portadora de sentido e significado, ela se encontra em
constante estado de transformao. Nenhuma tradio se mantm
imvel. Como nos diz Georges Balandier (1997), seu prprio
dinamismo alimentado pelo movimento e pela desordem, aos quais
ela deve finalmente se subordinar (BALANDIER, 1997, p. 94).
Ordem e desordem, continuidade e descontinuidade,
permanncia e ruptura, tradio e transformao termos geralmente
apresentados como antagnicos; contudo, em se tratando de tradio,
aqui so vistos como complementares.Lidar com tradio exige que se
atente no apenas permanncia, mas tambm mudana. Essa
questo pode ter relao com o eterno processo de criao e recriao.As estruturas se repetem, mas ao mesmo tempo na repetio
que se tem a adequao, a recriao e a adaptao. Paul Zumthor
(1997) afirma que para manter a tradio tem de existir possibilidade
de reelaborar-se, readaptando-se. A Capoeira hoje existe num
contexto que no mais aquele do sculo passado. A dinmica da
sociedade possibilita um novo contexto, que por sua vez provoca
adaptaes no campo capoeirstico. O que antes era diverso, hoje
tambm trabalho.
9Brincantes termo presente no universo da Cultura Popular. Aquele que brinca abrincadeira, o brinquedo. por exemplo, a pessoa que se veste para brincar:Mateus no boi de reis; o Mestre Ambrsio, no Cavalo-Marinho, so os personagensdo pastoril, os danarinos de um Coco de Zamb. So tambm os tocadores ecantores da brincadeira. A atribuio da palavra brinquedo s manifestaesculturais tem relao com a viso que tinha as elites das prticas culturais dosnegros. Vistas como um folguedo, um momento de diverso. Conforme Ivaldo
Marciano, historiador e mestre do Maracatu Nao Cambinda Estrela, essasmanifestaes vo mais alm: recriar o mundo africano em terras distantes.Informaes colhidas no encarte do CD Maracatu Nao Cambinda Estrela.
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Escolher a Capoeira como objeto de reflexo partiu,inicialmente,
de um interesse pelos bens e manifestaes prprios da Cultura
Popular. Primeiro, na condio de apreciadora de uma dana, de uma
musicalidade, de uma encenao e de uma histria, que carregam os
tambores das bandas de Congo da Barra do Jucu/ES; a dana dos
galantes com seus arcos enfeitados no espetculo da brincadeira de
Cavalo-Marinho na Zona da Mata Norte pernambucana; a chama
aquecedora do Zamb de Mestre Geraldo, em Cabeceiras - Tibau do
Sul, litoral potiguar; as las tiradas por Mestre Pedro no Boi de Reis da
Vila de Ponta Negra. E, nesse terreno de prticas culturais, como no
se encantar com a leveza e a agilidade de homens e mulheres, nas
rodas de Capoeira!
De apreciadora das brincadeiras motivao em compreender
parte dessa diversidade que ocupa o campo da Cultura Popular,
terreno de sabedoria, conhecimento e arte. Um campo de reflexo
frtil e de possibilidades de interlocuo nos domnios os maisvariados. A Capoeira tem despertado o interesse de pesquisadores
nas diversas reas do conhecimento, como a Sociologia, a
Antropologia, a Histria, a Educao, a Arte, a Psicologia e a Educao
Fsica. Precisamente, a partir das ltimas dcadas, nacionais e
estrangeiros, praticantes de Capoeira ou no, tm se dedicado a dar
visibilidade a esse fenmeno social, evidenciando uma contribuio na
construo de um campo discursivo que confluiu para o processohistrico de formao e consolidao dos estudos sobre a Capoeira.
De fato, a Capoeira, na condio de objeto de anlise, tem
estado presente, de maneira significativa, na produo intelectual
brasileira. A diversificada literatura resultante das vrias facetas que
compem e substancializam a singularidade dessa manifestao que
se inscreve na cultura brasileira h mais de trs sculos. Deve-se
deixar claro, entretanto, que,a periodizao uma problemtica nos
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Capoeira nas ltimas dcadas. O levantamento10 realizado apontou
que a presena da Capoeira na condio de objeto de reflexo
recente.
At a dcada de noventa eram poucas as pesquisas envolvendo
a temtica. A partir desse perodo, quando a Capoeira se expande de
forma considervel pelo Brasil e por outros pases, elas foram
intensificadas. importante ressaltar que aumentou o interesse
acadmico pela Capoeira, porm estudos sobre o mestre so
praticamente ausentes. Voltar ateno para o lugar do mestre torna-serelevante para enriquecer a reflexo sobre a Capoeira e ampliar a
perspectiva de anlise acerca dos mestres e suas manifestaes
culturais.
Sendo assim, levando em considerao a presena e,
especialmente, o papel desempenhado pelos mestres nas
manifestaes populares, possvel de perceber atravs da dedicao
na afirmao e propagao de sua arte, convm o interesse em
estud-los, priorizando o campo da Capoeirapor estar diante de um
tema estimulante e desafiador, em vista das mudanas materiais e
simblicas que vm passando, especialmente, a partir das trs ltimas
dcadas do sculo XX, perodo ao qual um olhar focado para a
compreenso da dinmica da Capoeira na contemporaneidade
direcionado.
Trabalhamos com a idia de campo capoeirstico, partindo do
pressuposto de que a Capoeira um campo social na perspectiva
terica da Sociologia de Pierre Bourdieu. Isso significa que falar de
campo entend-lo como um microcosmo - um pequeno mundo social
relativamente autnomo que faz parte do grande mundo social - o
macrocosmo social. Cada campo seja ele poltico, religioso,
10Em 2005, ano da realizao da pesquisa em Salvador, tive oportunidade de fazero mapeamento de trabalhos sobre Capoeira no arquivo do historiador Frede Abreu.
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jornalstico, artstico, esportivo - sua maneira, tem regras, leis,
propriedades, relaes, aes, jogos e pessoas aptas a jogar o jogo.
So atores significativos do campo capoeirstico: os mestres e seus
aprendizes (contramestre, professores, instrutores e alunos).
A institucionalizao da Capoeira como esporte, a sua expanso
para alm do territrio brasileiro, o crescimento do nmero de
praticantes e mestres de diferentes camadas sociais, a sua presena
nas escolas e cursos de Educao Fsica, a relao com o mercado, os
estudos acadmicos, o aparecimento de uma imprensa especfica de
circulao ampla, a forma de a sociedade represent-la, a produo de
um discurso centrado na profissionalizao da Capoeira e dos Mestres,
o crescimento da Capoeira Angola, bem como a formao de novos
representantes so sinais de visibilidade que fazem parte das
mudanas recentes11.
Mestre, figura determinante na afirmao e propagao da
Capoeira, arroga o discurso expresso pelos mestres. A relao entre oMestre e a Capoeira faz parte de uma histria recente. Se a Capoeira
hipoteticamente tem cerca de trs sculos, o Mestre est presente nela
h menos de um. Nesse sentido, cabem aqui algumas indagaes; a
saber: Como nasce o ttulo de Mestre? Quem os criou? Qual o
interesse na sua criao? Que jogos estavam envolvidos? Como era a
Capoeira antes do aparecimento desse ttulo? Por que o ttulo de
Mestre um dos temas mais debatidos atualmente no campo
capoeirstico? Como se d a construo social do mestre de capoeira?
Essas questes se tornaram foco de ateno da pesquisa.
O trabalho, tomando o Mestre como questo central, teve a
pretenso de elucidar a complexidade dos jogos que se institui na
Capoeira. Incorporados seletivamente, os aportes tericos da
11
Mudanas recentes so aquelas ocorridas a partir dos anos 70 do sculo XX.
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Sociologia de Pierre Bourdieu - habitus, campo social e capital - foram
tomados como referncia. Trata-se, portanto, de compreender o lugar
do Mestre, apreendendo a sua construo; a legitimidade do saber
desses Mestres, as representaes que elaboram no espao redefinido
pelas mudanas, as disputas e os jogos de interesses. A nossa misso
iniciar uma discusso ainda no realizada. Nas pesquisas sobre
Capoeira, o aparecimento do Mestre de forma descritiva, superficial e
perifrica.
Nesse momento, oportuno um exerccio de auto-objetivao,
ou seja, o que Bourdieu chama de objetivao participante. A
objetivao da relao do pesquisador com o seu objeto
uma objetivao que no seja a simples viso redutora,parcial, que se pode ter, no interior do jogo,(...), mas aviso global que se tem de um jogo passvel de serapreendido como tal porque se saiu dele (Bourdieu, 1989,
p. 58).
pertinente, portanto, responder questo: Como cheguei at a
Capoeira? O primeiro contato, o interesse, a motivao para pratic-la
e a escolha como objeto de estudo so pontos de partida para o
traado percorrido. Para comear, filtro da memria cenas e
momentos que me levaram a ter uma relao com a Capoeira.
O interesse pelo estudo sobre Capoeira resultado de um
processo que se iniciou em 1988, quando conheci Fbio, na poca,
contramestre12do Grupo de Capoeira Beribazu13, de Vitria ES. Ele
estava em Natal na condio de aluno da especializao em Educao
Fsica Escolar, promovida pelo Departamento de Educao Fsica da
12 Contramestre: a graduao que antecede ao ttulo de Mestre. Esse termo usado pela maioria dos grupos ou escola de Capoeira.13
Beribazu: Grupo de capoeira fundado no ano de 1972 pelo mestre Zulu, nacidade de Braslia. Atualmente est presente em vrios estados do Brasil e noexterior.
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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Como a maioria
dos capoeiristas que cursaram o ensino superior e decidiram investir
no campo acadmico, dedicando-se a ampliar o quadro de
conhecimento sobre a Capoeira, no causa surpresa saber que o
estudo de Fbio foi voltado Capoeira. A atuao de capoeiristas,
mestres ou quase mestres, formados e legitimados em dois diferentes
campos - o acadmico e o capoeirstico - uma situao presente na
Capoeira, mas compartilhada por um nmero pouco expressivo de
praticantes - aqueles que tiveram condio de concluir o ensino
superior -, e que viram na Capoeira um horizonte.
Grfico 1:Escolaridade dos capoeiras mestres
Fonte: Pesquisa de Campo
maneira de Bourdieu, estamos diante da idia de capital social,
acmulo de capital, investimento. A participao em qualquer
mercado exige que os capitais relacionados a ele devam ser
alimentados, regados. Regamos os nossos capitais para usufruir o
mximo os benefcios que a sua posse permita. A respeito da
Capoeira, por exemplo, quem capoeirista investe no corpo, no
conhecimento dos fundamentos da Capoeira, na voz para tirar as
cantigas, nos instrumentos para saber tocar, nas relaes com outros
grupos, nas relaes com outros mercados. Esses capitais circulantes
vo beneficiar a distribuio, a insero do Capoeira no espao
mestres Escolaridade
O3 Ensino Superior
O5 Ensino Mdio
05 Ensino Fundamental03 Ens. Fund. Incompleto
02 Analfabeto
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especfico. Em outras palavras, o acmulo de capital tem muito valor
para o mercado de bens capoeirstico.
Na certeza de que as nossas escolhas restringem e potencializam
outras, posso dizer que a partir do momento em que me dispus a ouvir
algum falar de Capoeira, vislumbrei a possibilidade de conhec-la. A
fala apaixonada de Fbio sobre a Capoeira me seduzia. Fiquei tomada
pelo desejo de vir a ser uma capoeirista. Percebi que fui ganha para
Capoeira. Isso ficou evidente no final de 1988, quando conheci, em
Vitria/ES a Capoeira da qual ouvia Fbio falar. Nesse momento, a
relao que estabeleo de admirao. Quando retornei a Natal,
procurei um lugar para praticar Capoeira.
Em 1989 comecei a fazer aula com o Mestre Iranir, no Clube
Camana. Na poca, ele no tinha o ttulo de mestre. Nos anos oitenta
e noventa as referncias de Capoeira em Natal eram duas escolas
(estilos) a do Mestre Marcos, identificada com a Capoeira Angola; e a
do Mestre ndio, voltada para o estilo Regional. A maioria doscapoeiristas que trabalha com Capoeira em Natal foi formada por um
ou outro.
Ao saber que na Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
em 1991 tinha Capoeira, deixei as aulas do Mestre Iranir e passei a
freqentar a Capoeira que acontecia no Centro Acadmico de
Histria/UFRN. Quem as ministrava era o contramestre Robson,
atualmente, mestre do Grupo Corpo Livre, que igualmente ao Mestre
Iranir, pertence linhagem do Mestre ndio. Na poca, eu no assumia
uma postura de vinculao com um grupo ou outro, ou mesmo mestre.
O interesse era praticar Capoeira, onde fosse mais conveniente. No
entanto, isso mudou. Havia Capoeira a alguns metros de casa e eu no
conseguia me desvincular do Mestre Robson.
Inserir-se num grupo criar relaes, afetos, cumplicidades,
laos, interesses. No campo capoeirstico, isso acontece com
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freqncia. Em 2006 parei de freqentar o Grupo do Mestre Robson.
Resolvi conhecer a Capoeira Angola, uma capoeira parecida com a que
vi em Salvador. Integrantes do Grupo Aba de Capoeira Angola
(Aracaju - SE) resolveram ministrar oficina de Capoeira Angola em
Natal com a possibilidade de criar um ncleo de extenso do Grupo.
Aps a minha participao na oficina, decidi praticar Capoeira Angola.
A motivao que tinha para ir s aulas do Mestre Robson j no existia
mais. Acreditava ser difcil freqentar as duas ao mesmo tempo. As
diferenas eram visveis na movimentao, na msica, na roda. O
discurso dos angoleiros de que no dava para fazer as duas capoeiras
reforava esse sentimento. O referido discurso, usando as palavras de
Bourdieu, identificado como o exerccio de violncia simblica.
O desafio que fao aqui consiste no exerccio de auto-objetivao
de meus sentimentos em relao s modalidades da Capoeira. A
oportunidade que tive de experiment-las foi significativa para a minha
condio de praticante e pesquisadora. Tomada por um momento dereflexo - a partir das minhas observaes e das conversas que ouvia -
revi minhas posies a respeito de freqentar as duas Capoeiras.
Voltar Academia do Mestre Robson j se colocava, mas sem deixar a
Capoeira Angola. A insistncia dos angoleiros ao afirmar que angoleiro
que angoleiro no para praticar outra capoeira suscitava
questionamentos. Por que o praticante de Capoeira Angola levado a
no freqentar outra Capoeira? O que est por trs desse discurso?Interfere no aprendizadodo capoeirista que pratica a Capoeira Angola,
dificultando-o; foi uma das justificativas que ouvi. Como interfere, se
somos capazes de aprender uma diversidade de movimentos lentos
e rpidos? Andamos e corremos. Aprendemos a danar Coco de
Zamb, Coco de Roda, Maracatu, Pastoril, Cavalo-Marinho, Samba,
Frevo e tantas outras prticas. Qual a dificuldade que se coloca na
Capoeira? A meu ver, essa questo no tem relao com tcnica.
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Trata-se do jogo prprio de um campo as disputas, os interesses, a
concorrncia e a prpria estrutura e funcionamento criados pelos
capoeiristas.
Retornemos ao momento em que a minha relao com a
Capoeira era apenas a de praticante. Como tal, chamava-me ateno
no s a movimentao, a musicalidade, mas a histria da Capoeira.
Sobre ela, procurava ler, ficar atenta; tudo me interessava: as falas,
como foram ditas as coisas, os gestos, os silncios, o tom da voz, at
o que no me foi possvel ouvir dos capoeiristas, especialmente,
mestres e quase mestres com quem tive contato. Queria conhecer
mais do que o treinamento para executar os movimentos da Capoeira.
A condio de praticante, que antecede a de pesquisadora,
pressups uma sistemtica observao da Capoeira. Deixando-me
envolver pelas tramas, construo expectativas em conhecer de perto
algo que fazia parte do meu cotidiano, familiarizando-me cada vez
mais com um cdigo peculiar Capoeira. Isso significava ir mais almdo que meus olhos podiam ver. Um passo para chegar condio de
praticante e pesquisadora. Ter a Capoeira como tema para estudo era
um projeto que se colocava minha disposio.
De posse de um aparato conceitual, a que Bourdieu chama de
capital terico, disponibilizado e distribudo, atravs do contato com as
disciplinas, especificamente, a Antropologia, a Histria e a Sociologia,
posso dizer que o olhar domesticado pela teoria, conforme Cardoso deOliveira (1998) permite-me situar a Capoeira como uma manifestao
da Cultura Popular.
Dentre tantas definies que o termo propicia, optamos pela
definio de Cultura Popular, construda por Stuart Hall (1997), que
considera como sendo as formas e atividades cujas razes se situam
nas condies sociais e materiais de classes especficas
(HALL,1997,p.257). So as prticas culturais construdas pelas classes
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menos favorecidas economicamente, as classes subalternas; prprias
das camadas populares. Considerada reminiscncia de antigas prticas
relacionada ao passado escravista, a histria social da Capoeira nos
revela que ela tem sua gnese no territrio popular.
Sobre essa questo, a pesquisa mostrou que dentro do campo
capoeirstico, relacionar Capoeira Cultura Popular no uma posio
unnime.Possivelmente, isso tem relao com a dicotomia que passou
a tomar conta do discurso no campo capoeirstico a partir da primeira
metade do sculo XX, com a criao da Capoeira Regional. Os adeptosda Capoeira Angola no relacionam a Capoeira Regional Cultura
Popular. Em Salvador, encontrei mestres que, ao me questionarem
sobre o tipo de Capoeira que eu estudava: se era a Capoeira Angola ou
Capoeira Regional, antes de eu responder alguma coisa, diziam:
porque a regional, sabe moa, no tem nada a ver com Cultura
Popular.
Na viso desses mestres, pertencer Cultura Popular tem uma
valorizao positiva. Eles se identificam como fazendo parte dela.
Capoeira Regional, que convencionou chamar de toda Capoeira que
tem como modelo a escola de Mestre Bimba, para esses mestres a
Capoeira da elite, a Capoeira da burguesia etc. Por trs dessa
bipolaridade identificada no discurso construdo pelos capoeiristas -
mestres ou no -, o dado emprico nos tem revelado que nem tudo
que no Capoeira Angola Capoeira Regional. Estamos diante de
entendimento e vises que permitem apreender as relaes de
conflitos no campo.
A discusso que segue diz algo sobre as inquietaes, as
dificuldades, os desafios e as surpresas encontradas no processo da
pesquisa; e que, sem dvida, vivenciada por aqueles que se dedicam
a esse mtier, mas que pouco se comenta ou mesmo se deixa
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registrado em suas teses. Normalmente, os pesquisadores no falam o
caminho das pedras. Escrever sobre esse processo, colocando os
percalos, as dificuldades, as angstias louvvel. Bourdieu (1989) j
dizia: nada mais universal e universalizvel do que as dificuldades
(BOURDIEU, 1989, p.18).
As inquietaes aparecem na escolha do tema. Uma delas diz
respeito situao do pesquisador envolvido diretamente com o objeto
de pesquisa: o sujeito enquanto capoeirista, pesquisar Capoeira.
Quando temos previamente um envolvimento com o objeto, oscuidados para conduzir um trabalho de investigao cientfica so
afirmados e cobrados o tempo todo. Ora, essa uma situao que se
coloca, mas que por outro lado, o lugar de praticante, de quem tem
uma experincia, de quem j tinha de certa forma conhecimento
acumulado, pois j estava familiarizado com o que se pretendia
pesquisar, tomando os cuidados necessrios, permite ao pesquisador
estar mais vontade para voltar a sua ateno na construo de umfenmeno passvel de ser (re) escrito.
Inicialmente, o terreno de investigao privilegiado para o
estudo da Capoeira compreendia a segunda metade do sculo XX. No
entanto, houve a necessidade de estender esse perodo; isso porque, a
criao da figura do mestre antecede aos anos cinqenta. Como o
mestre a questo central, a idia era que, a pesquisa de campo
pudesse ser realizada em qualquer cidade que tem mestre de
Capoeira.Presente em todos os estados do Brasil e, em todo lugar do
mundo, como nos contam com orgulho os mestres. No podemos
negar que o campo emprico amplo.
Diante das limitaes em dar a volta ao mundopara realizar o
trabalho de campo, decidimos priorizar algumas cidades a partir de
critrios pertinentes histria da Capoeira naquela cidade, como por
exemplo, se uma histria de sculos ou recente. Prioriz-las no
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Ento em 66 eu fui embora daqui de Recife pra Salvador,conheci os grandes velhos mestres da poca: O MestrePastinha, Mestre Caiara, Canjiquinha. Todo esse pessoalda Bahia, at porque ns devemos muito aos velhosmestres de Salvador, da Bahia pelo fato deles terem
preservado essa nossa cultura (Mestre Piraj).
A viso do Mestre Piraj - um dos representantes de uma
gerao de velhos mestres de Capoeira; sendo o nico nessa situao
na cidade de Recife - seguida pela comunidade capoeirstica queuniformemente reconhece o papel desempenhado pelos mestres
soteropolitanos na preservao da Capoeira. Assumida pelo mestre
como brasileira,ela passa a ser uma ddiva dos mestres baianos que,
com o tempo, passaram a ser conhecidos como os grandes velhos
mestres. O discurso unnime em ressaltar que a histria mais
recente da Capoeira tem relao com a Bahia, especialmente com a
cidade de Salvador.
Todo capoeirista tem que visitar Salvador, conhecer a Capoeira
l. Salvador a Meca para os capoeiristas. Estas so frases
pronunciadas por mestres e capoeiristas em todo o mundo; uma
imagem construda pela comunidade capoeirstica baiana. Para muitos
capoeiristas, foi l que a Capoeira surgiu e expandiu-se. Diante desse
significado que passou a ter a cidade de Salvador, ela foi transformada
em palco central para os eventos anuais regulares, de carter nacional
e internacional promovidos por grupos, fundaes, associaes e
escolas de Capoeira.
A ttulo de ilustrao, entre os meses de julho e agosto de 2005
perodo da pesquisa de campo - foram realizados em Salvador: o
Encontro Internacional de Capoeira, promovido pela Associao de
Capoeira Mestre Bimba, por ocasio dos 30 anos da Associao, no
perodo de 27 de junho a 03 de julho; o Encontro Internacional da
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Academia Joo Pequeno de Pastinha entre os dias 12 e 18 de julho;
em seguida, na primeira semana de agosto acontecia o XI Encontro
Internacional de Capoeira, organizado pela Fundao Internacional de
Capoeira Angola.
Se h uma nfase das pessoas envolvidas com Capoeira em
evidenciar a importncia dos capoeiristas conhecerem Salvador,
diramos que, para um pesquisador capoeirista, essa viagem torna-se
imprescindvel. Nas aulas de Capoeira, algumas vezes manifestei
vontade de conhecer uma roda de Capoeira Angola. L em Salvador
voc encontra;diziam-me os mestres.
Salvador significava no somente a possibilidade de ver a
Capoeira dos Mestres considerados referncias na Capoeira Angola -
Joo Pequeno de Pastinha, Boca Rica, Moraes, Cobrinha Mansa, Curi -
; mais do que isso, a capital baiana representava a possibilidade de
ouvir o que eles tinham a nos dizer. Ainda sobre a escolha de
Salvador, tem o fato de os mestres consagrados como as duas maioresreferncias de Capoeira - o Mestre Pastinha e o Mestre Bimba terem
construdo suas histrias l. Esses critrios justificam a escolha da
capital baiana como uma cidade importante para a natureza do
trabalho.
Alm de Salvador, a cidade de Recife foi um dos lugares
selecionados para fazermos a pesquisa. A escolha tem relao com
alguns fatos. Um deles, que, assim como Salvador, Recife foi um doscentros urbanos onde a Capoeira existia desde a poca colonial.
Porm, por ocasio da represso aos capoeiras, sofreu uma baixa. A
sua especificidade que, diferente de Salvador, deixa de existir no
incio do sculo XX. A Capoeira de Pernambuco teve um vazio - do
incio do sculo passado at o final da dcada de sessenta - quando
Marcondes Luiz - o Mestre Piraj - que tinha passado um tempo em
Salvador praticando Capoeira, de volta a Recife, decide dar incio a um
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trabalho de retornar e integrar a prtica da Capoeira quela cidade.
Essa histria contada pelos mestres de Pernambuco, com quem tive
contato. O que tambm nos chamou a ateno para nos guiar at
Recife foi o discurso propalado por capoeiristas pernambucanos de que
a Capoeira teria nascido em Pernambuco.
H uma produo discursiva elaborada para legitimar essa idia
que se contrape de que a Capoeira da Bahia. evidente que no
por acaso que histrias e memrias so construdas e para isso,
recorre-se ao perodo do Brasil Colnia. Portanto, torna-se oportuno
registrar aqui a fala de Mestre Americano.
(...) a Capoeira nasceu aqui. Depois daqui ela foi praBahia, a da Bahia, porque a Bahia muito rica. Ai prontoimplantou (...) porque l s tem gringo. Bahia no temnada a ver no. Capoeira foi daqui de Pernambuco.Quilombo dos Palmares no era capitania de Pernambuco?E a Capoeira era de l do Quilombo. A Capoeira no veio
de l de fora. Ela foi daqui pra l. (Mestre Americano15
).
Contrariando o discurso dos capoeiristas baianos, e configurando
disputa, a fala do Mestre menciona o Quilombo de Palmares como o
lugar onde a Capoeira teria se originado. Na poca, o Quilombo
pertencia capitania de Pernambuco. Essa histria, contada e
recontada por mestres pernambucanos, se propaga no imaginrio dos
capoeiristas. A esse respeito, a historiografia sobre Capoeira diz no
haver indcios que provem a verso de que a Capoeira fora criada nos
Quilombos.
Quando o Mestre Americano explica o fato de a Capoeira, numa
poca determinada, ter se desenvolvido em Salvador em detrimento
de Recife, no tom de sua fala, percebe-se sutilmente a rivalidade entre
15
Mestre Americano Carlos Fortunato da Silva (1964). Nascido em Igarassu PE. Reside em Recife e desenvolve o trabalho com Capoeira junto ao Projeto DaruMalungo.
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Bahia e Pernambuco. Bahia muito rica, diz o mestre. A pronto,
implantou. Porque l s tem gringo. Aqui estamos nos referindo a sua
histria mais recente.
Desvendar por que riqueza e gringo teriam uma importncia na
implantao da Capoeira na Bahia, na viso do mestre, supe uma
imagem da riqueza associada aos atrativos culturais, diversidade e
singularidade que fazem com que a Bahia (e Bahia aqui Salvador)
exera uma atrao forte para o turismo, portanto, para a presena de
gringos. No entanto, quando se percorre a histria e a vida cultural de
Pernambuco, de Recife, percebemos o quanto de riqueza essa terra
oferece. Com efeito, a justificativa do mestre torna-se simplria,
limitada.
Para finalizar os motivos que nos levaram a escolher Recife,
apontamos a relao entre a Capoeira e o Frevo. A ginga movimento
bsico da Capoeira - transforma-se no passo do frevo. Como tive
referncias de Mestres de Capoeira localizados em Olinda,aproveitando a proximidade entre esta e a capital pernambucana, foi
oportuno procur-los.
Com vistas a considerar o fato de morar numa cidade onde a
Capoeira uma realidade, por si, j justifica a escolha de Natal.
Considerando as singularidades da Capoeira em cada lugar,
observandoo contexto histrico e a situao em que ela se encontra,
essa cidade um parmetro para tantas outras; isso pelo fato de quea sua chegada em Natal coincide com o mesmo perodo em que ela se
torna presente em outras cidades do pas.
A especificidade, com relao s cidades que foram citadas, a
de que em terra potiguar, conforme os registros orais obtidos junto a
mestres de Capoeira de Natal, sua prtica era inexistente at incio dos
anos sessenta, perodo em que situamos o processo de expanso da
Capoeira pelo pas.
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Para contemplar o nosso objeto numa dimenso ampla,
abrangendo as diversidades de um pas como o Brasil; com suas
particularidades regionais e locais, fizemos escolhas, muito embora
uma inquietao se fizesse presente: o que poderamos fazer para
ampliar o universo com diferentes sotaques? A idia seria aproveitar
os eventos regulares de carter nacional e internacional, promovidos
por grupos, associaes e fundaes de Capoeira, realizados em Natal
ou em cidades mais prximas; um momento oportuno para encontrar
mestres que atuam em diferentes estados e pases.
Para as reflexes pretendidas, a inteno foi de trabalhar com
material relevante ao desenvolvimento do estudo. A pesquisa envolve
um levantamento de dados que possibilitam compreender:
1. As classificaes, hierarquias, cdigos, rituais e relaes de
poder entre os mestres. Como so institudos, que novas
tramas sociais so estabelecidas e como os diversos
segmentos que compem o campo da Capoeira (mestres,contramestres, professores, instrutores, alunos) se situam
diante da realidade social construda.
2. A criao do ttulo de mestre, como se d a construo
social do mestre de Capoeira e o seu lugar na Capoeira.
3. O que representa para o mestre de Capoeira a
profissionalizao dessa prtica, compreendida por alguns,
como uma prtica cultural e por outros como uma prticaesportiva; ou como uma prtica cultural e esportiva.
4. As percepes dos mestres diante das mudanas mais
gerais ocorridas com a Capoeira.
Quando decidimos compreender os novos significados que a
Capoeira assume, numa dinmica de posicionamento entre os
mestres, o que nos impe de imediato descobrir uma estratgia que
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nos permita dar conta do que estamos propondo. Segue-se da as
nossas escolhas com o que nos foi possvel trabalhar.
Pesquisamos em jornais e revistas, principalmente as de
Capoeira; documentrios, informaes vinculadas Internet.
Utilizamos as composies musicais, presena imprescindvel na
Capoeira. O negro, a Capoeira, o mestre e o grupo so alguns dos
temas presentes nas cantigas entoadas nas rodas.
Para construir um quadro de anlise sobre a Capoeira,
trabalhamos com a reviso da literatura existente. So as pesquisas
produzidas pela academia, as obras elaboradas por capoeiristas; para
ver e ouvir, o trabalho de campo. A observao direta e as entrevistas
tm um lugar especial. O trabalho de campo, atravs da observao
direta, aconteceu nos lugares onde os capoeiristas marcam presena.
Atravs da observao direta, foram vistas as formas exteriores
das mudanas ocorridas com a Capoeira e como os mestres se
localizam e se comportam no novo cenrio. A participao em eventospromovidos e organizados pelos grupos de Capoeira como os
batizados, troca de cordas e formatura; os encontros de carter
nacional e internacional; as rodas de Capoeira; as competies
esportivas em que a Capoeira participa isolada ou em conjunto com
outras modalidades, como o caso do JERNS Jogos Escolares do Rio
Grande do Norte foram relevantes no processo de observao.
Com as entrevistas - instrumento privilegiado para a obtenode dados da pesquisa - a inteno foi alcanar as informaes
necessrias para o que nos propusemos atingir. Na compreenso de
que o resultado de uma pesquisa de campo depende da relao
pesquisador/pesquisado, optamos por estabelecer com os Mestres de
Capoeira uma relao dialgica, de confiana, na inteno de construir
uma anlise com o que for possvel ver e ouvir deles.
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escolaridade, etnia, faixa etria, Capoeira a que est vinculado,
de onde so e se vivem da Capoeira, temos um quadro: todos so do
sexo masculino; com relao escolaridade, 04 concluram o ensino
superior (02 formados em Educao Fsica, 01 em Letras e 01 em
Medicina), 06 concluram o ensino mdio, 04 completaram o ensino
fundamental, 04 no completaram o ensino fundamental e 02 deles se
declararam analfabetos. Quanto etnia, temos 15 negros e 05
brancos. No tocante a faixa etria, temos 05 que se encontram entre
30 e 40 anos, 06 deles esto entre os 40 e 50 anos, e acima de 50
anos, tivemos 09 mestres.Dos entrevistados, 50% disseram trabalhar
com Capoeira Angola. Os demais se identificaram com a Capoeira
Regional e com a Capoeira Contempornea. Quanto ao lugar onde
residem os entrevistados, 50% em Salvador; os demais esto
distribudos entre Natal, Recife, Olinda, Aracaju e So Paulo. A
maioria dos entrevistados vive de Capoeira. Dois no trabalham com
Capoeira e dois tm outro trabalho alm da Capoeira.Para compreendermos as percepes dos mestres sobre as
modificaes materiais e simblicas que tm acontecido com a
Capoeira, especialmente, a posio e o papel deles nesse espao
social, foram consideradas a idade, a escolaridade, a condio em que
vivem; enfim, os valores e modos de vida.
Antes de finalizar essas consideraes iniciais, com a
apresentao da estrutura da tese, decidimos descrever algumas
surpresas reveladas no processo da pesquisa. So trs: a do mestre
que no quer ser mais chamado de mestre, a do mestre que faz
questo de ser chamado de mestre, muito embora seus pares no o
reconheam porque ele no trabalha e nunca deu aula de Capoeira. A
ltima situao a de um mestre que me cobrou pela entrevista.
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Gostaria de comear com as investidas para entrevistar um
Mestre de Olinda conhecido como Mestre Sapo17. Ele no quer mais ser
chamado de Mestre. Em 2003 fui at a sua academia para fazer o
primeiro contato e agendar uma entrevista. A pintura de uma zebra no
muro do espao sinalizava que o Mestre de Capoeira Angola. A zebra
simboliza a origem da Capoeira. Para os angoleiros, ela tem relao
com o ngolo (dana da zebra) - uma prtica cultural de Angola. No
local onde acontece a Capoeira, havia uma turma de jovens danando
Cavalo-Marinho. Um deles me atendeu. Ao me apresentar, perguntei
pelo Mestre, o rapaz informou que iria saber se ele podia me receber.
No pde. Ele pediu para que eu voltasse outro dia. Peguei o nmero
do telefone do Mestre para marcar um encontro. Nesse momento, tive
a primeira surpresa no campo: que ao escrever o nome Mestre, de
imediato o rapaz disse: no, Mestre no porque ele no quer que o
chame mais de Mestre. Tal fato aguou a minha curiosidade e a
determinao de encontr-lo.O encontro foi um ano depois. Novamente fui pega de surpresa.
Sapo no permitiu que eu gravasse a entrevista. Ele no aceita que
faam filmagens, tirem fotos da sua academia e gravem a sua fala.
Perguntei por que ele no permitia a gravao da entrevista. Disse-me
que no confia. E assim afirmou: quem me garante que voc no
passe essa fita para outros mestres. Expliquei por que seria
importante a gravao, mas o mesmo se recusou. Diante da negativa,
perguntei se podia tomar nota no caderno do que ele me falava. O
mesmo autorizou.
A segunda situao, a do Mestre que faz questo de ser
chamado de mestre, muito embora alguns de seus contemporneos
17
Sapo Nascido em Olinda no ano de 1957. Seu nome de batismo Humberto F.Mendona. uma referncia na Capoeira de Pernambuco. Capoeira Angola Me onome do seu Grupo quefica em Olinda-PE.
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no o reconhea. Nesse caso, ele no o nico. Ser Mestre de
Capoeira,no para qualquer um. Essa a viso dos descendentes
diretos dos Mestres Pastinha e Bimba. Para ser Mestre precisa ter
condies, e isso significa o capoeirista ter passado por um longo
processo de aprendizado, um conhecimento produzido pelo exerccio
da prtica capoeirstica passada pelo Mestre.
Na concepo dos Mestres com os quais tive contato, para ser
Mestre preciso aprender a movimentao, cantar, tocar os
instrumentos, conhecer a histria da Capoeira. No campo capoeirstico preciso acumular uma quantidade de capital cultural. Alm desse
conhecimento, precisa dar aulas de Capoeira. Diferentemente da
situao anterior, o Mestre, pelo fato de eu no ter escrito o nome
mestre anterior ao seu nome, pegou a agenda da minha mo e
escreveu. Esse gesto podia passar despercebido se antes eu no
tivesse informaes para pensar que aquela ao tinha um significado
que passa pela posse do ttulo de mestre, e que por sua vez, temrelao com reconhecimento, legitimao, valorizao, status e disputa
no campo capoeirstico.
No importa se os Mestres de Salvador reconheam ou no a
titulao destes. Ter sido aluno e bem prximo do Mestre Pastinha j
suficiente para garantir o ttulo, mesmo que o reconhecimento no
seja unnime, isso porque a quantidade de capital cultural acumulada
na Capoeira, nesse caso, no teve peso para a definio do ser
mestre.
Por ltimo, descrevo a terceira surpresa revelada no processo da
pesquisa: o encontro com o Mestre Curi, que cobrou pela entrevista.
Um dos mestres que no podia deixar de encontrar. Soube da sua
existncia no documentrio: Pastinha, uma vida pela Capoeira,
produzido em 1999. difcil para um pesquisador desse campo no ter
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curiosidade em conhec-lo. Um mestre que a todo instante enfatiza a
firmeza das suas convices e posturas com relao Capoeira, que
diz no ter medo de falar o que pensa. A indignao com a
universidade e com o Brasil por no tratar a Capoeira como ela de fato
mereceest expressa no seu tom de voz.
O trecho que segue a fala do Mestre, no documentrio:
Eu fui a um debate na universidade que eles me disseram
que o camarada para ensinar uma capoeira nauniversidade tinha de ter curso de Educao Fsica e tinhade ser universitrio e eu debati porque eles dizem que eusou analfabeto. Eu sou analfabeto. Posso ser na leitura,mas na Capoeira, quando vier discutir comigo, se segure.
A gente, para conseguir alguma coisa, tem que sair daqui(Mestre Curi).
Em 11 de junho de 2005, com os endereos das academias eescolas de Capoeira localizadas no Pelourinho, em mos, a prioridade
foi de estabelecer o primeiro contato com o Mestre Curi. Dirijo-me a
Rua Gregrio de Matos, onde fica a Escola de Capoeira Angola Irmos
Gmeos - a escola do Mestre. Ao chegar ao porto de acesso s
escadas que me conduziriam ao seu endereo, uma placa de aviso com
os horrios das aulas chama ateno. que ali tambm uma mestra
leciona Capoeira, a Mestra Jararaca. Eu j tinha ouvido falar a seurespeito. O espao estava fechado. Ao checar o horrio e as
informaes do quadro de aviso, resolvi esperar; pouco tempo faltava
para comear sua aula. No tardou, chegam os dois. O mestre pede
para que eu suba, e o acompanhe at uma sala que fica vizinha ao
salo onde a Capoeira acontece.
Penso que essa cena deve ter se repetido na vida do Mestre.
Outras pessoas j tiveram ali na condio de pesquisadoras. O que me
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levaria at l foi primeira pergunta que o mestre fez. Eu me
apresento e falo da pesquisa que estou fazendo sobre Capoeira. Em
seguida, ele pergunta que Capoeira essa que eu estou estudando.
Diz o mestre: Capoeira Regional no cultura, t fora. Para ele, no
tem nenhuma relao com a Cultura Popular.Agora a capoeira Angola,
essa sim. Esse comeo de conversa deu-se dessa forma porque, no
momento da minha apresentao, sinalizo que pretendo estudar os
Mestres de Capoeira, entendendo-a como uma manifestao da
Cultura Popular.
Em seguida, comeo a ouvir um discurso meio ressentido,
reafirmando a fala dele no documentrio, a saber: a Universidade o
preocupava porque no abre as portas para Mestres como ele que tm
mais de meio sculo de experincia; a Educao Fsica usa a Capoeira
sem dar nada em troca, pois eles, os mestres legtimos detentores de
um saber no esto na universidade. Esse era o seu discurso.
Nesse momento, para no esquecer as palavras ditas pelo
Mestre pego o lpis e comeo a tomar nota. De imediato, ele pergunta
o que voc est escrevendo a? No podia fazer aquilo. Parei e fiquei
atenta a sua fala que me parecia um desabafo. Alm de mim, nessa
ocasio, estavam presentes duas pessoas: um jovem Mestre e a
Mestra Jararaca. Ambos ouviam a palavra do Mestre com dedicao e
faziam gestos de concordncia com o que ele dizia.
Ao apresentar o jovem Mestre, que no dia seguinte estava
viajando a Paris para trabalhar com Capoeira, o Mestre Curi disse:
esse um jovem mestre. Capoeira no t na idade. Essa fala me
chamou a ateno porqueesse mestre tem o perfil que se aproxima
dos mestres que assumem uma posio crtica com relao aos
mestres jovens.No campo capoeirstico notria a queixa proveniente
de mestres no jovens endereada formao de mestres jovens.
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valorizados, no tm o reconhecimento que merecem. Cita os mestres
que morreram na misria. O Mestre mencionou uma pessoa da
Inglaterra que teria lanado um livro contendo falas dele. As pessoas
esto a ganhando dinheiro com a gente e a gente s sendo usado.
O que pude entender do que ouvia que esses mestres se
sentem explorados. Alguns deles no concordam com as normas da
universidade que, para dar aula de Capoeira, preciso ter a
escolarizao exigida. Os mestres, no todos, no vem legitimidade
para outros que no sejam eles - a exemplo do Mestre Curi - com aexperincia de tempo assumir um trabalho com Capoeira.
Dias depois, quando estava tomando notas das teses e
dissertaes existentes no acervo do historiador Frede Abreu,
encontrei uma dissertao defendida em 2002 pelo Programa de Ps-
Graduao em Artes Cnicas da Universidade Federal da Bahia,
intitulada Capoeira Angola como treinamento para o ator. Esta teve
como campo emprico a Escola Capoeira Angola Irmos Gmeos, do
mestre Curi.
Para finalizar a introduo, cabe descrever aqui a estrutura da
tese. Trabalhamos trs captulos. A trajetria da Capoeira: entre a
tradio e a modernizao; Os deslocamentos scio-culturais da
Capoeira; A construo social do Mestre de Capoeira.
No primeiro captulo, situaremos a Capoeira na histria. Semgrandes pretenses e de forma sucinta, apresentaremos aspectos da
origem da Capoeira. Em seguida, trataremos do processo histrico da
Capoeira, sua classificao e escolas, dando destaque para os Mestres:
Pastinha e Bimba na construo da histria da Capoeira.
No segundo captulo, trataremos da Capoeira com ateno
especial aos anos setenta em diante; contexto em que os
deslocamentos quanto ao espao, ao discurso, aos novos segmentos e
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novas finalidades vo se dando, afirmando as mudanas materiais e
simblicas. Nesse captulo, tambm dedicaremos ateno
aproximao dos aportes tericos da Sociologia de Pierre Bourdieu:
campo social, hbituse capital, com o nosso objeto emprico.
No terceiro captulo, abordaremos a construo social do Mestre
de Capoeira, enfatizando a idia do mestre de Capoeira como Mestre
da Cultura Popular, destacando a hiptese sobre a sua gnese, a
formao do Mestre em diferentes escolas; o que ser mestre na
viso dos Mestres; a relao Mestres antigos e novos Mestres; e arepresentao da Capoeira na vida do Mestre.
CAPTULO I - A TRAJETRIA DA CAPOEIRA: ENTRE A
TRADIO E A MODERNIZAO
Na diversidade da capoeiragem reside suafora e beleza. Nenhum estilo poderrepresentar Capoeira como um todo enenhum mestre poder ser considerado odono da capoeiragem. Se assim fosse, a
Capoeira seria muito chata. Capoeira oconjunto de todos ns, com nossas
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interpretaes, verdades e diferenas (MestreAcordeon, Revista Capoeira, 1999).
Impossvel falar de Capoeira e no perceber a dimenso do
tempo como uma referncia recorrente nas narrativas. Tempo para
contar o que passou, para avaliar o que existe e para especular o que
vem depois. Tempo para dizer que em determinada poca, a Capoeira
era de um jeito, se apresentava de tal forma, tinha um sentido de ser,de existir. O tempo da Capoeira no Brasil Colonial um, que j se
distanciou ao do sculo XIX, e que, no o mesmo da Capoeira do
sculo seguinte, de agora, e que no ser o de amanh.
Os fatos, os nomes, as lembranas, as histrias de ontem e de
hoje o que se viu e o que se ouviu anuncia: Capoeira que, h
exatamente, um sculo era crime a polcia prendia quem a
praticasse - hoje considerada smbolo de cultura; faz parte daidentidade brasileira. Tornou-se produto brasileiro de exportao. Na
viso dos capoeiristas, representa diverso e trabalho, cultura e
esporte, terapia e filosofia de vida.
Quem poderia imaginar, nas primeiras dcadas do sculo XX,
que a Capoeira pudesse chegar a ocupar o lugar que tem hoje? De
repudiada, perseguida, proibida e reprimida, como aconteceu com
prticas da religiosidade africana as casas de Candombl na Bahia,
as de Tambor de Mina no Maranho, as casas de Xang em Recife - e,
manifestaes populares, como o Maracatu, o Samba, o Tambor de
Crioula - herana da cultura africana - passa a ser aceita e construda
como um dos cones da identidade nacional; e motivo de orgulho.
Em 1953 o presidente Getlio Vargas nomeia a Capoeira de
Esporte Nacional Brasileiro. E, tempo depois, entre tantas
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representaes atribudas a ela, passa a ser modalidade esportiva em
instituies escolares e produto de consumo turstico.
O estudo com os mestres de Capoeirasugeredar uma ateno
especial aos fatos ocorridos a partir dos anos trinta do sculo XX. Isto
porque este momento ancora muitas narrativas sobre a Capoeira.No
entanto, sem grandes pretenses e de forma um tanto sucinta,
apontamos alguns momentos da construo e emergncia da
Capoeira. Para isso, necessrio recuar no tempo. Sendo assim,
situemo-nos, de incio, na Histria do Brasil Colnia, perodo em que
os protagonistas da Capoeira viviam como escravos.
Para comear, examinemos, brevemente,o debate em torno da
sua origem, um dos caminhos que nos leva a conhecer parte de sua
histria. Em seguida, acompanharemos os caminhos, por onde a
Capoeira percorreu - do cdigo de represso at a sua entrada numa
fase que vou chamar de modernidade. Nesse contexto, o destaque
consiste em dois estilos de Capoeira que passaram a existir a partirdos anos 30 a Capoeira Angola e a Capoeira Regional - bem como as
duas maiores referncias da Capoeira - os consagrados mestres Bimba
e Pastinha.
1.1. A ORIGEM DA CAPOEIRA: O DEBATE CONTINUA ...
H quatro sculos a alma africana tem sido o motorda inquietao, da resistncia, da transgresso.(...) O negro sempre quis fugir da opresso fazendohistria, ganhando o mundo com estilo. assim quea alma sobrevive em todo novo continente (...) Mas o ariano que ignora o africano, ou o africanoque ignora o ariano. Ao sul o africano fez nascer omaracatu, o afox, o choro, o samba, o baio, ococo, a embolada entre outros os Jaksons e os
Ferreiras, os Gonzagas e os Pexinguinhas ...(Mundo Livre SA, CD Carnaval na Obra, 1998)
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A respeito da origem da Capoeira, temos um problema. As
perspectivas de anlise tm, na sua maioria, expressado a dificuldade
de precisar uma data, um local e uma autoria. Quando tudo comeou?
A Capoeira veio da frica ou a sua gnese brasileira? Quem teria
feito os primeiros movimentos? A respeito dessa questo,
encontramos no campo capoeirstico duas linhas de pensamento. Uma,
diz respeito criao brasileira; a outra, criao africana.
Praticantes e estudiosos (Reis, 1993; Vieira, 1990; Soares,
1994e Pires, 1996) concordam com a hiptese de que a Capoeira foi
criada no Brasil, pelos negros bantos, naturais de Angola. Entre os
sculos XVI e XIX, O Brasil recebeu milhes de negros escravizados,
vindos de diversas regies da fricapara alimentar o sistema colonial.
A escravido era uma prtica social presente na frica.
Destinados a cruzar o Atlnticopara morar em terras distantes, nadalhes era permitidolevar. A sua cultura, impressa no corpo, na alma, na
memria era para ser apagada, esquecida, conforme lembra uma cena
do documentrio Atlntico Negro, na rota dos Orixs: esta gira em
torno de voltas que mulheres e homens eram obrigados a dar ao redor
de uma rvore. Era um procedimento realizado antes do embarque.
Uma forma de os responsveis pela migrao forada de homens e
mulheres se prevenirem de pragas ou maldies proferidas pela bocadaqueles que eram obrigados a deixar sua terra, sem possibilidades de
retorno.
Todo escravo que ia ser embarcado era obrigado a darvoltas em torno da rvore do esquecimento. Os escravoshomens deviam dar nove voltas em torno dela. As
mulheres sete voltas. Depois disso supunha-se que osescravos perdiam a memria e esqueciam seu passado,
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suas origens e sua identidade cultural (DocumentrioAtlntico Negro, na rota dos Orixs, 1998).
O fato que, seja no Brasil, em Cuba, Venezuela, Caribe ou em
qualquer outra terra, o esquecimento do seu passado, da sua
memria, da sua histria, evidentemente, no acontecia. Quando
chegavam nas novas e estranhas terras, em meio aos obstculos,
esses povos recriavam seus traos, suas marcas identitrias, sua
cultura. Era, portanto, uma maneira de imprimir significado e sentido
nova realidade a que estavam submetidos. Com eles, para c vieram
os ritmos, as canes, as crenas, as idias e as formas de se
relacionar com a vida. No toa que, no Brasil, a presena africana
forte na dana, na msica, na religiosidade, na comida, no
vocabulrio e nos gestos de uma parcela significativa da sociedade
brasileira.
Com efeito, a histria da Capoeira se insere nesse contexto,possivelmente, como uma mistura de danas, lutas e instrumentos
musicais de diferentes culturas africanas, conforme avalia Nestor
Capoeira (1981) em O pequeno manual do jogador de capoeira. Na
sua concepo, o Brasil foi o palco onde essa sntese se deu.
A tese da brasilidade da Capoeira no encontra unanimidade no
campo capoeirstico. Os mestres antigos, principalmente, os adeptos
da Capoeira Angola pensam o contrrio dessa verso. Afirmam que aCapoeira africana.Eles se apiam no argumento dena frica existir
danas, rituais com caractersticas semelhantes Capoeira, como o
ngolo Jogo da Zebra. Cmara Cascudo (1993) registrou essa prtica
no Dicionrio do Folclore Brasileiro, como uma luta que fazia parte de
um ritual em que os negros lutavam e os vencedores tinham como
prmio meninas da tribo que ficavam moas, podendo casar sem
pagar dote. Antigos mestres angoleiros, discpulos do Mestre Pastinha,
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outras prticas culturais inseridas na sociedade brasileira, como foi o
caso da Capoeira.
A questo referente ao fato de a Capoeira ter surgido no Brasil
ou na frica no est resolvida. Dizer que a Capoeira foi criada no
Brasil porque a maioria dos autores concorda com essa tese, como faz
VIEIRA, posicionamento insustentvel. Portanto, vale sinalizar
algumas indagaes: as pesquisas foram satisfatrias para
fundamentar tal concluso? Quando e onde foram realizadas? As
fontes foram suficientes para tratar do problema? Se nas pesquisas
no encontraram lutas semelhantes Capoeira fora do Brasil, no
poderiam elas terem existido e na poca das pesquisas no terem sido
encontradas18, devido a represso s prticas culturais negras, como
aconteceu no Brasil?
1.2. A NECESSIDADE A ME DA INVENO
O mesmo p que dana osamba se preciso, vai luta, capoeira.
(Marcos Vale, 1983)
Prticas culturais prprias de um tempo, ocorridas em outros
espaos e pocas nunca so as mesmas. Ora, novas situaes
engendram novas experincias. A opresso vivida pelo negro
18 Algumas manifestaes da Cultura Popular passam por um processo dedesaparecimento e reaparecimento.
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possibilitou a ressignifio do uso de seus movimentos corporais.
Antes usado para um fim ritualstico, em terras distantes, passa a ser
arma de defesa. A experincia nova compreensiva. Poderia ela ter
convivido com a anterior (o ngolo)? No resta dvida; a resposta
negativa. Para compreender a questo indispensvel saber que a
condio do africano no Brasil era outra. Portanto, no cabia o ngolo.
Em terras brasileiras, traos da ancestralidade africana passaram
por processos de adaptao. A movimentao corporal que o negro
executava em rituais na frica no se perdeu porque foi para outro
continente, mesmo que a prtica ritual no mais se fazia presente. Ela
tem outros sentidos e intenes, outros significados. Sendo assim,
uma questo se coloca: a ressignificao do uso dos movimentos
antes ritualstico, agora de defesa - ocorrido no Brasil, suficiente
para firmar o carter de nacionalidade atribudo Capoeira, se o negro
trouxe consigo a manifestao dessa linguagem em seu corpo?
importante compreender por que o autor afirma que a Capoeira brasileira e perceber de onde parte esse discurso.
As anlises sobre a origem da Capoeira tm dificuldade de
precisar data, local e autoria. Em A capoeira escrava e outras
tradies rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), o historiadorCarlos
Eugnio Lbano Soares explicita o nascimento das verses produzidas
sobre a possibilidade de a Capoeira ser brasileira e ser africana. A
polmica notadamente conhecida no campo da Capoeira e entrepesquisadores.
Para o historiador, a questo da nacionalidade brasileira
encontra-se no pensamento de Plcido de Abreu, um imigrante
portugus que em 1886, construiu a verso da origem nacional.
Convergindo numa direo oposta verso da nacionalidade brasileira,
tem a verso de Hermeto Lima, que em 1925 escreveu um artigo
intitulado Os capoeiras, na Revista da Semana,e dizia os africanos
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que para aqui vieram escravizados e que a usavam como esporte,
como hoje se usa o boxe, jogavam-se ao som do tambor (LIMA apud
SOARES, 2004, p. 41). Como vemos, a questo sobre a origem da
Capoeira permanece sem soluo.
1.3. CONTANDO HISTRIAS DE CAPOEIRA
A Capoeira tem sculos de histria, e muitas foram as mudanas
ocorridas com ela. Tomando como referncia o estudo de Reis (1993),
Vieira (1998), Soares (2004), Karash (2000), entre outros, a Capoeira,
inicialmente foi arma dos negros escravizados. Possivelmente, era
praticada em senzalas e quilombos. Pesquisas sobre a Capoeira nosculo XIX, fazem aluso de que ela era praticada, especialmente, nas
ruas dos centros urbanos do Rio de Janeiro, Salvador, Recife, So Luiz
e Par. Nesse perodo, a Capoeira era considerada um problema de
segurana pblica. No Rio de Janeiro no se restringia apenas a negros
e pobres, estendendo-se tambm aos brancos de diferentes classes e
imigrantes estrangeiros. Contudo, o nmero desses capoeiras era uma
presena menos significativa. Com o advento da Repblica, a Capoeira marcada por perseguio e represso. O Cdigo Penal Brasileiro de
11 de outubro de 1890 associa a prtica da Capoeira criminalidade.
O decreto n. 487 do Cdigo estabeleceu no captulo XIII que tratava
dos Vadios e Capoeiras:
Art. 402 Fazer nas ruas e praas pblicas exerccios de
agilidade e destreza corporal, conhecidos pela denominao de
capoeiragem, andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes
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capoeira, imediatamente, a minha ateno se volta para a cidade do
Recife. A relao entre as bandas de msica, as maltas de capoeiras e
o nascimento do frevo uma histria singular e interessante para
contar.
1.4. DA GINGA DA CAPOEIRA AO PASSO DO FREVO
No incio do ano de 2007, a cidade do Recife se preparou para
festejar o aniversrio do Frevo. Oficialmente, em 09 de fevereiro esse
fenmeno que ocorreu em Pernambuco, completou 100 anos. Afinal, j
dizia uma cano de Capiba: Pernambuco tem uma dana que
nenhuma terra tem.
A primeira vez que ouvi falar da relao entre a Capoeira e o
Frevo foi em 1988, durante uma aula espetculo ministrada porAntnio Nbrega. Para efeito de esclarecimento, a referncia o passo
do frevo, ou seja, a dana e no o ritmo, a msica. Uma
descontinuidade ocorreu com a Capoeira, dando lugar ao Frevo. O
processo foi lento, disse Nbrega. Danando, ele representou em
minutos o que teria ocorrido em anos: a transformao da Capoeira
em Frevo, metamorfoseando, movimentos prprios da Capoeira. A
saber: ginga, meia lua, au, rabo de arraia se misturam a outrosmovimentos at se transformar em passo, tesoura, dobradia,
locomotiva, ferrolho, parafuso movimentos, conhecidos como passos
do frevo.
No final do sculo XIX e incio do seguinte, durante o carnaval,
frente das bandas marciais dos quartis que desfilavam nas ruas de
Recife - a do Quarto (4 Batalho) e a da Espanha (assim denominada
devido nacionalidade do mestre) saiam os capoeiras, identificados
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Quando do retorno de Piraj a Recife, o ttulo de Mestre era uma
raridade no campo capoeirstico. O contato dele com os capoeiras da
Bahia, especialmente o curso feito com o Mestre Bimba, e as aulas de
Capoeira que ministrou em Niteri, possivelmente, o teria credenciado
a dizer retornei a Recife j Mestre.
Ainda com relao fala do Mestre, vale ressaltaro papel que
desempenhou na histria da Capoeira de Pernambuco. Esse
reconhecimento est presente no apenas quando este fala de si. Os
capoeiras mestres que participaram da pesquisa falaram da
importncia dele para a histria da Capoeira.Aps evidenciar algumas
consideraes mais recentes, seguimos o fio do trajeto da Capoeira e
chegamos aos anos trinta.
1.5. CAPOEIRA E CAPOEIRAS
Durante o primeiro tero do sculo XX a Capoeira passou por
mudanas significativas. Seu universo dividido. Duas modalidades de
Capoeira passaram a existir. Trata-se da Capoeira Angola e da
Capoeira Regional. Durante algumas dcadas s se ouvia falar dessas
duas expressividades de Capoeira. Hoje,encontramos capoeiristas se
referindo a uma outra Capoeira que no se identifica com a Regional enem com a Angola, embora se utilize de elementos das duas. a
chamada Capoeira Contempornea. Vejamos o que diz o Mestre Caio
dos Anjos20a respeito dessa questo:
20 Caio dos Anjos reside em Natal. Tem 37 anos. Desses, mais de 20 anos
dedicado a Capoeira. Identifica-se com a Capoeira Angola. responsvelpelogrupo: Capoeira Arte e Vida. A entrevista foi concedida em Natal no dia 02 deabril de 2005.
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H toda a sabedoria que aprendi. Cada um cada um(...). (Mestre Pastinha22)
Revelava o Mestre Pastinha (1967) ao se referir a maneira como
a Capoeira Angola devia ser ensinada. Se cada pessoa tem um jeito
gestos, movimentos - que lhe peculiar, isso precisa ser levado em
conta. Respeitar o que cada um carrega sem forar a naturalidade da
pessoa, o negcio aproveitar os gestos livres e prprios de cada
qual.(Mestre Pastinha,1967). Aqui, verifica-se um aspecto prprio da
Capoeira Angola, uma das marcas de distino entre esta e a Capoeira
Regional.
Se cada um cada um, pensando o indivduo; tambm se pode
levar essa compreenso aos grupos. O termo grupo, por ser a
denominao mais usual na Capoeira, a referncia para estarmos
falando de escolas, associaes e fundaes. O foco a seguir uma
composio de imagens que tive o privilgio de presenci-las na cidade
de Salvador. Trata-se da representao ritualstica da Capoeira Angola
em suas peculiaridades. A Capoeira do Mestre Joo Pequeno, a
Capoeira do Mestre Moraes, a Capoeira do Mestre Curi, a Federao
Internacional de Capoeira Angola e a Associao de Capoeira Angola
constituram espaos representativos para observao.
Fruto da Escola de Mestre Pastinha, a observao fornece
elementos para perceber as singularidades, particularidades, sutilezasde cada uma. Atravs das observaes, vou tecendo as minhas
impresses a cerca da Capoeira Angola. Para esse exerccio, optamos
pela seleo de trs espaos: o Centro Esportivo de Capoeira Angola
Joo Pequeno de Pastinha - a Capoeira de Angola de Joo Pequeno de
Pastinha, o Grupo de Capoeira Angola Pelourinho - a Capoeira de
22 Depoimento prestado por Mestre Pastinha no ano de 1967, ao Museu da Imagem
e do Som.
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Mestre Moraes e a Escola de Capoeira Angola Irmos Gmeos a
Capoeira do Mestre Curi.
1.6.1. Centro Esportivo de Capoeira Angola Joo
Pequeno de Pastinha
Sbado, 11 de junho de 2005. No cu avisto a primeira estrela
dando sinal que a noite estava chegando. Saio do Pelourinho,
caminhando em direo ao Forte Santo Antnio23, localizado no bairro
Santo Antnio que fica vizinho ao Pelourinho. Nesse espao h duas
referncias de Capoeira Angola: a Academia de Joo Pequeno de
Pastinha Centro Esportivo de Capoeira Angola e o Grupo Capoeira
Angola Pelourinho. Sbado o dia em que acontecem as rodas24
deCapoeira desses Grupos.
Inicialmente, a inteno foi conhecer a Academia de Joo
Pequeno de Pastinha. L, soube que no mesmo horrio o Grupo de
Capoeira Angola Pelourinho GCAP - estaria realizando suas
atividades. Aproveitei a oportunidade e resolvi fazer o exerccio de
observao tambm no Grupo do Mestre Moraes.
AAcademia de Joo Pequeno de Pastinha Centro Esportivo deCapoeira Angola pertence ao mais antigo Mestre de Capoeira Joo
Pequeno de Pastinha. Quando cheguei, o mestre no estava. Algumas
23H um projeto para transformar o Forte Santo Antnio em o Forte da Capoeira. Ainteno por parte da Secretaria de Cultura e Turismo de construir um Centro deReferncia, pesquisa, estudo e memria da Capoeira.24Roda No sentido mais amplo a roda um dos smbolos representativos daCapoeira. O formato circular composto pelos capoeiristas que, sentados,acocorados ou de p cantam, jogam e tocam. na roda onde acontece o jogo, a
brincadeira de Capoeira. No caso citado acima, o termo usado para diferenciar osmomentos de treinos. o dia em que os capoeiristas exercitam o que aprenderam,quer seja na movimentao do jogo ou como instrumentistas.
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Todos estavam calados. Uma movimentao se forma. a
preparao para a formao da bateria. Trs capoeiristas com
berimbau em mos procuravam a afinao, um rapaz com o pandeiro
em punho se juntava a mais trs que estavam sentados. Cada um com
instrumento diferente: um atabaque, um reco-reco e um agog. De
repente, um som vindo de uma outra sala me chamou ateno. Era a
bateriado GCAP. O som era forte, vibrante e convidativo. Impossvel
no se entusiasmar e conferir o que estava acontecendo na sala que
ficava no andar de cima. Antes, espero o Mestre Joo Pequeno
chegar. Enquanto isso, vou compondo a descrio da Academia.
A maioria das academias que tive oportunidade de conhecer em
Salvador tem suas paredes decoradas com fotos de mestres
capoeiristas, cartazes, alm de berimbaus pendurados. Na Academia
do Mestre Joo Pequeno duas fotos so destaques em uma das
paredes: esquerda, uma foto de Mestre Pastinha; direita, foto de
Joo Pequeno. Entre as fotos, uma placa demadeira com o nome da
academia e o smbolo - j descrito. Abaixo das fotos, berimbaus
pendurados (berimbaus de reserva) completam a decorao. Essa
parede fica atrs da bateria e de frente para o lugar onde costumam
ficar as pessoas que vo visitar a academia do mestre. No salo, h
bancos reservados aos capoeiristas que compem a bateria e bancos
para as pessoas assistirem s atividades realizadas.No momento em que penso em levantar-me para ver de perto
um aviso escrito na parede, o mestre atravessa a porta todo de
branco. Logo percebo que as cores - preta e amarela - usadas por
muitos grupos de Capoeira Angola no instituda na academia do
Mestre Joo Pequeno. De passos lentos, cumprimenta um e outro e se
dirige para uma cadeira segurando uma baqueta. Tomada pela msica
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8/13/2019 A Capoeira e Os Mestres - Ilneteppaiva
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A Capoeira e os Mestres
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da Capoeira do Mestre Moraes, resolvi por um instante ver o que
apenas ouvia.
Quando retorno Academia do Mestre Joo Pequeno, a roda j
tinha comeado. A msica me chamou a ateno. O ritmo mais lento
diferenciava da msica que tocava no GCAP. Os participantes da roda
estavam todos sentados no cho e respondendo o coro da msica que
era cantada pelo capoeirista que tocava o berimbau gunga. Nessa
Capoeira no tem palmas. Um capoeirist
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