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8/13/2019 Aideiadecultura Eagleton
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Presidente do Conselho Curador
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Traduo
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1Verses de cultura
"Cultura" considerada uma das duas ou trs palavras mais
complexas de nossa lngua, e ao termo que por vezes conside-
rado seu oposto - "natureza" - comum ente conferida a honra
de ser o mais complexo de todos. No entanto, embora esteja atu-
almente em moda considerar a natureza como um derivado da
cultura, o conceito de cultura, etimologicamente falando, um
conceito derivado do de natureza. Um de seus significados ori-
ginais "lavoura" ou "cultivo agrcola", o cultivo do que cresce
naturalmente. O mesmo verdadeiro, no caso do ingls, a res-peito das palavras para lei e justia, assim como de termos como
"capital", "estoque", "pecunirio" e "esterlino". A palavra in-
glesa couiter , que um cognato de cultura, significa "relha de
arado", Nossa palavra para a mais nobre das atividades huma-
rias, assim, derivada de trabalho e agricultura, colheita e culti-
Tendo origem na palavra latina eulter, que, entre outras coisas, designa a
relha de um arado. (N. R.)
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vo. Francis Bacon escreve sobre "o cultivo e adubao de men-
tes~',numa hesitao sugestiva entre estrume e distino mental.
"Cultura", aqui, significa uma atividade, e passou-se muito tempo
at que a palavra viesse a denotar uma entidade. Mesmo ento,
provavelmente no foi seno com Matthew Arnold que a pala-
vra desligou-se de adjetivos como "moral" e "intelectual" etor-nou-se apenas "cultura", uma abstrao em si mesma.
Etimoiogicamente falando, ento, a expresso atualmente
popular "materialismo cultural" quase tautolgica. "Cultura"
denotava de incio um processo completamente material, que
foi depois metaforicamente transferido para questes do esp-
rito. A palavra, assim, mapeia em seu desdobramento semnti-
co a mudana histrica da prpria humanidade da existncia
rural para a urbana, da criao de porcos a Picasso, do lavrar o
solo diviso do tomo. No linguajar marxista, ela rene em
uma nica noo tanto a base como a superestrutura. Talvez
por detrs do prazer que se espera que tenhamos diante de pes-
soas "cultas" se esconda uma memria coletiva de seca e fome.
Mas essa mudana semntica tambm-paradoxal: so os habi-
tantes urbanos que so "cultos", e aqueles que realmente vi-
vem lavrando o solo no o so. Aqueles que cultivam a terra
so menos capazes de cultivar a si mesmos. A agricultura no
deixa lazer algum para a cultura.
, A raiz latina da palavra "cultura" colere, o que pode signi-
ficar qualquer coisa, desde cultivar e habitar a adorar e prote-ger. Seu significado de "habitar" evoluiu do latim colonus para o
contemporneo "colonialismo", de modo que ttulos como Cul-
tura e coloniali smo so, de nN"O,um tanto tautolgicos. Mascolere
tambm desemboca, via o latim cultus, no termo religioso "cul-
to", assim como a prpria idia de cultura vem na Idade Moderna
a colocar-se no lugar de um sentido desvanecente de divindade e
transcendncia. Verdades culturais - trate-se da arte elevada ou
das tradies de um povo - so algumas vezes verdades sagradas,
a serem protegidas e reverenciadas. A cultura, ento, herda o
manto imponente da autoridade religiosa, mas tambm tem afi-
nidades desconfortveis com ocupao e invaso; e entre esses
dois plos, positivo e negativo, que o conceito, nos dias de hoje,
est localizado. Cultura uma dessas raras idias que tm sido
to essenciais para a esquerda poltica quanto so vitais para a
direita, o que torna sua histria social excepcionalmente confu-sa e ambivalente.
apalavra "cultura" guarda em si os resqucios de uma
transio histrica de grande importncia, ela tambm codifica
vrias questes filosficas fundamentais. Neste nico termo,
entram indistintamente em foco questes de liberdade e
determinismo, o fazer e o sofrer, mudana e identidade, o dado
e o criado. Se cultura significa cultivo, um cuidar, que ativo,
daquilo que cresce naturalmente, o termo sugere uma dialtka
entre o artificial e o natural, entre o que fazemos ao mundo e o
que o mundo nos faz. uma noo "realista", no sentidoepistemolgico, j que implica a existncia de uma ~atureza ou
matria-prima alm de ns; mas tem tambm uma dimenso
"construtivista", j que eS,samatri-priina precisa ser elabora-
da numa forma humana~ente significativa. Assim, trata-semenos de uma questo de desconstruir a oposio entre cultu-
ra e natureza do que de reconhecer que o termo "cultura" j
uma tal desconstruo. '
Numa outra virada dialtica, os meios culturais que usa-
mos para transformar a natureza so eles prprios derivados
dela. Isso expresso bem mais poeticamente por Polxenes emUm con to de i nve rno , de Shakespeare.
Todavia no a natureza aprimorada por meio algum
Seno por um meio por ela prpria feito; assim, alm
Da arte que, dizes, contribui natureza, est uma arte
Que a natureza faz ... Essa uma arte que,'
De fato, melhora a natureza - melhor, transforma-a,
Mas essa arte ela mesma natureza.
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A natureza produz cultura que transforma a natureza; esseum motivo familiar nas assim chamadas Comdias Finais de
Shakespeare, nas quais a cultura vista como o meio da auto-
renovao constante da natureza. Se ArieI em A tempestade
todo um agir etreo e Calib todo uma inrcia terrena, uma
interao mais dialtica entre cultura e natureza pode ser en-contrada na descrio que Francisco faz de Ferdinando, salvan-do-se a ndo do navio naufragado.
Senhor, ele talvez esteja vivo;Vi-o por cima das ondas, a golpe-Ias,E a cavalgar-Ihes o dorso; trilhou as guas,Cuja animosidade arremessou ao longe, opondo ~ peito mais volumosa vaga que o enfrentou; sua fronte ousadaAcima das belicosas ondas ele mantinha, remandoA si mesmo, com seus braos fortes, em braadas vigorosas
At a praia...
Nadar uma imagem ilpropriada dessa interao, uma vezque o nadador cria ativam'ente a corrente que o sustenta, ma-
nejando as ondas de modo que elas possam responder manten-
do-o tona. Assim, Ferdinando "golpeia as ondas" para "caval-gar-Ihes o dorso", trilha as guas, arremessa, ope o peito e
rema-se num oceano que no de modo algum s um materialdcil, mas "belicoso", antagnico, recalcitrante ,moldagem
humana. Porm, exatamente essa resistncia que lhe permiteatuar sobre ele. A natureza mesma produz os meios de sua pr-
pria transcendncia, mais ou menos como o "suplemento" de
Derrida j est contido em qualquer coisa que complemente.Corrio veremos depois, existe algo estranhamente necessrio
acerca da superabundncia gratuita que denominamos cultura.
Se a natureza sempre de alguma forma cultural, ento as cul-
turas so construdas com base no incessante trfego com a na-
tureza que chamamos de trabalho. As cidades so construdas
tomando-se por base areia, madeira, ferro, pedra, gua e a'ssim
por diante; e so assim to naturais quanto os idlios rurais soculturais. O gegrafo David Harvey argumenta que no h nada
de "antinatural" a respeito da cidade de Nova lorque, e duvidaque povos tribais possam ser considerados "mais prximos da
natureza" do que o Ocidente.) A palavra "manufatura" original-
mente significava habilidade manual, o fazer com as mos, eassim "orgnica", mas veio com o passar do tempo a denotar
produo mecnica em massa, ganhando assim [em ingls] uma
nuana pejorativa de artifcio, como em "fabricar (manufacture)
divises em que no h nenhuma".
Se cultura originalmente significa lavoura, cultivo agrcola,
ela sugere tanto regulao como crescimento espontneo. O cul-
tural o que podemos mudar, mas o material a ser alterado tem
sua prpria existncia autnoma, a qual ento lhe empresta algo
da,.. "11citrncia da natureza. Mas cultura tambm uma ques-to(k seguir regras, e isso tambm envolve uma interao entreo regulado. e o no-regulado. Seguir uma regra no similar a
obedecer a uma lei fsica, j que implica uma aplicao criativa da
regra em questo. 2-4-6-8-10-30 bem pode representar uma
seqncia baseada em uma regra, embora no a regra que mais se
esperaria. E no pode haver regras para aplicar regras, sob pena
de um regresso infinito. Sem esse carter ilimitado e aberto, as
regras no seriam regras, assim como as pal~vras no seriam pa-
lavras; mas isso no significa que qualquer que seja a ao possa
contar como o seguimento de uma regra. O seguimento de regrasno uma questo nem de anarquia nem de autocracia. Regras,
como culturas, no so nem puramente aleatrias nem rigida-
mente determinadas - o que quer dizer que ambas envolvem a
idia de liberdade. Algum que estivesse inteiramente eximido de
convenes culturais no seria mais livre do que algum que fos-
se escravo delas.
HARVEY, D.]ustice, Nature and the Geography of Difference. Oxford: 1996.
p.186-8.
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A id ia d e cu l tu ra , en to , s ig n i f ica u m a d u p la rec u sa : d o
d et er m in ism o o rg n ic o , p o r u m la d o , e d a au to n o m ia d o es p -. 'r I to , p o r o u t ro . E u m a re je i o tan to d o n atu ra l i sm o co m o d o
id ea l i sm o , in s is t in d o , co n t ra o p r im ei ro , q u e ex is te a lg o n an a tu r ez a q u e a ex ce d e e a an u l a , e , co n t r a o id ea l i sm o , q u e
m es m o o m ais n o b re ag i r h u m an o tem su as ra ze s h u m i ld es
em n o ~ sa b io lo g ia e n o am b ie n te n at u ra l . O fa to d e q u e a cu l-t u r a (q u e , n e s s e a sp ec to, co m o a n a tu rez a) p o ssa se r u m ter -m o ao m es m o te m p o d es cr it iv o e a v al ia tiv o , d es ig n an d o o q u erea lm en te ev o lu iu b em'c o m o a q u ilo q u e d e v e ria e v o lu ir ,r e l e -v an te p ara es sa rec u sa tan to d o n atu ra l i s m o co m o d o id ea l i sm o .S e o co n ce i t o s e o p e t en az m en t e ao d e t e r m in i s~ o , ig u a l -m en te ca u te lo so co m re la o ao v o lu n tar i s m o . O s s ere s h u m a-n o s n o s o m ero s p ro d u to s d e se u s am b ie n te s, m as ta m p o u cos o es se s am b ien tes p u ra arg i la p ara a a u to m o ld ag em arb i t r r iad aq u ele s . S e a cu l tu ra t ran sf ig u ra a n a tu rez a , es se u m p ro je-to p ara o q u al a n a tu rez a co lo ca l im i tes r ig o ro so s . A p r p r ia
p a la v r a Ilcu l tu ra" co m p ree n d e u m a ten s o en t re faz er e se r f e i -t o , r a c io n a l i d ad e e e sp o n t an e id ad , q u e ce n su r a o in t e l e c t od es en ca m ad o d o i1 u m in ism o tan to q u an to d es af ia o red u c io -n ism o cu l tu ra l d e g ran d e p ar te d o p en sa m en to co n tem p o r -n eo . E la a t a lu d e ao co n t ra s te p o l t ico en t re ev o lu o e rev o -lu o - a p r im ei ra , "o rg n ica " e " es p o n tn ea " , a l t im a , r t i f ic ia l
"e fo r a d a - e t am b m su g e r e co m o se p o d e r i a i r a l m d e s s aan t tes e b a t id a . A p ala v ra co m b in a d e m an ei r a es t ran h a cre sc i -
m en to e c lc u lo , l ib erd ad e e n ec es s id ad e , a id ia d e u m p ro je toco n sc ien te m as tam bm d e u m ex ce d en te n o p lan ej v e l E se
es sa s p o lar id ad es u m tan to en v elh ec id a
d a in d is tin g u ib ilid a d e .H o u t ro se n t id o em q u e a p a la vl
p a r a d u a s d i r e e s o p o s ta s , p o is e la p ld iv is o d en tro d e n s m esm o s, en tre a i
cu l t iv a e ref in a , e aq u ilo d en tro d e n ,
co n s t i tu i a m at r ia -p r im a p ara es se refcu ltu ra ' s e j a en t en d id a co m o a u to c l
d u al id ad e en t re fac u ld ad es su p er io red e se jo , raz o e p a ix o , d u a lid ad e q u e e lat am en t e a su p e r a r . A n a tu r ez a ag o r aco n sti tu tiv a d o m u n d o , m as a p er ig o
ria co n st itu tiv a d o e u . C o m o c u ltu ra , af ica tan to o q u e es t a n o ssa v o l ta con s, e o s im p u lso s d es tru tiv o s in te m
eq u ip ara d o s s fo ra s an rq u ica s ex tu m a q u es to d e au to -su p era o tan t l
o . S e e la ce leb ra o e u , a o m esm o tere s t t i c a e a s ce t i c am en t e . A n a tu r ez a ro m es m o q u e u m a p la n ta o d e b e te rr at a o,p re ci sa se r c u lt iv ad a - d e m o d o I"cu l t u r a " n o s t r an s f e r e d o n a tu r a l p" "r e u m a af in id ad e en tre el es . S e se
b Ul so m o s p ar te d a n at u re za q u e tra Ip a r te d o q u e c a r a c t e r iz a a p a l a v r a 1'mc o n tin u id a d e e n tre n s m es m o s e n o ~a p ala v ra "c u l tu ra " se rv e p ara rea la r
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A id ia d e cu l tu ra, en to , sig n i f ica u m a d u p la rec u sa : d od et er m in ism o o rg n ico , p o r u m lad o , e d a a u to n o m ia d o es p -
. '
n to , p o r o u t ro . E u m a reje i o tan to d o n atu ral i s m o co m o d oid ea l ism o , in sis t in d o , co n t ra o p r im eiro , q u e ex iste alg o n an a t u r eza q u e a ex ced e e a an u l a , e , co n t r a o i d ea l i sm o , q u e
m esm o o m ais n o b re ag i r h u m an o tem su as raz es h u m i ld esem n o ~ sa b io lo g ia e n o am b ien te n at u ra l . O fato d e q u e a cu l -tu ra (q u e, n es se asp ec to , co m o a n atu rez a) p o ssa se r u m ter-mo ao m esm o tem p o d es cr i t iv o e a v al ia t iv o , d es ig n an d o o q u er ea lm en te ev o lu iu b em'co m o aq u ilo q u e d ev eria ev o lu ir, r el e-van te p ara es sa rec u sa tan to d o n atu ral i s m o co m o d o id eal ism o .Se o co n ce i t o se o p e t en azm en t e ao d e t e rm in i s~ o , i g u a l -men te ca u telo so co m rela o ao v o lu n tar is m o . O s se res h u m a-no s n o s o m ero s p ro d u to s d e se u s am b ie n te s, m as ta m p o u co
s o e sse s am b ien tes p u ra arg i la p ara a a u to m o ld ag em arb i t rr iadaq u ele s . S e a c u l tu ra t ran sf ig u ra a n atu rez a, es se u m p ro je-to p ara o q u al a n atu rez a co lo ca l im i tes r ig o ro so s. A p r p r ia
pa l av r a " cu l t u r a" co m p r een d e u m a t en so en t r e f az e r e se r f i -to , r ac i o n a l i d ad e e esp o n t an e i d ad e : q u e cen su r a o i n t e l ec t odes en ca rn ad o d o i lu m in ism o tan to q u an to d es af ia o red u cio -nism o cu l tu ral d e g ran d e p ar te d o p en sa m en to co n tem p o r-neo . E la at alu d e ao co n t ras te p o l t ico en t re ev o lu o e r ev o -luo - a p r im eira , I lo rg n ica" e IIes p o n tn ea" , a l t im a, ar t i f icia l
"efo r ad a - e t am b m su g e r e co m o se p o d e r i a i r a l m d es saa n t tes e b at id a. A p ala v ra co m b in a d e m an ei ra est ran h cre sc i -
men to e c lc u lo , l ib erd ad e e n ec es sid ad e, a id ia d e u m p ro jetoc o n sci en te m as tam b m d e u m ex ce d en te n o p lan ej v el . E s e
is so v erd ad ei ro q u an to p ala v ra, tam b m'o q u an td'a a l g u -m'as d as at iv id ad es q u e d en o ta. Q u an d o F ried r ich N ietz sc h ebu sca v a u m a p rt ic a q u e p u d ess e d esf az er a o pos i o e n t r e l i -berd ad e e d ete rm in ism o , v o l to u -se ju sta m en te p ara a e x p er i n -c ia d e faz er ar te , a q u al ,p a r a o a r t i s t a , d a se n sa o d e se r n o
apen as l iv re e n ec es sr ia, cr ia t iv a e res t r in g i d a, m as ca d a u m ade ssa s c o isa s em term o s d a o u t ra, e p are ce , as sim , c o m p rim ir
es sa s p o lar id ad es u m tan to en v elh ecid as ee m p o b rec id as a p o n to
d a in d ist in g u ib ilid ad e .
H o u t ro se n t id o em q u e a p ala v ra IIcu l tu ra" es t v o l tad ap a ra d u a s d ir e e s o p o s ta s , p o is e la p o d e ta m b m s u g e ri r u m ad iv is o d en tro d e n s m esm o s, en tre aq u el a p ar te d e n s q u e secu l t iv a e ref in a, e aq u i lo d en t ro d e n s, se ja l o q u e fo r , q u eco n st i tu i a m at r ia- p r im a p ara ess e ref in am en to . U m a v ez q u e acu l t u r a ' s e j a en t en d i d a co m o au t o cu l t u r a , e l a p o s t u l a u m ad u al id ad e en t re fac u ld ad es su p er io res e in fer io res , v o n tad e ed ese jo , raz o e p aix o , d u alid ad e q u e el a, e n to , p ro p e-se im ed ia-
t am en t e a su p e r a r . A n a t u r eza ag o r a n o ap en as a m a t r i aco n st i tu t iv a d o m u n d o , m as a p er ig o sam en te ap et i t iv a m at-ria co n stit u tiv a d o eu . C o m o c u ltu ra , a p ala v ra Iln atu re za " s ig n i-
f ica tan to o q u e es t a n o ssa v o l ta co m o o q u e es t d en t ro d en s, e o s im p u lso s d es t ru t iv o s in tern o s p o d em fac i lm en te sereq u i p a r ad o s s fo r as an rq u i cas ex t e rn as . A cu l t u r a , as s im , u m a q u es to d e au to -su p era o tan to q u an to d e au to -re al iz a-
o . S e ela ce leb ra o e u , a o m esm o tem p o tam b m o d isc ip l in a,e s t t i ca e asc e t i ca m en t e . A n a t u r eza h u m an a n o ex a t am en t eo m e sm o q u e u m a p lan ta o d e b ete rra b as , m as, co m o u m a p lan -ta o , p rec isa se r c u l t iv ad a - d e m o d o q u e, ass im co m o a p ala v raI l cu l t u r a" n o s t r an s f e r e d o n a t u r a l p a r a o esp i r i t u a l , t am b m
,r e u m a a f in id ad e en t re ele s . S e so m o s se res cu l tu rais , tam -b m s o m o s p a rt e d a n at u re z a q u e tr a b a lh am o s . C o m e fe it o , fa zp a r te d o q u e c a ra c te r iz a a p al a v r a I ln a tu r e z a " o l e m b ra r- n o s d a
co n t in u id ad e en t re n s m esm o s e n o sso am b ien te, as sim co m oa p ala v ra I lcu l tu ra" se rv e p ara rea la r a d i fer en a .
N e s s e p ro ce s s o d e a u to m o ld ag em , u n e m -s e m ai s u m a v e za o e p as s i v i d ad e , o a rd o ro sam en t e d ese j ad o e. ()p u ra m en ted ad o - d es ta v ez n o s m esm o s in d iv d u o s. N s n o s as se m elh a-m o s n atu rez a, v isto q u e, co m o e la, tem o s d e ser m o ld ad o s fo ra , m as d i fer im o s d ela u m a v ez q u e p o d em o s faz er isso an s m esm o s, in tro d u zi n d o as sim n o m u n d o u m g ra u d e au to -re fle x iv id ad e a q u e o r es to d a n at u re za n o p o d e as p ira r. C o m o
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autocultivadores, so~nos argila em nossas prprias mos, ao
mesmo tempo redentores e impenitentes, padre e pecador em
um e mesmo corpo. Deixada prpria conta, nossa natureza
perversa no vai se elevar espon~aneamente graa da cultura;
mas essa graa tampouco pode ser rudemente forada sobre
ela. Ao contrrio, precisa cooperar com as tendncias inatas daprpria natureza, a fim de induzi-Ia a transcender a si mesma.
Como a graa, a cultura j deve representar um potencial den-
tro da natureza humana, se for para que vingue. Mas a prpria
necessidade de cultura sugere que h algo faltando na natureza
- que a nossa capacidade de ascender a alturas alm daquelas de
nossos pares ria natureza, os outros animais, necessria por-
que nossa condio natural tambm bastante mais "inat~ral"
do que a deles. Se existe uma histria e uma poltica ocultas na
palavra "cultura", h tambm uma teologia.
Cultivo, entretanto, pode no ser apenas algo que fazemos
a ns mesmos. Tambm pode ser algo feito a ns, em especialpelo Estado. Para que o Estado floresa, precisa incutir em seus
cidados os tipos adequados de disposio espiritual; e isso o
que a idia de cultura ou Bildung significa numa venervel tra-
dio de Schiller a Matthew Arnold.2 Numa sociedade civil, os
indivduos vivem num estado de antagonismo crnico, impeli-
dos por interesses opostos; mas o Estado aquele mpito trans-
cendente no qual essas divises podem ser harmoniosamente
reconciliadas. Para que isso acontea, contudo, o Estado j te~
que ter estado em atividade na sociedade civil, aplacando seus
rancores e refinando suas sensibilidades, e esse processo oque conhecemos como cultura. A cultura uma espcie de pe-
-dagogia tica que nos torna aptos para a cidadania poltica ao
liberar o eu ideal ou coletivo escondido dentro de cada um de
ns, um eu que encontra sua representao suprema no mbito
universal do Estado. Coleridge escreve, conseqentemente,
sobre a necessidade de basear a civilizao no cultivo, "no de-
senvolvimento harmonioso daquelas qualidades e faculdades
que caracterizam nossa humanidade. Temos que ser homens parasermos cidados'? O Estado encarna a cultura, a qual, por sua
vez, corporifica nossa humanidade comum.
Elevar a cultura acima da poltica - ser homens primeiro e
cidados depois - significa que a poltica deve se mover para
dentro de uma dimens~o tica mais profunda, valendo-se dos
recursos da Bildung e transformando indivduos em cidados
apropriadamente responsveis e de boa ndole. Essa , embora
em um nvel um pouco mais alto, a retrica das aulas de Educa-
o Cvica. No entanto, uma vez que "humanidade", aqui, signi-
fica uma comunidade livre de conflitos, o que est em jogo no
apenas a prioridade da cultura sobre a poltica, mas sobre umtipo particular de poltica. A cultura, ou o Estado, so uma es-
pcie de utopia prematura, abolindo a luta em um nvel imagi-
nrio a fim de no precisar resolv-Ia em um nvel poltico.
Nada poderia ser menos politicamente inocente do que um
denegrecimento da poltica em nome do humano. Aqueles que
proclamam a necessidade de um perodo de incubao tica
para preparar homens e mulheres para a cidadania poltica so
tambm aqueles que negam a povos colonizados o direito de
autogovernar-se at que estejam "civilizados" o suficiente para
exerc-Io responsavelmente. Eles desprezam o fato de que, delonge, a melhor preparao para a independncia poltica a
independncia poltica. Ironicamente, ento, um argumento que
procede da humanidade para a cultura e da para a poltica trai,
!,-'')seu prprio vis poltico, o fato de que oreal movimento
2 Um valioso tratamenr.,) dessa tradio pode ser encontrado em LLOYD,
D. & THOMAS, P. Cu/ture and the State. Nova Iorque e Londres: 1998.Ver tambm HUNTER, I.Cu/ture and Government. Londres: 1988. especial-mente cap.3.
3 COLERIDGE. S. T. On the Constitution of Church and State. 1830 (reimpr.Princeton. 1976). p .42-3.
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no sentido contrrio - so os interesses polticos que, geral-
mente, governam os culturais, e ao fazer isso definem uma ver-so particular de humanidade.
O que a cultura faz, ento, destilar nossa humanidade co-
mum a partir de nossos eus polticos sectrios, resgatando dos
sentidos o esprito, arrebatando do temporal o imutvel, e arran-
cando da diversidade a unidade. Ela designa uma espcie deaut6diviso assim como uma autocura pela qual nossos eus re-
beldes e terrestres no so abolidos, mas refinados valendo-se de
dentro por uma espcie mais ideal de humanidade. A brecha en-
tre Estado e sociedade civil - entre como o cidado burgus gos-
taria de representar a si mesmo e como ele realmente repr~sen-
tado - preservada, mas tambm erodida. A cultura uma forma
de sujeito universal agindo dentro de cada um de ns, exata-
mente como o Estado a presena do universal dentro do mbi-
to particularista da sociedade civil. Como Friedrich Schiller co-
loca nas suas Ca r t a s so b r e a e d u c a o e s t ti c a d o ho m e m (I795):
Todo ser humano individy;; pode-se dizer, carrega dentro
de si, potencial e prescritivamente, um indivduo ideal, o arquti-
po de um ser humano, e a tarefa de sua vida estar em harmonia
com a unidade imutvel desse ideal por meio de todas as suas
manifestaes cambiantes. Esse arqutipo, que pode ser discer-
nido mais ou menos claramente em todo indivduo, represen-
tado pelo Estado, a forma objetiva e, por assim dizer, cannica na
qual toda a diversidade dos sujeitos individuais se esfora para
se unir.1
Nessa tradio de pensamento, ento, a cultura no est
nem dissocida da sociedade nem completamente de acordo com
ela. Se em um nvel constitui-se uma crtica da vida social,
4 SCHILLER. F. On the Aesthetic Educatian af Man: In a Series of Letters.Oxford: 1967. p.17.
cmplice dela em um outro. A cultura ainda no se ops inteira-
mente ao real, como o far medida que uma tradio inglesa de
"Cultura e Sociedade" for gradualmente se desenvolvendo. Com
efeito, para Schiller, a cultura justamente o mecanismo daqui-
lo que mais tarde ser chamado "hegemonia", moldando os su-
jeitos humanos. s necessidades de um novo tipo de sociedade
politicamente organizada, remodelando-os com base nos agen-
tes dceis, moderados, de elevados princpios, pacficos, concili-
adores e desinteressad;s dessa ordem poltica. Para realizar isso,
contudo, a cultura deve tambm agir como uma espcie de crti-
ca ou desconstruo imanente, ocupando uma sociedade
irregenerada a partir de dentro para derrubar sua resistncia s
aes do esprito. Mais tarde, na Idade Moderna, a cultura se
tornar ou sabedoria olmpica ou arma ideolgica, uma forma
isolada de crtica social ou um processo profundamente compro-
metido com o s ta t u s q u o . Aqui, num momento anterior e mais
animado dessa histria, ainda possvel ver a cultura como, aomesmo tempo, uma crtica ideal e uma fora social real.
Raymond WiIliams investigou parte da complexa histria da
palavra "cultura", distinguindo trs sentidos modernos princi-
pais da palavra.5 Com base em suas razes etimolgicas no traba-
lho rural, a palavra primeiro significa algo como "civilidade";
depois, no sculo XVIII, torna-se mais ou menos sinnima de
"civilizao", no sentido de um processo geral de progresso in-
telectual, espiritual e material. Na qualidade de idia, civilizao
equipara significativamente costumes e moral: ser civilizado in-
clui no cuspir no tapete assim como no decapitar seus prisio-
neiros de guerra. A prpria palavra implica uma correlao dbiaentre conduta polida e comportamento tico, que na Inglaterra
5 Ver WILLIAMS, R. Keywards. Londres: 1976. p.76.82. interessantenotar que WiIliams j havia completado grande parte do trabalho noverbete sobre cultura nesse volume pela poca do ensaio de 1953 a que sefaz referncia na nota 7 a seguir.
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tambm pode ser encontrada napalavragentleman. Como sinni-
mo de "civilizao", "cultura" pertencia ao esprito geral do
iluminismo, com o seu culto do autodesenvolvimento secular e
progressivo. Civilizao era em grande parte uma noo francesa
- ento, como agora, supunha-se que os franceses tivessem o
monoplio de ser civilizados - e nomeava tanto o processo gra-
dual ?e refinamento social como o tlos utpico rumo ao qual seestava desenvolvendo. Todavia, ao passo que a "civilizao" fran-
cesa inclua tipicamente a vida poltica, econmica etcnica, a
"cultura" germnica tinha uma referncia mais estreitamente
religiosa, artstica e intelectual. Podia tambm significar o refi-
namento intelectual de um grupo ou indivduo, ~m vez da soci-
edade em sua totalidde. A"civilizao" minimizava as diferen-
as nacionais, ao passo que a "cultura" as realava. A tenso
entre "cultura" e "civilizao" teve relao muito forte com arivalidade entre Alemanha e Frana.6
Trs coisas sucedem ento a essa noo por volta da virada dosculo XIX. Em primeiro lugar, ela comea a deixar de ser um
sinnimo de "civilizao" para virser seu antnimo. Essa uma
mudana semntica bastante rara e que captura uma guinada his-
trica de grande importncia. Como "cultura", a palavra "civili-
.zao" em parte descritiva e em parte normativa: ela pode tanto
designar neutramente uma forma de vida ("civilizao in~a") como
recomendar implicitamente uma forma de vida por sua humanida-
de,esclarecimento e refinamento. O adjetivo "civilizado" faz isso
hoje em dia da maneira mais bvia. Se civilizao significa as ar-
tes, a vida urbana, poltica cvica, tecnologia~ complexaS. etc., e seisso considerado um avano em relao ao que havia ~tes, en-
to" civilizao" inseparavelmente descritiva e normativa. Signi-
fica a vida como a conhecemos, mas tambm sugere que ela
superior ao barbarismo. E se civilizao no apenas um estgio
dedesenvolvimento emsi, mas um estgio que est constante-
mente evoluindo dentro de si mesmo, ento a palavra mais uma
vez unificafato e valor.Qualquer estado decoisas existente impli-
ca um juzo de valor,j que deve ser logicamente umamelhora em
relao ao que havia antes. Aquilo que no apenas correto,
mas muito melhor do que aquilo que era.
O problema comea quando os aspectos descritivo e nor-mativo da palavra "civilizao" comeam a se separar. Otermo
realmente pertence ao lxico de uma classe mdia europia pr-
industrial, recendendo a boas maneiras, refinamento, pal itesse,
uma desenvoltura elegante nos relacionamentos. ,assim, tan-to pessoal como social:.a cultura uma questo do desenvolvi-
mento total e harmonioso dapersonalidade, mas ningum pode
realizar isso estando isolado. Com efeito, o despontar do reco-
nhecimento de que isso no possvel que ajuda a deslocar cul-
tura de seu significado individual para o social. A cultura exige
certas condies sociais, e j que essas condies podem envol-ver o Estado, pode ser que ela tambm tenha uma dimenso
poltica. Acultura vai de mos dadas com o intercurso social, j
que esse intercurso que desfaz a rusticidade rural e traz os
indivduos para relacionamentos complexos, polindo assim suas
arestas rudes. Mas os herdeiros capitalista-industriais dessa era
otimista teriam bem mais dificuldades em persuadir a si mesmos
de que a civilizao como fato estava em harmonia com a civili-
zao como valor. um fato do incio da civilizao capitalista-
industrial que os jovens limpadores de chamin tinham propen-
so a desenvolver cncer de testculos, mas dificil ver isso comouma realizao.cultural no mesmo nvel do ciclo de romances
W av erley ou da catedral de Rheims.
Waverley: ciclo de romances histricos escritos porS ir Walter Scott (1771-
1832), ambientados na Esccia. O primeiro desses romances, Waver ley ,
publicado em 1814, deu nome ao ciclo, que inclui outrs obras como Ro b
Ro y, T he H ear t o f Midlothian e A L e gen d o f Montrose. (N. R.)
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Por volta do final do sculo XIX, "civilizao", por sua vez,
tinha tambm adquirido uma conotao inevitavelmente imperi-
alista, suficiente para desacredit-Ia aos olhos de alguns libe-
rais. Conseqentement~, era necessria outra palavra para deno-
tar como a vida social deveria ser em vez de como era, e os alemes
tomaram emprestado o termo francs cul ture para esse propsito.
Kul tur ou "cultura" tornou-se assim o nome da crtica romntica
pr-marxista ao capitalismo industrial primitivo. Enquanto "ci_
vilizao" um termo de carter socivel, uma questo de espri-
to cordial e maneiras agradveis, cultura algo inteiramente mais
solene, espiritual, crtico e de altos princpios, em vez do estar
alegremente vontade com o mundo. Se a primeira prototi-
picamente francesa, a segunda estereotipadamente germnica.
Quanto mais predatria e envilecida parece ser a civilizao
real, mais a idia de cultura forada a uma atitude crtica. AKul turkr i t ik est em guerra com a civilizao, em vez de estar em
harmonia com ela. Se a cultura certa vez foi vista como aliada do
intercurso social, os dois agora esto cada vez mais em desacor-
do. Como observa Raymond Willim~: "uma palavra que havia
indicado, numa sociedade mais autoconfiante, um processo de
instruo tornou-se, no sculo XIX, o foco de uma reao pro-
fundamente significativa contra uma sociedade lutando com o
sofrimento de uma mudana radical e dolorosa".7 Uma razo
para a emergncia de "cultura", ento, o fato de' que "civiliza-
o" comeava a soar de modo cada vez menos plausvel como
um termo valorativo. Assim, na virada do sculo XIX testemu-
nha-se um crescente Kul turpessimismus, do qual talvez o princi-
pal documento seja Dec line o f t h e Wes t [A decadncia do Ociden-
te], de Oswald Spengler, mas que, em lngua inglesa, tem mais
7 WILLIAMS. R. The Idea af Culture. In: MdLROY. J . WESTWOOD. S.
(Ed.) Border Country: Raymand Williams in Adult Educatian. Leicester:1993. p.60.
eco na obra de F. R. Leavis, significativamente intitulada Mass
c iv i li sa tion and minor it y cu l tu re [Civilizao de massa e cultura de
minoria]. A conjuno no ttulo indica, desnecessrio dizer,
um contraste evidente.
Se a cultura, entretanto, deve ser uma crtica efetiva, precisa
manter sua dimenso social. Ela no pode simplesmente recair
em seu antigo sentido de cultivo individual. A clebre anttese
de Coleridge em On th e cons t it u t ion o f Ch ur ch and S ta t e [Sobre a
constituio da Igreja e do Estado] - "A distino permanente e
o contraste ocasional entre cultura e civilizao" - prenuncia
muito do destino da palavra nas dcadas que se seguiriam. Nas-
cido no corao do iluminismo, o conceito de cultura lutava ago-
ra com ferocidade edipiana contra os seus progenitores. A civili-
zao era abstrata, alienada, fragmentada, mecanicista, utilitria,
escrava de uma crena obtusa no progresso material; a culturaera holstica, orgnica, sensvel, autotlica, recordvel. O confli-
to entre cultura e civilizao; assim, fazia parte de uma intensa
querela entre tradio e modernidade. Mas tambm era, at cer-
to ponto, uma guerra fingida. O oposto de cultura, para Matthew
Arnold e seus discpulos, era uma anarquia engendrada pela pr-
pria civilizao. Uma sociedade patentemente materialista aca-
baria produzindo seus rudes e ressentidos destruidores. No en-
tanto, ao refinar esses rebeldes, a cultura enconqar-se-ia indo
em socorro da prpria civilizao pela qual sentia tal desprezo.
Embora os fios polticos entre os dois conceitos estivessem as-sim notoriamente emaranhados, a civilizao era no seu todo
burguesa, enquanto a cultura era ao mesmo tempo aristocrtica
e populista. Como Lord Byron, ela representava essencialmente
uma variedade radical de aristocratismo, com uma simpatia sin-
cera pelo Volke uma averso desdenhosa aoBurgherr .
Essa virada vlkisch do conceito o segundo elemento de
desenvolvimento que Williams descobre. A partir do idealismo
alemo, a cultura assume algo do seu significado moderno de
um modo de vida caracterstico. Para Herder, isso um ataque
r
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consciente contra o universalismo do iluminismo. A cultura,
insiste ele, no significa uma narrativa grandiosa e unilinear da
humanidade em seu todo, mas uma diversidade de formas de
vida especficas, cada uma com suas leis evolutivas prprias e
peculiares. De fato, como assinala Robert Young, o iluminismo
no se opunha absolutamente de maneira uniforme a essa pers-pectiva. Ele podia estar aberto a culturas no europias de for-
mas que re1ativizavam perigosamente seus prprios valores, e
alguns de seus pensadores prefiguraram a posterior idealizao .
do "primitivo" como uma crtica do Ocidente.8 Mas Herder as-
socia explicitamente a luta entre os dois sentidos da palavra "cul-
tura" a um conflito entre a Europa e os seus Outros coloniais.
Trata-se, para ele, de opor o eurocentrismo de uma cultura como
civilizao universal aos clamores daqueles "de todos os cantos
do mundo" que no viveram e pereceram em prol da honra duvi-
dosa de ter sua posteridade tornada feliz por uma cultura euro-pia ilusoriamente superior.9
"O q~e certa nao julga indispensvel para o crculo de
seus pensamentos", escreve Hewer, "nunca entrou na mente
de uma outra, e por outra ainda foi julgado ultrajante".1O A
origem da idia de cultura como um modo de vida caractersti-
co, ento, est estreitamente ligada a um pendor romntico anti-
colonialista por sociedades "exticas" subjugadas. O exotismo
ressurgir no sculo XX nos aspectos primitivistas do moder-
nismo, um primitivismo que segue de mos dadas com o cresci-
mento da moderna antropologia cultural. Ele af10rar bem mais:1
8 Ver YOUNG, R.]. C. Colonial Desire. Londres e Nova Iorque: 1995. cap.2.
Esta a melhor introduo curta disponvel idia moderna de cultura e
suas nuanas racistas. No que diz respeito ao relativismo cultural doI1uminismo, As Viagens de Gulliver, de ]onathan Swift um exemplocaracterstico.
9 Ver ibidem, p. 79. .
10 VON HERDER,]. G.Reflections on the Philosophy of the History of Mankind.1784-91 (reimpr. Chicago: 1968). pA9. .
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tarde, dessa vez numa roupagem ps-moderna, numa roman-
tizao da cultura popular, que agora assume o papel expressivo,espontneo e quase utpico que tinham desempenhado anteri-
ormente as culturas "primitivas". 11
Num gesto prefigurativo do ps-modernismo (ele prprio,
entre outras coisas, uma variedade do pensamento romnticotardio), Herder prope pluralizar o termo "cultura", falando
das culturas de diferentes naes e perodos, bem como de di-
ferentes culturas sociais e econmicas dentro da prpria na-
o. este sentido da palavra que tentativamente criar razesem meados do sculo XIX, mas que no se estabelecer decidi-
damente at o incio do sculo XX. Embora as palavras "civili-
zao" e "cultura" continuem sendo usadas de modo intercam-
bivel, em especial por antroplogos, cultura agora tambm
quase o oposto de civilidade. Ela mais tribal do'que'cosmopo-
lita, uma realidade vivida em um nvel instintivo muito maisprofundo do que a mente e, assim, fechada para a crtica racio-
nal. Ironicamente, ela agora mais um modo de descrever as
formas de vida de "selvagens" do que um termo para os civiliza-
dos.12 Numa inverso curiosa, os selvagens agora so cultos,
mas os civilizados, no. Mas se "cultura" pode descrever uma
ordem social "primitiva", tambm pode fornecer a algum um
modo de idealizar a sua prpria. Para os romnticos radicais, a
cultura "orgnica" podia fornecer uma crtica da sociedade real;
para um pensador como Edmund Burke, podia fornecer uma
metfora para a sociedade real e, portanto, proteg-Ia de talcrtica. A unidade que alguns conseguiam encontrar apenas
em comunidades pr-modernas podia ser tambm reivindicada
para o Imprio Britnico. Estados modernos podiam, assim,
Ver, por exemplo, FI5KE,]. Understanding Popular Culture, Londres: 1989,
e Reading the Popular, Londres, 1989. Para um comentrio crtico a respei-
to disso, ver MCGUIGAN,]. C ultural P opulism. Londres: 1992.Para um tratamento lcido de tpicos em antropologia cultural, ver
BEATIIE, ]. Other Cultures, Londres: 1964.
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pilhar Estados pr-modernos tanto por razes ideolglCas como
por econmicas. Cultura, nesse sentido, "uma palavra estri-
tamente imprpria, dividida contra si mesma ... ao mesmo tempo
sinnima do mainstream da civilizao ocidental e anttese
dela".13 Como um exerccio livre de pensamento desinteressa-
do, ela pode minar interesses sociais egostas; mas uma vezque os solapa em nome do todo social, refora a prpria ordem
social' que censura.
A cultura como orgnica, assim como a cultura como civi-
lidade, paira indecisamente entre fato e valor. Em um sentido,
ela no faz mais do que designar uma forma de vida tradicional,
seja de berberes ou de barbeiros. Mas j que comunidade, tra-
dio, ter razes e solidariedade so noes que se supe que
aprovemos, ou pelo menos supunha-se at o advento do ps-
modernismo, poder-se-ia pensar haver algo positivo na mera
existncia de uma tal forma de vida. Ou, melhor dizendo, nosimples fato da pluraJj~ade de tais formas. essa fuso do des-
critivo e d9 normativo, conservada tanto de "civilizao" quan-
to do sentido universalista de "-GUltura", que despontar na
nossa prpria poca sob a roupagem de relativismo cultural.
Ironicamente, esse relativismo "ps-moderno" deriva-se justa-
mente de tais ambigidades na prpria poca moderna. Para os
romnticos, existe algo intrinsecamente precioso no modo de
vida como um todo, especialmente se a "civilizao" est ocu-
pada em arruin-!o. Essa "totalidade" sem dvida um mito:
como nos ensinaram os antroplogos, "os hbitos, pensamen-tos e aes mais heterogneos podem coexistir lado a lado"14
na mais aparentemente "primitiva" das culturas, mas os pen-
sadores mais enlevados ficaram convenientemente surdos a essa
advertncia. medida que a cultura como civilizao rigoro-
13 YOUNG, R.J. C. op. cito p.53.14 BOAS, F.Race, Language and Culture. 1940 (reimpr. Chicago e Londres,
1982). p.3D.
samente discriminativa, a cultura como forma de vida no o .
Bom tudo o que surge autenticamente das pessoas, no im-
porta quem sejam elas. Isso funciona bem melhor se estiver-
,pensando, por exemplo, em pessoas como os navajos, em
vez de em pessoas como as Mes do Alabama~m Defesa da
Pureza Moral, mas essa era uma distino que foi rapidamenteperdida. A cultura como civilizao tinha tomado emprestadas
suas distines entre elevado ebaixo dos primrdios da antro-
pologia, para quem algumas culturas eram claramente superio-
res a outras; mas medida que os debates foram desenvolven-
do-se, o sentido antropolgico da palavra tornou-se mais
descritivo do que avaliativo. Ser simplesmente uma cultura de
algum tipo j era um valor em si; mas no faria mais sentido
elevar uma cultura acima de outra do que afirmar que a gram-
tica do catalo era superior do rabe.
Para os ps-modernistas, em caso contrrio, modos de vidatotais devem ser louvados quando se trata de dissidentes ou gru-
pos minoritrios, mas censurados quando se trata das maiorias.
As "polticas de identidade" ps-modernas incluem assim o
lesbianismo, mas no o nacionalismo, o que, para os radicais
romnticos mais antigos, ao contrrio dos radicais ps-moder-
nos mais recentes, seria algo totalmente ilgico. O primeiro
grupo, vivendo em uma era de revoluo poltica, estava prote-
gido do absurdo de acreditar que movimentos majoritrios ou
consensuais so invariavelmente ignorantes. O segundo gru-
po, florescendo em uma fase posterior e menos eufrica damesma histria, abandonou a crena em movimentos de massa
radicais, sobretudo porque h muito poucos deles dos quais se
lembrar. Como teoria, o ps-modernismo aparece depois dos
grandes movimentos de libertao nacional dos meados do s-
culo XX, e ou literalou metaforicamente jovem demais para
recordar-se de tais cataclismos polticos. Com efeito, o prprio
termo "ps-colonialismo" significa um interesse pelas socieda-
des do "Terceiro Mundo" que j passaram por suas lutas antico-
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Ioniais e que, portanto, tm pouca probabilidade de causar em-
baraos para os tericos ocidentais que apreciam os oprimidos,
mas so nitidamente mais cticos no que diz respeito a concei-
tos como revoluo poltica. Talvez tambm seja bem mais fcil
para algum sentir-se solidrio com as naes do "Terceiro Mundo"
se elas no estiverem atualmente ocupadas em matar compatrio-
tas dele.Plralizar o concet':o de cultura no facilmente compat-
vel com a manuteno de seu carter positivo. muito simples
ter entusiasmo pela cultura como autodesenvolvimento hu-
manstico, ou mesmo, digamos, pela cultura boliviana, j que
qualquer formao complexa dessa espcie forosamente in-
clui vrias caractersticas benignas. Mas to logo se come~e,
num esprito de pluralismo generoso, a decompor a idia de
cultura para abranger, digamos, a "cultura das cantinas de dele-
gacias de polcia", a "cultura sexual-psicopata" ou a "cultura da
mfia", ento fica menos evidente que essas sejam formas cul-
turais a ser aprovadas simplesmente porque so formas cultu-rais. Ou, na verdade, simplesmente porque so parte de uma
rica diversidade dessas formas. Historicamente falando, exis-
tiu uma rica diversidade de culturas de tortura, mas mesmo
pluralistas sinceros relutariam em sancionar isso como mais
uma instncia da colorida tapearia da experincia hu~ana. Os
que consideram a pluralidade como um valor em si mesmo so
formalistas puros e, obviamente, no perceberam a espantosa-
mente imaginativa variedade de formas que, por exemplo, pode
assumir o racismo. De qualquer modo, como acontece com
muito do pensamento ps-moderno, o plutalismo encontra-se
aqui estranhamente cruzado com a auto-identidade. Em vez de
dissolver identidades distintas, ele as multiplica. Piuralismo
pressupe identidade, corno hibridizao pressupe pureza.
Estritamente falando, s se podehibridizar uma cultura que
pura; mas corno Edward Said sugere, "todas as culturas esto
envolvidas umas com as outras; nenhuma isolada e pura, todas
so hbridas, heterogneas, extraordinariamente diferenciadas e
no monolticas". 15 preciso lembrar, tambm, que nenhuma
cultura humana mais heterognea do que o capitalismo.
Se a primeira variante importante da palavra "cultura" a
crtica anticapitalista, e a segunda um estreitamento e, concomi-
tantemente, uma pluralizao da noo a um modo de vida to-
tal, a terceira a sua gradual especializao s artes. Mesmoaqui o significado da palavra pode ser restringido ou expandi-
do, j que cultura, nesse sentido, pode incluir atividade intelec-
tual em geral (Cincia, Filosofia, Erudio etc.), ou ser ainda
mais limitada a atividades supostamente mais "imaginativas",
,-,.,a Msica, a Pintura e a Literatura. Pessoas "cultas" so
pessoas que tm cultura nesse sentido. Tambm esse sentido
da palavra sinaliza um dramtico desenvolvimento histrico.
Sugere, em primeiro lugar, que a Cincia, a Filosofia, a Poltica e
a Economia j no podem ser vistas como criativas ou imagina-
tivas. Sugere tambm - olhando a coisa por seu lado mais
desanimador - que valores "civilizados" s podem agora ser
encontrados na fantasia. E isso , claramente, um comentrio
mordaz a respeito da realidade social. Se a criatividade agora
podia ser encontrada na arte, era porque no podia ser encon-
trada em nenhum outro lugar? To logo cultura venha a signifi-
car erudio e as artes, atividades restritas a uma pequena pro-
poro de homens e mulheres, a idia ao mesmo tempo
intensificada e empobreci da.
A histria das conseqncias disso para as prprias artes -
na medida em que se atribui a elas uma import~nte significa-
o social de que, realmente, so por demais frgeis e delicadas
para sustentar, desintegrando-se a partir de dentro ao serem
foradas a representar Deus ou a felicidade ou a justia poltica
- faz parte da narrativa do modernismo. o ps-modernismo
que procura aliviar as artes dessa carga opressiva de ansiedade,
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instigando-as a esquecer todos esses ominosos sonhos de pro-
fundidade, deixando-as assim livres para uma espcie razoavel-
mente frvola de independncia. Bem antes disso, entretanto, o
romantismo havia tentado realizar o impossvel ao buscar na
cultura esttica tanto uma alternativa poltica como o prprio
paradigma de uma ordem poltica transformada. Isso no era to
difcil como parece, visto que, se o propsito todo da arte era a
sua' falta de propsito, ento at mesmo o mais extravagante
esteta era tambm em certo sentido o mais dedicado revolucio-
nrio, comprometido com uma idia de valor como autovalidao
que constitua o prprio reverso da utilidade capitalista. A arte
podia agora modelar a boa vida no por meio de 'uma representa-
o desta, mas simplesmente sendo si mesma, pelo que m~stra-
va e no pelo que dizia, oferecendo o escndalo de sua prpria
existncia inutilmente autodeleitante como uma crtica silen-
ciosa do valor de troca e da racionalidade instumentaI. Essa ele-vao da arte a servio da humanidade, porm, era'inevitavel-
mente autodestrutiva, visto que conferia ao artista romntico
um status transcendente em desaeordo com a significao polti-
ca desse artista, e visto que, na armadilha perigosa de toda uto-
pia, a imagem da boa vida veio gradualmente a representar suareal inacessibilidade.
A cultura era autodestrutiva tambm em outro sentido. O
que a tornava crtica do capitalismo industrial era a sua afirma-
o de totalidade, de simetria, do desenvolvimento, a todos os
respeitos, das capacidades humanas. De Schiller a Ruskin, essatotalidade colocada em oposio aos efeitos as simtricos de
uma diviso do trabalho que tolhe e diminui as capacidades
,humanas. O marxismo tambm tem algumas de suas fontes
nessa tradio rom
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vel ao conflito, ou a simetria unilateralidade. Pede-se-nos
tambm que acreditemos, de modo ainda mais implausvel, que
isso no em si uma posio poltica. Analogamente, uma vez
que essas capacidades devem ser realizadas em considerao a
si mesmas, a cultura dificilmente pode ser acusada de ser um
instrumento poltico. Mas existe, de fato, urna poltica impl-
cita precisamente nessa no-utilidade - seja a poltica aristo-
crtica daqueles que tm o lazer e a liberdade para pr desde-
nhosamente de lado a utilidade, ou a poltica utpica daqueles
que aspiram a urna sociedade para alm de valores de troca.
No , na verdade, apenas a cultura que est aqui em ques-
to, mas urna seleo particular de valores culturais. Ser civili-
zado ou culto ser abenoado com sentimentos refinados, pai-
xes temperadas, maneiras agradveis e urna mentalidade aberta.
portar-se razovel e moderadamente, com urna sensibilidade
inata para os interesses dos outros, exercitar a autodisciplina e
estar preparado para sacrificar os prprios interesses egostaspelo bem do todo. Por mais esplndidas que algumas dessas
prescries possam ser, certameRte no so politicamente ino-
centes. Ao contrrio, o indivduo culto parece-se suspeito-
samente com um li~eral de tendncias conservadoras. como
se os noticiaristas da BBC fossem o paradigma da humanidade
em geral. Esse indivduo civilizado certamente no se parece
com um revolucionrio poltico, ainda que revoluo tambm
faa parte da civilizao. A palavra "razovel" significa aqui algo
corno "aberto persuaso" ou "disposto a concesses", como se
toda convico apaixonada fosse ipso facto irracional. A culturaest do lado do sentimento em vez do da paixo, o que quer
dizer do lado das classes mdias de boas maneiras em vez do
das massas iradas. Dada a importncia do equilbrio, difcil
ver por que algum no seria solicitado a contrabalanar urna
objeo ao racismo com o seu oposto. Ser inequivocamente con-
trrio ao racismo pareceria ser distintamente no pluralista. J
que a moderao sempre uma virtude, um leve desagrado com
relao prostituio infantil pareceria mais apropriado do que
uma oposio veemente a ela. E j que a ao pareceria implicar
um conjunto de escolhas razoavelmente definitivas, essaverso
da cultura , inevitavelmente, mais contemplativa do que engag.
Isso, ao menos, pareceria verdadeiro quanto noo do es-ttico de Friedrich Schiller, a qual ele nos apresenta corno um
"estado negativo de completa ausncia de determinao".l6 Na
condio esttica, "o homem Nada, se pensarmos em qual-
quer resultado particular em vez da totalidade de suas capaci-
dades";l7 em vez disso, estamos suspensos em um estado de
possibilidade perptua, urna espcie de negao nirvnica de
toda determinao. A cultura, ou o esttico, no parcial a ne-
nhum interesse social especfico, mas precisamente por causa,
disso urna capacidade ativadora geral. Ela no se ope ao,mas fonte criativa de qualquer ao que seja. A cultura,
porque no toma sob a sua proteo nenhuma faculdade singular
do homem excluso das outras ... favorece cada uma e todaselas sem distino; e no favorece nenhuma delas isoladamente
mais do que outra pelo simples motivo de que ela a razo da
possibilidade de todas elas. IR
Incapaz, de certo modo, de dizer uma coisa sem dizer qual-
quer coisa, a cultura no diz o que quer que seja, eloqente a
ponto extremo de ser muda. Ao cultivar toda possibilidade at
o seu limite, arrisca a deixar-nos com os msculos entorpeci-
dos, imobilizados, tal o efeito paralisante da ironia romnti-
ca. Quando finalmente passamos a agir, encerramos essa liber-
dade de ao com o sordidamente especfico, mas ao menos~'17.emOSisso com a conscincia de outras possibilidades e per-
iIlimos que esse sentido ilimitado de potencial criativo d for-
ma ao que quer que faamos.
16 SCHILLER, F. op. cit., p.14l.
17 lbidem, p.146.
18 Ibidem, p.lSl.
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Para SchilIer, ento, a cultura pareceria ser ao mesmo tem-
po fonte da ao e negao dela. Existe uma tenso entre aqui-
lo que faz a nossa prtica criativa e o prprio fato mundano da
prtica ela mesma. Para Matthew Arnold, de modo bastante
similar, a cultura , ao mesmo tempo, um ideal de perfeio
absoluta e o processo histrico imperfeito que trabalha para
esse fim. Em ambos os casos, parece haver alguma brechaconstitutiva entre a cultura e sua encarnao fsica;visto que a
multiformidade do esttico nos inspira a aes que, por sua
prpria determinao, o contradizem.
Se a palavra "cultura" um texto histrico e filosfico, tam-
bm o lugar de UQ1conflito poltico. Como coloca RaymondWilliams: ~
o complexo de sentidos (dentro do termo) indica um argu-mento complexo acerca das relaes entre desenvolvimento hu-
mano geral e um modo de vida particular, e entre ambos e as
obras e prticas da arte e da inteligncia.19
Essa, de fato, a narrativa t~ada na obra Cul ture and soc ie ty1780-1950 [Cultura e sociedade 1780-1950] de WiHiams, que
delineia a verso nativa inglesa da Kulturphilosophie europia. Essa
corrente de pensamento poderia ser vista como um esforo para
ligar vrios significados de cultura que esto gradualmente dis-
tanciando-se: cultura (no sentido das artes) define uma qualidade
de vida refinada (cultura como civilidade) cuja'realizao na cul-
tura (no sentido de vida social) como um todo a tarefa da
mudana poltica. O esttico e o antropolgico so aSsim reuni-
dos. De Coleridge a F. R. Leavis, o sentido mais amplo e social-
mente responsvel de cultura mantido firmemente em ativida-
de, mas s pode ser definido por um sentido mais especializado
do termo (cultura como as artes) que ameaa constantemente
substitU-ia. Em uma dialtica bloqueada desses dois sentidos
de cultura, Arnold e Ruskin reconhecem que, sem mudana so-
cial, as artes e o "bem viver" esto eles mesmos em perigo mortal;
entretanto, tambm acreditam que as artes esto entre os lasti-
mavelmente poucos instrumentos de tal transformao. Na In-
glaterra, s com William Morris, que atrela essa Kulturphilo-sophie a uma fora poltica real- o movim~nto da classe operria
-, que esse crculo vicioso semntico pode ser quebrado.O Williams de Keywords [Palavras-chaves] talvez no esteja
suficientemente atento lgica interior das mudanas que re-
gistra. O que que liga cultura como crtica utpica, cultura
como modo de vida e cultura como criao artstica? A respos-
ta certamente uma resposta negativa: todas as trs so, de
diferentes maneiras, reaes ao fracasso da cultura como civili-
zao real - como a grande narrativa do autodesenvolvimentohumano. Se essa se torna uma histria difcil de acreditar
medida que o capitalismo industrial se desenvolve, uma hist-
ria inacreditvel herdada. de um passado um tanto mais otimis-
ta, ento a idia de cultura defronta-se com algumas alternati-vas desagradveis. Ela pode manter seu alcance global e suarelevncia social, mas recuar do presente melanclico para tor-
nar-se uma imagem comoventemente em perigo de um futuro
desejvel. Outra imagem, bastante inesperada, o passado anti-
go, que se parece com um futuro emancipado no simples fato
no ignorvel de sUa no-existncia. Isso cultura como crtica
utpica, ao mesmo tempo prodigiosamente criativa e politica-
mente debilitada, que est sempre em risco de desaparecer na
prpria distncia crtica da Realpolit ik que ela to devastadora-
mente estabelece.
Alternativamente, a cultura pode sobreviver abjurando todaabstrao desse tipo e fazendo-se concreta, tornando-se a cul-
tura da Baviera ou da Microsoft ou dos bosqumanos; mas issocorre o risco de, ao emprestar-lhe uma especlficidade de que
muito necessita, faz-Ia perder proporcionalmente sua norma-
tividade. Para os romnticos, esse sentido de cultura mantm a
sua fora normativa, uma vez que se pode valer dessas formas de
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Gemeinschaf t para uma crtica engenhosa da Gesellschaft industri-
al-capitalista. O pensamento ps-moderno, ao contrrio, de-
masiado alrgico nostalgia para tomar esse rumo sen-timentalista, esquecido de que para um Walter Benjamin at
mesmo a nostalgia pode ganhar um significado revolucionrio.
O que valioso para a teoria ps-moderna mais o fato formal da
plura~idade dessas culturas do que o seu contedo intrnseco.
Com efeito, no que diz respeito a seu contedo, realmente no
pode haver nada a escolher entre elas, visto que os critrios para
qualquer escolha desse tipo devem ser eles prprios dependen-
tes de uma cultura. O conceito de cultura ganha assim em
especificidade o que perde em capacidade crtica, tal como a.ca-
deira de balano constI-utivista uma forma de arte mais soci-
vel do que a obra de arte do auge do modernismo, mas somente custa de seu agudeza crtica.
A terceira resposta crise da cultura como civilizao, comovimos, reduzir a categoria inteira a um punhado de obras ar-
tsticas. Cultura aqui significa um corpo de trabalhos artsticos
e intelectuais de valor reconhecido;juntamente com as institui-
es que o produzem, difun.dem e regulam. Nesse sentido bas-
tante recente da palavra, a cultura ao mesmo tempo sintoma e
soluo. Se a cultura um osis de valor, ento apresenta umaespcie de soluo. Mas se a erudio e as artes so os nicos
enclaves sobreviventes de criatividade, ento certamente estamos
com um problema terrvel. Em que condies sociais fica a
criatividade confinada Msica e Poesia, enquanto a Cincia, atecnologia, a poltica, o trabalho e a domesticidade tornam-se
monotonamente prosaicos? Pode-se fazer . essa noo de cul-
tura a famosa pergum~l de Marx religio: Para que alienao
deplorvel essa transcendncia uma pobre compensao?
Entretanto, essa idia minoritria de cultura, embora seja
um importante sintoma de crise histrica, tambm uma es-
pcie de soluo. Assim como a cultura como modo de vida, ela
confere cor e textura abstrao iluminista da cultura como
civilizao. Nas correntes mais frteis da crtica literria ingle-
sa de Wordsworth a OrweIl, so as artes, em especial as da
linguagem ordinria, que apresentam um indicador sensvel da
qualidade da vida social como um todo. Mas se a cultura, nesse
sentido da palavra, tem a imediao sensvel da cultura como
forma de vida, ela tambm herda o vis normativo da cultura
como civilizao. As artes podem refletir a vida refinada, mas
so tambm a medida dela. Se elas incorpOram, tambm avaliam.
Nesse sentido, unem o real e o desejvel maneira de umapoltica radical.
Os trs diferentes sentidos de cultura, assim, no so facil-
mente separveis. Se cultura como crtica deve ser mais do que
uma fantasia ociosa, precisa ser indicativa daquelas prticas
presentes que prefiguram algo da amizade e satisfao pelas
quais anseia. Ela as encontra em parte na produo artstica, e
em parte naquelas culturas marginais que ainda no foram to-talmente absorvidas pela lgica da utilidade. Ao ~bsorver a cul-
tura nesses outros sentidos, a cultura como crtica tenta evitar
o modo puramente sepjuntivo de "m" utopia, o qual consiste
simplesmente em uma espcie de anseio melanclico, um "como
seria bom se" sem bas.e alguma no real. O equivalente poltico
disso a doena infantil conhecida como radicalismo de es-
querda, que nega o presente em nome de algum futuro alterna-
tivo inconcebvel. A "boa" utopia, ao contrrio, descobre uma
ponte entre o presente e o futuro naquelas foras no presente
que so potencialmente capazes de transform-Ia. Um futurodesejvel deve ser tambm um futuro exeqvel. Ao ligar-se a
esses outros sentidos de cultura, que pelo menos tm a virtude
de realmente existirem, o tipo mais utpico de cultura pode,
assim, tornar-se uma forma de crtica imanente, julgando defi-
ciente o presente ao medi-Ia com relao a normas que ele pr-
prio gerou. Nesse sentido, tambm, a cultura pode unir fato e
valor, sendo tanto uma prestao de contas do real como uma
antecipao do desejvel. Se o real contm aquilo que o contra-
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diz, ento o termo "cultura" est destinado a olhar em duas
direes opostas. A desconstruo, que mostra como uma situa-
o acaba forosamente violando a sua prpria lgica justamente
na tentativa de aderir a ela, simplesmente um nome mais
recente para essa noo tradicional de crtica imanente. Para os
romnticos radicais, a arte, a imaginao, a cultura folclricaou comunidades "primitivas" so sinais de uma energia criati-
va que deve ser estendida sociedade poltica como um todo.
Para o marxismo, que surge na esteira do romantismo, elauma forma bem menos exaltada de energia criativa; aquela da
classe operria, que pode transfigurar a prpria ordem social daqual o produto.
A cultura nesse sentido desponta quando a civilizao co-
mea a parecer autocontraditria. medida que a sociedade
civilizada se expande, chega-se a um ponto em que ela impe a
alguns de seus tericos uma forma de reflexo admiravelmentenova, conhecida como pensamento dialtico. Essa , por assim
dizer, uma resposta a certa dificuldade. O pensamento dialtico
surge porque fica cada vez menOS-flossvel ignorar o fato de que
a civilizao, no prprio ato de realizar alguns potenciais hu-
manos, tambm suprime danosamente outros. a relao in-
terna entre esses dois processos que engendra esse novo hbi-
to intelectual. Pode-se racionalizar essa contradio limitando
a palavra "civilizao" a um termo valorativo e contrastando-a
com a sociedade de hoje em dia. Isso , presumivelmente, o
que Gandhi tinha em'mente quando lhe foi perguntado o queachava da civilizao inglesa: '\cho que ela seria uma idia muito
boa". Mas pode-se tambm chamar as capacidades reprimidas
de "cultura", e as repressivas, de "civilizao". Isso teria a vir-
tude de que a cultura pode agir como uma crtica do presente
ao mesmo tempo que est solid~mente baseada dentro dele. Ela
no nem o mero outro da sociedade nem (assim como a "civi-lizao") idntica a ela, mas se move, simultaneamente, a favor e
contra a corrente natural do progresso histrico. A cultura no
alguma vaga fantasia de satisfao, mas um conjunto de po-
tenciais produzidos pela histria e que trabalham subversiva-
mente dentro dela.
O truque saber como revelar essas capacidades, e a res-
posta de Marx ser o socialismo. Para ele, nada no futuro socia-
lista pode ser autntico a menos que, de alguma maneira, tomecomo exemplo algo no presente capitalista. Se, porm, o fato
de que os aspectos positivos e negativos da histria estejam to
estreitamente ligados um pensamento incmodo, tambm
um pensamento animador, pois a verdade que a represso, a
explorao etc. no funcionariam a menos que houvesse seres
humanos razoavelmente autnomos, refletivos e talentosos para
explorar ou serem explorados. No h necessidade de reprimir
capacidades criativas que no existem. Essas, certamente, no
so as melhores razes para regozijo. Parece estranho ter f nos
seres humanos porque eles so capazes de ser explorados. Mes-mo assim, verdade que aquelas prticas culturais mais benig-
nas que conhecemos como criao (nurture) esto implcitas na
prpria existncia da injustia. S algum que recebeu cuida-
dos quando criana pode ser injusto, j que, do contrrio, ele
no mais existiria para estar cometendo injustias. Todas as
culturas devem incluir prticas tais como a criao de crianas,
educao, assistncia social, comunicao, e apoio mtuo; em
caso contrrio, elas seriam incapazes de se reproduzir e,assim,
incapazes, entre outras coisas, de engajar-se em prticas explo-
radoras. bvio que a criao de crianas pode ser sdica, acomunicao, deturpada e a educao, brutalmente autocrtica.
Mas nenhuma cultura pode ser inteiramente negativa, j que s
para atingir seus fins perversos ela tem de promover capacidades
que sempre implicam usos virtuosos. A tortura exige aquela es-
pcie de capacidade de juzo, iniciativa e inteligncia que pode
tambm ser usada para aboli-Ia. Nesse sentido, todas as cultu-
ras so autocontraditrias. Mas isso motivo no s de cinis-
mo, mas tambm de esperana, j que significa que elas prprias
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engendram as foras que devem transform-Ias. Essas foras no
caem de pra-quedas de algum espao exterior metafsico.
Existem outras maneiras nas quais esses trs sentidos de
cultura interagem. A idia de cultura como um modo de vida
orgnico faz parte da "alta" cultura tanto quanto Berlioz o faz.
Como conceito, ela o produto de intelectuais cultos, e poderepresentar o outro primordial que poderia revitalizar as suas
prprias sociedades degeneradas. Sempre que se ouve algum
falar manifestando admirao pelo selvagem, pode-se estar certo
de estar na presena de uma pessoa sofisticada. Na verdade, foi
necessrio algum sofisticado, Sigmund Freud, para revelar
quais desejos incestuosos podem estar escondidos em nossos
sonhos de uma totalidade sensvel, nosso anseio por um corpo
que clido e palpvel, embora eternamente evasivo. A cultu-
ra, que ao mesmo tempo uma realidade concreta e uma viso
enevoada da perfeio, apreende alguma coisa dessa dualidade.A arte modernista se volta para essas noes primevas para
sobreviv~r a uma modernidade filistia, e a mitologia constituium piv entre as duas. O excessivamente cultivado e o subde-
senvolvido forjam estranhas alianas.Todavia, as duas noes de cultura so relacionadas tam-
bm de outras formas. A cultura como as artes pode ser o arau-
to de uma nova existncia social, mas a questo curiosamente
circular, j que sem essa mudana social as prprias artes esto
em risco. A imaginao artstica, argumenta-se, s pode flores-
cer em uma ordem social orgnica, e no criar razes no soloraso da modernidade. O cultivo individual agora depende mais e
mais da cultura no seu sentido social. Tanto assim que Henry
-james e T. S. Eliot abandonam a sociedade "inorgnica" dos
seus Estados Unidos nativos por uma Europa mais refinada,
mais tortuosa, mais ricamente sedimentada. Se os Estados
Unidos representam civilizao, uma noo completamente
secular, a Europa simboliza cultura, uma noo quase religiosa.
A arte est fatalmente comprometida por uma sociedade que
se entusiasma com ela s na sala de leiles e cuja lgica abstra-
ta despoja o mundo de sua sensibilidade. Ela tambm est con-
taminada por uma ordem social para a qual a verdade no tem
nenhuma utilidade, e valor significa a facilidade de ser vendi-
do. Apenas para as artes sobreviverem, ento, seria necessrio
tornar-se um reacionrio ou revolucionrio poltico, fazer o re-lgio voltar Ia Ruskin ordem corporativa do gtico feudal ouadiant-Io com William Morris para um socialismo que deixou
para trs a forma de mercadoria. igualmente fcil, entretanto, ver esses dois sentidos de
cultura como estando em desacordo. No o excesso de culti-
vo o inimigo da ao? No poderia a sensitividade enclausurada,
matizada e com mirades de interesses que as artes trazem con-
sigo incapacitar-nos para comprometimentos mais amplos e
menos ambivalentes? Em geral, no se atribuiria a um poeta a
presidncia do comit de saneamento. Ser que a intensidadefocalizada que as belas-artes exigem no nos incapacita para es-
ses assuntos rotineiros, mesmo que concentremos nossa aten-o em obras de arte socialmente conscientes? No que diz res-
peito ao sentido mais gem enschaft lich de cultura, no difcil
perceber como isso envolve uma transferncia, para a sociedade,
dos valores ligados cultura como arte. Cultura como modo de
vida uma verso estetizada da sociedade, encontrando nela a
unidade, imediao sensvel e independncia de conflito que as-
sociamos ao artefato esttico. A palavra "cultura", que se supe
designar um tipo de sociedade, de fato uma forma normativa deimaginar essa sociedade. Ela tambm pode ser uma forma de
algum imaginar suas prprias condies sociais usando como
modelo as de outras pessoas, quer no passado, na selva, ou no
futuro poltico.Embora "cultura" seja uma palavra popular no ps-moder-
nismo, suas fontes mais importantes permanecem pr-moder-
nas. Como idia, a cultura comea a ser importante em quatro
pontos de crise histrica: quando se torna a nica alternativa
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aparente a uma sociedade degradada; quando parece que, sem
uma mudana social profunda, a cultura no sentido das artes e
do bem viver no ser mais nem mesmo possvel; quando forne-
ce os termos nos quais um grupo ou povo busca sua emancipa-
o poltica; e quando uma potncia imperialista forada a che-
gar a um acordo com o modo de vida daqueles que subjuga.
Entre esses, foram provavelmente os dois ltimos pontos que
colocaram mais decisivamente a idia na agenda do sculo XX.
Devemos nossa noo moderna de cultura em grande parte ao
nacionalismo e ao colonialismo, juntamente com o desenvolvi-
mento de uma Antropologia a servio do poder imperialista.
Aproximadamente no mesmo ponto da histria, a emergncia
da cultura "de massa" no Ocidente conferiu ao conceito uma
urgncia adicional. com nacionalistas romnticos como Herder
e Fichte que afiara pela primeira vez a idia de uma cultura
tnica distinta, com direitos polticos simplesmente em virtu-
de dessa peculiaridade tnica;20 e a cultura vital para o nacio-nalismo de maneira q51e,digamos, a luta de classes, os direitos
civis ou o combate fome no etigam a s-lo. Segundo certa
perspectiva, nacionalismo aquilo que adapta vnculos primor-
diais a complexidades modernas. medida que a nao pr-mo-
derna d lugar ao Estado-nao moderno, a estrutura de papis
tradicionais j no pode manter a sociedade unida, e a cultura,
no sentido de ter em comum uma linguagem, herana, sistema
educacional, valores compartilhados etc., que intervm como o
princpio de unidade social.21A cultura, em outras palavras, chega
intelectualmente a uma posio de destaqlle quando passa a seruma fora politicamente relevante.
20 Para uma crtica de tal nacionalismo romntico, ver EAGLETON, T. Na-
tionalism and the Case of lreland, New Lef t Review, n.234, mar./abr.,1999.
21 Ver, a esse respeito, GELLNER, E. Thoughc and Change. Londres: 1964, e
Natio ns and Nacio nalism . Oxford: 1983.
com o desenvolvimento do colonialismo do sculo XIX
[j o significado antropolgico de cultura como um modo de
vida singular comea a ganhar terreno. E o modo de vida em
questo geralmente aquele dos "incivilizados". Como j vi-
mos, cultura como civilidade o oposto de barbarismo, mas
cultura como um modo de vida pode ser idntica a ele. Herder,
segundo Geoffrey Hartman, foi o primeiro a usara palavra cul-tura "no moderno sentido de uma cul tura de identidade: um modo
de vida socivel, populista e tradicional, caracterizado por uma
qualidade que tudo permeia e faz uma pessoa se sentir enraizada
ou em casa".22 Cultura, em resumo, so os outros,23 Como
Fredric Jameson argumentou, cultura sempre "uma idia do
Outro (mesmo quando a reassumo para mim mesmo)".H
improvvel que os vitorianos pensassem em si mesmos como
uma "cultura": isso no s teria significado perceber-se como
um todo, mas ver a si mesmos como apenas uma forma de vida
possvel entre muitas. Definir o prprio mundo da vida comouma cultura arriscar-se a relativiz-lo. Para uma pessoa, seu
prprio modo de vida simplesmente humano; so os outros
que so tnicos, idiossincrticos, culturalmente peculiares. De
maneira anloga, seus prprios pontos de vista so razoveis, ao
passo que os dos outros so extremistas.
Se a cincia da Antropologia marca o ponto em que o Oci-
dente comea a converter outras sociedades em legtimos obje-
tos de estudo, o verdadeiro sinal de crise poltica quando ele
sente a necessidade de fazer isso consigo mesmo, pois existem
selvagens tambm dentro da sociedade ocidental, criaturas enig-
mticas, semi-inteligveis, guiadas por paixes ferozes e dadas
22 HARMAN, G. The Fateful Question of Culture. Nova lorgue: 1997. p.21 1.
23 A expresso alude famosa formulao de Raymond Williams "Asmassasso os outros", em Culture and Sociecy 1780-1950, Londres, 1958 (reimpr.Harmondsworth, 1963), p.289.
24 ]AMESON, F. On "Cultural Studies". Social Text, n.34, p.34, 1993.
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a comportamento rebelde; e tambm esses precisaro tornar-se
objetos de conhecimento disciplinado. O positivismo, a pri-
meira escola autoconscientemente "cientfica" da Sociologia,
revela as leis evolucionrias pelas quais a sociedade industrial
est se tornando inexoravelmente mais corporativa, leis que
um proletariado indisciplinado precisa reconhecer como nomais violveis do que as foras que movem as ondas. Um pouco
mais tarde, ser parte da tarefa da Antropologia conspirar
contra a"macia iluso perceptual pela qual um imperialismo
nascente engendrou 'selvagens', congelando-os conceitualmente
na sua alteridade subumana, mesmo enquanto destrua suas
formaes sociais e os liquidava fisicamente". 2S
A verso romntica de cultura, assim, evoluiu com o passar
do tempo para uma verso "cientfica". Mesmo assim havia afi-
nidades fundamentais:3 A idealizao do "folclrico" feita pela
primeira, de subculturas vitais profundamente escondidas emsua prpria sociedade, poderia ser facilmente transferida a esses
tipos primitivos que viviam no estrangeiro em vez de na terranatal dela.'Tanto o folclrico como...o..sprimitivos so resduos do
passado dentro do presente, seres curiosamente arcaicos que
emergem como anomalias temporais dentro do contemporneo.
O organicismo romntico poderia, assim, ser remodelado como
funcionalismo antropolgico, entendendo essas culturas "pri-
mitivas" como coerentes e no contraditrias. A,palavra "total"
na expresso "um modo de vidatotal" paira ambiguamente entre
fato e valor, significando uma forma devida que podemos apre-
ender por inteiro porque estamos fora dela, mas tambm uma
forma devida com uma integridade de ser que falta nossa pr-
pria. A cultura, assim, coloca em julgamento seu prprio modo
de vida agnstico e atomstico, mas, quase literalmente, de uma
distncia muito longa.
Alm disso, a idia de cultura, por todo o caminho com base
emsuas origens etimolgicas na lavoura, no cultivodoque c.resce
naturalmente, sempre haviasidouma forma de descentrar acons-
cincia. Se elasignificava, no seu uso mais limitado, osprodu-
tos mais refinados emais requintadamente conscientes da his-
tria humana, o seu significado mais geral assinalava exatamenteo oposto. Com seus ecos de processo orgnico e evoluo sub-
reptcia, a cultura era um conceito quase-determinista, signi-
fi!', ,do aquelas caractersticas davida social- costume, paren-
te",", linguagem, ritual, mitologia - que nos escolhem muito
mais do que escolhemos a elas. Ironicamente, ento, aidia de
cultura colocava-se tanto acima como abaixo da vida social ordi-
nria, ao mesmo tempo incomparavelmente mais consciente e
consideravelmente menos calculvel. "Civilizao", ao contr-
rio, soa mais a atividade e conscincia, possui uma aura de pro-
jeo racional e planejamento urbano, como um projeto coletivopelo qual cidades so consirudas em pntanos e catedrais
erguidas em direo aos cus. Parte do escndalo do marxismo
havia sido tratar a civilizao como se ela fosse cultura - escre-
ver, em resumo, a histria doinconsciente poltico da humani-
dade, daqueles processos sociais que, como colocou Marx, acon-
tecem "pelas costas" dos agentes envolvidos. Assim como com
Freud um pouco mais tarde, uma conscincia finamente civili-
zada deslocada para reforar as foras ocultas que a haviam
estabelecido. Como comentou o autorde umaresenha de O capi -
tal,para satisfao do autor do livro:
Se, na histria da civilizao, os elementos conscientes de-sempenham um papel to subordinado, ento auto-evidenteque uma investigao crtica cujo tema a civilizaopode base-ar-se em alguma forma ou algum resultado da conscinciamenos
do que em qualquer outra coisa.26
25 BANA]I,]. The Crisis of British Anthropology, New Left Review, n.64,nov./dez. 1970.
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27 Ver LVI-STRAUSS. C. Anthropologie structurale. Paris: l58. eLa Pense
sauvage. Paris: 1966.
monizadas,'projeto que o estruturalismo havia herdado, inacaba-
do, do auge do modernismo. A mentalidade mais avan t -garde , as-
sim, fazia uma meia-volta completa para se encontrar com a mais
arcaica; com efeito, para alguns pensadores romnticos era s
dessa forma que um~ cultura ocidental dissoluta podia serrege-
nerada. Tendo cheg~do a um ponto de decadncia complexa, acivilizao podia refr~scar-se somente na fonte da cultura, olhando
para trs a fim de caminhar para frente. O modernismo, dessa
maneira, engatou a marcha a r no tempo, descobrindo no passa-
do uma imagem do futuro.
O estruturalismo no foi o nico ramo da teoria literria
que pde traar parte de suas origens de volta ao imperialismo.
A hermenutica, por detrs da qual se esconde uma dvida an-
siosa quanto a se o outro , afinal, inteligvel, certamente to
relevante para o projeto quanto a psicanlise, que traz luz um
subtexto atvico que est nas prprias raze's da conscincia
humana. A crtica mitolgica ou arque tpica faz algo parecido,
'Ipasso que o ps-estruturalismo, de cujos principais expoen-tes um originrio de uma antiga colnia francesa, pe em questo
aquilo que considera ser uma metafsica profundamente
eurocntrica. Quanto teoria ps-moderna, nada podia ser me-
nos do seu gosto do que a idia de uma cultura estvel, pr-moderna, firmemente unificada, cuja mera cogitao a faz bus-
car sua hibridez e seu carter ilimitado e aberto. Mas o
ps~moderno e o pr-moderno tm mais afinidades do que isso
sugeriria. O que ambos compartilham o respeito elevado e por
vezes extravagante que conferem cultura como tal. De fato,
poder-se-ia afirmar que a cultura uma idia pr-moderna e ps-
moderna em vez de uma idia moderna; se ela floresce na era da
modernidade, em grande medida como um vestgio do passado
ou como uma antecipao do futuro.
O que liga as ordens pr-moderna e ps-moderna que
para ambas, embora por razes bem diferentes, a cultura um
nvel dominante da vida social. Se ela sobressai tanto assim nas
A cultura, ento, o verso inconsciente cujo anverso a
vida civilizada, as crenas e predilees tomadas como certas que
tm de estar vagamente presentes pata que sejamos, de alguma
forma, capazes de agir. Ela aquilo que surge instintivamente,
algo profundamente arraigado na carne em vez de concebido na
mente. No surpreendente, portanto, que o conceito tenhaencontrado um lugar to acolhedor no estudo de sociedades "pri-
mitivas", as quais, aos olhos do antroplogo, permitiam que seus
mitos, rituais, sistemas de parentesco e tradies ancestrais pen-sassem por elas. Elas eram uma espcie de verso "ilha do mares
do sul" do direito ,~)nsuetudinrio ingls e da c:mara dos Lordes,
vivendo em uma utopia burkeiana na qual fnstinto, costume,
devoo e lei ancestral funcionavam por si mesmos, sem a inter-
veno intrometida da razo analtica. A "mente selvagem", as-
sim, tinha uma importncia particular para o modernismo cul-
tural,' que, dos cultos de fertilidade de T.S. Eliot aos ritos de
primavera de Stravinsky, podia encontrar nela uma vaga crticada racionalidade do iluminismo.
Poder-se-ia inclusive matar-dois coelhos tericos com umacajadada, descobrindo nessas culturas "primitivas" tanto uma
crtica dessa racionalidade como uma confirmao dela. Se os
hbitos de pensamento supostamente concretos e sensveis des-
sas culturas apresentavam-se como uma reprimenda razoressecada do Ocidente, os cdigos inconsc~entes que governa-
vam esse pensamento tinham todo o rigor exigente da lgebraou da Lingstica. Foi assim que a Antropologiaestrutural de
Claude Lvi-Strauss pde apresentar tais "primitivos" tanto como
confortavelmente similares como exotGamente diferentes de nsmesmos. Se eles pensavam em termos de Terra e Lua, faziam-no
com toda a elegante complexidade da Fsica Nuclear.27 Tradio e
modernidade, por conseguinte, podiam sr agradavelmente har-
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s o c i e d a d e s t r a d i c i o n a i s , p o r q u e m e n o s u m / l n v e l " d o q u e umm e i o u n i v e r s a l n o q u a l s e d o o u t r o s t i p o s d e a ti v i d a d e s.A po l -
t i c a , a s e x u a l i d a d e e a p r o d u o e c o n m i c a a i n d a e s t o , a t c er to
p o n to , p re s a s e m u m a o rd e m s im b l ic a d e s ig n if ic a d o. C om o
o b s e r v a o a n t r o p l o g o M a r s h a l l S a h l i n s , n u m r em o q u e a o m o -
d e l o m a r x i s t a d e i n f r a - e s tr u t u r a e s u p e r e s t r u t u r a , / ln a s c u l t u r a s~ rib ai s, a eC O nO I!~, i ,a ,a o r g a n i z a o p o l t i c a , o r it u a l e a i d e o l o g i a
n o a p a r e c em c om o ' s is t em a s ' d i s t i n t o s " .2 8 N o m u n d o p s -m o -
de rno , a cu l tu ra e a v id a so c ia l e s t o m a i s u m a ve z e s t r e i t am en te
a l ia d a s , m a s a g o r a n a f o rm a d a e s t t ic a d a m e r c a d o r ia , d a
e s p e t a c u l a r i z a o d a p o l ti c a , d o c o n s um i s ~ o d o e s ti l o d e v i d a ,d a c e n t r a l i d a d e d a im a g e m , e d a i n t e g r a o f i n a l d a c u l t u r a d e n -t ro 'd a p r o d u o d e m e r c a d o r i a s em g e r a l . A e s t ti c a , o r i g i n a l-
m e n t e um t e rm o p a r a a e x p e r i n c i a p e r c e p t i v a c o t i d i a n a e q u e s
m a i s t a r d e s e to r n o u e sp e c i a l i z a d o p a r a a a r t e , t i n h a a g o r a c om -
p le ta d o u m c rc u lo e re to m a d o
s u a o r i g e m m u n d a n a , a s s imc om o d o i s s e n t i d o s d e c u l t u r a - a s a r t e s e a v i d a c om um - t i -n h a m s i d o a g o r a c om b i n a d o s n o e s t i l o , m o d a , p r o p a g a n d a , m d i a_ . . ..e a s s im p o r d i a n t e .
O q u e o c o r r e n e s s e i n t e r v a l o a m o d e r n i d a d e , p a r a a q u a l a
c u l t u r a n o o m a i s v i t a l d o s c o n c e i t o s . N a v e r d a d e , p a r a n s
d i f c i l im a g i n a rm o - n o s d e v o l t a a um a p o c a em q u e t o d a s a sn o s s a s m a i s e l e g a n t e s p a l a v r a s d a m o d a - c o r p o r id a d e , d if e r e n a ,
lo c a li d a d e , im a g in a o , id e n ti d a d e c u ltu r a l- ' e r am v i s t a s c om o o s
b t l l ti d i d
i g u a l d a d e q u a l t o d o s o s h cU m a t a q u e R a z o em n omco rp o e r a um a l i c e n a p ar a p r o e r a u m a d o e n a d a m e n tc om o e l e e r a e,p o r ; t a n t o , d e
N a tu r e z a e m n om e d a C u l tu r;n o l a d o e r ra d o d a s