adoubement e cavalaria no ocidente feudal - o eracle de gautier d'arras

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    Adoubemente Cavalaria no Ocidente feudal: o Eracle(c. 1159-1184) de Gautier

    dArrasAdoubementy Caballera en el Occidente Feudal: el Eracle(c. 1159-1184) de

    Gautier dArrasAdoubementand Chivalry in the Feudal West: Gautier dArrass Eracle(c.

    1159-1184)Guilherme Queiroz de SOUZA1

    Resumo: O propsito deste artigo analisar o adoubement e a Cavalaria no Ocidentefeudal, com nfase no romance Eracle, escrito pelo clrigo francs Gautier dArras entre1159 e 1184. Nessa obra, o heri protagonista submetido ao adoubement (ritual depassagem) para integrar a Cavalaria, categoria considerada por alguns historiadorescomo a instituio dominante durante o Feudalismo. Estudamos a evoluo e as etapasdo ritual, assim como as principais virtudes cavaleirescas (coragem, lealdade eprudncia), os conceitos de larguezae prodomiee a arte da guerra. Para isso, empregamoscomparativamente textos dos sculos XI-XII.

    Abstract: The purpose of this article is to analyze the adoubementand the Chivalry in theFeudal West, through the emphasis on the romance Eracle, written by the French clericGautier dArras between 1159 and 1184. In this work, the protagonist hero is submittedto the adoubement (rite of passage) to join the Chivalry, category considered by somehistorians as the dominant institution during the Feudalism. We study the evolution andstages of the rite, as well as the main chivalric virtues (courage, loyalty and prudence),the concepts of largesseandprodomieand the art of war. For this, we utilize comparatively

    works of the 11-12thcenturies.

    Palavras-chave:AdoubementCavalariaOcidente feudalGautier dArras Eracle.

    Keywords:AdoubementChivalryFeudal WestGautier dArras Eracle.

    ENVIADO: 21.05.2015ACEPTADO: 27.07.2015

    1Professor de Histria Antiga e Medievalda Universidade Estadual de Gois (UEG/Goiansia). Site:http://www.goianesia.ueg.br.E-mail:[email protected].

    http://www.goianesia.ueg.br/http://www.goianesia.ueg.br/mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]://www.goianesia.ueg.br/
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    I. A Cavalaria no Ocidente medieval: origem e poder

    Dificilmente encontraremos um historiador contemporneo que pense a Cavalariacomo um produto inevitvel da criao do estribo2ou que ela tenha surgido de formanatural no transcurso do sculo VIII como uma resposta s razias muulmanas naHispnia. Sem abraar tais interpretaes deterministas, Franco Cardini afirma que aCavalaria se originou a partir do crescente prestgio do combatente a cavalo, doencarecimento dos equipamentos militares, da hierarquizao dos laos vasslicos e

    do distanciamento socioeconmico e sociojurdico entre homens armados edesarmados.3

    Alm destes aspectos militares, a procedncia da Cavalaria deve ser buscada numcontexto histrico particular. Para Jean Flori, que matizou a clssica tesemutacionista, a Cavalaria remonta aos laos de vassalagem, ao declnio do poderreal (sensvel desde o fim do Imprio Carolngio), emancipao do castellanus(castelo) e de seus milites (os cavaleiros) e tentativa da Igreja de incutir noscavaleiros uma tica. Como a maioria desses elementos no surgiu antes do ano 1000,no sbio falar de Cavalaria antes dessa data.4

    Com uma superioridade blica desde o fim da Alta Idade Mdia e temido pelaspilhagens que praticava, o miles (cavaleiro)5 obteve cada vez mais prestgio nasociedade e atraiu os nobiles (nobres) a partir do sculo XI. De forma gradativa, anobreza controlou a Cavalaria e fez uso exclusivo dela. Um sculo depois, sobretudona Frana, as duas categorias acabaram por se fundir ou por se confundir.6Crescendo em importncia nos sculos XI-XII, a Cavalaria era considerada, naspalavras de Chrtien de Troyes (c. 1135-1191), a mais alta ordem que Deus criou no

    2Graas ao estribo, objeto asitico introduzido no Ocidente no sculo VII, o guerreiro pesadamentearmado se mantinha firme em seu cavalo e, com isso, manejava mais livremente suas armas. Noentanto, acreditar numa revoluo do estribo um exagero.3CARDINI, Franco. O guerreiro e o cavaleiro. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O homem medieval.Lisboa: Editorial Presena, 1989, p. 58.4FLORI, Jean. A Cavalaria: A origem dos nobres guerreiros da Idade Mdia. So Paulo: Madras, 2005, p.12.5Ao longo dos sculos IX-XIII, observa-se uma metamorfose do sentido do termo miles(e de seucorrespondente em lngua vulgar, caballarius), que se refere no mais a todos os tipos de guerreiros,mas apenas quele que montava um cavalo. Ver DUBY, Georges. As origens da cavalaria. In: A

    sociedade cavaleiresca. So Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 23-36.6 FLORI, Jean. Cavalaria. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (coords.). DicionrioTemtico do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2006, vol. 1, p. 190.

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    mundo.7 Poderosa, ela chegou a ser apontada por Dominique Barthlemy como averdadeira instituio dominante na poca feudal, em detrimento da Igreja.8

    II. Gautier dArras e o romance Eracle

    Neste artigo, analisamos o adoubement(ritual de passagem) e a Cavalaria no Ocidentefeudal, com nfase no romance Eracle (6570 versos), escrito pelo clrigo francsGautier dArras entre 1159 e 1184.Autor de dois romances octossilbicos (Eraclee Ille

    et Galeron), Gautier apresentava relaes com as casas de Blois, Champagne e Hainaut,pois menciona os nomes de Teobaldo V de Blois, Maria de Frana e Balduno deHainaut (provavelmente Balduno V), seu senhor. EmEracle, o clrigo arrasiano narrauma verso da biografia do imperador bizantino Herclio (c. 575-641).9

    A histria, que se desenrola inicialmente em Roma, relata a trajetria de Eracle, filhode Mirados e Cassine, o qual recebe trs dons divinos: o conhecimento das pedras,cavalos e mulheres. Em seguida, ele vendido como escravo para salvar a alma do seupai. Comprado pelo senescal do imperador Las, o jovem demonstra o poder de suapedra nas provas ordlicas (gua, fogo e espada), vence uma corrida de cavalos e

    escolhe Athanas como a imperatriz ideal. Durante uma ausncia de Las e Eracle, emcombate a rebeldes, Athanas se relaciona de forma adltera com Parids, mas, no fim, perdoada. Na ltima parte da obra, Eracle entronizado em Constantinopla ecombate o rei persa Csroes (e seu filho) para recuperar a relquia da Santa Cruz e acidade de Jerusalm.10

    No romance Eracle, o heri protagonista submetido ao adoubement para integrar aCavalaria. Estudaremos a evoluo e as etapas do ritual, assim como as principais

    virtudes cavaleirescas (coragem, lealdade e prudncia), os conceitos de largueza e

    prodomie e a arte da guerra. De fato, a construo do perfil cavaleiresco de Eracle foiuma das principais formas que Gautier dArras encontrou para conferir prestgio aoseu heri.

    7CHRTIEN DE TROYES. Le Roman de Perceval ou Le Conte du Graal. Genve/Paris: Droz/Minard,1959, vv. 1635-1636.8BARTHLEMY, Dominique.A Cavalaria: da Germnia Frana do sculo XII. Campinas: Editora daUnicamp, 2010.9Sobre o Herclio histrico, ver KAEGI, Walter Emil. Heraclius, emperor of Byzantium.Cambridge:Cambridge University Press, 2003.10

    Sobre Gautier dArras e o romanceEracle, ver FOURRIER, Anthime. Courant ralistedans le romancourtois en France au Moyen-Age. Paris: Nizet, 1960, p. 179-275; PIERREVILLE, Corinne. GautierdArras. Lautre chrtien. Paris: Honor Champion diteur, 2001.

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    III. O cerimonial do adoubement

    Para ingressar na Cavalaria, Eracle deveria estar apto, o que foi demonstrado nasuperao das provas ordlicas a que o submeteram. Reconhecido por Las, o jovemnecessitava participar de um ritual de passagem: o adoubement. A cerimnia mencionada no incio do romance, quando Gautier resume a vida de seu heri, daescravido ao trono imperial. O autor pretendia indicar (vv. 103-107):

    A con grant tort il gu gabsEt con il fu puis adoubs;Com il vint puis a tele honourCom fist de lui empereourEt tint Coustantinoble quite;

    Como ele [Eracle] foi injustamente ridicularizadoe como foi armado cavaleiro.Como ento alcanou uma posio de honratal que foi eleito imperadore se tornou o governante de Constantinopla.11

    S futuramente, o cerimonial descrito em pormenores, em seguimento ao prestgiosocial alcanado por Eracle com os postos de sire e commandere (v. 1916). O ritualaparece no momento em que o heri aconselha o imperador Las e escolhe para eleuma esposa perfeita. Depois disso, todos vieram buscar seu conselho, o quemaximizou a importncia de Eracle. Nesse momento, ento, ocorreu oadoubement(vv.2891-2896):

    Armes demande, et on li quiertMolt hautement quanqui affiert.

    Li sire laime estrainement,Por ou ladoube hautement,Et trente por le siue amor;Et puis revit on bien le jor

    Ele demandou armas para sie equipamentos de alta qualidade foram adquiridos para ele.O sireo amava de forma excepcional.Portanto, ele foi magnificamente armado cavaleiro.E outros trinta foram [armados] em sua honra.Este dia foi visto com bons olhos.

    11Todas as tradues para o portugus so de nossa autoria.

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    Em sua anlise sobre o tema da Cavalaria em Ille et Galeron, Glyn S. Burgess noconferiu muita relevncia ao adoubement do heri.12 Ora, as fontes daquela pocadavam enorme importncia a essa jornada em que a infncia termina e o homemfeito admitido na sociedade dos adultos.13Nesse caso, de maneira significativa, Ille,o heri protagonista, foi armado cavaleiro pelo prprio rei da Frana (vv. 159-168).

    Inicialmente, os elementos ticos e religiosos quase no existiam na cerimnia. Emmuitas situaes, o cavaleiro recm-armado recebia um golpe (o termo francs

    adoubement deriva do antigo germnico bater)14

    com a mo ou com a lateral daespada na face, ombro ou nuca. Tratava-se de uma prova simblica, umaconstatao de que o jovem estava maduro o suficiente para figurar entre os adultos.

    Aps esse ato, ocorria a entrega das armas, momento no qual o castelo (sire)presenteava o jovem cavaleiro com o elmo, a cota de malha e a espada. Na maioriadas vezes, o cerimonial era realizado em conjunto, ou seja, vrios jovens recebiam, aomesmo tempo, suas armas e seu posto.15 Em seguida, acontecia uma grandefestividade. Na Assembleia de Mainz (1184), cujo principal objetivo era armarcavaleiros os filhos do imperador Frederico I, o Barbarossa (1155-1190), reuniram-secerca de 70 mil [cavaleiros] naquela corte, alm dos clrigos e homens de outra

    condio.16

    Com a aproximao entre a Igreja e a Cavalaria, esta absorveu, em parte, uma ticacrist. Os cavaleiros deveriam proteger os pobres e as vivas e no poderiam atacar osinermes, isto , os homens desarmados (religiosos, mercadores e camponeses). Nessaesteira, o adoubement se transformou: a partir do fim do sculo XII, esse rito depassagem j era to importante quanto o batismo ou o casamento. Durante a noiteque precedia cerimnia, o aspirante a cavaleiro se preparavaele rezava, purificavaseu corpo e sua alma. Na manh seguinte, aps tomar a comunho (o corpus Christi

    propriamente dito), as armas eram benzidas e, depois, o aspirante recebia a bofetada.

    12BURGESS, Glyn Sheridan. The theme of chivalry in Ille et Galeron. In:Medioevo Romanzo, vol. 14,1989, p. 339-362.13DUBY, Georges. Guilherme Marechal, ou, o melhor cavaleiro do mundo. Rio de Janeiro: Edies Graal,1987, p. 96.14BLOCH, Marc.A Sociedade Feudal. Lisboa: Edies 70, 1979, p. 346.15DUBY, Georges.El siglo de los caballeros. Madrid: Alianza Editorial, 1995, p. 85.16 GISLEBERTO DE MONS. Chronicle of Hainaut. Woodbridge: Boydell, 2005, p. 87. H umatraduo da Chronicon Hanoniense para o portugus, feita pelo Prof. Dr. Ricardo da Costa. Ver

    GISLEBERT DE MONS. Crnica de Hainaut (c. 1171-1195) (trad. e notas de Ricardo da Costa.Reviso de Francisco Jos Pereira das Neves Vieira). Internet,http://www.ricardocosta.com/traducoes/textos/cronica-de-hainaut.

    http://www.ricardocosta.com/traducoes/textos/cronica-de-hainauthttp://www.ricardocosta.com/traducoes/textos/cronica-de-hainauthttp://www.ricardocosta.com/traducoes/textos/cronica-de-hainaut
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    A cristianizao do adoubement, no entanto, deve ser relativizada. Ao contrrio do queafirmou o historiador Len Gautier em 1884, o ritual no pode ser considerado ooitavo sacramento da Igreja medieval. Maurice Keen assegura que mesmo acerimnia realizada numa igreja no subordinou a atividade militar regra eclesisticae armar cavaleiro nunca foi nem se converteu no oitavo sacramento, opiniocompartilhada por Barthlemy.17 Quase sempre, o adoubement acontecia quando ojovem tinha por volta dos 15 anos, mas a idade registrada nas fontes varivel;existem cerimnias realizadas em idade superior e inferior.18Na citada Assembleia de

    Mainz, Henrique (rei dos romanos) e Frederico (duque da Subia), os filhos doimperador, contavam com 18 e 16 anos, respectivamente. O rei francs Lus VIII(1187-1226), por sua vez, foi armado aos 21 (ou 22) anos.19

    Gautier sugere que Eracle tinha por volta dos 14-15 anos quando foi armadocavaleiro, o que pode ser observado em alguns indcios cronolgicos: 1) Ele iniciouos testes ordlicos aos 10 anos; 2) O tempo para a comprovao dos trs dons,considerando a ansiedade do imperador, no deve ter ultrapassado muito mais do queum ano. Portanto Eracle tinha, aproximadamente, 12 anos quando escolheu Athanaspara ser imperatriz;203) O casamento entre a escolhida e o imperador Las ocorreu

    apenas trs dias depois dessa indicao (v. 2801); 4) Antes do fim do terceiro ano(v. 2819) de casamento, Athanas conquistou o amor de todos, e o imperadorpercebeu o valor de Eracle. Aps isso, ele passou pelo adoubement(vv. 2891-2896). EmIlle et Galeron, o protagonista tambm foi armado cavaleiro com essa idade. Aos 10anos, Ille refugiou-se no reino da Frana e, quando o jovem atingiu a idade adequadapara se tornar cavaleiro, o rei o ordenou alegremente (vv. 166-168). Ele tinha entre14 e 15 anos poca.

    A passagem de Eracle pelo adoubement aparece como parte da evoluo de sua figura

    heroica. A cerimnia, todavia, foi resumida e permanece profana, pois os armamentosno foram consagrados.21 No fim do sculo XII, esses cerimoniais, mesmo osdescritos por clrigos, eram fundamentalmente profanos. Os ritos de sacralizao que

    17KEEN, Maurice. La Caballera. Barcelona: Ariel, 1986, p. 114; BARTHLEMY, Dominique. ACavalaria:da Germnia Frana do sculo XII,op. cit., p. 298.18FLORI, Jean. Les origines de ladoubement chevaleresque: tude des remises darmes dans leschroniques et annales latines du 9me au 13me sicle. In: Traditio, vol. 35, 1979, p. 214.19

    LE GOFF, Jacques. So Lus. Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 88.20PIERREVILLE, Corinne. Gautier dArras.Lautre chrtien, op. cit., p. 70-71.21Ibidem, p. 147.

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    se difundiam quela poca ainda no haviam penetrado em certas regies do norte daFrana, como no pequeno condado de Gunes.22

    Na poca feudal, os jovens aspirantes eram armados pelos senhores (sire) ou pelosprprios pais, mas estes poderiam negar o adoubement, como foi o caso de Balduno V,que se recusou a armar Henrique (1174-1216). Persistente, o jovem solicitou aReinaldo de Dammartin (c. 1165-1227), conde de Bolonha, que o fizesse cavaleiro, oque, de fato, aconteceu.23No caso de Eracle, a estima de Las por ele crescia aps a

    superao de cada prova ordlica e, sobretudo, depois da escolha da mulher maisvirtuosa. J no combate contra o gigante cavaleiro (ordlio da espada), o imperadordemonstrou preocupao com a vida do jovem. Tal conjuntura contribuiu para que oprprio Las armasse Eracle, porque, logo aps o verso o amor do seu sire ele eraexcepcional (v. 2893), segueportanto, ele foi armado cavaleiro de forma magnfica(v. 2894), o que parece confirmar o fato.

    Como dissemos, inicialmente no existia uma correspondncia entre Nobreza eCavalaria, j que muitos no nobres eram armados cavaleiros. Desde o fim do sculoXII, o adoubementera reservado aos homens que tinham pai cavaleiro e me nobre.24

    Eracle, realmente, tinha nobres origens (vv. 118-121), algo conhecido por todosdesde que ele tinha escolhido a esposa ideal. A populao de Roma j sabia que eledescendia de uma famlia ilustre (v. 2875). Nesse sentido, podemos inferir queMirados, pai do heri, tambm havia sido um cavaleiro, apesar de Gautier preferircham-lo de senador(v. 115).

    IV. Os paralelos histrico-literrios do adoubement

    H mais de trs dcadas, Flori argumentou que as primeiras chansons de geste(como a

    Chanson de Roland) descreveram o adoubement apenas como um gesto tcnico. Aacepo honorfica e ritualstica apareceria somente no fim do sculo XII, com acrescente importncia da cerimnia.25Barthlemy, um dos crticos dessa interpretao,analisou a Chanson de Roland (c. 1100) e viu nela um autntico adoubement, atestado pelaexpresso: Dunc la me ceinst li gentilz reis, li magnes (Ento me cingiu com ela o gentilrei, o magno) (v. 2321). Trata-se de um ritual legtimo, entendido como uma entrega

    22DUBY, Georges.El siglo de los caballeros,op. cit., p. 83.23GISLEBERTO DE MONS. Chronicle of Hainaut, op. cit., p. 160.24

    FLORI, Jean. Cavalaria, op. cit., p. 190.25 Idem, Smantique et socit mdivale. Le verbe adouber et son volution au XIIe sicle . In:Annales.conomies, Socits, Civilisations, vol. 31, n 5, 1976, p. 915-940.

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    solene da espada, em uma corte, por um rei ou prncipe, aos jovens nobres que eleformou ou quer honrar.26

    O termo adoubersurge na Chanson de Roland, mas ele ainda no indica a cerimnia dearmar cavaleiros, apenas o ato de vestir as armas. O cerimonial, entretanto, jexistia, como atestam outras crnicas a partir de 1060: ele executa a maioridade doherdeiro nobre, inaugura sua senhoria ou sua errncia guerreira e cria-lhe uma dvidade fidelidade com respeito ao senhor adouber.27A partir da segunda metade do sculo

    XII, o termo passou a indicar a cerimnia, que, um sculo depois, tornou-se mais rara.Ora, Gautier escreve nessa poca, quando o verbo adouber no se referia mais simples entrega de armas, mas cerimnia. Na Chanson de Roland, o prprio CarlosMagno armou o heri protagonista. No ritual descrito por Gautier, os elementosticos e religiosos ainda inexistiam. Chrtien de Troyes, salvo algumas excees,tambm revela uma forma arcaica do adoubement, sem conotaes ticas ou religiosas.O romance Cligs, obra apontada pelos especialistas como anloga aoEracle, apresentaindicativos reveladores sobre o ritual.

    Na primeira cerimnia descrita, Chrtien conta que Alexandre,filho do imperador deConstantinopla, sonhava emoferecer seu servio ao rei que governa a Bretanha

    Artur. Em troca disso, o jovem queria ser armado cavaleiro. O soberano bizantinocontestou a vontade do filho e props que, na manh seguinte, ele mesmo o fariacavaleiro: Toda a Grcia estar em vossa mo e recebereis de nossos bares osjuramentos e homenagens, como deve ser.28Alexandre, contudo, recusa a promessade seu pai e decide embarcar rumo Bretanha. O rei Artur, protetor da Cavalariadesde que ela se transferiu da Grcia para Roma e, depois, para a Frana, parecia sermais qualificado. Aps aprender a arte da guerracom os guerreiros mais famosos do

    mundo, Alexandre foi considerado digno de participar do ritual.29

    Finalmente, oaspirante sagrado cavaleiro.30

    26 BARTHLEMY, Dominique. Adubamento e cavalaria nas Canes de Rolando e deAspremont.In: MONGELLI, Lnia Mrcia (org.).E Fizerom taes Maravilhas... Histrias de Cavaleiros eCavalarias. Cotia, SP:Ateli Editorial, 2012, p. 157.27Ibidem, p. 158.28CHRTIEN DE TROYES. Cligs.Madrid: Alianza Editorial, 1993, p. 58-59.29

    FLORI, Jean. Pour une histoire de la chevalerie: ladoubement dans les romans de Chrtien deTroyes. Romania, vol. 100, 1979, p. 30.30CHRTIEN DE TROYES. Cligs, op. cit., p. 84.

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    adoubement de Balduno V ocorreu um pouco tardiamente (em 1168 ele tinha 18 anos),o que tambm explicaria a ansiedade de seu pai. Os rituais descritos por Gisleberto,como o de Balduno V, permanecem sem traos ticos.35Assim como Eracle, o condepassou a integrar a Cavalaria atravs de um rito de iniciao, festivo, laico, pelo qualse renovam as energias sociais e as fidelidades ao grupo de sociabilidadearistocrtica.36

    V. As virtudes cavaleirescas

    A ticacavaleirescaformava um conjunto de normas e valores seguido por todos oscavaleiros. A Ordem da Cavalaria noadmitevilania.37Esse cdigo girava em tornode dois princpios: a coragem (prouesse) e a sagacidade (sagesse), tambm chamada deprudncia. Tais virtudes eram complementares e, se combinadas harmonicamente,resultavam no equilbrio (mesure). Nas palavras de Cardini, o valente que no prudente um louco e o prudente que no sabe ser valente um cobarde.38GeorgesDuby, por sua vez, preferiu resumir osvalores do mundo cavaleiresco em trspalavras: lealdade, valentia e prudncia.39 Essas virtudes eram almejadasincansavelmente pelos guerreiros. No caso de Eracle, Gautier as evoca aps descrever

    o adoubement, sem poupar elogios Cavalaria de seu heri(vv. 2897-2899):

    Car le siue chevalerieNe torna pas a jouglerie:

    Ja de si haute norrs mais.

    Porque sua Cavalaria nunca foi causa de zombaria: voc nunca mais ir ouvir falar deto excelente [Cavalaria].

    quase impossvel no perceber uma analogia entre essa passagem e o tratado De

    Laude Novae Militiae, de So Bernardo de Claraval (1090-1153). A posio de rfosimblicode Eracle marcaa passagem de uma Cavalariajouglerie[profana] para umaCavalaria respeitada a servio da Igreja.40 Num jogo de palavras (militiae/malitiae),

    35FLORI, Jean.A Cavalaria: A origem dos nobres guerreiros da Idade Mdia,op. cit., p. 43.36RUIZ-DOMNEC, Jos Enrique. Prlogo. In: GISLEBERTO DE MONS. Crnica de los condesde Hainaut. Madrid: Ediciones Siruela, 1987, p. XI-XII.37CHRTIEN DE TROYES. Le Roman de Perceval ou Le Conte du Graal, op. cit., v. 1638.38CARDINI, Franco. O guerreiro e o cavaleiro, op. cit.,p. 61.39DUBY, Georges.El siglo de los caballeros, op. cit.,p. 66. Ou, numa variao similar, lealdade, proeza e

    largueza:Idem,Guilherme Marechal, ou, o melhor cavaleiro do mundo, op. cit., p. 211.40WOLFZETTEL, Friedrich. La recherche de luniversel. Pour une nouvelle lecture des romans deGautier dArras. Cahiers de civilisation mdivale, vol. 33, n 2, 1990, p. 120.

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    Bernardo condenava a Cavalaria secular dcadas antes de Gautier: qualpode ser opropsito de uma milcia, que eu chamaria malcia, se nela quem mata pecamortalmente e quem morto perece eternamente?.41 Para o abade de Claraval, amilitia saecularisera condenvel devido ao seu mundanismo e comportamento profano,ao contrrio da novae militiae (os templrios), constituda por monges-cavaleirosdisciplinados, fiis em Cristo, justos e corajosos.42

    Eracle, o melhor cavaleiro do mundo, para retomar a expresso conferida a

    Guilherme, oMarechal,43

    reunia todas as virtudes de um cavaleiroperfeito.Gautiersintetiza assim os valores cavaleirescos de seu personagem: Eracle era um bomcavaleiro, bravo, leal e justo (vv. 2915-2916). A bravura (ou coragem) era uma das

    virtudes mais apreciadas pelos bellatores. Fundamental em combate, ela garantia orespeito e a admirao de amigos e inimigos. A intrepidez de um cavaleiro que selanava contra um oponente misterioso ou numericamente superior conferia prestgioe fama. Gautier escreve que, se Eracle tivessevivido mais dois anos(v. 6508), eleteria demonstrado sua grande fora, valor e coragem (vv. 6509-6510). O termofora (vaillance) refere-se resistncia em combate, uma caracterstica essencial doscavaleiros devido aos inmeros confrontos por eles enfrentados em um curto

    perodo.44

    A lealdade (ou fidelidade), virtudecavaleiresca por excelncia,45consistia no deverdo cavaleiro em cumprir sua palavra, o que garantia boa reputao entre seus pares.No romanceEracle, a lealdade estava especialmente vinculada relao do heri como imperador Las, seu senhor. Ele j tinha feito, com certeza, seus votos defidelidade, o compromisso que conduzia as relaes vasslicas dentro da lgicafeudal. Descumprir sua palavra (felonia) era algo gravssimo, o pior crime de todos.

    41 SO BERNARDO DE CLARAVAL. Las glorias de la nueva milicia. A los caballerostemplarios. In: Obras completas de San Bernardo. Introduccin general y Tratados. Madrid: Biblioteca de

    Autores Cristianos, 1993, vol. 1, p. 500-501. Para a Cavalaria nos sculos XII-XIII, sobretudo nasobras de So Bernardo de Claraval e Ramon Llull, ver COSTA, Ricardo da. A cavalaria perfeitae asvirtudesdo bom cavaleiro no Livro da Ordem de Cavalaria(c. 1279-1283), de Ramon Llull. Revista doInstituto Histrico e Geogrfico do Esprito Santo, Vitria - Revista do IHGES, vol. 55, 2001, p. 51-86.Internet, http://www.ricardocosta.com/artigo/cavalaria-perfeita-e-virtudes-do-bom-cavaleiro-no-livro-da-ordem-de-cavalaria-1275-de-ramon.42PERNOUD, Rgine. Os templrios. Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, 1974, p. 18.43

    DUBY, Georges.Guilherme Marechal, ou, o melhor cavaleiro do mundo, op. cit., p. 38.44PIERREVILLE, Corinne. Gautier dArras. Lautre chrtien, op. cit.,p. 174.45DUBY, Georges.El siglo de los caballeros, op. cit., p. 67.

    http://www.ricardocosta.com/artigo/cavalaria-perfeita-e-virtudes-do-bom-cavaleiro-no-livro-da-ordem-de-cavalaria-1275-de-ramonhttp://www.ricardocosta.com/artigo/cavalaria-perfeita-e-virtudes-do-bom-cavaleiro-no-livro-da-ordem-de-cavalaria-1275-de-ramonhttp://www.ricardocosta.com/artigo/cavalaria-perfeita-e-virtudes-do-bom-cavaleiro-no-livro-da-ordem-de-cavalaria-1275-de-ramonhttp://www.ricardocosta.com/artigo/cavalaria-perfeita-e-virtudes-do-bom-cavaleiro-no-livro-da-ordem-de-cavalaria-1275-de-ramonhttp://www.ricardocosta.com/artigo/cavalaria-perfeita-e-virtudes-do-bom-cavaleiro-no-livro-da-ordem-de-cavalaria-1275-de-ramon
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    Csroes e seu filho eram os exemplos tpicos de homens feles (vv. 5339; 5343) edesleais (v. 5256).

    A honra, valor que complementava a lealdade, era um importante elemento do ethoscavaleiresco. No mbito militar, ela condenava certas armas como a besta,considerando o combate a distncia algo indigno, visto que a disciplina, honra e

    valentia dos cavaleiros de nada valiam. Alm das emboscadas e dos artifciosludibriosos, o cdigo censurava a morte de um inimigo ferido e incapaz de se

    defender. Gautier tambm critica os cavaleiros desonrados, homens tolos queamavam cegamente as mulheres (vv. 2527-2535). Eracle, ao contrrio, preocupava-secom a sua reputao e rejeitava os mentirosos, fofoqueiros e caluniadores, quesempre odeiam os que so virtuosos (vv. 4744-4745). Em sntese, o heri deveriapraticar a justia e evitar as injrias, combatendo os homens traioeiros e salteadores.

    Eracle, rei-cavaleiro, tambm era sbio e prudente. Equilibrado e ponderado, o heritinha a capacidade de distinguir entre o certo e o errado. Ele ouvia os seusconselheiros e, sabiamente, meditava sobre suas decises, sem agir de modoimpulsivo. Ao contrrio da noo atual de Prudncia, um sinnimo de precauo, a

    Prudentia antiga e medieval baseava-se tanto na qualidade intelectual quanto namoral.46Na realidade, sem Clergie(erudio) a Chevalerie(Cavalaria) de nada valia, poisambas eram os pilares gmeos da sociedade.47 A prudncia de Eracle pode serobservada nesta passagem (vv. 5439-5448):

    Si traist ses barons dune part:Signor, fait il, par vostre esgart

    Voel je tout faire en cest voie,Que je de rien blams ne soie,Ne plus los, ne plus proisis

    De nul de vos; si eslisisLe mix, le plus biel tout ensanle;Die cascuns ce quil li sanleEt dient: Bons est cis conseus,Et cis est miudres; cis nest preux.

    [Eracle] convocou seus bares parte e disse: Senhores, neste assunto eu gostaria deagir segundo os seus conselhos para que eu no possa ser criticado por nada, nem maiselogiado ou estimado do que qualquer um de vocs. Juntos, escolheremos o melhor, o

    46

    BRUCKER, Charles. Prudentia/prudence au XIIe et XIIIe sicles. Romanische Forschungen, t. 83,1971, p. 464.47KEEN, Maurice. La Caballera, op. cit., p. 18.

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    curso mais apropriado para a ao, deixando todos falarem: este conselho bom, este melhor; isto no uma boa ideia.

    Assim como Eracle havia aconselhado o imperador Las, os nobres deveriam ajud-lona conduo das atividades militares. No fragmento em questo, cada baro deveriaapresentar seu consilium para que o heri pudesse agir prudentemente na decisivacampanha que se desenrolava. Gautier j havia mencionado a forma com que Eraclegovernava e a diferena de tratamento que ele concedia aos amigos e inimigos (vv.5101-5105):

    Trestous les orgillous plaissoit,Et durement les abaissoit;

    As preudomes faisoit grans biens,Ses honeroit sor toute riens,Quil ert molt sages et sens;

    Ele humilhou todos os orgulhosos e duramente os arruinou, mas recompensou ospreudomes com grandes bens e os honrou acima de todos os outros porque era muitosbio e prudente.

    A sabedoria e a prudncia de Eracle resultaram em um governo de justia, porque ele,simultaneamente, castigava os soberbos e premiava os que contribuam para aprosperidade do Imprio. Durante o combate singular, a prudncia de Eracle tambm foievocada, dessa vez em contornos cavaleirescos: aps receber um poderoso golpe emseu capacete dourado, Eracle conseguiu se segurar no cavalo, j que seu corao eramais sbio e prudente (v. 5725).

    VI. A largueza

    A largueza era uma qualidade que suplementava a prudncia. Ela consistia em sergeneroso e leal com os feridos. O cavaleiro que a praticava fazia com que as pessoas aquem amava se regozijassem; ele renunciava aos bens materiais, tinha umdesprendimento por eles.48 A generosidade parece ser herdeira de dois ancestraiscontraditrios, dos quais se conservam duas caractersticas: a caridade (caritas), deorigem crist e eclesistica por um lado, e a ostentao aristocrtica (prxima soberba) por outro.49A largueza, virtude aristocrtica oposta avarezae ao lucro, erauma expresso de caritas.

    48DUBY, Georges. Guilherme Marechal, ou, o melhor cavaleiro do mundo, op. cit.,p. 120-121.49FLORI, Jean. Ricardo Corazn de Len. Barcelona: Edhasa, 2008, p. 437.

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    Na Chronicon Hanoniense, Gisleberto de Mons descreve um significativo gesto delargueza dos filhos do imperador Frederico I. Aps serem armados cavaleiros na

    Assembleia de Mainz, Henrique e Frederico honradamente recolheram muitas coisas,como cavalos, vestimentas preciosas, ouro e prata, que foram doadasgenerosamente pelos prncipes e outros nobres.50Gesto importante, a largueza foiseguida pelos outros prncipes e nobres presentes, que pretendiam no apenas honraros filhos do imperador, mas tambm promover a reputao dos seus prpriosnomes.

    Em seu romance Cligs, Chrtien considera a generosidade a rainha e senhora queilumina todas as virtudes.51 A largueza, obrigao fundamental de todo monarca,recebeu no romanceEracleuma dimenso mais evanglica que corts.52Talvez umadas poucas passagens que apresente o carter corts seja a maneira pela qual oprotagonista tratou seus amigos, recompensados com grandes bens e honra (vv.5103-5104). Nas outras vezes em que aparece, a larguezade Eracle estava vinculada caridade. No fim da guerra contra Csroes, por exemplo, o heri distribuiu o ourodo tesouro aos pobres e a prata aos seus cavaleiros (vv. 6045-6048).

    Gautier pode ter visto em Eracle um legtimo rei-cruzado, identificao relacionadaao comportamento do heri ao longo do romance. Durante a Terceira Cruzada (1189-1192), os monarcas Ricardo I, Corao de Leo, e Felipe Augusto fizeram uso dalargueza. O rei da Inglaterra, porm, superava todos em generosidade, distribuindo(sempre que necessrio) o seu tesouro real, o que fez dele um soberano muito popularentre os cruzados. To favorvel Cavalaria, a largueza atingiu seu auge no fim dosculo XII, antes de minguar no incio da centria seguinte.53O estudioso alemo EricKhler considerou a generosidade a virtude suprema, que transmitia seu resplender soutras virtudes. Essencial, ela multiplica de forma maravilhosa as vantagens do novo

    ideal cavaleiresco, no qual est concentrada sua tica, prodomie.54

    Com a prodomie,ocorre a moralizao da largueza.

    50GISLEBERTO DE MONS. Chronicle of Hainaut, op. cit., p. 88.51 A generosidade transforma sozinha um homem em nobre, o que no podem fazer nem altacondio, nem sabedoria, cortesia, gentileza, posses, fora, cavalaria, faanhas, senhorio, beleza, nemnenhuma outra coisa:CHRTIEN DE TROYES. Cligs, op. cit., p. 61.52PIERREVILLE, Corinne. Gautier dArras. Lautre chrtien, op. cit.,p. 182.53

    FLORI, Jean. Ricardo Corazn de Len, op. cit., p. 440-445; 448.54KHLER, Eric. La aventura caballeresca: ideal y realidad en la narrativa corts. Barcelona: Simos,1990, p. 28.

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    VII. Aprodomie

    Os conceitos de prodome e prodomie na Literatura do sculo XII tambm foramestudados por Khler, que se debruou especialmente sobre os romances de Chrtiende Troyes. Segundo o autor, enquanto as chansons de geste caracterizam a essncia doprodomecom atributos como coragem, sacrifcio espontneo, fora, fidelidade vasslicae honra, a Literatura corts ainda o qualifica com a courtoisie, a educao, agenerosidade, a perfeio comportamental e uma moralidade exemplar.55

    O termoprodomedesignava o homem sbio, lealou, etimologicamente, pro dhome,homem corajoso.56Oprodomeera sinnimo de nobre, um componente dos extratossuperiores da nobreza feudal. Sempre cavaleiro, embora nem todo cavaleiro fosse umprodome, ele integrava uma elite da Cavalaria, que, em si, j constitua uma elite (milessignifica um entre mil). A prodomie era a cristalizao absoluta do modus vivendicavaleiresco e pressuposto que conduzia nata da Cavalaria crist. Ela articulaCavalaria e instruo, ou ainda fora e sabedoria. O prodome designava o que temautoridade moral e elevado mrito. Esse homem de valor seguia os valores moraisreligiosos e se diferenciava do preux(bravo) porque associa a valentia sabedoria e

    piedade.57

    No romance de Gautier, o primeiro personagem qualificado comoprodome Mirados,pai de Eracle, mencionado como um marido muito preudome (v. 122) de Cassine.Como aprodomieno era transmitida hereditariamente, a morte de Mirados fez comque Eracle tentasse alcan-la por seu prprio mrito. Nos textos de Chrtien, por sua

    vez, aprodomieaparece como uma oblao especial conferida por Deus aos melhoresrepresentantes da Cavalaria.58Em Gautier, essa peculiaridade estava em sintonia coma narrativa, porque Eracle j havia sido contemplado pelo Altssimo com trs outros

    dons: o conhecimento das pedras, mulheres e cavalos.

    A primeira assimilao de Eracle a um prodome ocorreu no episdio em que ele foisubmetido s provaes ordlicas. medida que nosso heri elevava seu status emdireo prodomie, os invejosos buscavam difam-lo, dizendo que ele e sua pedra

    55Idem, Excursus: El concepto de Prodome en la Novela Artrica, especialmente en Chrtien. In:La aventura caballeresca: ideal y realidad en la narrativa corts, op. cit.,p. 114.56GRANDSAIGNES DHAUTERIVE, Robert.Dictionnaire dancien franais: Moyen ge et Renaissance.Paris: Larousse, 1947, p. 481.57

    LE GOFF, Jacques. So Lus, op. cit., p. 551.58KHLER, Eric. Excursus: El concepto de Prodome en la Novela Artrica, especialmente enChrtien, op. cit.,p. 121.

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    preciosa no tinham poderes especiais (vv. 1067-1070). Aqui, aprodomie algo quetodos desejam alcanar, aquilo de que Eracle gradualmente se aproximava. Outropersonagem chamado de preudome foi o vendedor do potro que Eracle comprou.Ele havia vendido o mais veloz de todos os animais por um alto preo, acontragosto do imperador Las. Com a vitria do potro na corrida, o vendedormostrou que estava certo, que no era um mentiroso (vv. 1417-1478), mas umpreudome confivel.

    Em vista de todas as qualidades com que foi descrito por Gautier, Eraclenaturalmente recebeu o ttulo de prodome.59 Numa passagem significativa, por duasvezes Gautier assinala que o heri detinha esse atributo. Aps Csroes assassinar deforma traioeira o imperador Focas, os ancios de Constantinopla elegeram opreudome Eracle como soberano (v. 5266), e, embora o escolhido estivesse emRoma, todos sabiam que ele era um preudome (v. 5268). O prprio Eraclerecompensou com enormes bens os preudomes nobres de seu Imprio. Elereconheceu os seus iguais naprodomiee os premiou (v. 5103), porque era sbio (sages) eprudente (sens).

    A ltima vez que Gautier denominou Eracle deprodomeocorreu quando ele se referiu coluna erguida pelo povo de Constantinopla. No topo dela, foi colocada umaesttua que capturou as caractersticas do preudomeque tinha governado o Imprio(v. 6493). O ltimo a ser consideradoprodomepor Gautier foi o conde de Hainaut (v.6532), atribuio que no ocorreu por acaso, porque se tratava do amado siredo autor,um dos patronos a quem ele dedicou sua obra. Assim, apenas os nobres de alto nvelforam chamados de prodomes. Balduno V, provavelmente o nobre em questo, eracaracterizado por Gisleberto de Mons no mesmo perodo como um homem muitosbio e poderoso prncipe.60

    Eracle tambm detinha outros predicados, como a beleza fsica (v. 6430), uma dasvirtudes corteses por excelncia.61 O ideal de beleza retomado por Gautier era decunho platnico, segundo o qual existia uma associao entre o Bem e o Belo. Emoutras palavras, uma bela aparncia refletia qualidades interiores. Tal concepo,cultivada pela maior parte dos autores do fim do sculo XII, desaparece da literatura

    59

    PIERREVILLE, Corinne. Gautier dArras. Lautre chrtien, op. cit.,p. 178.60GISLEBERTO DE MONS. Chronicle of Hainaut, op. cit., p. 03.61PIERREVILLE, Corinne. Gautier dArras. Lautre chrtien, op. cit.,p. 207.

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    corts a partir de 1220, quando entra em cena o tema da beleza diablica.62A belezaera uma caracterstica dos heris de Chrtien de Troyes, como Cligs.63 Naquelapoca, a relao entre beleza e bravura alcanava o seu auge; a beleza absolutasignifica proximidade a Deus por semelhana com os anjos, a harmonia entre ointerior e o exterior.64

    VIII. A arte da guerra cavaleiresca

    As armas que Eracle empunhava aparecem apenas na parte final do romance,especialmente no episdio do combate singular contra o filho de Csroes. Durante oembate contra o gigante cavaleiro, o heri carregava a pedra preciosa, espcie deamuleto que o protegeu das investidas do oponente (vv. 1223-1232). J no combatesingular, o prprio cavalo de Eracle, referido como excelente e veloz (v. 5609), compatas enormes (v. 5610), um animal que no poderia haver um melhor (v. 5611)em todo o mundo, aparece nos termos tradicionais da poesia pica.65

    A arte da guerra que Gautier evocou para descrever o episdio abaixo deriva doimaginrio cavaleiresco do sculo XII (vv. 5704-5708):

    Atant seslongent por jouster;Hurtent cevax des esperonsEt sentrefierent es blasonsIssi que nul mal ne se font,Et les lances en pieces vont.

    Eles ento cavalgaram em direes opostas para preparar o ataque. Eles estimularamseus cavalos e bateram um no outro com o escudo, no fazendo qualquer mal, masdespedaando suas lanas.

    Eracle seguiu o tradicional costume cavaleiresco de lutar inicialmente com a lana (v.5613)66e, com a quebra desta, com a espada. Nas palavras de Barthlemy, mais do

    62PASTOUREAU, Michel. No tempo dos cavaleiros da Tvola Redonda. Sculos XII e XIII.So Paulo:Companhia das Letras, 1989, p. 146.63Para descrever a beleza de Cligs, quero usar poucas palavras. E le estava na flor da idade, pois jtinha mais de 15 anos; mas era to belo e encantador como Narciso: CHRTIEN DE TROYES.Cligs, op. cit., p. 115.64KHLER, Eric. La aventura caballeresca: ideal y realidad en la narrativa corts, op. cit.,p. 109.65 PRATT, Karen. Meister Ottes Eraclius as an adaptation of Eracle by Gautier dArras. Gppingen:

    Kmmerle Verlag, 1987, p. 221.66 A partir do sculo IX, ocorreu uma evoluo no design das lanas, cada vez maiores (mais oumenos de 2,5m) e grossas, pesando mais de 10 quilos. Essa modificao resultou no surgimento de

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    que a espada, a lana que constitui a arma do Cavaleiro. 67O tradicional ataque coma lana, descrito incessantemente pelas epopeias e romances,68teve vida curta, como

    vimos.

    Com suas lanas despedaadas, os dois guerreiros desembainharam suas espadas,prontos para trocar golpes terrveis (vv. 5711-5712). No comeo do embate, Eracle

    viu-se em desvantagem ao ser atingido por um golpe em seu capacete (v. 5718), quequase o derrubou do cavalo. Os contra-ataques do heri foram mortais, como

    observamos no momento capital do confronto:Vient vers celui, hauce lespeeEt fiert a guise de vassal;

    Trence le col de son cevalTres par devant safeutrere.Li paiens pas ne sassere;Li cevaux ciet et cil trebuce

    Ele [Eracle] ergue sua espada e ataca, estimulado por uma energia colossal. Ele corta opescoo do cavalo em frente sela. O pago perde seu equilbrio; ele balana e o cavalo

    cai sobre ele (vv. 5772-5777)

    Adiante (vv. 5810-5814):Hauce son cop, fiert sor loe,Et se coife de fer li fausse.

    Ainc nusa mais si aigre sausse,Car cil li baigne lalemelleParmi le tis en le cervelle.

    Ele [Eracle] ergue sua arma e golpeia acima da orelha [do filho de Csroes], atravs desua falsa cota de ferro [malha]. Nunca antes ele tinha experimentado um molho toamargo, pois [Eracle] mergulhou a lmina em seu crnio, direto em seu crebro.

    uma nova tcnica por meio da qual o cavaleiro segurava a lana de uma maneira diferente (a hastesob a axila), o que o permitia golpear em estocada seu adversrio com fora, perfurando-o e/ouderrubando-o. Tal inovao tcnica parece ter sido adotada primeiramente pelos normandos. Elatalvez esteja ligada moda recente dos torneios, que se popularizam depois de 1050: FLORI, Jean.

    A Cavalaria: A origem dos nobres guerreiros da Idade Mdia, op. cit., p. 76.67BARTHLEMY, Dominique.A Cavalaria:da Germnia Frana do sculo XII, op. cit.,p. 250.68FLORI, Jean.A Cavalaria: A origem dos nobres guerreiros da Idade Mdia, op. cit., p. 77. Em Ille etGaleron, o combate com a lana aparece 20 vezes. No romance Cligs, Chrtien descreve que o heri

    protagonista e o duque da Saxnia empunham ento suas lanas e se atacam sem compaixo. Cadaum deles quebra sua lana e cai do cavalo ao solo, pois no podiam se manter nas selas:CHRTIEN DE TROYES. Cligs, op. cit., p. 140-141.

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    Os dois poderosos e letais golpes desferidos por Eracle o primeiro decepa opescoo do cavalo, o segundo atravessa a cota de malha e o crnio do filho deCsroes provavelmente estavam relacionados procedncia e fora da legendriaespada do soberano, cujo dono havia sido o imperador Constantino (v. 5608). Nadamal para um cavaleiro que era menos experiente (v. 5715) que o filho de Csroes. Aeficcia espetacular dos golpes de Eracle fomentaria inveja nos cavaleiros, e osdetalhes (rgos internos dilacerados) impressionariam o pblico ouvinte.

    Imagem 1

    Combate entre Herclio e o filho de Csroes.A inscrio em francs antigo abaixoda imagem exibe parte do texto: comment heracle l'emperiere de romme se combati au filz cosdroe

    le tyrant pour l'essaucement de la sainte crois et l'emperiere vainqui le filz et tua le tyrant. O filho deCsroes retratado como um negro, cor tradicionalmente relacionada aos sarracenos esmbolo do mal. Ele empunha uma espada tpica dos povos do Oriente Prximo, comoos rabes e os persas. Herclio, por sua vez, dispe de uma armadura completa e umacoroa. Nas vestes de seu cavalo, esto estampadas cruzes. A Santa Cruz aparece esquerda da cena. Cpia de Richard de Montbaston da Legenda urea(traduo de Jeande Vignay), 1348. Paris, Bibliothque nationale de France, ms. Franais 241, fol. 244v.

    Com efeito, toda chanson de geste (gnero que influenciou o romance de Gautier) erauma hiprbole, de onde se observam exageros no apenas nas cenas de violncia, mas

    tambm no nmero dos combatentes, etc. Ao lado de uma pitada de humor, algumasfaanhas guerreiras surgiam em contornos monstruosos (decapitao de um cavalo,

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    por exemplo). Em outras palavras, o modo pelo qual o ataque era evocado suscitaria,ao mesmo tempo, espanto e admirao da plateia, provocando regozijo naqueles quese reconheciam na pele do heri protagonista.

    ***

    Gautier dArras nunca pretendeu apresentar no romance Eracleuma sociedade ideal,sem defeitos e vcios. Por isso, entre outras coisas, ele critica uma preferncia das

    damas e o comportamento da cavalaria secular (vv. 2527-2535):Mal fait dame qui plus a cierUn gangleor cun bel parlier;Dame qui aime gengleorFait de chevalier gougleor,Car cascuns hom pener se soeltQuil soit tels con sa dame voelt.Eracles na de cest curePor cest usage, qui li dureEt li dura son a.

    Mal faz uma dama preferir umcavaleirocharlato a um honrado. Uma dama que amacharlates torna os cavaleiros enganadores, pois normal que cada um se esforce paraestar em conformidade com os desejos de sua senhora. Eracle no estava interessadoem uma mulher devido a este hbito, que ela mantm e manter sempre.

    A normalidade comportamental referida por Gautier provinha do amor corts,fenmeno que deixava os homens hipnotizados pelas damas. Alguns dosdesdobramentos dessa submissoa escolha delas por cavaleiros charlates e suaconsequente influncia negativa sobre os honrados refletem uma postura que no

    era rara em meados do sculo XII.69

    Os homens acreditavam que as mulheres tinham uma parcela significativa deresponsabilidade na conduta dos cavaleiros; elas deveriam gui-los ao verdadeiro ethoscavaleiresco, sempre em busca de aperfeioamento e de ascenso. Os mencionadoscavaleiros charlates, representantes da militia saecularis, eram criticados por SoBernardo, como dissemos. A milcia de Deus distinguia-se completamente damilcia do mundo:

    69PASTOUREAU, Michel.No tempo dos cavaleiros da Tvola Redonda. Sculos XII e XIII, op. cit., p. 144-145.

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    Scacos et aleas detestantur; abhorrent venationem, nec ludicra illa avium rapina, utassolet, delectantur. Mimos et magos et fabulores, scurrilesque cantilenas, atque ludorumspectacula, tamquam vanitates et insanias falsas respuunt et abominantur.

    [Os templrios] detestam o xadrez e o jogo de dados. Odeiam a caa e tampouco sedeleitam com a captura de aves de rapina [a falcoaria], como costume hoje. Rejeitam eabominam os tolos, os ludibriadores, as canes luxuriosas e os espetculos ldicos porconsider-los vos e falsas loucuras.70

    Gautier representou Eracle como um instrumento de Deus na Terra, o escolhido porEle para recuperar a relquia da Santa Cruz e a cidade de Jerusalm. Esse lder daCavalaria crist lutava em nome do Altssimo e da representante dEle na terra, aIgreja. Nas palavras do clrigo arrasiano, Eracle trouxe paz para a Santa Igreja econcedeu grande honra a ela devido captura da Cruz de Nosso Senhor (vv. 2900-2902).

    Embora em seu adoubement inexistissem elementos religiosos, ele era um cavaleiro aservio do clero. No sculo XII, a Cavalaria era o brao direito da Igreja, comoproferiu Keen,71sentido notado nos versos que Gautier escreveu no fim do romance:

    graas sua grande Cavalaria [de Eracle], a Santa Igreja agora floresce (vv. 6513-6514). O heri era uma espcie de cavaleiro perfeito nas palavras do autor, omais sbio cavaleiro que j tinha montado um cavalo (vv.5630-5631).

    ***

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    SO BERNARDO DE CLARAVAL. Las glorias de la nueva milicia.A los caballeros templarios, op.cit., p. 508-509.71KEEN, Maurice. La Caballera, op. cit., p. 17.

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