abreu, regina. o livro que abalou

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services custom services Article in xml format Article references How to cite this article Access statistics Cited by SciELO Similars in SciELO Automatic translation Send this article by e-mail História, Ciências, Saúde-Manguinhos Print version ISSN 0104-5970 Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.5 suppl.0 Rio de Janeiro July 1998 doi: 10.1590/S0104-59701998000400006 O livro que abalou o Brasil: a consagração de Os sertões na virada do século* The book that shook Brazil: the acclaim of Os sertões at ABREU, R.: O livro que abalou o Brasil: a consagração de Os sertões na virada do século. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, vol. V (suplemento), 93-115 julho 1998. Como e por que Os sertões de Euclides da Cunha transformaram- se no maior best-seller da virada do século? De que modo esse livro abalou o Brasil, modificando valores e pontos de vista sobre o próprio país. Para responder a essas indagações, a autora analisa as críticas consagradoras de José Veríssimo, Araripe Júnior e Sílvio Romero, responsáveis pela transformação de um anônimo engenheiro no mais festejado escritor da capital federal. Quem eram e o que diziam esses críticos? Que valores foram afirmados com a consagração de Os sertões? Em que direção foi reiterado um ponto de vista singular sobre o Brasil? Que ponto de vista era esse? Tomando as críticas como referência, a autora procura desvendar o significado social da novidade advinda com a publicação de Os sertões, chamando a atenção para o que havia de promissor no olhar do escritor sobre a tragédia de 17/3/2010 História, Ciências, Saúde-Manguinhos… http://www.scielo.br/scielo.php?scrip… 1/15

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    Histria, Cincias, Sade-ManguinhosPrint version ISSN 0104-5970

    Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.5 suppl.0 Rio de Janeiro July 1998

    doi: 10.1590/S0104-59701998000400006

    O livro que abalou o Brasil: a

    consagrao de Os sertes na virada

    do sculo*

    The book that shook Brazil: the

    acclaim of Os sertes at

    ABREU, R.: O livro que abalou

    o Brasil: a consagrao de Ossertes na virada do sculo.

    Histria, Cincias, Sade -Manguinhos,

    vol. V (suplemento), 93-115 julho1998.

    Como e por que Os sertes deEuclides da Cunha transformaram-se no maior best-seller da viradado sculo? De que modo esse livroabalou o Brasil, modificandovalores e pontos de vista sobre oprprio pas. Para responder aessas indagaes, a autoraanalisa as crticas consagradorasde Jos Verssimo, Araripe Jnior eSlvio Romero, responsveis pelatransformao de um annimoengenheiro no mais festejadoescritor da capital federal. Quemeram e o que diziam essescrticos? Que valores foramafirmados com a consagrao deOs sertes? Em que direo foireiterado um ponto de vistasingular sobre o Brasil? Que pontode vista era esse?

    Tomando as crticas comoreferncia, a autora procuradesvendar o significado social danovidade advinda com apublicao de Os sertes,chamando a ateno para o quehavia de promissor no olhar doescritor sobre a tragdia de

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  • the turn of the century

    * Este artigo parte da tese de doutoramento defendida no Programa de Ps-Graduao em

    Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e editada sob o ttulo

    O enigma de Os sertes, Rocco/Funarte, 1998.

    Regina Abreu

    Doutora em antropologia social Rua Dona Mariana 113/209

    22280-020 Rio de Janeiro - RJ Brasil

    E-mail: [email protected]

    escritor sobre a tragdia deCanudos.

    PALAVRAS-CHAVE: Euclides daCunha,

    Os sertes, rebelio de Canudos,crtica literria.

    ABREU, R.: The book that shook Brazil: the acclaim of Os sertesat the turn of the century.

    Histria, Cincias, Sade -Manguinhos, vol. V (supplement), 93-115 July1998.

    How and why did Euclides daCunhas Os sertes become the numberone best-seller in Brazil at thedawn of the 20th century? Howdid this book shake Brazil at thattime, altering values andviewpoints about the countryitself? To answer these questions,the article analyzes reviews byJos Verssimo, Araripe Jnior,and Slvio Romero, responsible forturning an anonymous engineerinto the most celebrated authorin the nations capital. Who werethese critics? What did they haveto say? What values wereaffirmed through this acclamationof

    Os sertes? What view of Brazilwas defended? Using theseacclamatory reviews as a centralreference point, the article seeksto uncover the social significanceof the new ideas found in Cunhasbook and call attention to thefertile and promising aspectsfound in this writers interpretationof the Canudos tragedy.

    Keywords: Euclides da Cunha, Ossertes, rebellion in Canudos.

    De Euclides da Cunha se pode dizer que

    se deitou obscuro e acordou clebre

    com a publicao de Os sertes.

    Merecia-o.

    Slvio Romero

    Quando Slvio Romero, em ensaio sobre Euclides da Cunha para o seu Histria daliteratura brasileira, referiu-se sbita consagrao de Euclides da Cunha, noestava abusando da re-trica. De fato, a consagrao do escritor, com olanamento de seu primeiro livro, Os sertes, foi um fato retumbante, sem paralelosna histria da literatura brasileira.

    Hoje, passados quase cem anos daquele momento inaugural, naturalizamos algumas

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  • j , p q q g , gdas verdades expressas na obra, perdendo de vista um tempo em que foi necessriouma luta para afirm-las. O estatuto de grandeza de uma obra que se transformouem monumento nacional tem ofuscado a percepo do esforo para impor asnovidades nela contidas. A anlise dos chamados grandes momentos da histria deum pas ou da humanidade, quando um indivduo singular descobre ou inventa algoconsiderado absolutamente novo e revolucionrio, til para entendermos umpouco mais sobre a sociedade em que ocorrem. Tanto as invenes quanto seusautores so parte intrnseca dos contextos sociais em que nascem. O momento decriao e consagrao de Os sertes faz parte do rol dos grandes momentos dahistria do Brasil. No por acaso que, percorrendo quase 100 anos da produointelectual do pas, o encontramos citado inmeras vezes como o "livro nmero um"e seu autor como um dos escritores mais reverenciados do pas.

    O momento da transfomao dessa obra em monumento nacional e de seu escritorem grande escritor nacional expressa tambm uma mudana no plano dos valores dasociedade em que ela ocorreu. A anlise do tnue limite que separou o antes e odepois da consagrao de Os sertes revela um conjunto de fatos e situaes emque no apenas um escritor e sua obra passaram a ser reverenciados, mas tambmnovos valores, que j estavam sendo gestados numa ordem anterior e que, a partirde ento, puderam ser afirmados.

    Como um escritor estreante podia, de uma hora para outra, fazer grande sucesso nacapital federal? Em que consistia esse sucesso narrado pelos bigrafos? Quais asagncias que tiveram papel decisivo na consagrao de Os sertes ? Sob quaiscritrios e por quem o livro foi consagrado? Que valores foram afirmados com aconsagrao de Os sertes?

    Canudos, a segunda e trgica descoberta do Brasil

    Efetivamente, a guerra de Canudos representou um divisor de guas no contexto deum pensamento social sobre o Brasil. Nunca mais o pas foi o mesmo. Canudos, comseu horror e com sua potncia trgica, despertou intensa reflexo. Percorrendo osautores e intelectuais do perodo, percebe-se que foram poucos os que no sereferiram ao acontecimento: de Coelho Neto a Machado de Assis passando por NinaRodrigues, de mdicos a jornalistas passando por bacharis em direito, enfim,Canudos foi um dos temas mais discutidos da sociedade brasileira da virada dosculo passado e o evento jornalstico mais importante do perodo.

    A produo discursiva em torno de Canudos no tem nada de linear, pelo contrrio,ela sinaliza inquietaes, perplexidades, dvidas, mudanas contnuas de opinies.Euclides da Cunha e Machado de Assis, por exemplo, num primeiro momento, quandoforam informados da existncia de um arraial no interior da Bahia liderado por umbeato que se recusava a pagar os impostos e a aceitar a autoridade do governorepublicano, escreveram artigos onde condenavam Antnio Conselheiro e seusseguidores. Tanto um quanto o outro eram de opinio que as autoridades gover-namentais deviam combater aqueles que consideravam "fanticos". Com odesenrolar dos acontecimentos e, particularmente no caso de Euclides da Cunha,com a viso do fim da guerra, os dois intelectuais tenderam a mudar de opinio,embora ainda mantivessem muitos preconceitos com relao aos seguidores deAntnio Conselheiro e a ele prprio.

    Com o fim da guerra essa produo discursiva tendeu a aumentar. Jos Calasansarrolou uma lista surpreendente de autores direta ou indiretamente envolvidos naguerra e que, nos ltimos meses de 1897, teceram comentrios, escreveram artigosou publicaram livros sobre Canudos. Destes destacaram-se trs grupos: militares,estudantes de medicina e jornalistas. Entre os militares, estavam Dantas Barreto,Duque Estrada Macedo Soares e Antnio Constantino Nri. Entre os estudantes demedicina, Martins Horcades e Francisco Mangabeira. Entre os jornalistas, FvilaNunes, Manuel Bencio e Llis Piedade.

    Dos militares, a produo maior coube ao ento tenente-coronel Dantas Barreto,que comandara uma das brigadas da expedio chefiada por Artur Oscar, a quarta eltima expedio, que decidiu a sorte de Canudos. No incio de 1898, publicou o livroltima expedio a Canudos, destacando o ponto de vista de um militar envolvidocom a guerra como oficial combatente. Em linhas gerais, critica a conduo dacampanha.1 Ainda em 1898, o ponto de vista militar foi tambm expresso peloparaense Constantino Nri, que integrou a coluna Savaget, no livro A quartaexpedio contraCanudos. O terceiro militar, o tenente de infantaria Henrique DuqueEstrada Macedo Soares publicou seu livro muito mais tarde, em 1902, com o ttulo Aguerra de Canudos.

    Um dos estudantes de medicina, Alvim Martins Horcades, publicou em 1899descrio de uma viagem a Canudos e uma srie de artigos que traziam vriasdenncias, incluindo as de degolamentos dos jagunos. O outro, Mangabeira,publicou em 1900 um livro potico sobre o que havia presenciado, intituladoTragdia pica.

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  • Os jornalistas tambm aproveitaram suas observaes in loco para redigir livrossobre o polmico tema. O pernambucano Manuel Bencio, que escrevia para o Jornaldo Commercio, pretendeu fazer uma "crnica histrica e de costumes sertanejos",editando seu livro, O rei dos jagunos, em 1899. De acordo com Calasans, a vidacotidiana do interior foi bem retratada nas pginas de Manuel Bencio e constitui umdocumento de quem viu uma das fases mais difceis da luta. O representante dojornal fluminense Gazeta de Notcias, Jlio Procpio Fvila Nunes, chegou ao Vaza-Barris quando a guerra se aproximava do final. Calasans (s.d.) observa que

    suas reportagens revelam um jacobino, florianista dos mais exaltados,proclamando-se amigo ntimo dos chefes militares e sugerindo medidasdrsticas para liquidar a jagunada monarquista. Terminada acampanha, props-se a escrever um livro para mostrar que ossertanejos no eram monarquistas, por lhe faltarem as mnimascondies para tanto. O trabalho foi anunciado em 1898. Sairia emfascculos.

    Calasans no tem informaes sobre se a obra foi concluda e conseguiu recuperarapenas o terceiro fascculo, intitulado A guerra de Canudos, que contm vriascartas de conselheiristas, consideradas boas contribuies para pesquisadores eestudiosos. O terceiro jornalista, Llis Piedade, representante do Jornal de Notciasde Salvador, reuniu num mesmo volume, que publicou em 1901, seus artigos para aimprensa e o relatrio do Comit Patritico da Bahia, organizao criada para ajudarmilitares e suas famlias, que amparou, depois, os jagunos vencidos. O relatrio considerado uma das melhores fontes para a histria da guerra, sobretudo no quese refere aos jagunos.

    Outros estudiosos se voltaram para o tema sem que tivessem presenciado a guerra,conhecido o Conselheiro ou mesmo a regio. Fizeram estudos especficos utilizandoo instrumental cientfico da poca. Um dos que mais se notabilizou foi NinaRodrigues. Catedrtico da Faculdade de Medicina na Bahia, iniciador das pes-quisassobre o negro brasileiro, mestre de psiquiatria, preocupava-se com asmanifestaes de "loucura das multides". Assim, logoaps o fim da guerra, em 1ode novembro de 1897, Nina Rodrigues publicou na Revista Brazileira o artigo Aloucura epidmica de Canudos, em que diagnosticava o Conselheiro. Segundo ele, obeato sofria de "psicose sistemtica progressiva", era "indivduo degenerado",portador de "delrio crnico". Mais tarde, coube-lhe diagnosticar o crnio de AntnioVicente. Declarou tratar-se de "crnio normal", mas confirmou o diagnstico de"delrio crnico de evoluo sistemtica".

    Outro estudioso que escreveu sobre a guerra foi Aristides Augusto Milton, que porsolicitao do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, do qual era scio, redigiuuma memria sobre a guerra, publicada na revista do instituto em 1902, sob o ttuloA guerra de Canudos. Relata Calasans (idem) que,

    como baiano, Aristides procurou, numa primeira produo de carternitidamente histrico, defender sua terra natal da pecha demonarquista. As origens do Conselheiro e do seu movimento soexpostas em ordem cronolgica, como convinha a uma memria doinstituto, servindo-se do autor de documentao que lhe teria sidofornecida pelo governador Lus Viana.

    Outro baiano legou s geraes que lhe sucederam um estudo sobre Canudos. Decarter altamente panfletrio, procurava lanar sobre os ombros de Prudente deMorais e Lus Viana a responsabilidade pelos acontecimentos. De autoria de CsarZama, poltico baiano, adversrio do governador Lus Viana, constitui no entenderde Calasans "a mais violenta publicao existente na bibliografia no euclidiana".

    Como resultado de cuidadosa reflexo sobre o fenmeno, aps a publicao dealguns artigos no jornal do qual era diretor, O Comrcio de So Paulo, o escritorAfonso Arinos editou, em 1898, o livro Os jagunos, com o subttulo novelasertaneja. Editado a partir de outubro de 1897 em fascculos no jornal, no anoseguinte, o material foi reunido em livro em edio do prprio jornal, com tiragem deapenas cem exemplares.2 A contribuio de Afonso Arinos foi bastante singular.Escritor mineiro, Arinos dedicava grande parte de suas novelas ao tema do interior,dos sertes mineiros. Em 1896, j havia publicado em O Estado de Minas, de OuroPreto, contos sertanejos. Em 1898, ao publicar o livro Os jagunos - novelasertaneja, reunindo os artigos sobre a guerra de Canudos, lanou outro, sobrelendas e histrias sertanejas, intitulado Pelo serto. Afonso Arinos, diferente dosdemais autores, inseria-se, portanto, numa tradio com longa vida no Brasil, atradio da literatura sertaneja. O enfoque literrio de Arinos contrastava com aperspectiva dos analistas de guerra. De modo geral, a tnica destes ltimosconsistiu na afirmao do discurso do vencedor, fora umaou outra exceo, como ado estudante de medicina que fez algumas denncias de degolas de jagunos e a dojornalista baiano, Llis Piedade, que sugeria a criao de uma organizao que

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  • contemplasse as famlias dos mortos na guerra, incluindo os jagunos.3

    Toda essa enorme produo discursiva em torno de Canudos demonstra que o pasvivia em clima de inquietao com o trauma provocado pela guerra, procurando umainterpretao plausvel para a sucesso de enganos que redundou na tragdia deCanudos. O pas ansiava por compreender a si prprio.

    A gestao de Os sertes

    Diferentemente dos jornalistas, mdicos e militares que estiveram em Canudos comocorrespondentes durante a guerra, Euclides da Cunha no publicou suas impressessobre a tragdia de Canudos logo aps o ocorrido. Pelo contrrio, foi dos ltimos afaz-lo. Entretanto, nenhuma das obras publicadas at ento teve o impacto e arepercusso que viriam a ter Os sertes.

    No dia 9 de outubro de 1897, Euclides chegou em Salvador vindo do arraial deCanudos onde havia presenciado o fim da guerra. De l, seguiu para o Rio de Janeiropublicando no Jornal do Commercio o plano de um livro intitulado A nossa Vendia,em duas partes: A natureza e O homem. Ainda em outubro, j em So Paulo,Euclides requereu licena de seu cargo de engenheiro-ajudante na Superintendnciade Obras Pblicas de So Paulo. Foi descansar na fazenda do pai em Belm doDescalvado, onde passou cerca de trs meses revisando e ampliando o planooriginal do livro. Decidiu ento mudar o ttulo de A nossa Vendia para Os sertes.Em janeiro de 1898, publicou em O Estado de S. Paulo o artigo Excerto de um livroindito. Tratava-se do famoso trecho sobre o sertanejo que mais tarde figuraria emOs sertes no Captulo III da Terceira Parte (O homem).

    A mudana de ttulo no era um simples detalhe. Euclides parecia optar por radicalmudana de perspectiva. Diferente dos autores que se dedicaram a analisar aguerra, Euclides tomava outro rumo, que de certo modo o aproximava de AfonsoArinos, mas que tambm dele se distinguia. A mudana de ttulo expressava que olivro no trataria apenas da guerra de Canudos, nem ficaria circunscrito ao terrenoliterrio. Pelo contrrio, o relato do conflito configurava um mote para que Euclidesrefletisse sobre outros temas, principalmente de carter cientfico: geologia,botnica, geografia, sociologia, costumes, tradies e folclore. Com a diviso doplano do livro em duas partes, A natureza e O homem, ficava mais uma vezestampada a primazia das cincias da natureza no interesse de Euclides. Comeavatambm a aparecer um objetivo mais amplo: o estudo, a partir de bases cientficas,dos sertes.

    Esse detalhe aparentemente insignificante de mudana do ttulo do plano do livrofaria toda a diferena entre Euclides e os demais narradores da epopia deCanudos, demonstrando que j estava presente a inteno de fazer um livrocientfico e sobretudo um livro sobre os sertes. Em outras palavras, um livrocientfico sobre os sertes.

    preciso ter em mente que no final do sculo passado sertes significava umimenso territrio pouco explorado situado costa adentro. A melhor definio erainterior por oposio a litoral. Os relatos da poca so unnimes em apontar o totaldesconhecimento em que vivia a populao do litoral com relao ao interior doBrasil que continuava pouco habitado, com comunicaes precrias e ainda semmapas de boa qualidade que descrevessem o curso dos rios, a geologia, o relevo, aflora, a botnica da regio e muito menos as caractersticas dos agrupamentospopulacionais.

    At meados do sculo XIX, havia duas grandes tradies de relatos sobre ossertes. Uma ligada literatura de fico e outra, a expedies de cunho cientfico.Na primeira incluam-se os autores que tomavam os sertes como tema paraescrever novelas, contos, romances de folhetim, peas de teatro; na segundaenglobavam-se viajantes estrangeiros, militares e funcionrios do governo quepercorriam regies longnquas para informar ao governo e embasar polticas eestratgias de ao. Essas duas grandes tradies partiam de preocupaesdiversas. Enquanto a primeira era marcada por questes de ordem literria,procurando criar estilo e temtica prprios, a segunda definia-se pela ordem doconhecimento, tivesse ele fins de interveno prtica e poltica ou de agregao denovos dados ao conhecimento das regies do globo terrestre.

    Ao privilegiar, a partir do tema Canudos, um novo enfoque sobre os sertes,Euclides da Cunha dava um passo adiante para enfrentar um tema pouco exploradoat ento e absolutamente necessrio para o projeto da nao republicana: o temado territrio.

    Outro aspecto interessante relativo ao movimento de criao de Os sertes foi ofato de Euclides ter trabalhado durante cinco anos no livro antes de edit-lo. Em1898, ele foi designado pela Superintendncia de Obras Pblicas de So Paulo parareconstruir uma ponte de ferro erguida em 1896, que havia rudo aps enchente

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  • numa pequena cidade do interior de So Paulo, So Jos do Rio Pardo. Como otrabalho de reconstruo da ponte exigia presena permanente no local, Euclidesmandou erguer uma pequena barraca com telhado de zinco sombra de umapaineira, que passou a servir de escritrio tanto para os assuntos de engenhariacomo para os intelectuais. Durante trs anos, na cabana de So Jos do Rio Pardo,ele refletiu sobre os acontecimentos que presenciou como reprter em Canudos. Apartir das anotaes de seu diriode campo, procurou pesquisar outras fontes paraenriquecer as informaes recolhidas nos sertes baianos e as pesquisas realizadasem Salvador. Isolado e interagindo com a literatura cientfica da poca, oengenheiro seguia, de maneira intuitiva, o caminho do cientista que rev os dados luz de novas teorias para avanar e produzir novo conhecimento. A ponte era ametfora de Canudos, pois, tanto numa situao como na outra, havia algo areconstruir. A atividade de engenheiro nesse caso no era incompatvel com a deescritor. Nas duas, imperava a cincia.

    Durante trs anos, Euclides trabalhou obstinadamente nas duas atividades,permanecendo mais tempo no pequeno barraco do que em casa com a famlia. Aofinal de 1901, dava por terminado o trabalho de reconstruo da ponte e do livro.Para um engenheiro que nunca havia escrito um livro, no era fcil debutar naliteratura, campo muito disputado e ainda dominado por pequeno grupo de livreiros,editores e escritores. Euclides no era um freqentador das rodas literrias da ruado Ouvidor, no tinha proximidade com nenhum escritor consagrado. Sua nicaopo era editar seu livro em fascculos por algum jornal conhecido. Deixou osmanuscritos em poder de Jlio de Mesquita, de O Estado de S. Paulo, enquanto seocupava com a mudana de So Jos do Rio Pardo para So Carlos, para onde aSuperintendncia de Obras Pblicas do Estado de So Paulo o designara. Emseguida foi para Lorena. Longos seis meses se passaram desde o encontro deEuclides com Jlio de Mesquita. Retornando redao do jornal, encontrou seupacote de originais no mesmo lugar em que o deixara. Decepcionado, resolveuprocurar algum conhecido entre os escritores da capital federal. Foi desse modo queconseguiu do amigo Garcia Redondo uma carta apresentando-o a Lcio deMendona, no Rio de Janeiro, por intermdio de quem conseguiu que a EditoraLaemmert publicasse o livro com a condio de que ele custeasse a edio. Aeditora no queria correr o risco de editar o livro de estria de um engenheiro ejornalista que se aventurava na literatura.

    De regresso a So Paulo, Euclides passou todo o ano de 1902 fiscalizando obras doestado. No final desse ano, o engenheiro recebeu do editor, pelo correio, o aviso deque poderia vir ao Rio de Janeiro assistir ao lanamento do livro. Euclides chegou rua dos Invlidos, onde ficava a editora, e encontrou alguns exemplares da primeiraedio de Os sertes sobre o balco. Relatam os bigrafos que, bastante inseguro,ainda procurou, em vo, impedir ltima hora o lanamento do livro. Ao folhe-lo,percebia grandes incor-rees e temia o fracasso. Voltou para Lorena, seu posto naocasio, bastante temeroso, mas, pouco tempo depois, recebeu carta do editoranunciando que o livro era um grande sucesso de vendas.

    A consagrao de Os sertes

    Entre os mecanismos de consagrao das obras literrias no perodo estava a crticaliterria. Trs crticos se destacavam procurando inovar e afirmar uma crtica maisconsistente, calcada em critrios cientficos: Jos Verssimo, Araripe Jnior e SlvioRomero. Esses trs intelectuais tinham muitos pontos em comum e tambm muitasdiferenas. Com relao trajetria social, todos os trs fizeram o mesmomovimento de migrao do interior para a capital, o Rio de Janeiro, no litoral.Tiveram que lutar por espao numa sociedade onde os crculos eram fechados eonde a vida literria ficava circunscrita a cafs e livrarias da rua do Ouvidor. Commaior ou menor intensidade dependendo do caso, os trs estavam preocupados emafirmar novos critrios para o julgamento das obras literrias que se pautassem porargumentos cientficos e no pela sociedade do elogio mtuo. A bandeira da cinciaos irmanava e isso se expressaria na consagrao de Os sertes. O livro de Euclidesda Cunha parecia ser uma obra altura de suas pretenses modernizadoras.

    O primeiro ensaio crtico partiu de Jos Verssimo (1910, p. 73) no Correio daManh; pequeno, mas contundente. Entre outras observaes, Verssimo eradefinitivo ao considerar

    O livro do Sr. Euclides da Cunha ao mesmo tempo o livro de umhomem de cincia, um gegrafo, um gelogo, um etngrafo; de umhomem de pensamento, um filsofo, um socilogo, um historiador; e deum homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista, quesabe ver e descrever, que vibra e sente tanto aos aspectos danatureza como ao contato do homem, e estremece todo, tocado at aofundo da alma, comovido at s lgrimas, em face da dor humana,venha ela das condies fatais do mundo fsico, as secas que assolamos sertes do Norte brasileiro, venha da estupidez ou da maldade dos

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  • homens, como a Campanha de Canudos.

    Pouco depois, em maro de 1903, o Jornal do Commercio estampava a crtica deAraripe Jnior que, alm de mais longa e elaborada, era tambm mais efusiva eentusiasmada. Dizia:

    Criticar esse trabalho, no mais possvel. A emoo por ele produzidaneutralizou a funo da crtica. E, de fato, ponderando depoiscalmamente o valor da obra, pareceu-me chegar concluso de que Ossertes so um livro admirvel, que encontrar muito poucos, escritosno Brasil, que o emparelhem - nico no seu gnero, se atender-se a querene a uma forma artstica superior e original, uma elevao histrico-filosfica impressionante e um talento pico-dramtico, um gnio trgicocomo muito dificilmente se nosdeparar em outro psicologista nacional.O sr. Euclides da Cunha surge, portanto, conquistando o primeiro lugarentre os prosadores da nova gerao.

    Para Araripe, pela primeira vez aparecia um trabalho interessante partindo do temade Canudos. De tal modo considerava de m qualidade tudo o que havia sidoproduzido at ento sobre as "lendas do Conselheiro", que j havia desistido deprestar ateno a tal assunto quando apareceu Os sertes de Euclides da Cunha.Citava o trabalho do major Barreto Dantas que, segundo ele, no passaria de uma"exposio de fatos", o livro do reprter Manuel Bencio, que denominava "anedotaspetalgicas" e, por fim, o "romance histrico detestvel" de Olvio de Barros. Essasleituras tinham deixado nele uma "espcie de plenitude gstrica". Diferentemente detodos esses trabalhos, considerava Os sertes uma obra comparvel a MonteCristo, de Dumas, e Mistrios do povo, de Eugnio Sue.

    Como Jos Verssimo, Araripe Jnior sublinhava a idia de totalidade encontrada nolivro, resultado da soma da arte com a cincia, do pico com o trgico e da emoocom a razo. O escritor produzira uma obra cientfica., uma "obra histrica",mantendo "a continuidade da emoo, sempre crescente, sempre variada, que soprarija, de princpio a fim, no transcurso de 634 pginas..." Emoo e razo, arte ecincia... o crtico considerava o livro fascinante, feliz resultado de um "conjunto dequalidades artsticas e de preparo cientfico".

    O que impressionava ambos os crticos era no apenas a utilizao correta dosmodernos mtodos cientficos, mas principalmente a conjugao da cincia com aarte. O livro de estria de Euclides da Cunha era uma obra de "elevao histrico-filosfica impressionante". Mas o que despertava a ateno de Araripe era que Ossertes iam alm em seu relato cientfico, incorporando tambm a emoo e asensibilidade. Seu autor emergia como um misto de cientista e poeta. Para Araripe,s algum com "alma de poeta" poderia ter aliado to bem os dois elementos: acincia e a literatura.

    Ao sublinharem a idia de uma totalidade presente em Os sertes, tanto JosVerssimo quanto Araripe Jnior permaneciam nos limites da concepo romntica,evocando a noo de organismo. O livro era enaltecido por expressar uma totalidadecujas metades eram a cincia e a arte (literatura); a razo e a emoo; o pico e otrgico. Euclides da Cunha era alinhado a autores clssicos da literatura romntica,como Jules Michelet.

    Particularmente, a crtica de Araripe Jnior seguia outros fios condutores. Emprimeiro lugar, o argumento de autoridade, que ele acreditava ter em quantidadesuficiente para julgar a obra deEuclides pelo fato de ser "um filho do Norte", um"cearense", como o personagem central da tragdia de Canudos, AntnioConselheiro, uma "pessoa familiarizada com os sertes da Bahia, de Pernambuco, doCear" e que, portanto, seria capaz de "conhecer no seu justo valor" a realidadeanalisada pelo escritor. "O escritor destacou o jaguno com rara percia daopacidade do ambiente, no qual ele vivia mergulhado, e que somente ns, filhos doNorte, e as pessoas familiarizadas com os sertes da Bahia, de Pernambuco, doCear, podamos conhecer no seu justo valor." A esse argumento somava-se o dacincia. O texto de Euclides da Cunha continha valor especial por se tratar doresultado de pesquisa feita no prprio local, o que no era habitual na ocasio.Euclides da Cunha era um pesquisador "que viu", "que experimentou as agruras daguerra", refletindo sobre uma realidade que observou. O fato de haver presenciadoos fatos como reprter e de ter utilizado moderno instrumental cientfico erareiterado diversas vezes como qualidade importante. "Ele viu, segurou, surpreendeuem flagrante, em todas as suas variedades, descrevendo-os agora na mais belasntese que se tem feito no Brasil dos habitantes dos sertes, esses membros deuma sociedade, conforme diz o prprio autor, de todo estranha ao Brasil organizadoem nao." Ou ainda: "O Sr. Euclides da Cunha observou de perto, estudou comofilsofo, viu os efeitos..."

    O fato de Euclides da Cunha descrever uma campanha militar sendo ele mesmomilitar era tambm mencionado como fator de competncia comprovada: "O autor

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  • de Os sertes foi militar e deve saber o que escreveu." Esse era, alis, um aspectodecisivo do livro. Euclides analisava criticamente a ao militar em Canudos, e ofato de o livro ter sido publicado em 1902, cinco anos aps a tragdia de Canudos,vinha reavivar no Exrcito brasileiro uma lembrana bastante indesejada. Tinhaficado visvel perante a opinio pblica o desgaste dessa ao militar.4

    Portanto, ao lanar Os sertes passados cinco anos da tragdia, Euclides abria denovo a cortina de um espetculo que para muitos teria sido melhor manter noesquecimento. O escritor temia a reao dos militares, como expressou em seudirio. Entretanto, fora um ou outro caso isolado, os militares preferiram o silncio.O fato de ter sido egresso do Exrcito era importante para a consagrao deEuclides. Aos olhos de crticos como Araripe, Euclides tinha conhecimento de causae a "autoridade dos fatos". Sobre esse ponto o prprio escritor assim se referiu:

    Devia vir de militar a contradita mais bem acentuada ao livro que fuiobrigado a escrever sobre a lastimvel campanha de Canudos. Quisaparecer s, absolutamente isolado na grande fraqueza do meu nomeobscuro diante dos que compartiam aquela luta. Eapareci s. Noapareceram, porm, os protestos. No podiam aparecer: desafiariamimprudentemente a rplica inflexvel dos fatos.5

    A interpretao de Araripe: matriz para uma representao do Brasil

    Essas duas primeiras crticas, de Jos Verssimo e de Araripe Jnior, desempenharamo importante papel de guindar o livro de estria de Euclides da Cunha s mais altasposies. O prprio Euclides reconheceu esse fato. Ao ler a primeira parte do ensaiode Araripe, Euclides comentou com amigos ter sado da redao do jornal ondetrabalhava "com o enorme estonteamento de um recruta transmudadorepentinamente num triunfador". Segundo ele, o ensaio de Araripe tinha tidotamanha repercusso que "no dia seguinte" ele, "que at ento era um engenheiroletrado, tinha se transformado em escritor".

    No por acaso que o autor de Os sertes se referia particularmente ao ensaio deAraripe. Mais denso que o de Jos Verssimo, o texto de Araripe extrapolava afuno da crtica para desenvolver uma teoria sobre o Brasil. Hoje, passado quaseum sculo desse momento inicial, percebemos na formulao de Araripe aspectos deuma interpretao matricial do pas, principalmente no que tange ao predomnioconferido natureza na determinao de uma identidade nacional.

    preciso ter em mente que o pensamento reinante entre as elites na virada dosculo era de que a natureza devia ser transformada pelas foras do progresso e dacivilizao. Os engenheiros, como Euclides da Cunha, eram agentes particularmenteimportantes neste processo. Munidos de instrumental tcnico e cientfico, atribuama si mesmos a tarefa de transformar as paisagens selvagens em templos decivilizao, construindo pontes, estradas, vias frreas e instalando estaestelegrficas para unir os diversos pontos do pas. Para grande parte das elitesintelectuais e polticas, a imagem que se queria ver identificada com a nao era ada prosperidade e da aquisio do padro europeu de civilizao. Estas metasestavam corporificadas por toda a parte: nas reformas urbanas que alargavamavenidas e edificavam prdios em estilo neoclssico, nas teorias doembranquecimento que visavam eliminar as marcas da selvageria e da brbarie ecriar um tipo novo, o brasileiro. Em linhas gerais, esse pensamento identificava anatureza como um universo a ser controlado pelas foras da civilizao,desprezando os povos que se deixariam "dominar" por ela.

    certo, entretanto, que mesmo neste contexto, alguns escritores dedicaram-se aglorificar a natureza. Jos de Alencar o exemploemblemtico. Mas, neste caso anatureza aparecia de forma profundamente idealizada, no entrando em contradiocom os objetivos de sua domesticao. Quando Araripe Jnior emite suas opinies arespeito do livro de Euclides da Cunha, fica claro que tanto Araripe quanto Euclidesesto se referindo no a uma concepo idealizada de natureza, mas a umatentativa de esboo cientfico de suas manifestaes. Araripe reitera por diversasvezes que o livro de Euclides era o livro de algum que pesquisou, esteve no local,viu o que se passava. E a partir dessa perspectiva que esse algum traou "amais bela sntese" dos "habitantes dos sertes". Em seu ensaio crtico, Araripedesenvolve uma teoria interpretativa do Brasil atribuindo valor positivo naturezaem sua forma "selvagem", "intocada" e "inculta". Esse argumento era novo epoderoso. Araripe destacava de Os sertes no as teses civilizatrias de Euclidesque aparecem em muitas passagens, mas sobretudo a tese de valorizao danatureza para, por meio desta, construir uma nova sociedade, uma civilizaoautenticamente nacional.6

    Um dos fios condutores do ensaio crtico de Araripe dizia respeito ao papel do meiofsico na narrativa euclidiana. O crtico afirmava encontrar em Euclides um aliado nadefesa da tese da determinao do meio fsico na formao nacional e via nas idias

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  • expressas em Os sertes aproximaes com sua teoria da obnubilao braslica,7

    privilegiando o tema da oposio entre os sertes e o litoral como uma dascomprovaes de sua teoria. Os primeiros equivaliam maior proximidade do homemcom a natureza tropical, estando, portanto, mais associados idia de pureza eautenticidade. O segundo equivalia maior proximidade do homem com o exterior, oalm-mar, a Europa civilizada e estava associado idia de contaminao, deinautenticidade por fora da ao de uma realidade estrangeira e de fora. Araripeidentificava-se com a valorizao da produo local, interna, interior, por oposioao que vinha de fora. O tema do nacional reaparecia com vigor e o crtico percebiano livro de Euclides a possibilidade de uma civilizao nacional singular, prpria,autnoma, que viesse "de dentro" do territrio, que fosse produzida por seushabitantes. A terra e a natureza, associadas s idias de pureza e singularidade,representavam a fonte da diferena real sobre a qual podiam ser erigidas as basesdessa civilizao nacional singular. Num pas com muitas misturas, influncias einstabilidades, apenas o meio fsico havia restado como fator original e estvel.

    O crtico emocionava-se com o livro por encontrar nele confirmaes de idias suas,principalmente com relao descrio do jaguno como produto do meio fsico.Desse modo, assinalava: "Terminada a descrio da terra, isto , da regio dassecas, feita a sua histria natural e social, o jaguno salta das pginas do livro

    Foto5

    como um fruto maduro da rvore que o gerou e desenvolveu." A noo romntica deorganismo encontrava-se aqui em sua plenitude. O homem estaria integrado ao meiofsico do mesmo modo que os frutos estariam umbilicalmente ligados rvore que osgerou. A analogia era didtica. Araripe fazia uso de representao muito utilizadapelos cientistas de inclinao romntica: a rvore, modelo por excelncia tanto paraos homens quanto para as sociedades organizadas em naes. Homens e naesdeveriam encontrar em si mesmos a substncia interna capaz de defini-los e de lhesforjar uma identidade.

    Era preciso discernir na natureza os aspectos bons dos maus. Se, por um lado, ossertanejos, mais prximos da natureza eram mais puros e por isso mais prximos dafonte autntica da nacionalidade, por outro, a ao do meio fsico sobre eles podiater efeitos negativos: "a caatinga os fizera dissimulados e tenebrosos". Araripeinvocava o dilema em que se encontravam os intelectuais do perodo. Por um lado,nos costumes brbaros estaria a possibilidade de encontrar a fonte interna, a almada nao. Por outro, nacionalizar os brbaros habitantes do territrio tinha osignificado de civilizar, modificar seus costumes, faz-los progredir para estgiosmais elevados de sociedade. Araripe mostrava-se ambguo, ora criticando, oraelogiando os sertanejos. Seguindo o prprio raciocnio de Euclides, ora eles eramqualificados como "centauros broncos", "Hrcules-Quasmodos", ora como "pobresdiabos", "gente brbara", dominados pela "selvatiqueza de costumes" e at mesmo"vermes dissimulados e tenebrosos". A mesma tenso atravessava o ensaio crticode Araripe e o prprio livro de Euclides da Cunha. Era preciso eliminar o mal, os"vermes dissimulados e tenebrosos", mas, paradoxalmente, era entre essessertanejos que podia ser encontrada a fonte autntica da nacionalidade, a almanacional. Fazer avanar a civilizao representava, portanto, uma ameaa deperda, ao mesmo tempo em que se colocava como tarefa inevitvel.

    Se a terra (o meio fsico) detinha a propriedade de engendrar o homem e deprovocar o fenmeno da obnubilao, o serto adquiria valor adicional na medida emque era associado idia de pureza (natureza). O ritual de ingresso no serto tinhao significado simblico de purificao dos "males" da civilizao. E esse ritual seaplicava duplamente: para os colonos que um dia penetraram as terras do interior el se foram fixando e se misturando aos povos indgenas pela miscigenao; para oprprio Euclides da Cunha que, vindo do litoral, com instrumental analtico queprimava pelo iderio iluminista da civilizao, tinha se deparado com a naturezatropical em seu estado mais puro e com os "brbaros" sertanejos. Araripeencantava-se, de modo especial, com o encontro de Euclides com aquelaspopulaes dos sertes doNorte. Euclides era um escritor obnubilado inserindo-se napeculiar genealogia de Jos de Anchieta e Gregrio de Matos.8

    O aspecto singular que distinguia as populaes dos sertes do Norte de outraspopulaes igualmente "brbaras" explicava-se pelo fenmeno do isolamento, umadas teses de Os sertes. Aps o perodo inicial de povoamento pelos bandeirantesque a desbravaram, a regio dos sertes do Norte, onde se formou o arraial deCanudos, teria ficado isolada durante muitos anos. Aqueles "rudes patrcios dointerior" eram herdeiros dos bandeirantes paulistas que comearam a segregar-se dacivilizao litoral desde que cessou o movimento dos paulistas. O isolamento foivalorizado por Euclides enquanto possibilidade de maior proximidade com a naturezatropical, sui generis, fonte autntica da nacionalidade. Pelo isolamento, as foras danatureza puderam sobressair-se com relao s foras contaminadas econtaminadoras da civilizao estrangeira. Assim, formara-se uma sociedade

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  • peculiar nos sertes. Isolados, os sertanejos foram absorvendo as caractersticasde uma natureza especialmente singular, ao mesmo tempo em que puderamconservar antigas e remotas tradies, principalmente de seus ancestrais indgenas:"essa sociedade movia-se como os rpteis, segundo o feitio do solo; a caatingafazia-se homem ..., o jaguno estava preparado pela natureza". Em concluso,mantivera-se uma sociedade retrgrada, mas no degenerada como a do litoral.Araripe identificava-se com a viso de Euclides da Cunha: era a partir destasociedade retrgrada, mas portadora dos atributos da autntica nacionalidade, quepodia florescer uma civilizao verdadeiramente nacional. Em contraposio, estavaa sociedade do litoral definitivamente perdida, porque por demais contaminada, umasociedade degenerada.

    Em diversas passagens, Araripe assinalava a identidade entre o seu pensamento e ode Euclides, e no disfarava o deslumbramento diante do estilo de Euclides daCunha, citando longos trechos de Os sertes. Entre eles, desperta ateno otrecho em que o curiboca era descrito como produto do mestiamento somado influncia do meio fsico e ao isolamento e representando uma cultura autntica comtradies remotas (hbitos antigos e folclore belssimo). O curiboca, oriundo dosmamelucos, dos "ndios de So Paulo" e da "gente de Joo Ramalho" teria "vacinadotodos os que tiveram que penetrar nos seus domnios. Eram os mais adaptados parao meio. O fazendeiro de gado, o branco no pode dispens-lo". Concordando comEuclides da Cunha, Araripe reiterava a viso de que apesar da derrota final dosadeptos do Conselheiro em Canudos, "o serto saiu vitorioso".

    Para ele, o grande paradoxo consistia em o serto (fonte autntica danacionalidade) no haver sido incorporado ainda nacionalidade. O prprio Exrcitosofria com esse erro histrico: o Brasil no tinha um Exrcito que correspondesse asuas necessidades singulares. O Exrcito do litoral era como a sociedade do litoral,contaminada por uma formao tcnica transplantada de outras sociedades,correspondendo, portanto, a outras necessidades.

    O crtico admitia ainda que a leitura de Os sertes havia provocado "uma revoluoem sua alma": "O autor a conquistara de modo violento e irretratvel. Da pordiante, no li mais, desfilei pelo livro afora dominado pela sensao que seexperimenta percorrendo paisagens abruptas, alcandoras de presepes, de dentro deum comboio, em carreira vertiginosa e sem destino." Euclides da Cunha qualificadocomo o grande psicologista nacional, que apontou o caminho para desvendar a"alma da nao". O livro do grande psicologista nacional saa consagrado, e ossertes do Norte, vitoriosos, associados idia de uma natureza pura e singular.Nesse ponto geogrfico do mapa do Brasil poderia ser encontrada a fonte deautenticidade para construir uma civilizao verdadeiramente nacional. A oposioentre o jaguno e o mulato acirrava e alimentava a oposio entre os sertes e olitoral.

    Por outro lado, o ensaio crtico consagrador retomava a concepo romntica denao, apropriando-se do livro de Euclides da Cunha muito mais por essa via do quepela vertente iluminista do progresso e da civilizao. Para Araripe, Euclides daCunha, formado numa cincia positiva e numa concepo materialista de engenhariae matemtica, ao fazer a viagem purificadora aos sertes do Norte, havia setransformado num escritor obnubilado, cedendo aos encantos da natureza tropical edos "brbaros" sertanejos, e aproximando-se de outra via para pensar o nacional.

    Levada s ltimas conseqncias, o ensaio crtico de Araripe Jnior sinalizava avalorizao de uma proposta de construo da identidade nacional pelo interior.9

    Para aqueles que se identificavam com esse argumento, o litoral e, evidentemente,seu maior smbolo, o Rio de Janeiro, eram vistos como fonte da contaminao e domal, cidade identificada com a colonizao portuguesa, com o Imprio, com asociedade de corte e, sobretudo, com a mistura, a ambigidade, a indefinio -fonte de perigo e degenerao. A oposio entre serto e litoral com a valorizaodo primeiro termo em detrimento do segundo formulada por Euclides em Os sertesencontraria eco em alguns intelectuais do perodo como Slvio Romero. Este ltimono se pronunciou no lanamento do livro, mas desempenhou papel decisivo naconsagrao de Euclides como escritor. Foi ele o responsvel pelo discurso derecepo de Euclides na Academia Brasileira de Letras, quando o autor de Ossertes adentrou o salo da casa dirigida por Machado de Assis dizendo sentir-se"constrangido" de ocupar a cadeira de Castro Alves por en-contrar-se,diferentemente deste poeta, preso ao "terreno maciodas indagaes objetivas". Emoutras palavras, por assumir a identidade de "homem de cincia" numa casa de"homens de letras".

    Os trs crticos mais importantes do perodo evocaram o argumento da cincia comoatributo para a consagrao de Os sertes. Alm disso, julgaram a obra pelo critriodo nacional. Mas, enquanto para Romero a noo de raa era determinanteenquanto fator de diferenciao nacional, para Araripe era a noo de meio fsico ofator primordial. De qualquer modo, ambos enfatizaram a concepo (romntica) de

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  • que a natureza desempenhava papel principal na formao das sociedades e nadeterminao dos homens.

    A chamada "trindade crtica do realismo" - Jos Verssimo, Araripe Jnior e SlvioRomero - mantinha vnculos importantes com os principais focos de renovaointelectual e poltica, compostos de intelectuais com pequeno capital social, emgrande maioria vindos das diversas provncias espalhadas pelo territrio, quetomaram contato com o iderio cientfico em instituies como a Faculdade deDireito de Recife ou a Escola Militar no Rio de Janeiro ou nos livros cientficostraduzidos para o portugus pela Laemmert ou a Garnier. Intelectuais como SlvioRomero, Tobias Barreto e Euclides da Cunha no levantaram pura e simplesmente abandeira da cincia; ela veio articulada com a aspirao de nova postura tica, ovalor do talento e do mrito em substituio sociedade de corte, e tambm com aaspirao de um novo nacionalismo. A literatura devia estar a servio da realidadenacional e os escritores, regidos por novos critrios de consagrao, pautados porcrtica moderna e cientfica. Romero expressava o ponto de vista de muitos dosexcludos da rua do Ouvidor e das principais agncias: arregimentar suas foras nanovidade da cincia e com ela mudar os rumos da literatura. Esse movimento, quese processou a partir da dcada de 1870, foi crucial no apenas para que umengenheiro como Euclides da Cunha viesse a produzir Os sertes, bem como paraque esta obra viesse a ser consagrada. A consagrao de Os sertes significou oexerccio da nova crtica que buscava se afirmar no pas. O criador e a criatura seencontraram. Tanto a crtica moderna e cientfica seria fundamental para aconsagrao de Os sertes quanto o aparecimento de Os sertes seria fundamentalpara o exerccio e afirmao da nova crtica.10

    O livro do engenheiro Euclides da Cunha se tornaria um divisor de guas, um marcono processo de cientifizao. Smbolo de uma proposta de literatura cientfica, s foidestronado no final da dcada de 1930, quando uma nova sociologia comeou a serproduzida no pas. At ento, permaneceu como modelo de boa cincia associada literatura. E, mesmo aps ter deixado de ser uma referncia de modernidade nocampo intelectual, permaneceu como monumento nacional, como um dos livros cujaleitura imprescindvel para aqueles que querem conhecer o Brasil.

    Notas

    1 Em 1912, esse livro foi reeditado com novo ttulo, Destruio de Canudos, no qual o autor acrescentou umcaptulo sobre os costumes sertanejos. Dantas Barreto publicou outro livro sobre o assunto, em 1905, umanovela histrica intitulada Acidentes da guerra (Calasans, s. d.).

    2 S em 1970 este livro seria reeditado pela Aguilar, includo em um dos volumes das Obras completas deAfonso Arinos.

    3 Walnice Galvo (1976, p. 76) em artigo intitulado Sertes e jagunos comparou as perspectivas dos doisescritores: "Afonso Arinos e Euclides da Cunha vivem no ano de 1897, que assinalou o fim da guerra deCanudos, na mesma cidade de So Paulo. Ambos trabalham em jornais prestigiosos e adversrios: Arinos nOComrcio de So Paulo, folha monarquista, onde era diretor de redao, e Euclides nO Estado de S. Paulo,folha republicana, onde era articulista e redator de notas. A essa altura de suas carreiras, ambos j soconhecidos nos crculos intelectuais, mas sua obra est apenas se iniciando. Inditos ainda em forma delivro, a produo deles at ento destinara-se leitura em peridicos. Mas, nos jornais em quetrabalhavam, ocupavam posies de destaque: Arinos por ser diretor de redao, articulista e autor defolhetim, Euclides, ganhando primeira pgina com suas reportagens enviadas de Canudos. Ambos somoos, tendo Euclides 21 e Arinos 29 anos, em 1897." Galvo observa a possibilidade de leitura mtua,embora fosse pouco provvel a hiptese de os dois terem mantido contatos pessoais. Arinos - um MelloFranco - pertencia "a um crculo aristocratizante e monarquista, integrado por homens ilustrados que tinhamum p no Brasil e outro em Paris". Arinos encarnava, portanto, valores no compartilhados e mesmocombatidos por Euclides da Cunha: os valores da sociedade de corte.

    4 Antes do lanamento de Os sertes, estudantes de direito da Bahia em Manifesto Nao denunciaram ereprovaram como "aberrao monstruosa" o procedimento das foras republicanas, ao afogar inutilmente emsangue os vencidos da campanha. O prprio general Artur Oscar, comandante da quarta expedio, teria decerta forma assinalado o erro de Canudos ao confessar que estava "convencido de que Antnio Conselheiroera monarquista por fanatismo... O seu monarquismo era meramente religioso, sem aderncia poltica".(Citado por Rabello, op. cit.)

    5 Dirio ntimo, citado por Rabello, op. cit.

    6 Sobre a relao entre natureza e cultura, ver Barbosa e Drummond, 1994, pp. 267-289.

    7 Segundo Afrnio Coutinho, "influenciado pelas teorias positivistas de Buckle e Taine sobre o ambientalismo(Araripe Jnior) destacou a influncia do meio fsico, do cenrio tropical, como elemento diferenciador,

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  • aconselhando sempre os escritores nessa direo e aplaudindo com entusiasmo os que se mostravam, nasua obra, o predomnio do meio brasileiro, fosse fsico, social ou humano, haja vista os casos de Gregrio deMatos, Gonzaga, Alencar e Euclides da Cunha, aos quais dedicou pginas definitivas de crtica. ... AraripeJnior buscou enquadrar nos seus romances os motivos locais, os assuntos histricos, a natureza brasileira,os costumes sertanejos, os personagens tpicos. Filiou-se, dessa maneira, s correntes que entoempolgavam os romancistas, como Alencar e Tvora, o sertanismo, o regionalismo, o indianismo, onaturalismo campesino, aproveitando elementos do folclore e aliando, em muitos casos, uma tcnicaromntica e certas tendncias naturalistas para a representao de casos clnicos. Ao atribuir aosertanejismo a continuidade natural do indianismo, utilizava-o como arma de combate em oposio ao queconsiderava as nefastas influncias externas, principalmente portuguesa e francesa, que se abatiam sobre a"populao propriamente civilizada" do pas. Focalizar a vida campestre e o universo dos sertanejos eraprocurar alternativa menos "contaminada" que servisse a ansiada literatura nacional. Uma das expressessingulares do pensamento de Araripe foi a formulao da teoria da obnubilao braslica. Partia dopressuposto de que a questo da histria da literatura nacional s (podia) ser resolvida pela concentraode nossas vistas sobre o meio fsico, por ser este o nico fator estvel de nossa histria - o nico que seconsegue acompanhar sem soluo de continuidade. ... Por causa do meio, surge a raa; a raa modifica omeio; e o meio modificado reage j de modo diferente sobre o modificador". Segundo Coutinho, "a foradiferenciadora da presso exterior, isto , do meio fsico - solo, paisagem, flora, clima - sobre as forasmentais do homem, deu lugar ao fenmeno que Araripe (designou) como a obnubilao braslica: aadaptao dos colonos ao novo meio, por um processo de mimetismo, esquecendo os hbitos da me-ptria". Araripe definia o fenmeno da obnubilao braslica como "a transformao por que passavam oscolonos atravessando o oceano Atlntico, e na sua posterior adaptao ao meio fsico e ao ambienteprimitivo. (Bastava) percorrer as pginas dos cronistas para reconhecer esta verdade. Portugueses,franceses, espanhis, apenas saltavam no Brasil e internavam-se, perdendo de vista suas pinaas ecaravelas, esqueciam as origens respectivas, cedendo lugar a um verdadeiro homem novo, o brasileiro.Dominados pela rudez do meio, entontecidos pela natureza tropical, abraados com a terra, todos eles setransformavam quase em selvagens, e se um ncleo forte de colonos, renovado por contnuas viagens, noos sustinha na luta, raro era que no acabassem pintando o corpo de jenipapo e urucu e adotando idias,costumes e at brutalidades dos indgenas". (Araripe, citado por Coutinho, 1968, p. 129.) Em certo sentido,Araripe antecipou a viso tropicalista na valorizao do selvagem e, por extenso, do homem rude docampo, do "brbaro", "no civilizado" enquanto fontes da singularidade nacional. Os obnubilados disputavamcom os selvagens o domnio da terra. "Foi necessrio que, alijando a bagagem de homem civilizado, os maisinteligentes para a situao se adaptassem ao novo terrier e se habilitassem para concorrer com osprimitivos ncolas."

    8 A teoria da obnubilao braslica levou Araripe a aproximar contribuies singulares que, de outro modo,no poderiam figurar juntas, como as de Jos de Anchieta e de Gregrio de Matos; umas como outrasteriam sido resultados do mesmo processo de comunho com a terra. Anchieta teria colocado a seu servioa feitiaria indgena, a mitologia tupi, o podersobre os selvagens, as feras, a flora, num processo eloqentede identificao braslica e obnubilao de seu mundo de origem. Esse "esquecimento" Anchieta teriautilizado em proveito da sociedade nova, brasileira, utilizando todas as armas a seu dispor, como acatequese, a literatura, o exemplo, a administrao, a diplomacia, o misticismo. Araripe tomava os exemplosde Jos de Anchieta e de Gregrio de Matos para afirmar que a literatura da fase colonial j era umamanifestao literria nacional, brasileira, autnoma.

    9 preciso lembrar que havia uma tradio de pensamento poltico que pregava a transferncia da capitalpara o interior desde o ano de 1824.

    10 A literatura detinha a hegemonia na vida intelectual do pas e estava intimamente relacionada com astentativas de construo de uma identidade nacional. A cincia para se apresentar fazia uso de uma roupaliterria. S muito mais tarde, nos anos 30 com a criao das primeiras universidades, que essa situaose modificaria, e, especialmente, a sociologia ganharia seu prprio lugar como disciplina autnoma,integrando o contexto universitrio. A cientifizao da literatura, sobretudo sua sociologizao, tambm foideterminante para a consagrao de Os sertes. Antonio Candido percebeu com especial clareza esseprocesso: "Eu acho que a minha gerao foi a ltima em que ainda a literatura aparecia como um must.Antes, a medicina precisava se apresentar com roupa literria; o direito, tambm; a sociologia, para seapresentar, tinha que se apresentar como Os sertes." Depoimento a Marisa Peirano (1991, p. 35).

    Agradeo as sugestes dos membros da banca examinadora, Luiz Fernando Dias Duarte, Lgia Sigaud,Federico Neiburg, Ricardo Benzaquen de Arajo, Glacia Villas-Bas.

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