a possibilidade de responsabilidade civil solidária do proprietário
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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ - UNIVALI PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO - PROPPEC CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – PPCJ CURSO DE DOUTORADO EM CIÊNCIA JURÍDICA - CDCJ
A POSSIBILIDADE DE RESPONSABILIDADE CIVIL SOLIDÁRIA DO
PROPRIETÁRIO FIDUCIÁRIO POR ATOS ILÍCITOS COMETIDOS
PELO POSSUIDOR DIRETO, À LUZ DA POLÍTICA JURÍDICA
DIEGO RICHARD RONCONI
Tese submetida à Universidade do Vale do
Itajaí – UNIVALI, para o Doutorado em Ciência
Jurídica.
Orientador: Professor Doutor Zenildo Bodnar
Co-orientador: Professor Doutor Paulo Márcio Cruz
ITAJAÍ (SC), fevereiro de 2013.
Meus agradecimentos
A todos os Professores e colegas do Doutorado Acadêmico em Ciência Jurídica,
pela amizade e lições de vida;
Ao Professor Dr. Zenildo Bodnar, Orientador dessa Tese e de várias lições de vida,
pelo exemplo de humildade científica e disponibilidade, jurista cujo sucesso e
dedicação são exemplos a serem seguidos;
Ao Professor Dr. Paulo Márcio Cruz, grande incentivador da Ciência Jurídica e
pessoa indispensável ao desenvolvimento dessa Ciência e da comunidade
Itajaiense.
Dedico este trabalho
A Deus, Sabedoria Infinita, por todos os momentos, tristes e felizes, que me tem
proporcionado, fazendo da minha vida uma felicidade constante;
À minha esposa Roslaine Netipanyj Ronconi, exemplo de dedicação e amor,
agradecendo sua presença constante ao meu lado, compreensão e estímulo em
todas as lutas, fortalecendo a cada dia mais o sentimento que nos une;
Aos meus filhos Thiago Richard Netipanyj Ronconi e Thaysa Netipanyj Ronconi,
expressões mais altas do amor, razões de ser de minha felicidade;
Aos meus pais, Paulo Gonçalo Ronconi e Norma Helena Beckert, e aos irmãos Julio
César, Paolo, Marilúcia e Paola, família amável e formidável, agradecendo o eterno
amor, amizade e carinho;
“Se o direito é uma realidade social, é também uma teoria ativa da sociedade, uma
avaliação do que existe cuja meta é determinar o que deverá existir” (Louis Assier-
Andrieu, p. XI).
“(...) um direito só é efetivo quando sua prática está assegurada; não ter direito e tê-
lo sem o poder exercer são uma coisa só” (José de Aguiar Dias, v.1. p. 61).
Esta Tese foi julgada APTA para a obtenção do título de Doutor em Ciência Jurídica
e aprovada, em sua forma final, pela Coordenação do Curso de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí [CPCJ –
UNIVALI].
Prof. Dr. Zenildo Bodnar
Orientador
Prof. Dr. Paulo Márcio Cruz
Coordenador do CPCJ
Apresentada perante a Banca Examinadora composta dos Professores:
Prof. Dr. Zenildo Bodnar (UNIVALI)
Prof. Dr. Jorge Renato dos Reis (UNISC) Prof. Dra. Ivone Lixa (FURB) Prof. Dr. André Lippi Pinto Bastos Lupi (UNIVALI) Prof. Dr. Osvaldo Agripino de Castro Junior (UNIVALI).
Itajaí [SC], fevereiro de 2013.
PÁGINA DE APROVAÇÃO
A presente Tese apresentada para a obtenção do título de
Doutor em Ciência Jurídica pelo CPCJ/PDCJ/UNIVALI, elaborada pelo doutorando
Diego Richard Ronconi, sob o título A POSSIBILIDADE DE RESPONSABILIDADE
CIVIL SOLIDÁRIA DO PROPRIETÁRIO FIDUCIÁRIO POR ATOS ILÍCITOS
COMETIDOS PELO POSSUIDOR DIRETO, À LUZ DA POLÍTICA JURÍDICA, foi
submetida em 20 de dezembro de 2012 à Banca Examinadora composta pelos
seguintes Professores: Prof. Dr. Zenildo Bodnar (UNIVALI), Prof. Dr. Jorge Renato
dos Reis (UNISC), Prof. Dra. Ivone Lixa (FURB), Prof. Dr. André Lippi Pinto Bastos
Lupi (UNIVALI) e Prof. Dr. Osvaldo Agripino de Castro Junior (UNIVALI) , e aprovada
com a nota 9,4 (nove vírgula quatro).
Itajaí, fevereiro de 2013.
Prof. Dr. Paulo Márcio Cruz
Coordenador do CPCJ
DECLARAÇÃO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total
responsabilidade pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a
Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, a Coordenação do Curso de Pós-
Graduação stricto sensu em Ciência Jurídica [CPCJ – UNIVALI] ou a Coordenação
do Curso de Direito, a Banca Examinadora, o Orientador e o Co-Orientador de toda
e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
Itajaí [SC], 20 de fevereiro de 2013.
Diego Richard Ronconi
ROL DE CATEGORIAS
Rol de categorias que o Autor considera estratégicas à
compreensão do seu trabalho, com seus respectivos conceitos operacionais.
Alienação Fiduciária em Garantia : forma de Propriedade Fiduciária, que, por sua
vez, é forma de Propriedade Resolúvel em que ocorre “(...) a transferência, ao
credor, do domínio e posse indireta de uma coisa, independentemente de sua
tradição efetiva, em garantia do pagamento de obrigação a que acede, resolvendo-
se o direito do adquirente com a solução da dívida garantida” 1.
Atos Ilícitos : atos “(...) que promanam direta ou indiretamente da vontade e
ocasionam efeitos jurídicos, mas contrários ao ordenamento” 2.
Ciência Jurídica : “(...) atividade de pesquisa que tem como Objeto o Direito, como
Objetivo principal a descrição e/ou prescrição sobre o Direito ou fração temática
dele, acionada Metodologia que se compatibilize com o Objeto e o Objetivo e sob o
compromisso da contribuição para a consecução da Justiça”3.
Consciência Jurídica Social : tradição pré-normativa da Sociedade como “(...)
readequação de valores prevalentes em seu estrato político (o estrato da
consciência, da experiência, da cidadania)”4.
Constituição : “(...) sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula
a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do
poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos
fundamentais do homem e as respectivas garantias. Em síntese, a constituição é o
1 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil : posse, propriedade, direitos reais de fruição, garantia e aquisição. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. v. 4. p. 273. 2 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. v. 4. p. 22. 3 PASOLD, César Luiz. Prática da pesquisa jurídica : idéias e ferramentas úteis para o pesquisador do direito. 7. ed. Florianópolis: OAB/SC editora, 2002. p. 82. 4 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito . Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, p. 22.
conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado”5.
Credor-Fiduciário (Credor, ou Fiduciário, ou Propri etário Fiduciário) : titular do
domínio (ou Propriedade), a qual se resolverá com o implemento da obrigação
(ocorrência do termo ou condição), operando-se a transferência da Propriedade,
então, para o Devedor-Fiduciante.
Dano : efetivo prejuízo experimentado pela vítima do comportamento ilícito do
agente, a qual teve algum desconforto comportamental ou dor psíquica (dano
moral), ou desequilíbrio patrimonial (dano material), tratando-se de “(...) lesão a um
interesse jurídico tutelado – patrimonial ou não – causado por ação ou omissão do
sujeito infrator” 6.
Despatrimonialização dos Bens Jurídicos : “(...) avaliação qualitativa do momento
econômico e a disponibilidade de encontrar, na exigência de tutela do homem, um
aspecto idôneo, não a ‘humilhar’ a aspiração econômica, mas, pelo menos, a
atribuir-lhe uma justificativa institucional de suporte ao livre desenvolvimento da
pessoa. (...)”7.
Devedor-Fiduciante (Devedor, ou Fiduciante) : “(...) ‘possuidor direto, com
responsabilidade de depositário’ (caput do art. 66 da Lei n º 4.728) e não proprietário
do veículo, (...)”8 .
Dignidade da Pessoa Humana : “(...) a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser
humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do
Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e
deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de
cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições
5 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 39-40. 6 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil : São Paulo: Saraiva, 2003, v. 3. p. 40. 7 PERLINGIERI, Pietro. Perfis de direito civil. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 33. 8 RESTIFFE NETO, Paulo. Garantia fiduciária . 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 139.
existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua
participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em
comunhão com os demais seres humanos”9.
Direito : “(...) complexo de condições vitais da sociedade no sentido mais amplo,
assegurados pelo poder público mediante coação exterior”10.
Direitos Fundamentais : “(...) todas aquelas posições jurídicas concernentes às
pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu
conteúdo e importância (fundamentalidade em sentido material) integradas ao texto
da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes
constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e
significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material,
tendo, ou não, assento na Constituição formal (aqui considerada a abertura material
do Catálogo” 11.
Estado Democrático de Direito : Estado “(...) que intervém nos domínios
econômico, social e cultural, obedecidos os parâmetros mínimos de cidadania
política, justiça, representatividade, legalidade e legitimidade”12.
Estado Social, Estado Contemporâneo Democrático : Estado que “(...) intervém
na Sociedade para garantir oportunidades iguais a seus cidadãos nos âmbitos
econômico, social e cultural, sendo este caráter intervencionista o principal
diferencial deste Estado”13.
Estado : “ordem jurídica soberana, que tem por fim o bem comum de um povo
9 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988 . 2. ed Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 62. 10 JHERING, Rudolf von. A finalidade do direito . Tradução de Heder K. Hoffmann. Campinas: Bookseller, 2002. p. 338. T. I . 11 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais . 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 82. 12 CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia & estado contemporâneo . 3. ed. Curitiba: Juruá,
2002. p. 153. 13 CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia & estado contemporâneo , p. 152-153.
situado em determinado território” 14.
Função Social : “(...) ações que – por dever para com a Sociedade – o Estado
executa, respeitando, valorizando e envolvendo o seu Sujeito (que é o homem
individualmente considerado e inserido na Sociedade), correspondentemente ao seu
Objeto (conjunto de áreas de atuação que dão causa às ações estatais, e cumprindo
o seu Objetivo (o Bem Comum ou Interesse Coletivo, fixado dinamicamente pelo
todo social)”15.
Função Social da Propriedade : consiste na utilização, gozo, disposição e
reivindicação dos bens e/ou direitos de alguém, afastando-se interesses
eminentemente privatísticos prejudiciais em detrimento do benefício maior de uma
coletividade, de forma que, para haver tal equilíbrio, o Estado limitará e/ou
estabelecerá regras à sua utilização na conformidade do Bem Comum16.
Instituições Financeiras: “pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham
como atividade principal ou acessória a (1) coleta, (2) intermediação ou (3) aplicação
de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira,
e a (4) custódia de valor de propriedade de terceiros”17.
Irracionalidade : inadequação entre o comportamento dos destinatários e os desejos
ou intenções do editor da norma18.
Justiça Social : circunstância em que “(...) o todo contribui para com cada um, não
como uma dádiva generosa e paternalista, mas como um dever decorrente de sua
condição inalienável de parte do todo, provedor e beneficiário potencial e efetivo” 19.
14 DALLARI, Dalmo de Abreu. O futuro do estado . São Paulo: Saraiva, 2001. p. 49. 15 PASOLD, Cesar Luiz. Função social do estado contemporâneo. 3. ed. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2003. p. 92-93. 16 RONCONI, Diego Richard. Falência & recuperação de empresas : análise da utilidade social de ambos os institutos. Itajaí: Editora da Univali, 2002. p. 54. 17 NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 3. p. 656. 18 ATIENZA, Manuel. Contribución a una teoria de la legislación . Madrid: Editorial Civitas S/A, 1997. p. 44. 19 PASOLD, Cesar Luiz. Função social do estado contemporâneo , p. 96-97.
Lei Material : ato através do qual se estabelece como elemento definidor o conteúdo,
não mais a sua forma, consistindo em Leis somente as normas que regulamentam
determinadas matérias.
Mútuo Feneratício : contrato oneroso de empréstimo em que há o pagamento de
juros sobre o capital emprestado.
Nexo Causal : vínculo que liga o dano à conduta do agente (vínculo entre a ação e o
prejuízo), sendo elemento indispensável à Responsabilidade Civil20.
Obrigação Solidária : “vínculo de direito pelo qual alguém (sujeito passivo) se
propõe a dar, fazer ou não fazer qualquer coisa (objeto), em favor de outrem (sujeito
ativo)”21, onde há pluralidade de credores, ou devedores, ou ainda de uns e de
outros, tendo cada um direito, ou obrigação pelo total da dívida22.
Política Jurídica : disciplina ou uma área autônoma de conhecimentos e estratégias,
que procura identificar, através de uma pesquisa ordenada e consciente, sua
importância, objeto e objetivos para o Direito23.
Processo Legislativo : Conjunto dos procedimentos que resultam na edição de uma
lei.
Propriedade Fiduciária : Propriedade Resolúvel de coisa móvel (fungível ou
infungível), ou imóvel (infungível) que, se for móvel, se constitui somente através de
registro do contrato no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor
ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento,
fazendo-se a anotação no certificado de registro, e se imóvel, mediante registro, no
competente Registro de Imóveis do contrato que lhe serve de título, havendo o
desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário
20 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p. 39. 21 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil : parte geral das obrigações. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 2. p. 3-4. 22 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil : direito das obrigações. 32 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 4. p. 151. 23 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica . Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1994. p. 24-47.
possuidor indireto da coisa.
Propriedade : direito de uso, gozo e disposição e reivindicação de todos os bens
e/ou direitos de alguém, respeitados os limites impostos pelo Estado, a fim de
garantir a perfeita convivência do grupo social em que se inserem.
Propriedade Resolúvel (ou Revogável) : Propriedade não definitiva, em que o
advento da condição ou termo final pode acarretar a resolução ou a perda da
Propriedade, fazendo-a retornar ao patrimônio do proprietário anterior.
Racionalidade : capacidade ou método de pensamento que permite solucionar
problemas que vão além do simples discurso, utilizando-se de uma lógica que
objetiva estabelecer consequências aos fenômenos 24.
Razão: faculdade própria do homem de captar a essência ou natureza das coisas,
estabelecendo os nexos entre os entes de um conjunto (Razão = capacidade
humana de estabelecer pensamentos vinculados a outros fenômenos) 25.
Repersonalização do Direito : afirmação segundo a qual “patrimônio e pessoa não
estão absolutamente entrelaçados, nem ocupa um primeiro plano a relação entre
eles”26.
Responsabilidade Civil : “(...) situação de indenizar o dano moral ou patrimonial,
decorrente de inadimplemento culposo, de obrigação legal ou contratual, ou imposta
por lei”27.
Responsabilidade Civil Objetiva : Responsabilidade Civil que é “(...) apurada
independentemente de culpa do agente causador do dano, pela atividade perigosa
por ele desempenhada”28.
24 ATIENZA, Manuel. Contribución a una teoria de la legislación , p. 78 e 85. 25 ATIENZA, Manuel. Contribución a una teoria de la legislación , p. 78 e 85. 26 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo . Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 42. 27 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações . 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 273. 28 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. v. 2. p. 195.
Responsabilidade Civil Subjetiva : obrigação do ressarcimento em virtude de atos
ilícitos que tenham ocorrido por comportamento culposo ou doloso do agente.
Sociedade : “(...) Conjunto de pessoas permanentemente associadas em diferentes
grupos (família, igreja, clube, sindicato, etc.) e que apresentam padrões culturais
comuns, garantindo a continuidade do todo e a consecução dos ideais
pretendidos”29.
Sociedade Civil : “(...) conjunto das relações materiais entre indivíduos numa arena
de disputas (espaço público) onde diversos grupos lutam para conquistar a
hegemonia; (...)”30.
Sociedade Empresária: “(...) contrato celebrado entre pessoas físicas ou jurídicas,
ou somente entre pessoas físicas (art. 1.039), por meio do qual estas se obrigam
reciprocamente a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade
econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços.”31
Subsidiariedade (ou Responsabilidade Subsidiária) : responsabilidade segundo a
qual “uma das pessoas tem o débito originário e a outra tem apenas a
responsabilidade por esse débito. Por isso, existe uma preferência (dada pela lei) na
‘fila’ (ordem) de excussão (execução): no mesmo processo, primeiro são
demandados os bens do devedor (porque foi ele quem se vinculou, de modo pessoal
e originário, à dívida); não tendo sido encontrados bens do devedor ou não sendo
eles suficientes, inicia-se a excussão de bens do responsável em caráter subsidiário,
por toda a dívida.” 32.
Validade Formal : é o atributo que a norma adquire ao ser colocada em vigor,
relacionada com os procedimentos para que a norma seja válida do ponto de vista
externo, desconsiderada a sua materialidade.
29 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico . São Paulo: Saraiva, 1998. v. 4. p. 395-396. 30 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa no estado constitucional de direito . Curitiba: Juruá, 2001. p. 60. 31 NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa . 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 235. 32 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil . São Paulo: Saraiva, 2002. v. 2. p. 87-88.
Validade Material : “(...) a qualidade da norma em mostrar-se compatível com o
socialmente desejado e basicamente necessário ao homem, enquanto indivíduo e
enquanto cidadão” 33.
Veículo Automotor de Via Terrestre : “todo veículo a motor de propulsão que
circule por seus próprios meios, e que serve normalmente para o transporte viário de
pessoas e coisas, ou para tração viária de veículos utilizados para o transporte de
pessoas e coisas”34, tais como motocicletas, automóveis, microônibus, ônibus,
caminhonete, caminhão, e todos aqueles cuja tração se dê em virtude de algum
motor.
33 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 20. 34 BRASIL. Código de Trânsito brasileiro: Lei n º 9.503, de 23 de setembro de 1997. Emílio Sabatovski, Iara Fontana e Tânia Saiki. Curitiba: Juruá, 1997. p. 68.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................ 1
CAPÍTULO 1. A POLÍTICA JURÍDICA, FUNÇÃO LEGISLATIVA E
FUNÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO........................ .................. 7
1.1. A FINALIDADE E AS FUNÇÕES DO
ESTADO...................................................................................................... 7
1.2. O ESTADO DE DIREITO E O ESTADO SOCIAL: O SURGI MENTO DO
ESTADO CONTEMPORÂNEO............................... .................................... 11
1.3. O ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO E A DEMOCRA CIA.... 16
1.4. A SEPARAÇÃO DOS PODERES ...................... ................................. 23
1.5. A SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO E OS DIREITOS
FUNDAMENTAIS....................................... .................................................. 25
1.6. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PES SOA HUMANA
...................................................................................................................... 29
1.7. A POLÍTICA JURÍDICA: CONCEITO, OBJETO E OBJETIVOS.. ...... 33
1.7.1. Conceito de Política Jurídica............... ........................................... 34
1.7.2. Objeto da Política Jurídica................. ............................................. 35
1.7.3. Objetivos da Política Jurídica.............. ........................................... 37
1.8. FONTES POLÍTICAS E SOCIAIS DA NORMA JURÍDICA.. ............... 38
1.9. O CONCEITO DE LEI, A FUNÇÃO LEGISLATIVA E SEU ASPECTO
POLÍTICO-JURÍDICO.................................. ............................................... 41
1.10. CONCEITO DE FUNÇÃO JUDICIÁRIA................ ............................. 47
1.11. A FUNÇÃO JUDICIÁRIA COMO ABORDAGEM DA DOGMÁTI CA
JURÍDICA........................................... .......................................................... 48
1.12. A DOGMÁTICA JURÍDICA E A POLÍTICA JURÍDICA... .................... 49
Capítulo 2. A PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIAL...... ... 54
2.1. CONSIDERAÇÕES SOBRE A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PR OPRIEDADE E
SEU CONCEITO......................................................................................... 54
2.2. O DIREITO REAL DE PROPRIEDADE................. ............................... 62
2.3. A INFLUÊNCIA DO DIREITO CANÔNICO NA FUNÇÃO SOC IAL DA
PROPRIEDADE........................................................................................... 66
2.4. A DICOTOMIA DIREITO PÚBLICO/PRIVADO........... ........................ 68
2.5. A PROPRIEDADE NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO E A
CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO............ ................... 72
2.6. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO......................................... ...................................................... 75
2.6.1. Um conceito operacional de Função Social.... .............................. 78
2.6.2. A Função Social da Propriedade no Estado Con temporâneo e seus
objetivos.......................................... ........................................................... 80
2.7. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA CRFB/88..... ............... 85
2.8. ABRANGÊNCIA DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE... ......... 86
Capítulo 3. A PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA E A ALIENAÇÃO
FIDUCIÁRIA EM GARANTIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO CIVI L
BRASILEIRO......................................... ...................................... 92
3.1. HISTÓRICO ACERCA DA PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA.... ............... 92
3.2. CONCEITO DA PROPRIEDADE RESOLÚVEL E SEUS EFEIT OS ENTRE
ALIENANTE E PROPRIETÁRIO RESOLÚVEL................. ......................... 94
3.3. CONCEITO DE PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA............ ........................ 97
3.4. A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA NA LEGISLAÇ ÃO
BRASILEIRA......................................... ...................................................... 102
3.5. CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DA ALIENAÇÃO FIDUCI ÁRIA EM
GARANTIA........................................... ....................................................... 103
3.6. NATUREZA JURÍDICA E REQUISITOS DA ALIENAÇÃO FI DUCIÁRIA EM
GARANTIA........................................... ................................................ 106
3.6.1. Requisitos Subjetivos da Alienação Fiduciári a em Garantia...... 108
3.6.2. O empréstimo de dinheiro na Alienação Fiduci ária em
Garantia........................................... ........................................................... 111
3.6.3. Requisitos objetivos da Alienação Fiduciária em Garantia........ 114
3.6.4. Requisitos formais.......................... ................................................ 115
3.7. DEVERES DO FIDUCIANTE (DEVEDOR OU ALIENANTE).. ............ 116
3.8. DEVERES DO FIDUCIÁRIO (CREDOR OU ADQUIRENTE).. ............ 122
3.9. ALTERAÇÕES DA LEI N º 10.931 NA ALIENAÇÃO FIDU CIÁRIA EM
GARANTIA........................................... ....................................................... 123
3.9.1 Alterações da Lei n º 10.931, de 2 de agosto de 2004 na Lei n º
4.728/65....................................................................................................... 124
3.9.2 Alterações da Lei n º 10.931, de 2 de agosto de 2004 no Decreto-Lei nº
911/69..................................................................................................... 128
3.9.3 Alterações da Lei n º 10.931, de 2 de agosto de 2004 na Lei n º 10.406/02
(Código Civil)..................................... ...................................... 129
3.10. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA NA FORMA DE
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA E A PROPOSTA DE
TESE............................................................................................................. 130
Capítulo 4. A RESPONSABILIDADE CIVIL NO DIREITO
BRASILEIRO......................................... ................................ 136
4.1. CONCEITO DE RESPONSABILIDADE CIVIL............ ............... 136
4.2. OBJETIVO E REQUISITOS DA RESPONSABILIDADE CIVI L..... 137
4.2.1. Ação (conduta humana) ...................... ......................................... 138
4.2.2. O Nexo Causal (Nexo etiológico, relação de c ausalidade ou liame de
causalidade) ...................................... ....................................................... 140
4.2.2.1. Teoria da Equivalência das Prestações..... ................................ 142
4.2.2.2. Teoria da Causalidade Adequada............ ................................. 144
4.2.2.3. Teoria da Causalidade Direta ou Imediata.. .............................. 147
4.2.3. Dano........................................ .......................................................... 148
4.3. CONCEITO E REQUISITOS DA RESPONSABILIDADE CIVI L
SUBJETIVA........................................ . ...................................................... 150
4.3.1. O Ato Ilícito............................... ........................................................ 150
4.3.2. Culpa....................................... ......................................................... 151
4.4. CONCEITO E REQUISITOS DA RESPONSABILIDADE CIVI L
OBJETIVA........................................... ................................................. 153
4.4.1. A Responsabilidade Civil Objetiva e a ativid ade de Risco........ 156
4.4.2. A Teoria do Risco........................... .................................................. 159
4.4.2.1. Teoria do Risco Proveito............................................................... 163
4.4.2.2. A teoria do Risco Criado.............................................................. 165
4.5. OS VEÍCULOS AUTOMOTORES E SUA CONDIÇÃO DE
PERICULOSIDADE..................................... ............................................... 167
4.6. A RESPONSABILIDADE POR FATO DE OUTREM E PELO F ATO DA COISA
NO DIREITO BRASILEIRO.............................. .......................................... 172
4.7. AS EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJE TIVA E
OBJETIVA........................................... ....................................................... 176
4.7.1. Legítima defesa própria e de terceiro....... .................................... 177
4.7.2. Estado de necessidade próprio e de terceiro. ............................. 177
4.7.3. Exercício regular do direito e o estrito cum primento do dever
legal.............................................. .............................................................. 178
4.7.4. A culpa exclusiva da vítima................. .......................................... 179
4.7.5. O fato de terceiro.......................... .................................................. 180
4.7.6. O caso fortuito e a força maior............. ......................................... 180
Capítulo 5. RESPONSABILIDADE CIVIL SOLIDÁRIA, MAS
SUBSIDIÁRIA, DO PROPRIETÁRIO FIDUCIÁRIO: A PREDIÇÃO
LEGAL E A INTERPRETAÇÃO JUDICIAL DESSA
PROPOSTA................................................................................ 183
5.1. CONSIDERAÇÕES SOBRE A JUSTIÇA SOCIAL.......... .................... 183
5.1.1. A Justiça Social e atributos para sua config uração..................... 185
5.2. O papel Corretivo da Política Jurídica no proc esso legislativo e de
interpretação do Direito........................... .................................................. 187
5.3. CONSIDERAÇÕES ACERCA DOS CAPÍTULOS ANTERIORES. ...... 188
5.4. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO E A VINCULAÇÃO
DAS RELAÇÕES PRIVADAS AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.... ......... 202
5.5. A PROPOSTA DE INTERPRETAÇÃO JUDICIAL DA RESPON SABILIDADE
CIVIL DO PROPRIETÁRIO FIDUCIÁRIO DE VEÍCULOS
AUTOMOTORES......................................................................................... 207
CONCLUSÃO.......................................... ................................................... 210
REFERÊNCAS DAS FONTES CITADAS...................... ............................ 215
RESUMO
A presente Tese objetiva identificar os principais aspectos necessários à atribuição da Responsabilidade Civil, de forma solidária, mas subsidiária, ao Credor-Fiduciário, na Propriedade Fiduciária de Veículos Automotores de Via Terrestre, por Atos Ilícitos cometidos pelo Devedor-Fiduciante durante o período de vigência do contrato de Alienação Fiduciária em Garantia. O Credor-Fiduciário encontra-se na qualidade de proprietário do bem alienado fiduciariamente e, diante da Função Social da Propriedade e outros elementos próprios da relação envolvendo os Contratos de Alienação Fiduciária em Garantia de Veículos Automotores, além de possível, faz-se necessária a Responsabilidade Civil do titular do domínio, na Propriedade Fiduciária, por Atos Ilícitos praticados pelo Possuidor Direto do Veículo Automotor de Via Terrestre objeto do contrato. Tal situação objetiva a segurança jurídica, com o fim de satisfazer os créditos oriundos de Atos Ilícitos causados pelo Possuidor Direto da referida coisa, especialmente quando o Devedor-Fiduciante (Possuidor Direto) for insolvente, ou seja, não possua patrimônio suficiente para satisfação do crédito judicial em que foi condenado a pagar à vítima. Para tanto, diante da função corretiva da Política Jurídica, a interpretação judicial nesse sentido é necessária para que seja respeitada a Dignidade da Pessoa Humana vitimada. Sugere-se, desta forma, a proposta de interpretação judicial de Responsabilidade Civil Solidária, mas Subsidiária, do Credor-Fiduciário, proprietário resolúvel de um Veículo Automotor colocado na Sociedade, diante de Ato Ilícito cometido pelo Possuidor Direto do bem, em razão da Função Social da Propriedade, como forma de satisfação do crédito da vítima. Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase de Investigação, foi utilizado o Método Indutivo, na Fase de Tratamento de Dados o Método Cartesiano, e o Relatório dos Resultados expresso na presente Tese é composto na base lógica Indutiva. Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as Técnicas do referente, da categoria, dos conceitos operacionais, da Pesquisa bibliográfica e do fichamento.
Palavras-chave : Alienação Fiduciária em Garantia – Propriedade Fiduciária – Função Social da Propriedade – Racionalidade – Obrigação Solidária – Política Jurídica – Propriedade Fiduciária – Responsabilidade Civil Objetiva – Responsabilidade Civil Subsidiária – Veículo Automotor de Via Terrestre.
SUMMARY
This thesis aims to identify the main aspects necessary for the allocation of Liability, in solidarity, but subsidiary, the Lender-Trust, the Property Trustee of Motor Land Vehicles, by Unlawful Acts committed by the debtor-trustor during the period of contract in Fiduciary Warranty. The Lender-Trust is acting as owner trustee and sold well before the Social Function of Property and other particular factors to respect contracts involving the Pledge Guarantee for Motor Vehicles, as well as possible, it is necessary to charge the owner of the domain, the Property Trustee, for Wrongful Acts committed by the Motor Land Vehicle Direct Possessor of the contract. This objective situation of legal certainty, in order to satisfy claims arising from Unlawful Acts caused by Direct Possessor of that thing, especially when the debtor-trustor (Possessor Direct) is insolvent, ie, do not have goods enough to pay the credit that he was sentenced to pay the victim. Therefore, before the corrective function of Legal Policy, the judicial interpretation is necessary for this effect is respected Human Dignity victimized. It is suggested, therefore, the proposed judicial interpretation Liability Partnership but Subsidiary, Lender-Trust, owner of a Land Motor Vehicle resolvable placed in the Society, before Illicit Act committed by Direct Possessor of good, because the Civil Social Property as a way of satisfying the claim of the victim. Regarding the methodology used, is recorded that in Phase Research, was used Inductive Method in Phase Treatment Method Cartesian data, and report the results expressed in this thesis consists in inductive logic base. In the various stages of the search, were driven from the Technical referent category, operational concepts, the literature search and cataloging.
Keywords: Fiduciary Warranty - Property Trust - Social Function of Property - Rationality - Solidary Obligation - Legal Policy - Property Trust - aims Liability - Subsidiary Liability – Land Motor Vehicle
RÉSUMÉ
Cette thèse vise à identifier les principaux aspects nécessaires pour l'attribution de la responsabilité, de solidarité, mais subsidiaires, le prêteur en fiducie, le fiduciaire de la propriété des véhicules à moteur terrestre, par actes illicites commis par le débiteur-trustor pendant la période de contrat de garantie fiduciaire. Le prêteur-Trust s’agit à titre de fiduciaire propriétaire et, avant la fonction sociale de la propriété et d'autres facteurs propres à respecter les contrats impliquant la garantie Engagement pour les véhicules automobiles, ainsi que des possibles, il est nécessaire de Responsabilité du propriétaire du domaine, le fiduciaire de la propriété, pour les actes fautifs commis par le Possesseur des véhicules automobiles directe des terres du contrat. Cette situation objective de la sécurité juridique, afin de satisfaire les réclamations découlant d'actes illicites causés par le possesseur direct de cette chose, surtout lorsque le débiteur fiduciant (possesseur direct) est insolvable, c'est à dire, ne pas avoir suffisamment de fonds propres pour obtenir le crédit la cour où il a été condamné à payer à la victime. Par conséquent, avant que la fonction de correction de la politique juridique, l'interprétation judiciaire est nécessaire à cet effet est respectée la dignité humaine des victimes. Il est suggéré, par conséquent, le projet de interprétation de la responsabilité civil partenariat, mais filiale, prêteur-Trust, propriétaire d'un véhicule à moteur résolu placé dans la société, avant l’act illicite commis par le Possesseur directe du bien, en raison de la Fonction Sociale de la Proprieté comme un moyen de satisfaire la demande de la victime. En ce qui concerne la méthodologie utilisée, est enregistré que dans la phase de recherche, a été utilisé Méthode Inductive en phase de traitement des données méthode cartésienne, et présenter les résultats exprimés dans cette thèse consiste à la base logique inductive. Dans les différentes étapes de la recherche, ont été chassés de la catégorie référent technique, les concepts opérationnels, la recherche documentaire et catalogage. Mots-clés: Garantie fiduciaire - Property Trust - fonction sociale de la propriété - Rationalité - Obligation solidaire - Politique juridique - Droit de propriété - Responsabilité - Responsabilité subsidiaire - véhicules à moteur terrestre.
INTRODUÇÃO
A presente Tese1 tem como objeto o estudo da Alienação
Fiduciária em Garantia de Veículos Automotores de Via Terrestre2, enquanto
espécie de Propriedade Fiduciária, a Função Social desta forma de Propriedade e a
Responsabilidade Civil do Proprietário Fiduciário à luz da Política Jurídica, a partir
das funções Legislativa e Judiciária do Estado.
O objetivo institucional é produzir Tese de Doutorado para a
obtenção do título de Doutor em Ciência Jurídica pelo Curso de Doutorado em
Ciência Jurídica – CDCJ vinculado ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Ciência Jurídica – CPCJ – da Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI.
O seu objetivo geral é demonstrar a possibilidade de
Responsabilidade Civil Solidária do titular da Propriedade Fiduciária diante da
Função Social da Propriedade, a fim de que seja satisfeito o direito de crédito judicial
da vítima de Ato Ilícito provocado pelo Possuidor Direto do bem, pretendendo,
assim, oferecer instrumentos para atribuição dessa espécie de responsabilidade
Os seus objetivos específicos são:
a) Demonstrar que a Responsabilidade Civil da Empresa titular da Propriedade
Fiduciária não é afastada pela exclusão expressa da responsabilidade firmada entre
a Empresa titular do domínio e o Possuidor Direto do bem em Registro de Títulos e
Documentos, mas que pode ser solidária do titular do domínio;
b) Demonstrar que a hipótese anterior é possível diante do princípio constitucional
maior da Função Social da Propriedade, que se sobrepõe a tais situações de
exclusão de responsabilidade;
c) Demonstrar que, pelo fato do titular do domínio, no caso de Propriedade
Fiduciária, se tratar de Empresa, sujeita que está ao risco da atividade empresarial,
deve persistir a sua Responsabilidade Civil solidariamente pelos Atos Ilícitos
1 “Produto Científico com o qual se conclui o Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu no nível de Doutorado.”, in PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa jurídica: idéias e ferramentas úteis para o pesquisador do direito. 7. ed. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2002. p. 181. 2 Doravante simplesmente chamados Veículos Automotores.
causados pelo possuidor direto do bem, sem que se observe a culpa da Empresa no
fato (Responsabilidade Objetiva);
d) Demonstrar que, diante dos riscos oferecidos pelos veículos automotores, objetos
do contrato de Alienação Fiduciária em Garantia, colocados no mercado pela
Empresa que ainda é titular do domínio de tal bem neste caso, deve responder
solidariamente pelo direito de crédito da vítima do ilícito causado pelo Possuidor
Direto do bem (Devedor-Fiduciante).
e) Sugerir a proposta de interpretação judicial da Responsabilidade Civil Solidária do
Credor-Fiduciário, proprietário resolúvel de um bem (veículo) colocado no mercado,
por Ato Ilícito cometido pelo Possuidor Direto do bem, diante da Função Social da
Propriedade, como forma de satisfação do crédito da vítima.
Para o desenvolvimento da pesquisa, são formuladas as
seguintes perguntas:
a) Diante da atual Função Social da Propriedade, é possível a responsabilidade civil
solidária do titular do Domínio (credor-fiduciário), na Propriedade Fiduciária, em
razão de Atos Ilícitos causados pelo possuidor direto do bem (devedor-fiduciante)?
b) O registro de contrato dispondo sobre a posse direta do bem a outrem, que não o
titular do domínio, no Registro de Títulos e Documentos, possibilita o afastamento da
Responsabilidade Civil deste último por atos daquele frente a terceiros?
c) A legislação civil brasileira possibilita a exclusão da responsabilidade do titular do
domínio? Em caso positivo, quais as circunstâncias?
d) Aplica-se a Responsabilidade Objetiva da Empresa ao Credor-Fiduciário, em
função da Teoria do Risco, a fim de que possa responder civilmente por Ato Ilícito do
Devedor-Fiduciante?
São desenvolvidas as seguintes hipóteses para a pesquisa:
a) Seria possível e necessária a Responsabilidade Solidária do titular do domínio, na
Propriedade Fiduciária, por Atos Ilícitos praticados pelo Possuidor Direto da coisa,
em razão da função social da propriedade e da responsabilidade objetiva
envolvendo tais casos.
b) Diante da Função Social da Propriedade, além de possível através de uma
interpretação judicial, seria necessária a Responsabilidade Civil do titular do
domínio, na Propriedade Fiduciária, por Atos Ilícitos praticados pelo Possuidor Direto
do respectivo bem objeto do contrato, pois se objetivaria dar segurança jurídica, com
o fim de satisfazer os créditos oriundos de Ato Ilícito causados pelo Possuidor
Direto, mormente quando este for insolvente, ou seja, não possua meios
econômicos para satisfação do crédito judicial que foi condenado a pagar.
O primeiro capítulo trata de noções de Política Jurídica, da
Função Legislativa e da Função Judiciária do Estado. Objetiva-se observar o Estado
Constitucional, surgido com a Revolução Francesa, a partir da Constituição
Francesa de 1791, dando ênfase ao Estado Contemporâneo, os preceitos deste
Estado, os Direitos Fundamentais e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
inserido na Constituição da República Federativa do Brasil de 19883. Com tal estudo,
pretende-se demonstrar, pela análise do princípio da Dignidade da Pessoa Humana,
que o Estado, especialmente a partir das Constituições do México (1917) e de
Weimar (1919), preocupou-se com o desenvolvimento social e com a valorização
daqueles indivíduos considerados socialmente inferiorizados, passando o Estado a
ser agente do desenvolvimento e Justiça Social. Tratar-se-á, ainda, da Função
Judiciária do Estado e a função da hermenêutica no processo de interpretação e
aplicação da lei. Neste capítulo será ainda indicado o conceito, objeto e objetivos da
Política Jurídica, com a finalidade de identificar suas noções, bem como para a
abordagem da influência da Política Jurídica na Teoria da Produção Legislativa e na
Função Judiciária.
No segundo capítulo, estudar-se-á o direito de Propriedade e a
3 Doravante denominada simplesmente Constituição Federal ou CRFB/88.
Função Social do mesmo, versando, inicialmente, sobre algumas considerações
acerca da evolução histórica da Propriedade, seu conceito e noções a respeito do
direito real da Propriedade. Na continuidade do desenvolvimento histórico do
instituto, abordar-se-á a influência do Direito Romano no Direito Positivo, culminando
na dicotomia do direito em direito público e privado. Após, será tratado o direito de
Propriedade no Direito Civil brasileiro, bem como o surgimento do fenômeno
conhecido como Constitucionalização do direito privado. Segue o Capítulo
apresentando a Função Social da Propriedade, no ordenamento jurídico brasileiro,
conceituando-a e estabelecendo as suas finalidades no Estado Contemporâneo e,
na sequência, a Função Social da Propriedade na CRFB/88 e a abrangência do que
se entende por Função Social da Propriedade.
Nesses capítulos há uma compilação doutrinária que se faz
necessária, a fim de que se dê suporte suficiente para a proposta da Tese. A atitude
reflexiva, unindo-se o aporte teórico desses capítulos com a proposição da Tese,
passa a ser desenvolvida, com maior ênfase, adiante.
No terceiro capítulo será tratada a Alienação Fiduciária em
Garantia como forma de Propriedade Fiduciária, no ordenamento jurídico brasileiro.
Neste capítulo se fará um breve histórico da Propriedade Fiduciária, apresenta-se o
conceito de Propriedade Resolúvel e seus efeitos entre alienante e proprietário
resolúvel. Após esta análise, conceituar-se-á a Propriedade Fiduciária, restringindo-
se à modalidade de Alienação Fiduciária em Garantia, a qual será abordada sob a
égide da legislação brasileira. Depois de conceituar e estabelecer as características
e natureza jurídica da Alienação Fiduciária em Garantia, ingressar-se-á no estudo de
seus requisitos subjetivos e objetivos, fazendo-se referência ao empréstimo em
dinheiro em tal modalidade de Propriedade Fiduciária. Seguidamente, apresenta-se
o estudo dos requisitos formais da Propriedade Fiduciária, deveres do Fiduciante e
Fiduciário e da Função Social da Propriedade Fiduciária na espécie de Alienação
Fiduciária em Garantia.
No capítulo 4, serão trazidas noções sobre a Responsabilidade
Civil Subjetiva e Objetiva no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente acerca
da Teoria do Risco, das atividades de Risco e da condição de periculosidade dos
Veículos Automotores de Via Terrestre. Também será registrado sobre a
Responsabilidade Civil direta e indireta, enfatizando-se esta última, quando se
estuda a Responsabilidade por fato de outrem e pelo fato da coisa no direito
brasileiro, encerrando-se com o estudo das causas excludentes de
Responsabilidade Civil Subjetiva e objetiva.
Encerrando a pesquisa, o Capítulo 5 tratará, efetivamente,
acerca da proposta no sentido de Responsabilização Civil do Proprietário Fiduciário
(Credor-Fiduciário) de forma solidária ao Devedor Fiduciante, iniciando-se com o
estudo acerca da Justiça Social e, com base nos elementos trazidos nos capítulos
anteriores, estruturar a conclusão da proposta.
O Relatório de Pesquisa se encerra com as Conclusões, nas
quais são apresentados pontos conclusivos destacados, seguidos da estimulação à
continuidade dos estudos e das reflexões sobre a função corretiva da Política
Jurídica, na sua dimensão operacional, apresentando, ao final, a proposta oferecida
com a presente Tese, com a confirmação, ou não, das hipóteses e variáveis da
pesquisa.
A Linha de Pesquisa é a Principiologia Constitucional e Política
do Direito, e a Área de Concentração é Constitucionalismo, Transnacionalidade e
Produção do Direito.
Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase de
Investigação, foi utilizado o Método Indutivo, na Fase de Tratamento de Dados o
Método Cartesiano, e o Relatório dos Resultados expresso na presente Tese é
composto na base lógica Indutiva.
Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as técnicas
do referente4, da categoria5, dos conceitos operacionais6, da pesquisa bibliográfica7
e do fichamento8.
É conveniente ressaltar, enfim, que, seguindo as diretrizes
metodológicas do Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica-
CPCJ/UNIVALI, no presente trabalho as Categorias fundamentais são grafadas,
sempre, com a letra inicial maiúscula e seus Conceitos Operacionais apresentados,
em relação, no início da Tese e também ao longo do texto.
Registra-se, ainda, que, conforme orientação de Colzani9, as
citações em outro idioma serão registradas no corpo do texto no idioma original,
adiantando-se que todas as citações realizadas em língua estrangeira se encontram
traduzidas pelo doutorando em nota de rodapé.
4 “explicitação prévia do motivo, objetivo e produto desejado, delimitando o alcance temático e de abordagem para uma atividade intelectual, especialmente para uma pesquisa.” PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica , cit., p. 209. 5 “palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de uma idéia.” PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica , cit., p. 197. 6 “definição estabelecida ou proposta para uma palavra ou expressão, com o propósito de que tal definição seja aceita para os efeitos das idéias expostas.” PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica , cit. p. 198. 7 “Técnica de Investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica , cit. p. 207. 8 “Técnica que tem como principal utilidade otimizar a leitura na Pesquisa Científica, mediante a reunião de elementos selecionados pelo Pesquisador que registra e/ou resume e/ou reflete e/ou analisa de maneira sucinta, uma Obra, um Ensaio, uma Tese ou Dissertação, um Artigo ou uma aula, segundo Referente previamente estabelecido”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica , cit. p. 201 e 202. 9 COLZANI, Valdir Francisco. Guia para redação do trabalho científico. Curitiba: Juruá, 2001. p. 91 (“(...) a critério do pesquisador e face a relevância da citação, pode ela ser registrada no texto em seu idioma original, quando, obrigatoriamente, deve ser traduzida em nota de rodapé, com a informação de que se trata de tradução do Autor”).
Capítulo 1
A POLÍTICA JURÍDICA, FUNÇÃO LEGISLATIVA E FUNÇÃO
JUDICIÁRIA DO ESTADO
O objetivo deste capítulo não consiste em analisar todas as
fases pelas quais passou o Estado (sobre a Teoria do Estado de forma
aprofundada), mas identificar, no Estado Constitucional (desenvolvido pela
Revolução Francesa a partir da Constituição Francesa de 1791) e, principalmente,
no Estado Contemporâneo, o conteúdo de seus preceitos, os Direitos Fundamentais
e, em especial, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, inserido na
Constituição da República Federativa do Brasil de 198810. A preocupação principal,
neste norte, é identificar, pela análise do princípio anteriormente referido, que o
Estado, em especial, a partir das Constituições do México (1917) e de Weimar
(1919), passou a se preocupar com o desenvolvimento social e com a valorização
daquelas pessoas consideradas socialmente inferiorizadas, passando o Estado a ser
agente do desenvolvimento e Justiça Social11-12.
Pretende, igualmente, este capítulo indicar o conceito, objeto e
objetivos da Política Jurídica, a fim de que se tenha uma noção da mesma para, em
capítulo posterior, abordar a influência da Política Jurídica na Função Legislativa e
na Função Judiciária do Estado.
1.1. A FINALIDADE E AS FUNÇÕES DO ESTADO
Ao iniciar este capítulo, faz-se necessária uma abordagem
prévia sobre qual a finalidade e as funções do Estado. A partir dessa visão inicial,
poderá se observar, sinteticamente, o objetivo da criação do Estado e quais suas
atribuições, alcançando o atual estágio de Estado Constitucional de Direito, que
muito importará para a presente Tese.
10 Doravante denominada simplesmente Constituição Federal ou CRFB/88. 11 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público . 3.ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 54 12 Categoria esta que será tratada no próximo capítulo.
Para Engels13, o Estado surgiu como uma instituição
necessária para assegurar as novas riquezas individuais em detrimento dos
costumes e tradições gentílicas, objetivando consagrar a Propriedade,
reconhecendo, ainda, novas formas de aquisição desta. Em função da crescente e
acelerada acumulação de riquezas, o Estado apareceu, então, como uma instituição
que teria a pretensão de, além de perpetuar a divisão da Sociedade em classes,
também, a intenção de perpetuar o direito da classe possuidora de exercer domínio
sobre e explorar a classe não-possuidora14.
A gênese do Estado deriva do jusnaturalismo, ou seja, de um
estado de natureza, surgindo como fator racional da dicotomia “estado de
natureza/sociedade civil”. Sua origem se estabelece como antítese do estado de
natureza, consistente este numa situação de insegurança, faltando um poder
comum, em que os elementos que constituem tal Estado são indivíduos singulares
que não se encontram associados, mas que são associáveis. Esta passagem do
estado de natureza para o estado civil decorre de certas “convenções”, ou seja, de
atos espontâneos e intencionais de indivíduos que pretendiam se retirar do estado
de natureza, formando um estado civil, considerado este como um ente artificial que
se originava da cultura, e não da natureza15. Esse acordo, em que há o
consentimento de todos na renúncia de seu próprio poder, transferindo-o para uma
só pessoa, a qual impedirá que os demais exerçam o seu poder individual em
prejuízo dos demais, caracteriza a origem do Estado. A função primordial do Estado,
assim, consiste na garantia da paz social, com a instituição de um poder soberano.
No estudo acerca da finalidade do Estado, classificam-se,
inicialmente, seus fins em objetivos e subjetivos. Na qualidade de fins objetivos,
atenta-se à análise do papel que o Estado representa no desenvolvimento da
história da humanidade, dividindo-se estes em fins universais e particulares: aqueles
13 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do es tado. Tradução de
Leandro Konder. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. p. 120. 14 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do es tado, p. 120. 15 BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes . Tradução de Carlos Nélson Coutinho. Rio de Janeiro:
Campus, 1991. p. 1-2.
seriam os comuns a todos os Estados e de todos os tempos; nestes, cada Estado
possui seus fins próprios, resultantes das circunstâncias de sua gênese e evolução,
condicionantes de sua história16.
Quanto aos fins subjetivos, analisa-se o encontro da relação
entre os fins individuais e os do Estado, devendo a finalidade do Estado ser o
resumo dos fins individuais, que nascem e se transformam influenciados pela
vontade humana e que visam a atingir objetivos17.
Na ordem de relacionamento dos Estados com os indivíduos,
há teorias que estabelecem determinados comportamentos daqueles, estabelecidos
em consideração aos fins que pretendem atingir, podendo ser tais fins expansivos ,
ou seja, que estabelecem que o crescimento do Estado deva ser sem medidas,
anulando-se o indivíduo. Inclui-se, nestes fins, a teoria Utilitária18, ao indicar como
bem maior o máximo desenvolvimento material, ainda que com o sacrifício da
liberdade e demais valores fundamentais do homem, estando aí relacionado o
Estado do Bem-Estar, adiante tratado. Também se inclui na teoria dos fins
expansivos a teoria Ética, que pugna pela supremacia dos fins éticos, o que pode
acarretar num exacerbado moralismo, entendendo-se por regras morais do Estado a
vontade dos governantes. Tais teorias são bases para os estados totalitários19.
Por outro lado, a corrente dos fins limitados estabelece a
redução, ao mínimo, das atividades do Estado, limitando suas iniciativas,
especialmente no que diz respeito à matéria econômica, reservando alguns adeptos
dessa teoria a atividade exclusiva de manutenção da segurança dos indivíduos.
Outros adeptos dessa teoria preconizam que a função do Estado é de proteção
16 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado . 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 88. 17 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado, p. 88. 18 Amartya Sen explica que o Utilitarismo (ou teoria Utilitária), na sua forma clássica, desenvolvida por Jeremy Bentham, definia a utilidade como prazer, felicidade ou satisfação, de forma que tudo girava em torno dessas realizações mentais. Porém, “(...) Nas formas modernas do utilitarismo, a essência da ‘utilidade’ freqüentemente é vista de outro modo: não como prazer, satisfação ou felicidade, mas como a satisfação de um desejo ou algum tipo de representação do comportamento de escolha de uma pessoa. (...)”, in SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade . Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 75. 19 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado, p. 89.
exclusiva da liberdade individual, teoria esta adotada pelo Estado liberal20. Outra
teoria, inserida nos fins limitados do Estado, decorre das teorias contratualistas,
lapidada no Estado de Direito, determinando que a função do Estado consiste
unicamente na rigorosa aplicação do Direito, o que resulta no seu aspecto
meramente formalista, pois o que realmente interessa é a obediência aos preceitos
jurídicos formais, pouco importando se há ou não injustiças21.
Na teoria dos fins do Estado, inclui-se, também, a teoria dos
fins relativos , a qual preconiza a necessidade de uma nova atitude dos indivíduos
que integram a Sociedade, seja em seu relacionamento recíproco, seja no seu
relacionamento com o Estado, reduzindo a vida do Estado nas categorias conservar,
ordenar e ajudar22. Tem por base a teoria solidarista, a qual estabelece que as
ações do homem expressam um sentimento de solidariedade que é próprio dos
indivíduos, e somente quando este sentimento se externa é que se insere nas
atividades essenciais do Estado23.
Dallari24, sintetizando as correntes dispostas sobre a finalidade
do Estado, ensina que o Estado possui uma finalidade geral, enquanto sociedade
política, fim este que é o meio para que os indivíduos e a Sociedade possam
alcançar os seus fins particulares. Essa finalidade geral do Estado é o Bem-Comum,
ou seja, o “conjunto de todas as condições de vida social que consintam e
favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana” (Papa João
XXIII)25.
Sobre o conceito de Estado, ensina Dallari26 que, por enquanto,
um conceito cuja aceitação seja geral é praticamente impossível, mas o identifica
como uma “ordem jurídica soberana” que possui uma finalidade geral a atingir,
20 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado, p. 90. 21 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 90. 22 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 90-91. 23 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado, p. 90. 24 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 91. 25 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 91. 26 DALLARI, Dalmo de Abreu. O futuro do estado . São Paulo: Saraiva, 2001. p. 47-48.
envolvendo o interesse comum de todos os seus participantes. Sinteticamente, a
finalidade do Estado consiste na busca do “bem comum de um certo povo, situado
em determinado território.(...)”27.
Assim, para o conceito de Estado para a presente Tese, adota-
se aquele de Dallari28, consistente na “ordem jurídica soberana, que tem por fim o
bem comum de um povo situado em determinado território.”.
1.2. O ESTADO DE DIREITO E O ESTADO SOCIAL: O SURGI MENTO DO
ESTADO CONTEMPORÂNEO
O Estado de Direito tem suas origens no Liberalismo, ou seja,
em uma corrente de pensamento que se fixou, a partir das revoluções burguesas,
decorrentes do século XVIII, cujo objetivo era a defesa de maior nível de liberdade
individual diante do Estado, cuja posição deveria ser neutra29. A partir dessa
concepção, o indivíduo passou a ser considerado o núcleo de proteção do Estado,
idéia essa que acompanhou o desenvolvimento do capitalismo, principalmente no
que diz respeito à proteção conferida à Propriedade privada, considerando-a
absoluta. Neste sentido, qualquer pessoa poderia fazer o que quisesse com sua vida
privada, até mesmo podendo alienar a própria liberdade, através de contrato de
trabalho, em troca de dinheiro30. A defesa, portanto, dos interesses da classe
burguesa, frente ao absolutismo monárquico que vigorava, fez com que houvesse,
por parte do Estado, a necessidade premente de preservar os interesses daquela
classe, especialmente no que dizia respeito à Propriedade, passando este Estado a
ser um instrumento a serviço do homem.
Para Hobbes e Locke, a propriedade privada é a base da
filosofia liberal, por acreditarem que o efetivo cumprimento das leis era a única razão
27 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 91. 28 DALLARI, Dalmo de Abreu. O futuro do estado , p. 49. 29 CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia & estado contemporâneo . 3. ed. Curitiba: Juruá, 2002. p. 89. 30 CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia & estado contemporâneo, p. 93.
de existir do Poder estatal31.
Conforme Cruz32, Kant teorizou o exercício do Poder por uma
autoridade que tivesse autorização advinda de consenso da Sociedade33 que, em
conformidade com os anseios desta, estaria legitimada para tal exercício, autoridade
tal que seria o Estado. E, adiante, Cruz ensina que Kant, além de teorizar o Estado
de Direito como fator de impulsão às idéias liberais, ainda ensinou que a liberdade é
a obediência às leis. Com isso, estabeleceu o constitucionalismo, a opinião pública e
o direito de voto como fundamentos para o desenvolvimento da Democracia 34.
Por Estado de Direito, entende Bobbio,35 ser aquele em que o
sistema de garantias dos direitos humanos funciona regularmente, de forma que o
poder é exercido no limite das regras jurídicas que determinam a competência do
Estado e orientam suas decisões36 .
O Estado de Direito, fundado sob as bases do Liberalismo
(também conhecido como Estado Liberal ou Legislativo) distinguiu o “ser” do “dever
ser”, não aproximando o âmbito da realidade social do Direito. Isso fez com que
essa visão liberal passasse a ser entendida como a crise da Lei e do Direito,
enquanto formas de regulação, controle e programação social37. Daí a necessidade
de se atentar para a carga axiológica que deveria revestir tal Estado. Ao lado desse
fator, contribuiu para a reestruturação do Estado de Direito Liberal a idéia que este
tinha com relação a um Direito neutro e a realidade social, entendendo-se que a Lei
31 CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia & estado contemporâneo, p. 97. 32 CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia & estado contemporâneo , p. 102. 33 Aqui entendida como o “(...) Conjunto de pessoas permanentemente associadas em diferentes
grupos (família, igreja, clube, sindicato, etc.) e que apresentam padrões culturais comuns, garantindo a continuidade do todo e a consecução dos ideais pretendidos.”, in DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico . São Paulo: Saraiva, 1998. p. 395-396, v. 4.
34 CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia & estado contemporâneo , p. 102. 35 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 9. ed. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 41. 36 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 148. 37 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa no estado constitucional de direito . Curitiba: Juruá, 2001. p. 60.
participa do conflito social38. Tais elementos contribuíram para o surgimento de um
modelo estatal novo, ou seja, o Estado Constitucional de Direito, o qual se
caracterizou por estabelecer que as Constituições passavam a ter um caráter
normativo, por integrar um nível jurídico de superioridade em relação às demais
regras. Passava a Constituição a ser considerada como parâmetro que vinculava
todos os Poderes do Estado 39. A abordagem sobre o Estado Constitucional será
objeto a ser tratado no próximo item desta Tese. Nele será abordada a importância
de certos princípios constitucionais que devem comandar todo o sistema jurídico de
um país. Dentre estes princípios estão a Função Social da Propriedade e aquele
considerado o norte de todo o ordenamento jurídico brasileiro: o princípio da
Dignidade da Pessoa Humana.
Com o Socialismo da segunda metade do século XX, que
passou a ter um caráter predominantemente democrático, surgiu o Estado
Contemporâneo, com o objetivo de ser um ponto de equilíbrio entre o Estado
Socialista e o Estado Liberal em crise, especialmente àquele Estado Liberal da
segunda metade do século XIX40.
Ao Estado Social41 pode-se considerar também a expressão
Estado Contemporâneo Democrático, por compreender aquele Estado que intervém
na Sociedade para assegurar aos seus integrantes iguais oportunidades em
diversos setores, como o econômico, o social e o cultural, sendo este caráter
intervencionista o principal diferencial deste Estado42. O Estado Social foi o resultado
da reforma do Estado Liberal clássico. Sua intenção passou a ser a de superação da
crise de legitimidade do modelo clássico de Estado Liberal, sem que a estrutura
jurídico-política deste fosse abandonada43. Segundo Cademartori44, portanto,
38 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa no estado constitucional de direito . Curitiba: Juruá, 2001. p. 62-63. 39 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa no estado constitucional de direito , p. 62-63. 40 CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia & estado contemporâneo , p. 152. 41 Também entendido como Estado Social de Direito, Estado de Bem-Estar ou Estado Social-Democrata. 42 CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia & estado contemporâneo , p. 152-153. 43 CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia & estado contemporâneo , p.163.
consiste naquele em que as influências da Sociedade e do Estado foram recíprocas,
respeitando-se muitos interesses que eram assegurados pelo Estado Liberal, mas
ampliando-se a proteção da coletividade, em detrimento do individualismo
patrimonial.
A origem do Estado Social teve como fator propulsor de suas
idéias vários aspectos relativos à Revolução Industrial como, a busca de assistência
dos trabalhadores, os quais passaram a se reunir em sindicatos; o crescente nível
de pobreza que assolava a Sociedade da época, em virtude do desenvolvimento
urbano, fazendo com que se forçasse o Estado a intervir em tal situação, para
assistir tais necessidades; a responsabilidade compartilhada entre empregador e
empregado em virtude dos acidentes de trabalho, intervindo o Estado na
regulamentação dessas responsabilidades, o que fez com que a mínima
interferência do Estado nas relações privadas, característica do liberalismo clássico,
passasse a ser questionada45.
As constituições do México (1917) e de Weimar (1919) foram
as primeiras a prever, expressamente, a intervenção estatal nos âmbitos social e
econômico, e também a Constituição brasileira de 1934, que, desse período, deu
origem à expressão Estado Social. A intervenção do Estado buscou assegurar a
liberdade e adequação social e econômica aos cidadãos46.
A origem do Estado Contemporâneo pode ser atribuída às
mudanças sociais ocorridas ao longo do século XX, em especial, aquelas vinculadas
aos direitos dos proletários47, conforme visto anteriormente. Um dos grandes
dilemas do Estado Contemporâneo, para Dallari48, está em que ele pretende se
sobrepor a todos os demais poderes, inclusive àqueles que lhe conferem a própria
existência, a fim de buscar a máxima eficiência para atingir os seus fins gerais. Isto
44 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa no estado
constitucional de direito , p. 65. 45 CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia & estado contemporâneo , p. 172-173. 46 CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia & estado contemporâneo , p. 210-211. 47 CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia & estado contemporâneo , p. 159. 48 DALLARI, Dalmo de Abreu. O futuro do estado , p. 46.
quer dizer que este Estado regula comportamentos dos integrantes da Sociedade
Civil49 e dele mesmo, seja perante a própria Sociedade Civil, seja para consigo
mesmo, a fim de atender aos fins sociais pelos quais foi criado, pois o objetivo do
Estado é assegurar o bem comum de uma determinada Sociedade. O Estado tem se
utilizado de vários mecanismos para garantir este bem comum, como a interferência
em assuntos que, até então, pertenciam exclusivamente ao interesse individual.
Pasold50 ensina que o Estado Contemporâneo surgiu a partir
da Constituição Mexicana (1917) e da Constituição de Weimar (1919). Esse Estado
deve eleger comportamentos que se coadunem com a primazia do ser humano, de
modo que o social deve se sobrepor ao econômico51.
Para Dallari52, o Estado de Bem-Estar é uma realidade e
atende a uma tendência de aplicabilidade em escala mundial, sendo o “futurível”, ou
seja, uma das situações mais prováveis de acontecimento no futuro, e apresenta,
ainda, algumas tendências que os Estados Contemporâneos têm adotado: a) a
integração crescente do povo nos fins do Estado; b) a racionalização objetiva da
organização e do funcionamento do Estado, implicando formas autoritárias de
governo; c) a homogeneização relativa dos Estados; d) orientação
predominantemente nacionalista53.
Para Pasold54, se o Estado é criação da Sociedade, aquele
deve servir aos anseios sociais desta, e se o Estado Contemporâneo não se
comportar de forma compatível com essa condição, as causas que decorrem deste
fato necessitam de identificação, competindo à Sociedade retomar o domínio do
49 Aqui entendida como “(...) conjunto das relações materiais entre indivíduos numa arena de disputas
(espaço público) onde diversos grupos lutam para conquistar a hegemonia; (...)”, in CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa no estado constitucional de direito , p. 60.
50 PASOLD, Cesar Luiz. Função social do estado contemporâneo . 3. ed. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2003. p. 57. 51 PASOLD, Cesar Luiz. Função social do estado contemporâneo , p. 62. 52 DALLARI, Dalmo de Abreu. O futuro do estado, p. 136. 53 DALLARI, Dalmo de Abreu. O futuro do estado , p. 180-181. 54 PASOLD, Cesar Luiz. Função social do estado contemporâneo , p. 54-55.
Estado, em um compromisso com o interesse da coletividade55 ou do bem comum.
Tais situações são importantes para o aspecto legislativo, pois
atendem a um anseio da Sociedade em busca da manutenção do bem comum. Isso
torna segura a aplicação de uma legislação e a sua obediência a esta legislação
pela Sociedade, na qual será aplicada.
1.3. O ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO E A DEMOCRA CIA
O Estado Constitucional de Direito (ou Estado Constitucional,
simplesmente), é considerado mais que um Estado de Direito56, pois estabelece
parâmetros que asseguram o pleno desenvolvimento humano e que vinculam todas
as demais normas jurídicas à obediência destes paradigmas.
Entende-se por Estado Constitucional o Estado que se
enquadra num sistema de normas fundamentais57, cuja gênese se deu em virtude da
queda do sistema político da Idade Média, atingindo seu auge no século XVIII, com
o surgimento de documentos legislativos chamados de “Constituições”. Esse modelo
de Estado fez com que houvesse uma ampliação da proteção dos Direitos
Fundamentais, fazendo prevalecer, na ordem constitucional, direitos fundamentais
com ênfase social e com formas de intervenção na ordem econômica58.
A gênese do constitucionalismo, conforme a doutrina, deu-se
com a Magna Carta, assinada por João Sem Terra, em 1215, tendo adquirido uma
consistência maior, somente a partir do século XVII. No século XVIII, ocorre o
surgimento de diversas Constituições, principalmente a Constituição do Estado de
Virgínia (1776), a Constituição dos Estados Unidos da América (1787) e a
Constituição Francesa (1789), que afirmavam a superioridade do indivíduo, o qual
possuía direitos naturais considerados inalienáveis e que deveriam ser protegidos 55 Aqui identificada como sinônimo de Sociedade. 56 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição . 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999. p. 95. 57 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 168. 58 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa no estado constitucional de direito , p. 65.
pelo Estado59. Aliás, todos esses movimentos político-sociais, a partir da Revolução
Inglesa, foram preponderantes para a fixação dos princípios do Estado Democrático
de Direito, pois a afirmação de tais princípios enfraqueceria o poder absoluto dos
monarcas para o crescimento político da burguesia60.
O objetivo de assegurar a supremacia do indivíduo, a limitação
dos poderes dos governantes e a racionalização do poder culminou no
constitucionalismo, na base do Estado Constitucional. Tal fato coincidiu com a
divulgação da doutrina liberalista, de forma que se revelou a doutrina do liberalismo
político. Adotou-se a defesa dos direitos e liberdades individuais, observando-se nas
Constituições seu sentido material e formal61. Ao se tratar da Constituição, em seu
sentido material, deve-se identificar nela a sua substância, seu conteúdo, ou seja, a
expressão dos valores de convivência e da realidade social em que se aplica62; no
âmbito formal, a Constituição é um “conjunto de regras jurídicas dotadas de máxima
eficácia, concernentes à organização e ao funcionamento do Estado. (...)”63. Passa o
Estado Constitucional a ser visto como o conjunto de princípios, diretrizes, garantias
e instituições que restaurem a operacionalidade do Estado, e não como somente
aquele conjunto de normas de caráter geral e individual descrito por Kelsen64.
Peña Freire65, parafraseando Andrés Ibañez, define o Estado
Constitucional de Direito, a partir de três fatores relevantes: “(...) a) la supremacía
constitucional y de los derechos fundamentales, sean de naturaleza liberal o social,
b) la consagración del principio de legalidad como sometimiento efectivo al derecho
de todos los poderes públicos y c) por la funcionalización de todos los poderes del
Estado a la garantía del disfrute de los derechos de carácter liberal y a la efectividad
59 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 169. 60 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 123-128. 61 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 170. 62 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 170. 63 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 171. 64 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa no estado
constitucional de direito , p. 67. 65 PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantía en el Estado constitucional de derecho , p. 37.
de los sociales (...)”66. Peña Freire ensina que o Estado Constitucional não é
somente um ser, mas um dever ser que compreende elementos diversos, fins,
valores, imperativos ou exigências definidoras da constituição deste Estado,
entendido como uma concentração institucional com um sentido preciso originado de
seu próprio modelo normativo. Este modelo normativo, por sua vez, é constituído
por uma forte carga axiológica que almeja projeção e realização nas diversas ordens
jurídicas e políticas existentes67.
Para Aristóteles68, a Democracia existe quando homens livres
detêm o poder soberano e somente quando cidadãos pobres e livres, que formem a
maioria, passam a ser senhores do governo. Ensina ainda o mesmo filósofo69 que há
algumas espécies de democracia: uma em que a igualdade é o bem supremo, o
fundamento, significando igualdade a situação em que não há privilégios políticos
entre ricos e pobres e que nenhum deles é soberano de forma exclusiva, mas todos
o são em igual proporção, fazendo autoridade a opinião da maioria70.
Ensina Aristóteles71 que há mais três espécies de democracia:
A segunda espécie está determinada pelo modo de eleição que ela adotou. Todos aqueles que são irrepreensíveis, do lado do nascimento, têm direito de participar dos negócios do governo, embora não tenham tempo para deles se ocupar. As leis ainda são soberanas nesta espécie de democracia, porque os cidadãos não possuem fortuna. A terceira espécie admite às funções públicas todos os homens livres, mas a razão que acabamos de expor inibe-os de exercer seu direito; forçosamente, pois, a lei ainda é soberana nesse governo. A quarta espécie é aquela que se estabeleceu por último nos Estados, segundo a ordem cronológica.
A identidade das idéias de Aristóteles com a idéia moderna de
66 “(...) a) a supremacia constitucional e dos direitos fundamentais, sejam de natureza liberal ou social, b) a consagração do princípio da legalidade como submissão efetiva ao direito de todos os poderes públicos e c) pela funcionalização de todos os poderes do Estado à garantia da fruição dos direitos de caráter liberal e a efetividade dos sociais (...)”. 67 PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantía en el Estado constitucional de derecho , p. 38. 68 ARISTÓTELES. A política . Tradução de Nestor Silveira Chaves. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. p.
115. 69 ARISTÓTELES. A política , p. 117. 70 ARISTÓTELES. A política , p. 117. 71 ARISTÓTELES. A política , p. 119.
Democracia converge na noção de governo do povo, divergindo, contudo, quanto à
noção do povo que deveria governar72.
Como já observado, o Estado Democrático teve sua gênese na
revolta da classe burguesa contra o absolutismo, em busca da afirmação dos
Direitos Fundamentais do homem. Embora os documentos da Constituição do
Estado de Virgínia (1776) e da Constituição dos Estados Unidos da América (1787)
contivessem afirmações de tais direitos, foi com a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão (1789), que prevaleceu no sentido de universalização destes
direitos. Tal fato decorreu da necessidade de unidade dos franceses, em virtude da
instabilidade interna de seus líderes, diante da monarquia (o que colaborou para o
surgimento da idéia de “nação”), bem como do conflito entre Igreja e Estado73.
Com a Declaração de 1789 os homens passam a ser
considerados livres e iguais em direitos, estabelecem-se certos direitos humanos
naturais e imprescritíveis como a liberdade, a propriedade , a segurança e a
resistência à opressão74. Não se pode limitar qualquer desses direitos ao indivíduo,
senão por intervenção da Lei. Essa Lei, que é a vontade geral, é formada pelos
cidadãos ou por seus representantes.
Aliás, é o que diz o artigo II, da referida Declaração: “O fim de
toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do
homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade , a segurança e a resistência
à opressão” (grifado). Observa-se o direito à Propriedade aí já assegurado como um
direito do homem, o que importará substancialmente para esse estudo. Bobbio75
observa que, dos quatro direitos do homem assegurados na Declaração (liberdade,
propriedade, segurança e resistência à opressão), somente o direito à liberdade é
definido. Diz o autor, no entanto, que a Propriedade não necessitava ser definida,
pois “a ela se refere apenas o último artigo, que estabelece um princípio geral de
direito absolutamente óbvio, o de que a propriedade, sendo um direito sagrado e 72 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 124. 73 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 127. 74 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 127. 75 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 123.
inviolável, não pode ser limitada a não ser por razões de utilidade pública. (...)”.
Como se identificará adiante, por mais que o direito de Propriedade seja
considerado um Direito Fundamental, há outros direitos fundamentais que se
sobrepõem a esse, identificando, alguns autores, que sequer se trata a Propriedade
de Direito Fundamental. Tais considerações serão tratadas com maior profundidade
posteriormente, em Capítulo próprio sobre o Direito de Propriedade (Capítulo 2).
Os seguintes princípios passam a orientar os Estados como
necessários para a existência da democracia: supremacia da vontade popular,
preservação da liberdade e igualdade de direitos76. Tais princípios passaram a ser
considerados como ideais utópicos num Estado, pois se considera importante motivo
de crise do Estado Contemporâneo o fato de que as concepções do Século XVIII,
respeitantes à organização e objetivos de um Estado, ainda prendem o homem do
século XX, não se identificando com a realidade atual77. Isto porque, no século XVIII,
no surgimento da República e, mais tarde, com a exaltação da autoridade do Poder
Legislativo como garantia contra o governo absoluto, apareceu o impasse relativo
aos representantes do povo. Com a ascensão do industrialismo, fazendo com que o
uso da Propriedade e o regime de produção se concentrasse nas mãos de alguns
em detrimento de outros, tais conflitos fizeram com que o Processo Legislativo se
tornasse lento e imperfeito, tecnicamente, entendendo-se, inconveniente, a
participação do povo e sua exclusão, antidemocrática78.
Além disso, a supremacia da liberdade e da igualdade gerou
uma segunda crise: primar pela liberdade, ou pela igualdade? Preferida a liberdade,
poderiam ser criadas desigualdades injustas; primar pela igualdade de todos,
assegurada por uma organização rígida e coativa, poderia sacrificar a liberdade de
todos. Ambas as situações contrariam o ideal de Estado Democrático79.
Outro impasse foi manter o Estado Democrático vinculado a
somente uma forma, que poderia disfarçar uma ditadura, ou afastar a exigência de 76 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 128. 77 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 254. 78 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 255. 79 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 256.
forma diversa, abolindo o controle e possibilitando a concentração do poder,
tornando arbitrária sua utilização80.
Dallari81 ensina que o Estado Democrático pode ser alcançado,
desde que sejam considerados os seguintes aspectos: a) eliminação da rigidez
formal, fazendo com que a forma como os valores fundamentais de um povo,
variável de época para época, faça com que o Estado seja flexível, adaptando-se à
nova realidade social; b) que a supremacia da vontade do povo seja respeitada, de
forma que as políticas fundamentais do Estado sejam decididas pelos próprios
governados por uma vontade livremente formada e livremente externada,
preservando-se o direito desse povo divergir, prevalecendo, sempre, o desejo da
maioria; c) que a liberdade seja preservada, levando-se em consideração o
relacionamento entre os indivíduos componentes dessa Sociedade, implicando aos
mesmos deveres e responsabilidades; d) a preservação da igualdade não apenas
como um direito, mas como uma possibilidade, admitindo que, na vida real, há
desigualdades entre os homens82.
Assim, o Estado Democrático de Direito consiste naquele “(...)
que intervém nos domínios econômico, social e cultural, obedecidos os parâmetros
mínimos de cidadania política, justiça, representatividade, legalidade e
legitimidade”83. Sobre o princípio da intervenção da Sociedade no individual,
assevera Mill84 que a finalidade única do intervencionismo de um homem no aspecto
individual e coletivo, na liberdade de ação de alguém, se justifica pela autoproteção,
ou seja, com o objetivo de “impedir dano a outrem”. Contudo, não pode o interesse
público interferir nos gostos e interesses particulares dos indivíduos85.
A intervenção do Estado nas relações privadas tem importância
80 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 256. 81 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 257-259. 82 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 259. 83 CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia & estado contemporâneo , p. 153. 84 MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Tradução de Alberto da Rocha Barros. 2. ed. Petrópolis:
Vozes, 1991. p. 53. 85 MILL, John Stuart. Sobre a liberdade, p. 128.
para a presente Tese, pois acompanha a evolução das gerações86 de direito. Isto
porque o direito de Propriedade, assegurado com a primeira geração de direitos, se
baseou nos direitos individuais, de relações estritamente privadas. No atual estágio
de gerações de direitos, no entanto, tal relação, que antes era de caráter particular,
passa a ter um reflexo social, intervindo o Estado neste aspecto, fazendo com que a
Propriedade deva ter uma Função Social.
Com o fenômeno da industrialização apareceram vários
setores sociais que precisavam de melhores condições de vida, surgindo daí
diversos conflitos, fazendo com que houvesse a necessidade de intervenção e
regulação do Estado para o bom andamento do mercado e a satisfação da
Sociedade prejudicada com a expansão do fenômeno da industrialização87. Mill88, no
entanto, esclarece que há argumentos contrários à interferência do público (Estado)
na condução dos interesses particulares. O mais forte argumento é o fato de que,
quando há interferência do poder público, ele interfere de forma e no lugar errados.
Além disso, Mill89 estabelece três gêneros de objeções à
interferência governamental: 1) não há alguém em maior condição de dirigir algum
negócio ou determinar como ou quem deva conduzi-lo do que aquele que está
diretamente interessado nele, havendo coisas que são mais adequadas a serem
feitas pelos indivíduos do que pelo governo; 2) ainda que o indivíduo não faça tão
bem a coisa que pretende, é preferível que seja feita pelo indivíduo do que pelo
governo, sendo esta forma um meio para educação mental daquele; 3) como maior
razão para limitar a interferência do governo deve-se evitar aumentar,
desnecessariamente, o poder do mesmo.
86 Ou, como prefere Sarlet, “dimensões” de direitos, pois “(...) o uso da expressão ‘gerações’ pode
ensejar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela qual há quem prefira o termo ‘dimensões’ dos direitos fundamentais, posição esta que aqui optamos por perfilhar, na esteira da mais moderna doutrina (...).”, além de conduzir ao “(...) entendimento equivocado de que os direitos fundamentais se substituem ao longo do tempo, não se encontrando em permanente processo de expansão, cumulação e fortalecimento. (...)”, in SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais , p. 49.
87 CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do direito constitucional . 1. ed. Curitiba: Juruá, 2002, p. 197.
88 MILL, John Stuart. Sobre a liberdade, p. 126. 89 MILL, John Stuart. Sobre a liberdade, p. 152-153.
Após a II Guerra Mundial, o caráter intervencionista do Estado
foi estimulado, de forma que este assumiu o encargo de garantia da prestação dos
serviços considerados fundamentais a todos os indivíduos, aumentando a sua
interferência na Sociedade90. Disso resultou um novo intervencionismo do Estado na
vida da Sociedade, fazendo com que houvesse o desaparecimento entre público e
privado, passa, então, o Estado a servir como financiador, consumidor e sócio,
principalmente daquelas associações que mais contrariavam a idéia deste
intervencionismo91.
1.4. A SEPARAÇÃO DOS PODERES
A partir do princípio de que “Tudo estaria perdido se o mesmo
homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres ou do povo exercesse os
três poderes (...)”92, a concentração dos Poderes no Estado poderia degenerar em
despotismo. Neste sentido, a divisão dos Poderes do Estado foi estabelecida em
três funções diversas, ou seja, executiva, legislativa e judiciária. Esta divisão tinha a
intenção precípua de limitar a extensão do poder atribuído ao monarca, assegurando
a liberdade do indivíduo como bem maior a ser preservado.
Ensina Dallari93 que a separação dos Poderes em Executivo,
Legislativo e Judiciário já constava na Declaração de Direitos da Virgínia (1776), a
qual, em seu parágrafo 5o, determinava “que os poderes executivo e legislativo do
Estado deverão ser separados e distintos do judiciário”. Também assevera o autor
que essa exigência é mais enfática na Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, aprovada na França em 1789, “declarando-se em seu artigo XVI: ‘Toda
sociedade na qual a garantia dos direitos não está assegurada, nem a separação
dos poderes determinada, não tem Constituição’”.
A função legislativa clássica é decorrente do Estado Liberal de Direito
originado pelas revoluções do final do século XVIII e começo do século XIX, 90 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 237. 91 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 238. 92 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis , p. 171. 93 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 184.
vinculando-se à teoria clássica da separação dos Poderes de Montesquieu94. Aliás,
já Aristóteles95 ensinava que não é justo que o poder fique nas mãos de um só.
Para Cruz96, esta fórmula de divisão dos Poderes em três
espécies distintas tem servido como “elemento definidor do constitucionalismo”,
embora o desenvolvimento do constitucionalismo modificasse os pressupostos
originais do princípio da separação dos poderes, continuando, no entanto, relevante
pelos seguintes motivos:
1) ao se diferenciar os Poderes Legislativo e Executivo, preserva-se a peculiaridade
do Processo Legislativo, pois a discussão e publicidade permitem que as minorias
participem e controlem as atividades governamentais, permanecendo o Poder
Legislativo como “foco de controle e crítica, assim como de discussão pública, entre
as diversas alternativas políticas”;
2) preserva-se a independência do Poder Judiciário relativamente aos demais
poderes do Estado.
Porém, esta divisão clássica do Poder do Estado pode não
mais atender à complexidade do mundo contemporâneo, às necessidades do
próprio Estado e da Sociedade, havendo, na doutrina, propostas de discussão de
uma nova divisão do Poder do Estado em quatro, cinco ou mais poderes97.
O Poder Legislativo não exerce somente a atividade de
produção normativa, mas, ao lado da sua independência relativamente aos demais
Poderes, possui função orçamentária, prevendo receitas e autorizando despesas do
Estado; função de controle, pois o controle parlamentar é exercido sobre o Poder
Executivo; função de foro de debate político, onde as opiniões se expressam de
forma pública, considerando-se a opinião pública, projetos e reações da
94 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis . Tradução de Cristina
Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 171. 95 ARISTÓTELES. A política , p. 72. 96 CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do direito constitucional , p. 100-101. 97 CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do direito constitucional, p. 101-102.
Sociedade98. Para Cruz99, a função legislativa, enquanto elaboração de normas que
têm caráter geral e que vinculam cidadãos e poderes, submetidas somente à
Constituição, é a principal função parlamentar.
No entanto, as leis são estáticas e, por vezes, não acompanham a
evolução da Sociedade, necessitando, por isso, de uma resposta imediata do
Estado, sem se olvidar do conteúdo justo que deve prevalecer nas situações fáticas
que se apresentam no cotidiano. Daí, a necessidade de o Estado, através do Poder
Judiciário, ajustar a Lei às necessidades sociais, não aplicando somente a lei ao
caso concreto, mas moldando o conteúdo legal com todo o aparato normativo à
disposição do Estado, utilizando os princípios jurídicos e demais fontes para tornar o
direito proclamado, justo.
1.5. A SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO E OS DIREITOS FUN DAMENTAIS
Antes de ingressar na temática da Constituição Brasileira,
importa retratar no que consistem os chamados Direitos Fundamentais. Observou-se
que, na evolução do Estado, a afirmação de certos direitos de ordem natural foram
imprescindíveis para a limitação dos poderes existentes no Absolutismo, então
vigente. As declarações de direitos que passaram a surgir de tais revoltas contra a
Monarquia fizeram com que tais Direitos fossem consolidados, muitos em
documentos escritos, outros, ainda que não escritos, existentes no ordenamento
jurídico. No continente europeu, onde se desenvolveu e originou a maior parte da
cultura ocidental, sentiu-se a necessidade de se proclamar a soberania do povo e a
liberdade dos oprimidos pelo regime absolutista que os governos imprimiam à
Sociedade da época. Daí que as idéias iluministas, tão mais à frente daquela
realidade e da necessidade social, tiveram grande influência na Revolução Francesa
de 1789, manifestando-se tais pensamentos na Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão, aprovada pela Assembléia Nacional da França, em 26 de agosto de
1789.
98 CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do direito constitucional, p. 107. 99 CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do direito constitucional, p. 104.
A maior conquista dos direitos humanos ocorreu com a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia-Geral das
Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, a qual pode ser considerada como a
maior prova histórica de consenso humano sobre um certo sistema de valores,
proclamando o art. 1º, da referida Declaração: “Todos os homens nascem livres e
iguais em dignidade e direitos” 100. Bobbio101, ao comentar o referido artigo, retrata
que o fato de o homem nascer livre e igual é exigência da razão, mas não uma
constatação fática ou histórica, pois, na realidade, não nasce livre nem igual. A
gênese de tal princípio, portanto, é ideal, não histórica.
Hoeffe102 estabelece que há entre os direitos humanos e os
Direitos Fundamentais igualdade no seu conteúdo, mas diferem quanto a sua
existência, pois os direitos humanos consistem em padrões morais que subordinam
alguma ordem jurídica, os Direitos Fundamentais são estes direitos humanos que
são efetivamente reconhecidos por uma dada ordem jurídica.
Os Direitos Fundamentais podem ser entendidos como direitos
subjetivos públicos, decorrentes de liberdades públicas, que consistem num conjunto
de direitos e garantias que passaram do direito natural para o direito positivo,
conquistados especialmente com as revoluções burguesas dos séculos XVII e
XVIII103. Tais Direitos Fundamentais estão escritos nos artigos 5o a 17, da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, porém não de forma
exaustiva104.
Os Direitos Fundamentais, numa perspectiva histórica, como
visto, tiveram sua configuração nos documentos escritos surgidos com as revoluções
burguesas, asseguradoras dos direitos humanos. Dentre as principais Declarações,
100 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos , p. 27. 101 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos , p. 118. 102 HOEFFE, Otfried. Justiça política : fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do estado.
Tradução de Ernildo Stein. Petrópolis: Vozes, 1991. 404 p. 103 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa no estado
constitucional de direito , p. 71. 104 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa no estado
constitucional de direito , p. 72.
a Déclaration des droits de l´homme et du citoyen (Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão), de 1789, reconheceu uma série de princípios e direitos que
eram representações do ideário burguês como a igualdade, liberdade, segurança,
resistência à opressão, soberania nacional, participação política, garantia de direitos,
separação de Poderes, legalidade das penas, presunção de inocência e Propriedade
(esta última categoria, que interessa para o presente estudo). Porém, muitos dos
direitos reconhecidos por tais documentos transmitiam a conveniência de algumas
classes em determinada época, como, por exemplo, o direito de Propriedade, de
cunho eminentemente econômico e que se estendeu na Déclaracion Universal de
1948105.
Segundo Sarlet106, os Direitos Fundamentais são:
(...) todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade em sentido material) integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não, assento na Constituição formal (aqui considerada a abertura material do Catálogo).
Para Peña Freire107, os Direitos Fundamentais são “(...)
expresión jurídica de un valor o complejo de valores que una vez incorporados al
ordenamiento adquieren un sentido prospectivo o abierto respecto del desarollo
normativo y político. (...)”;”108, não se tratando somente de normas jurídicas frutos de
uma decisão política, mas incorporando uma carga axiológica muito forte projetada
no ordenamento jurídico109.
105 SAUCA, José Maria (Coord). Problemas actuales de los derechos fundamentales. Universidad
Carlos III de Madrid. Boletín oficial del Estado: Madrid, 1994, p. 53-64. 106 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais , p. 82. 107 PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantía en el Estado constitucional de derecho , p. 86-87. 108 PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantía en el Estado constitucional de derecho , p. 109:
“(...) expressão jurídica de um valor ou complexo de valores que, uma vez incorporados ao ordenamento, adquirem um sentido prospectivo ou aberto a respeito do desenvolvimento normativo e político. (...)”.
109 Aqui entendido como o “(...) contexto de normas com relações particulares entre si (...)”, in BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico . Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p. 19.
O termo “Direitos Fundamentais” se refere aos direitos
humanos reconhecidos e positivados no direito constitucional positivo de um
Estado110, somente podendo se desenvolver quando são garantidos e transformados
em normas de direito positivo111.
Os Direitos Fundamentais podem ser divididos em sentido
formal e material. Direitos Fundamentais em sentido formal consistem nas posições
jurídicas que o Legislador-Constituinte, de forma expressa, consagrou sobre a
pessoa, considerada individual, coletiva ou socialmente, no catálogo dos Direitos
Fundamentais. Direitos Fundamentais, em sentido material , consistem naqueles
direitos que, embora situados fora do catálogo de direitos elaborado pelo Legislador-
Constituinte, em razão da sua importância e conteúdo são equiparados aos direitos
formal e materialmente fundamentais112.
A Constituição é o “(...) simples modo de ser do Estado”, sendo
sua Lei fundamental, o documento organizador dos seus elementos essenciais113.
Consiste, portanto, em um
(...) sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias. Em síntese, a constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado114.
Kelsen115 ensina que, na construção escalonada dos diversos
níveis de normas jurídicas, a Constituição (no sentido material, ou seja, mecanismo
que regula a produção das normas jurídicas gerais), está no nível mais elevado do
110 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais , p. 33. 111 ALEXY, Robert. Teoria del discurso y derechos humanos . Tradução de Luis Villar Borda.
Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 1995. p. 93. 112 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais , p. 85-86. 113 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo . 20.ed. São Paulo: Malheiros,
2002, p. 39. 114 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo , p. 39-40. 115 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito . 6. ed. Tradução João Baptista Machado. São Paulo:
Martins Fontes, 1998, p. 247.
Direito positivo e, adiante, leciona116:
“A Constituição, que regula a produção de normas gerais, pode também determinar o conteúdo das futuras leis. E as Constituições positivas não raramente assim procedem ao prescrever ou ao excluir determinados conteúdos. No primeiro caso, geralmente, apenas existe uma promessa de leis a fixar e não qualquer obrigação de estabelecer tais leis, pois, já mesmo por razões de técnica jurídica, não pode facilmente ligar-se uma sanção ao não-estabelecimento de leis com o conteúdo prescrito. Com mais eficácia, porém, podem ser excluídas pela Constituição leis de determinado conteúdo. O catálogo de direitos e liberdades fundamentais, que forma uma parte substancial das m odernas constituições, não é, na sua essência, outra coisa senão uma tentativa de impedir que tais leis venham a existir . (...)”. (grifado).
A autêntica Constituição será aquela que conseguir conjugar e
maximizar valores individuais e sociais, selecionados pelo povo através da
experiência117. A Constituição tem supremacia relativamente a outras normas e
condiciona todo o sistema jurídico. Dependem da sua obediência os atos que
pretendem produzir efeitos jurídicos dentro do sistema118.
Neste sentido, a Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988 consagra, em seu artigo 60, § 4o, IV, que os direitos e garantias individuais
(ou Direitos e Garantias Fundamentais) não serão objeto de deliberação de proposta
de emenda que tenda a aboli-los. Os Direitos Fundamentais, assim, possuem
significado especial na CRFB/88, outorgando-lhes imediata eficácia (art. 5o, § 1o,
CRFB/88) e inserindo a cláusula de imutabilidade que lhes garante eternidade,
constituindo direitos subjetivos e elementos fundamentais do ordenamento jurídico
brasileiro119.
1.6. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PES SOA HUMANA
O estudo do princípio da Dignidade da Pessoa Humana, no
contexto da presente Tese, reside na sua importância como princípio embasador 116 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito ,p. 249. 117 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 172. 118 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado , p. 173. 119 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e f undamentais no
Brasil . Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 187.
dos Direitos Fundamentais e do Estado Democrático de Direito, estabelecido no
Brasil. Neste sentido, importante antecipar que se considera o princípio da
Dignidade da Pessoa Humana o fundamento do sistema de direitos fundamentais,
pois estes são “exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da
pessoa humana e que com base nesta devem ser interpretados.”120. Este princípio
constitui valor-guia para toda a ordem jurídica, justificando-se, para muitos, como
“princípio constitucional de maior hierarquia axiológico-valorativa”121.
A Dignidade da Pessoa Humana é um princípio estruturante,
indicativo e constitutivo das idéias de todo o ordenamento jurídico constitucional e
nacional, aplicando-se como indicador de todo este ordenamento, de forma que
fulmina de inconstitucionalidade qualquer preceito conflitante com tal princípio122.
Várias Constituições já haviam estabelecido o Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana em seu conteúdo, citando-se como exemplos a
Constituição de Weimar (1919), no artigo 151, I; a Constituição Portuguesa (1933),
em seu artigo 6o, n º 3 e a Constituição da Irlanda (1937), em seu preâmbulo123.
A Dignidade da Pessoa Humana é um dos conceitos que foram
recuperados pelo constitucionalismo havido no pós-guerra, no contexto da
reabilitação do direito natural, considerando-se a dignidade como “(...) el efecto de la
afirmación personal frente al poder y, en el derecho, como la resultante de ese
posicionamiento central de la persona en el contexto jurídico-político”124. Os Direitos
Fundamentais, neste sentido, são mecanismos institucionais que o direito expressa
a centralidade da pessoa, vinculando-a ao ambiente social, de forma que tais
direitos estão fundamentados na Dignidade da Pessoa Humana na qualidade de
dado externo, que se torna indisponível ao poder e ao direito, mas que em ambos 120 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais , p. 115. 121 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
constituição Federal de 1988 . 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 74. 122 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo . Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.
191. 123 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais , p. 101. 124 PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantía en el Estado constitucional de derecho , p. 82-83
(“(...) o efeito da afirmação pessoal frente ao poder e, no direito, como a resultante deste posicionamento central da pessoa no contexto jurídico-político”).
deve se refletir125.
O ideal da Dignidade da Pessoa Humana, no âmbito do
ordenamento jurídico brasileiro, é colocar a pessoa humana como finalidade da
Sociedade brasileira, não somente com a finalidade de alcançar outros objetivos
como o econômico, por exemplo126. Neste norte, o patrimônio e o Direito devem ser
colocados a serviço da pessoa com fundamento no respeito ao ser humano127.
Também importa considerar que existem Direitos
Fundamentais que não possuem um conteúdo aferível em dignidade, mas
constituem, tais Direitos Fundamentais, exigências e concretizações com
intensidades diversificadas relativamente à dignidade128.
Sarlet129 cita lição de Pérez Luño no sentido de que o princípio
da Dignidade da Pessoa Humana assegura, além do desenvolvimento da
personalidade dos indivíduos que compõem a Sociedade, também que estas não
sofrerão ofensas ou humilhações. Enfim, trata-se a Dignidade da Pessoa Humana
de “(...) um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do
homem, desde o direito à vida”130. É qualidade inerente à pessoa humana,
irrenunciável e inalienável, inseparável do ser humano.
Entende a doutrina ser difícil conceituar o Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana, haja vista que se trata de um conceito que está em
constante processo de construção e desenvolvimento, não se podendo conceituá-lo
de forma hermética, em razão da diversidade de valores que as Sociedades
125 PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantía en el Estado constitucional de derecho , p. 83. 126 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional . São Paulo: Celso Bastos, 2002. p. 248-
249. 127 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo , p. 258. 128 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
constituição Federal de 1988 , p. 133. 129 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais , p. 112. 130 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo , p. 105.
democráticas contemporâneas manifestam131. No entanto, com a lição de Sarlet132
tem-se o seguinte conceito operacional133 para Dignidade da Pessoa Humana:
(...) a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.
Este princípio obriga o Estado a impor o dever de respeito,
proteção e promoção das condições que tornem viável e possibilitem a remoção dos
obstáculos que possam impedir a vida das pessoas com dignidade134.
Como a presente Tese versa sobre a Propriedade Fiduciária,
na sua forma de Alienação Fiduciária em Garantia, em especial sua Função Social,
observou-se que o direito de Propriedade, conforme consagrado na CRFB/88 foi
elevado à condição de Direito Fundamental. Porém, tal Direito Fundamental, além
de estar atrelado a uma Função Social, deve estar em conformidade com o princípio
da Dignidade da Pessoa Humana.
O Direito de Propriedade sempre se encontrou no âmbito das
relações privadas, em que o absolutismo da propriedade reinava. Porém, com a
constitucionalização desse direito, atualmente o mesmo deve ser contemplado em
observância dos demais direitos e princípios constitucionais, dentre eles o Princípio
da Dignidade da Pessoa Humana, pois “(...) todas as entidades privadas e os
particulares encontram-se diretamente vinculados pelo princípio da dignidade da
131 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
constituição Federal de 1988 , p. 41. 132 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
constituição Federal de 1988 , p. 62. 133 Conceito Operacional consiste numa “(...) definição para uma palavra ou expressão, com o desejo
de que tal definição seja aceita para os efeitos das idéias que expomos, (...)”, in PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa jurídica : idéias e ferramentas úteis para o pesquisador do direito. 7. ed. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2002. p. 45.
134 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição Federal de 1988 , p. 112.
pessoa humana. (...)”135.
Assim, não somente o Estado deve estar configurado na
moldura de garantidor das liberdades e Direitos Fundamentais, mas também os
integrantes da Sociedade em suas relações privadas. Isto porque, diante da situação
de globalização da economia, com privatizações, por exemplo, ocorre um
considerável crescimento do poder que grandes corporações exercem nas relações
com o Estado e com a própria Sociedade, por possuírem um poder econômico,
algumas vezes, superior ao de muitos Estados, interferindo, portanto, diretamente
nos Direitos Fundamentais136. O princípio da Dignidade da Pessoa Humana atua,
concomitantemente, como “(...) limite dos direitos e limite dos limites, isto é, barreira
última contra a atividade restritiva dos direitos fundamentais”137.
Conforme o que foi disposto até o momento, observa-se que o
ordenamento jurídico infraconstitucional deve estar em conformidade com as
disposições constitucionais, seja relativamente às suas regras, seja aos seus
princípios estruturantes, a fim de que o conteúdo da regra jurídica alcance o que a
Consciência Jurídica Social (categoria tratada no item a seguir) almeja. É neste
enfoque, portanto, que se passa ao item seguinte, ao tratar sobre a Política Jurídica.
1.7. A POLÍTICA JURÍDICA: CONCEITO, OBJETO E OBJETIVOS
Este item desponta como uma observação necessária do que
consiste a Política Jurídica, haja vista que a proposta dessa Tese se localiza no
papel de correção da norma exercido pela Política Jurídica, na dimensão
operacional, isto é, no “(...) agir, que é a operação do fazer, a realização de uma
idéia, de um querer”138. Liga-se, especialmente à tarefa de produção do Direito
135 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
constituição Federal de 1988 , p. 112. 136 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
constituição Federal de 1988 , p. 113-114. 137 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
constituição Federal de 1988 , p. 123. 138 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito . Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 1998. p. 71.
Positivo, e da Política Jurídica no âmbito da produção judiciária.
1.7.1. Conceito de Política Jurídica
No entendimento de Roubier139, a Política Jurídica consiste na
disciplina necessária para a constituição do conteúdo da norma jurídica. É ela que
conhece qual é o melhor conteúdo de uma regra de direito, postula um julgamento
de valor e, assim, supõe um ideal que serve de ponto de comparação, de forma que
este ideal é a justiça. Roubier140 ensina que a Política Jurídica deve se socorrer de
algumas disciplinas auxiliares como a moral, a história, o direito comparado etc., a
fim de que possam ser analisados os elementos da vida em Sociedade para se
saber quais são suas diversas necessidades e quais devem realizar a satisfação das
instituições humanas. Na qualidade de um trabalho científico, o objeto de
observação é o meio social.
A Política Jurídica pretende assegurar certos valores que se
encontram, ou não, no ordenamento jurídico, a fim de legitimar um Direito justo que
a proposta dogmática não consegue alcançar141.
Entende-se a Política Jurídica como uma disciplina, uma área
autônoma de conhecimentos e estratégias, que procura identificar, através de uma
pesquisa ordenada e consciente, sua importância, objeto e objetivos para o Direito.
Daí se abstrai a idéia principal de que a Política Jurídica se constitui um instrumento
de meio, de mecanismos para a consecução de fins socialmente e juridicamente
desejáveis, num contexto de utilidade do conteúdo material da norma142. Pode a
Política Jurídica se entendida, ainda, como um acontecimento de ruptura entre o
“direito que é”, e o “direito que deve ser”, sendo um instrumento que o jurista possui
para direcionar as mudanças sociais, pois que se estuda a validade material da
norma, seu conteúdo, a fim de que possa ter uma adesão social em função de sua 139 ROUBIER, Paul. Théorie Générale du droit - histoire des doctrines juridiques et philosophie des
valeurs sociales. 2. Ed. Paris: Libreirie du recueil Sirey. 1951. p. 198. 140 ROUBIER, Paul. Théorie Générale du droit - histoire des doctrines juridiques et philosophie des
valeurs sociales, p. 198. 141 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica . 1. ed. Porto Alegre: Sergio
Antônio Fabris Editor, 1994. p. 84. 142 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 24-47.
utilidade em determinado momento, buscando alcançar, assim, o Direito justo143.
Preocupa-se essa disciplina (Política Jurídica), não com o
direito vigente, mas com o direito que se intenta alcançar, aquele que se encontra
mais próximo das necessidades e satisfações atuais da Sociedade, buscando o
valor “justiça” para justificar a norma jurídica144. Dias145 ensina que, partindo-se da
perspectiva da Política Jurídica, “(...) poder-se-ia questionar a ordem social a qual o
Direito serve, indagando-se se o Direito é justo ou injusto. Enquanto, à Ciência
Jurídica, cabe apenas conhecer seu objeto, o Direito, e não questioná-lo quanto a
suas determinações ou objetivos, ou seja, ela não atribui juízos de valor”.
1.7.2. Objeto da Política Jurídica
A preocupação da Política Jurídica pela norma jurídica inicia
desde as suas mais remotas manifestações na Sociedade, sendo as principais
preocupações da Política Jurídica os valores, fundamentos e conseqüências da
norma no meio social146.
São objetos da Política Jurídica a adequação entre os fins e
meios de regulação da vida social humana, aliada à aplicação dos valores “justiça” e
“utilidade social”147; o humanismo que possua por fundamento as possibilidades e
interesses do ser humano, o qual venha a resultar numa “postura ética universal”148;
a norma, seja sua análise ou justificação realizada numa dimensão axiológica, ou
pragmática, a qual será operacionalizada com seu ingresso ou exclusão do sistema
legal do país com o uso da técnica jurídica149; os valores e os fins alcançáveis pelo
Direito150; o grau de necessidades e interesses que estejam embutidos na emissão
do juízo de valor, para o entendimento do vínculo havido entre “(...) o desejo da 143 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 114. 144 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 129. 145 DIAS, Maria da Graça Santos. A justiça e o imaginário social . Florianópolis: Momento Atual, 2003. p. 29-30. 146 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito , p. 19. 147 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 27 e 81. 148 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 65. 149 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 92. 150 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 105 e 107.
coisa e o valor a ela atribuído”151.
Outro importante objeto da Política Jurídica consiste no
conteúdo agregado pela comunidade, através das experiências que esta acumulou,
suas tradições e valores adotados com o passar do tempo, ou seja, a chamada
“Consciência Jurídica Social”, categoria da maior importância para a Política
Jurídica152. Consiste esta categoria “(...) não só como a tradição pré-normativa da
sociedade, mas ainda como readequação de valores prevalentes em seu estrato
político (o estrato da consciência, da experiência, da cidadania)”153.
Segundo Melo154:
(...) a consciência jurídica teria a ver com o senso comum valorativo do indivíduo ou da sociedade no que se refere à capacidade de decidir sobre o justo ou o injusto, o que seja socialmente útil ou inútil, com incidência sobre as normas de conduta. Tal entendimento pode nos dar a dimensão das representações jurídicas na projeção da norma que deva ser e como deva ser.
É na Consciência Jurídica Social que as representações
jurídicas que dizem respeito às normas desejáveis orientam as normas que “devam
ser”155. Por isso, a Política Jurídica desenvolve suas atividades com base em
predições de “(...) novas realidades desejadas e possíveis, e não com previsão de
certezas. (...)”156.
Ripert157 ensina que a incerteza de determinadas questões
jurídicas tem proveniência na insuficiência da construção técnica, lecionando, a
seguir, que “(...) A arte de legislar tem as suas regras. A querer lançar no mundo
preceitos de justiça ideal sem ter em conta a organização social existente, far-se-á
151 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 107. 152 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito , p. 23. 153 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito , p. 22. 154 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito , p. 26. 155 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito , p. 25. 156 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito , p. 71. 157 RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis . Tradução de Osório de Oliveira. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2002. p. 386.
obra vã. (...)”.
1.7.3. Objetivos da Política Jurídica
Ao se estabelecer os objetivos da Política Jurídica, deve-se
atentar para o fato de que esta serve como um “(...) processo produtor de uma
subjetividade coletiva em permanente estado de mutação, vendo-a como um lugar
da mutação da subjetividade coletiva”158.
Além disso, podem ser observados os seguintes objetivos da
Política Jurídica: servir como instrumento mediador entre as práticas administrativas
de justiça e a efetiva realização da cidadania159; servir como instrumento integrador
da “(...) crítica da normatividade meta-jurídica e a normatividade positiva”160; diante
das necessidades sociais, servir como instrumento de construção de territórios
éticos, comprometidos com tais necessidades161; intercomunicar a Política e o
Direito162; servir como disciplina auxiliar com o objetivo de alcançar normas eficazes
e socialmente desejadas, atendendo aos desejos e consecução das necessidades
sociais163, além de orientadora para os administradores do Direito (juízes,
doutrinadores, autoridades judiciárias e legislativas)164; servir como instrumento de
seleção de normas mais úteis e justas, atentando-se para os direitos humanos como
alvo de apreciação165; servir como instrumento para equacionar causas e
conseqüências baseadas em firmes estratagemas, objetivando assegurar uma
legislação social e econômica com vistas à manutenção e preservação da dignidade
do ser humano166; servir de instrumento para a realização de decisões criativas aos
juízes de normas estabelecidas, a fim de solucionar “(...) o impasse gerado por
158 WARAT, Luis Alberto, in MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 12. 159 WARAT, Luis Alberto, in MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 13-14. 160 WARAT, Luis Alberto, in MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 14. 161 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 20. 162 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 21 e 27. 163 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 40. 164 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 42. 165 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 101 e 132. 166 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 104.
normas legisladas, enquanto o legislador não tome a iniciativa da necessária
revogação de norma superada por nova verdade”167; servir como instrumento de
análise da validade material da norma analisada sob o âmbito da utilidade e
justiça168 (o que muito importa para a presente Tese); servir como disciplina, além de
descritiva, também prescritiva, comprometendo-se com as necessidades do ser
humano sob pressupostos deontológicos e axiológicos169.
O fim mediato da Política Jurídica consiste na construção de
ambientes para que novas possibilidades jurídicas sejam construídas com liberdade
e criatividade, reconstruindo-se o Direito com fundamento na Ética, que é
instrumento capaz de harmonizar conflitos que se consideram insolúveis diante da
dogmática legislativa e jurisprudencial que se tem aplicado170.
Desta forma, os objetivos da Política Jurídica direcionam-se,
todos, à consecução dos interesses manifestados pela Consciência Jurídica Social,
categoria esta tratada anteriormente, com a necessidade de satisfação dos direitos
inerentes ao ser humano para assegurar sua dignidade.
1.8. FONTES POLÍTICAS E SOCIAIS DA NORMA JURÍDICA
A fonte formal é a fonte direta do Direito. Entre as formas do
Direito expressar-se aos seus destinatários destacam-se a Lei e o costume. Sendo o
Brasil um país que segue a tradição romano-germânica, a principal forma de
expressão que adota é o Direito Escrito, ou seja, aquele manifestado em leis e
códigos. O costume consiste em fonte complementar e a jurisprudência, não uma
fonte formal, mas apenas a interpretação do Direito diante de casos concretos171.
167 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 113. 168 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 118. 169 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 130. 170 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 132-133. 171 NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito . 17 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 167.
Diferente é a classificação de Montoro172, que indica como
fontes formais do Direito, a legislação, o costume jurídico, a jurisprudência e a
doutrina.
Porém, o que se pretende neste estudo, são as fontes sociais e
políticas da norma jurídica.
Roubier173, sobre a origem da norma, ensina que a regra de
direito deve levar em conta os dados da ordem social, sob pena de o legislador
realizar obra inútil. Roubier, ainda com relação às normas jurídicas, ensina que
François Gény estabelece divisões do Direito em Direito “dado” e “construído”,
distinguindo quatro espécies de dados da vida social para esta divisão (reais,
históricos, racionais e ideais), considerados como fontes sociais da norma jurídica.
Adiante expõe-se cada um desses dados174:
a) Dados Reais (ou materiais): são as condições de fato nas quais a
humanidade se encontra situada, consistindo em dados da natureza física
(clima, produções do sol etc.) ou humanas (constituição anatômica e
fisiológica, desejos morais etc.), dados estes que, conforme François Gény, a
legislação relativa ao casamento e provas de filiação deve considerar. São
dados biológicos, psicológicos, fisiológicos, que não constituem regras, mas
influenciam para a formação do Direito175;
b) Dados Históricos: são apoiados pela experiência, resultantes do trabalho da
evolução do mundo, estabelecendo um quadro de preceitos que dificilmente a
humanidade pode se libertar, incluindo-se neste grupo as regras relativas à
Propriedade individual ou à sucessão legítima. São dados representados pela
conduta do homem no tempo, ao produzir este certos comportamentos que se
172 MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito . 25 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999. p. 323. 173 ROUBIER, Paul, Théorie Générale du droit - histoire des doctrines juridiques et philosophie des
valeurs sociales, p. 194-195. 174 ROUBIER, Paul, Théorie Générale du droit - histoire des doctrines juridiques et philosophie des
valeurs sociales, p. 194-195. 175 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A ciência do direito . 2. ed. São Paulo: Atlas, 1980. p. 65.
sedimentam aos poucos176;
c) Dados Racionais: consiste no conjunto de preceitos decorrentes da natureza
humana e que são demonstrados pela razão, reencontrando o conteúdo
substancial do direito natural no seu aspecto clássico. Sob este postulado se
discute o reconhecimento, com fundamento na razão, do que deverá ser
regra jurídica. São dados representados pela reflexão do homem acerca da
experiência da vida, o que possibilita estabelecer regras universais e a melhor
conexão entre os meios e fins177;
d) Dados Ideais: concentram os desejos humanos diante do progresso
incansável do direito positivo, discutindo-se simplesmente as tendências
necessárias para que as relações jurídicas estejam, da forma desejada,
devidamente organizadas. Advêm tais dados de crenças, sentimentos e
intuições determinantes de várias regras jurídicas, confessando Gény parecer
difícil de destinar a este dado ideal uma característica estritamente científica.
Estes dados são representados pelos diversos desejos do homem,
estabelecidos na forma de postulados ou fórmulas de valor178.
Já o “construído”, que trata de fontes formais do Direito, tem o
significado das construções e elaborações realizadas pela técnica dos juristas, os
quais têm por labor o manejo dos dados “substanciais” (dados reais, históricos,
racionais e ideais). Exemplifica-se este âmbito do “construído” com “as formas
solenes e as regras probatórias de procedimento, que se expressam em Leis, Leis
costumeiras, regulamentos, decretos, sentenças etc.”179.
Wolkmer180, ao tratar dos movimentos sociais como fonte de
produção do Direito, entende que a principal fonte jurídica está relacionada às
interações sociais e às necessidades fundamentais queridas pelo ser humano,
176 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A ciência do direito , p. 65. 177 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A ciência do direito , p. 65. 178 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A ciência do direito , p. 65. 179 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A ciência do direito, p. 65. 180 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico : fundamentos de uma nova cultura no direito. 2.
ed. São Paulo: Editora Alfa Omega, 1997. p. 137.
próprias à forma de produção de vida material e cultural. O manancial desta
produção jurídica não se limita às instituições ou órgãos estatais. Isso porque o
Direito, por ser produto das práticas sociais e por estar inserido na Sociedade, se
origina de diversos centros de produção da norma, “(...) tanto na esfera supra-estatal
(organizações internacionais) como nível infra-estatal (grupos associativos,
organizações comunitárias, corpos intermediários e movimentos sociais)”,
entendendo por “corpos intermediários” as “(...) corporações de classe, associações
profissionais, conselhos de fábrica, sindicatos, cooperativas, agremiações esportivas
e religiosas, fundações educacionais e culturais etc. (...)”181.
Conforme observado, todos os dados são importantes para a
construção de uma norma jurídica que seja materialmente desejável, ou seja, cujo
conteúdo seja aquele que a Sociedade, diante de sua consciência jurídica, tanto
almejou para que seus anseios fossem efetivamente alcançados. Na qualidade de
norma jurídica, a Lei tem a necessidade de estar imbuída deste conteúdo material.
1.9. O CONCEITO DE LEI, A FUNÇÃO LEGISLATIVA E SEU ASPECTO
POLÍTICO-JURÍDICO
Os costumes, as Leis, as relações sociais, o Direito, todos são
elementos dinâmicos na Sociedade. Assim, as Leis pretendem governar os
costumes e estes mudam diante da pressão daquelas. As relações sociais, por sua
vez, são alteradas, pois os costumes são modificados. Novamente surgem as Leis
com a função transformadora e disciplinadora dos costumes, que novamente
modificam as relações sociais e o Direito, de forma a se tratar de um verdadeiro
ciclo. Esta pressão exercida na Lei pelos costumes, e o próprio direito Ocidental, que
tem influenciado vários sistemas jurídicos baseados nas suas proposições, faz
prevalecer Leis, por vezes, com interesses alheios àqueles da comunidade, aos
costumes e à cultura de uma determinada Sociedade.
A Lei pretende ser um local em que esteja fixada a expressão
de valores fundamentais da Sociedade, devendo ser vista como uma fonte e 181 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico : fundamentos de uma nova cultura no direito, p.
139-140.
instrumento orientador do progresso social182.
A crise no conceito de Lei é um fator evidente, quando se
analisa o fenômeno sociológico no qual ela está inserida. Ora, analisado o ciclo
referido acima, a Sociedade está em eterna mutação conforme se modificam,
ampliam, ou diminuem seus conhecimentos, o que exige uma transformação no
ordenamento daquela Sociedade. Se o objetivo da Lei é organizar um
comportamento geral em detrimento do particular, a fim de que haja uma
organização social bem delineada, a estagnação da Lei e de seu próprio conceito
podem ser prejudiciais àquele complexo de pessoas e coisas para a qual foi
realizada. Por isso, a cada contexto, a cada tempo da humanidade, vários conceitos
são mutáveis, pois devem adequar-se às influências recíprocas entre o homem, a
tecnologia, a natureza e as coisas.
Uma das principais idéias sobre o conceito de Lei é o de que, a
partir do momento em que o Estado é concebido como um mecanismo artificial, a
Lei surge como a garantia do funcionamento deste Estado. Assim, ela permeia o
Estado e a Sociedade, Poder e Direito, ligando as Instituições, representando a
supremacia do público sobre o particular com finalidade de organização social.
As Leis dependem de um poder soberano, consistente no
desejo da vontade geral e que se forma esta pela representação legislativa,
responsável pela elaboração deste desejo geral, impondo-se como obrigatória para
todos os Poderes do Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário).
Segundo Cabo Martin183 o conceito de Lei pode ser tomado no
sentido formal, material e geral. No sentido formal, Lei consiste no ato através do
qual adquirem forma as decisões do Parlamento, aqui sem se questionar acerca de
seu conteúdo, unicamente revestindo a forma pela qual serão representadas estas
decisões, criticando o referido autor esta consideração conceitual. No âmbito
material, o conceito de Lei estabelece como elemento definidor o conteúdo, não
182 LLOYD, of Hampstead, Dennis Loyd, Baron. A idéia de lei . Tradução de Álvaro Cabral. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 172. 183 CABO MARTIN, Carlos de. Sobre el concepto de ley . Madrid: Trotta, 2000. p. 33. 116 p.
mais a sua forma, consistindo em Leis somente as normas que regulamentam
determinadas matérias.
No sentido geral de Lei, estabelece Cabo Martin184, antes de
tudo, a característica da sua generalidade, esta que se constitui na qualidade da Lei
em considerar os seus destinatários de forma genérica e às condutas a que se
aplica a Lei, de forma abstrata. Para Cabo Martin, a generalidade da Lei procede da
única garantia para o cumprimento dos princípios básicos do Estado de Direito: o de
participação (direitos e liberdades) e o de distribuição (divisão dos poderes), e,
conseqüentemente, a Lei é geral enquanto só assim pode servir aos fins próprios do
Estado de Direito. Esta última concepção é própria do Estado Liberal de Direito185.
A importância do conceito de Lei reflete no entendimento do
princípio da Legalidade e no da Reserva legal. No primeiro, entendido como a
primazia da Lei, subordinando todos os poderes públicos às Leis gerais e abstratas
que organizam sua forma de exercício, estabelece-se a dedução das conseqüências
derivadas do conceito democrático de Lei, expressando, ainda, a submissão ao
modo estabelecido de produção jurídica. Já com relação ao princípio da Reserva da
Lei, consistente na orientação constitucional que determina a regulação pela Lei de
certas matérias, pressupõe a concepção material da Lei, opondo-se à concepção
formal186.
O debate acerca do conceito de Lei não reside apenas em tais
fatores. Há muitas outras causas determinantes desta mutação, como causas
internas e externas ao ordenamento jurídico. Pode-se citar como causas externas a
quebra dos supostos culturais, instrumentais e legitimadores, haja vista a
dinamicidade social e fatores como a crise da representação e a degeneração
partidária (relativamente à origem da Lei), perda do tradicional conteúdo da Lei
(relativamente ao aspecto material) e a falta de intervenção do Estado diante da
violação da norma jurídica (relativamente à eficácia). Quanto às causas internas,
pode-se citar a perda de importância da hierarquia das Lei (desenvolvimento do
184 CABO MARTIN, Carlos de. Sobre el concepto de ley , p. 47. 185 CABO MARTIN, Carlos de. Sobre el concepto de ley , p. 53. 186 CABO MARTIN, Carlos de. Sobre el concepto de ley , p. 60.
direito comunitário e internacional), a tendência de hiper-constitucionalização do
sistema e o controle constitucional pelos tribunais de justiça, o que acarreta
insegurança jurídica por relativizar algum entendimento que, pelo aspecto objetivo
da Lei, é interpretado187.
Conclui Cabo Martin188 que há uma crise de conceituação da
Lei e da própria Lei, de forma a estabelecer que seu conceito não seria nem formal,
nem material, mas deve ser “expressão do Princípio Democrático do Estado (social)
e do princípio jurídico – garantista – do Estado de Direito”.
Conceituar uma Lei pelo seu aspecto formal é muito vago, pois
não assume o âmbito que deve alcançar. Conceituar uma Lei pelo seu aspecto
somente material é desconsiderar outros fatores importantes que fazem o conteúdo
da Lei depender. Conceituar a Lei pelo seu âmbito geral é estabelecer uma
generalidade incompreensível do que realmente consiste a Lei. Assim, entende-se
não haver crise no conceito da Lei e nem na própria Lei. Esta crise é e sempre foi
uma conseqüência própria da Lei, faz parte de sua “personalidade”. Aliás, é esta
crise que permite que, constantemente, mudem-se as Leis, que elas se adaptem à
realidade social e atendam aos anseios sociais.
É importante anotar, portanto, a interferência que os fatores
externos exercem sobre o conceito de Lei. Aliás, sobre a própria Ciência Jurídica189.
Dentre estes fatores pode-se observar a influência da Sociologia e da Antropologia
na Ciência Jurídica. Neste sentido, importa trazer à baila a opinião de Lévy-Bruhl190
sobre o Direito (objeto da Ciência Jurídica) que, para a Sociologia, consiste,
prioritariamente, num fenômeno social, definindo-o o autor como “(...) o conjunto das
normas obrigatórias que determinam as relações sociais impostas a todo momento
187 CABO MARTIN, Carlos de. Sobre el concepto de ley , p. 98. 188 CABO MARTIN, Carlos de. Sobre el concepto de ley , p. 101. 189 Entendida como a “(...) atividade de pesquisa que tem como Objeto o Direito, como Objetivo
principal a descrição e/ou prescrição sobre o Direito ou fração temática dele, acionada Metodologia que se compatibilize com o Objeto e o Objetivo e sob o compromisso da contribuição para a consecução da Justiça.”, in PASOLD, César Luiz. Prática da pesquisa jurídica , p. 82.
190 LÉVY-BRUHL, Henri. Sociologia do direito. 2. ed. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 20.
pelo grupo ao qual se pertence”, retirando dessa idéia, na continuidade, três
elementos: a) normas que são obrigatórias; b) a imposição destas normas pelo
grupo social e c) a modificação incessante de tais normas. Conforme Lloyd191, “(...)
O Direito, como os sociólogos nos ensinaram, não pode deixar de ser um reflexo –
ainda que parcial e imperfeito – da sociedade em que opera, e se essa sociedade
contém contradições inerentes, estas serão manifestadas na contextura do próprio
direito (...)”.
O legislador e o magistrado devem extrair da observação dos
fatos sociais a linha de conduta a ser seguida, pois no caso específico desta Tese,
“Quando se estuda a responsabilidade civil, o enriquecimento sem causa, a
obrigação de assistência, imagina-se que o método sociológico permite fornecer o
preceito”192.
A Lei (espécie de regra) constitui, ao lado dos princípios,
modalidades do gênero Normas193. As Normas Jurídicas, por sua vez – também
para fins sociológicos – não possuem estabilidade e perpetuidade, evoluindo
conforme a humanidade modifica seus comportamentos e ações. Assim, Lévy-
Bruhl194 entende que o direito se origina do grupo social e as normas jurídicas
exprimem o modo como o grupo aceita que as relações sociais entre ele devam ser
ordenadas, exprimindo o direito, então, a vontade do corpo social.
Para Assier-Andrieu195 a experiência contenciosa dos fatos
tornou-se uma das áreas preferidas da Sociologia Jurídica e da Antropologia
Jurídica, principalmente com o estudo do surgimento das pendências (no sentido de
divergências de interesses), seus caracteres e as formas utilizadas para dirimi-las. A
classificação de tais soluções destinadas à resolução de tais contendas
(pendências) torna íntima a pesquisa de Sociologia ou de Antropologia dos
191 LLOYD, of Hampstead, Dennis Loyd, Baron. A idéia de lei , p. 281. 192 RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis , p. 389. 193 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios
Constitucionales, 1986. p. 81. 194 LÉVY-BRUHL, Henri. Sociologia do direito, p. 29-31. 195 ASSIER-ANDRIEU, Louis. O direito nas sociedades humanas . Tradução de Maria Ermantina
Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 137 e 172.
fenômenos jurídicos. O Direito é, portanto, no sentido sociológico196:
(...) um conjunto de regras sociais que prescrevem condutas externas e que são consideradas passíveis de aplicações judiciárias. Noutras palavras, é na associação de um sistema de interpretação dos fatos com um corpo de normas que dispõe para o futuro que reside a identidade empírica do direito. Uma norma em si pode não ser jurídica. Ela torna-se jurídica se serve para avaliar a natureza de um ato e para determinar o perfil dos atos esperados pelo corpo social.
Adota-se, para esta pesquisa, o conceito de Jhering197 para
Direito, ou seja, “(...) é o complexo de condições vitais da sociedade no sentido mais
amplo, assegurados pelo poder público mediante coação exterior”.
O Direito, quanto à sua finalidade, constitui um método de
indução relativo a comportamentos certos, fazendo uso da sanção como instrumento
de pressão a fim de que a conduta desejada seja efetivamente alcançada198.
Para Bobbio199 há duas tarefas essenciais na Sociologia do
Direito: a) investigar qual sua função diante da mudança social, “tarefa que pode ser
sintetizada na fórmula ‘o direito na sociedade’”; e b) análise da aplicação maior ou
menor das normas jurídicas em uma certa Sociedade, “incluindo a maior ou menor
aplicação das normas dos Estados particulares, ou do sistema internacional em seu
conjunto, relativas aos direitos do homem, tarefa que se resume na fórmula ‘a
sociedade no direito’”.
A Lei deve estar relacionada com o sistema de valores
reconhecido pela comunidade em que venha a funcionar, podendo diferir no tempo e
espaço200. Para Lloyd201, ao retratar sobre a finalidade da lei, “(...) Pode ser
enfatizado que a idéia de lei sempre esteve associada à idéia de justiça, e se se 196 ASSIER-ANDRIEU, Louis. O direito nas sociedades humanas , p. 146. 197 JHERING, Rudolf von. A finalidade do direito . Tradução de Heder K. Hoffmann. Campinas:
Bookseller, 2002. p. 338. T. I . 198 DIAS, Maria da Graça Santos. A justiça e o imaginário social , p. 29. 199 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 73. 200 LLOYD, of Hampstead, Dennis Loyd, Baron. A idéia de lei , p. 137. 201 LLOYD, of Hampstead, Dennis Loyd, Baron. A idéia de lei , p. 137.
concordar que isso representa o objetivo supremo que a lei deve esforçar-se por
atingir, então poderemos chegar mais diretamente à finalidade da lei, sem nos
vermos emaranhados nos valores de certas sociedades, com todos os seus conflitos
e incertezas. (...)”.
1.10. CONCEITO DE FUNÇÃO JUDICIÁRIA
Desde a Constituição Brasileira republicana de 1891 o
Brasil aderiu ao sistema de separação de Poderes, estabelecendo o Poder
Judiciário como um dos Poderes da República e que, identicamente aos Poderes
Legislativo e Executivo, é autônomo e reciprocamente independente202.
Na tarefa da mediação de interesses, que é a função
principal do Poder Judiciário, o juiz deve valorizar os conflitos que lhe são
apresentados de forma a dar seu arbítrio sem importar quem sejam as partes203.
Para a Política Jurídica são interessantes três
possibilidades do tratamento da produção da norma, pois influenciam na
produção de normas jurídicas: a função legislativa e a função judiciária (estas
que são objetos da Dogmática Jurídica), e o pluralismo jurídico. A produção
legislativa, como técnica ou processo legislativo, e a produção judiciária, como
interpretação e aplicação da lei204. A criação judicial do direito, no entanto, se dá
através da interpretação e aplicação da lei205.
A Função Judiciária se fundamenta, portanto, na
decidibilidade dos conflitos com o objetivo de manutenção da paz social,
afastando-se, de modo geral, a possibilidade de exercício arbitrário do direito e
atraindo ao Estado o poder de equacionar os conflitos jurídicos. Tal
equacionamento, entretanto, não pode ocorrer ao mero alvitre do julgador, mas
deverá ser fundamentado com bases lógicas identificadas por instrumentos
202 DALLARI. Dalmo de Abreu. O poder dos juízes . 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 101. 203 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 97. 204 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica . Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor/CPGD-UFSC, 1994. p. 71. 205 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 74.
previamente selecionados pelo próprio Estado para dirimir litígios, a fim de dar
segurança jurídica aos direitos individuais e/ou coletivos envolvidos.
1.11. A FUNÇÃO JUDICIÁRIA COMO ABORDAGEM DA DOGMÁTI CA
JURÍDICA
A Dogmática, para Warat, significa “(...) uma atividade que
não só acredita produzir um conhecimento neutralizado ideologicamente, mas
também desvinculado de toda a preocupação, seja de ordem sociológica,
antropológica, econômica ou política.”206.
Conforme Ferraz Junior, os problemas jurídicos envolvem o
estudo de diversas alternativas possíveis para que sejam solucionados, surgindo,
daí, diversas teorias que, pela sua função social e natureza tecnológica, não são
apenas explicações dos fenômenos, mas doutrinas, ou seja, ensinam e
estabelecem o que e como deve ser feito. Para o autor207, “(...) O agrupamento
de doutrinas em corpos mais ou menos homogêneos é que transforma, por fim, a
Ciência do Direito em Dogmática Jurídica.”, entendendo que “Dogmática é,
nesse sentido, um corpo de doutrinas, de teorias que têm sua função básica em
um ‘docere’ (ensinar)”.
Segundo Ferraz Junior as questões ditas “dogmáticas”
identificam o ato de opinar e ressalvam algumas opiniões, tratando-se de
questões tipicamente tecnológicas. Para esse autor208, as questões dogmáticas:
“visam possibilitar uma decisão e orientar a ação. De modo geral, as questões jurídicas são ‘dogmáticas’, sendo sempre restritivas (finitas) e, neste sentido, ‘positivistas’ (de positividade). As questões jurídicas não se reduzem, entretanto, às ‘dogmáticas’, à medida que as opiniões postas fora de dúvida – os dogmas – podem ser submetidas a um processo de questionamento, mediante o qual se exige uma fundamentação e uma justificação delas, procurando-se, através do estabelecimento de novas conexões, facilitar a orientação da
206 WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao direito : a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1995. p. 41. 207 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. A ciência do direito . 2. Ed. São Paulo: Atlas, 1980. p. 108. 208 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. A ciência do direito . 2. Ed. São Paulo: Atlas, 1980. p. 46.
ação. (...)”.
Como ensina Warat209, “As dogmáticas positivistas se
baseiam em conceitos e princípios que extraem dos textos legais. Encontram os
sistemas a partir das normas. Em troca, uma teoria geral do direito percorre um
caminho inverso: vai da teoria à norma”.
Para Melo, a visível função essencial da Dogmática Jurídica
está na decidibilidade dos conflitos, de forma que “(...) o desejado pelo legislador
vai ganhar vida nas decisões de quem julga.”210, dirigindo-se o pensamento
dogmático não só à sistematização do Direito, mas como forma de persuasão,
com o estabelecimento de “(...) proposições que visam orientar, com alto grau de
certeza, as decisões dos tribunais”211.
Desta forma, a função fundamental da Dogmática Jurídica é
o de estabelecer a segurança jurídica, que é o objetivo superior da legislação e
que, conforme Maximiliano212, “(...) depende mais dos princípios cristalizados em
normas escritas do que da roupagem mais ou menos apropriada em que os
apresentam. (...)”.
1.12. A DOGMÁTICA JURÍDICA E A POLÍTICA JURÍDICA
O pensamento dogmático cada vez mais se submete a
críticas perturbadoras, em razão da insistência na fonte normativa para a decisão
sobre a norma, limitando-se tão somente ao estudo do Direito vigente, extraindo
da interpretação qualquer juízo de valor, “(...) como se bastante fosse explicar e
ampliar a norma sem justificá-la. (...)”213. No entanto, “(...) O fim da norma jurídica
não é constante, absoluto, eterno, único. Valerá como justificativa deste asserto
209 WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao direito : a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1995. p. 20. 210 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito . Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor/CPGD-UFSC, 1998. p. 69. 211 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito . Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor/CPGD-UFSC, 1998. p. 69. 212 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito . 19. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 101. 213 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito . Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor/CPGD-UFSC, 1998. p. 68.
o fato, referido por vezes, de corresponder o sistema de Hermenêutica às idéias
vitoriosas a respeito da concepção do próprio Direito. (...)”214.
O aplicador do Direito deve, na aplicação da lei ao caso
concreto, “(...) transportar-se, em espírito, ao momento e ao meio em que
surgiu a lei, e aprender a relação entre as circunstâncias ambientes, entre outros
fatos sociais e a norma; a localização desta na série dos fenômenos
sociológicos, todos em evolução constante”215.
A Ciência Jurídica surge como um fenômeno decorrente do
comportamento humano que, por seu comportamento, gera certos conflitos de
interesses, de forma que tal Ciência pretende criar normas para solucionar tais
impasses, decidi-los ou renegar suas decisões. Para isso, dentre os modelos
utilizados para decidir conflitos, recorre ao modelo hermenêutico.
O modelo hermenêutico utilizado pela Ciência Jurídica
encara a questão da decidibilidade dos conflitos de interesses o seu principal
aspecto. Como ensina Ferraz Junior216:
“Trata-se de uma relação entre a hipótese de conflito e a hipótese de decisão, tendo em vista o seu sentido. Pressupõe-se, neste caso, que o ser humano é um ser cujo agir tem um significado, ou seja, os seus menores gestos, mesmo os seus mecanismos involuntários, os seus sucessos e os seus fracassos têm um sentido que lhe dá unidade. A ciência do Direito, neste caso, se assume como atividade interpretativa, construindo-se como um sistema compreensivo do comportamento humano. (...)”.
Importante salientar que a Hermenêutica, aqui, não é vista
somente como “(...) a interpretação a partir das fontes do Direito, mas também
ela mesma como fonte de Direito, ao mediar conflitos e colaborar para
harmonizar a lei com a realidade social.”217.
214 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito . 19. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 125. 215 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito . 19. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 122. 216 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. A ciência do direito . 2. Ed. São Paulo: Atlas, 1980. p. 48. 217 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 74.
Aliás, a harmonização da lei com a realidade social é um dos
grandes objetivos da Política Jurídica, disciplina esta que possui uma tarefa que “(...)
não seria de natureza descritiva, mas sim configurada num discurso prescritivo,
comprometido com as necessidades e interesses sociais”218. Essa disciplina se
compromete com o agir, “que é sua dimensão operacional. Toda ação corretiva e
criativa recairá sobre o sistema normativo vigente, influindo na sua permanente
adequação e aperfeiçoamento”219.
Relembrando-se, dentre os objetos da Política Jurídica,
destacam-se alguns: a norma (o direito que deve ser e como deve ser feito); a
Consciência Jurídica Social; os valores (principalmente os valores justiça e utilidade
social); o humanismo, o que os aproximam, em muito, com as idéias proclamadas
pelos autores, referidos anteriormente, a respeito do Direito.
Relativamente aos objetivos da Política Jurídica, também,
como já observado, dentre vários, destacam-se o esforço de integração crítica da
normatividade meta-jurídica (aquilo que deveria ser) e a normatividade positiva
(aquilo que é)220; edificação de territórios éticos, comprometidos com as
necessidades sociais; comprometimento com o Justo, o Ético, o Legítimo e o
Necessário, atenta às tendências indesejáveis, efetuando propostas de correções
adequadas para alterações de tais tendências221; auxiliar no alcance de normas que
sejam eficazes e socialmente desejadas, refletindo, desta forma, justiça e utilidade
como respostas adequadas às demandas sociais222; a seleção de normas mais
justas e úteis, visando respeitar sempre os direitos humanos223; oferecimento de
subsídios ao magistrado para que este decida de forma criativa a partir de normas
concretas que possam solucionar o impasse ocasionado por normas já legisladas,
enquanto não parta do legislador a iniciativa da necessária revogação de norma que
218 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito , p. 14. 219 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito , p. 16. 220 WARAT, Luis Alberto, in MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 14. 221 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 22. 222 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 40. 223 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 104.
já está superada pela nova verdade224, verdade esta que se modifica com a
dinâmica social e a nova realidade.
Ainda, no âmbito da Ciência Jurídica, em especial no estudo da
Política Jurídica, observa-se que, no referente à Sociologia Jurídica, possui esta
conteúdos que são apreciados pela Política Jurídica, como as utopias sociais, com o
ressurgimento do justo e do útil atribuídos como valores culturais resultantes das
experiências da vida; a Consciência Jurídica Social que consiste na categoria que se
reputa da mais alta importância nos estudos político-jurídicos.
Neste capítulo tratou-se de algumas noções sobre a finalidade
e funções do Estado; o Estado de Direito e o Estado Social, analisando-se o
surgimento do Estado Contemporâneo; o Estado Constitucional de Direito e o
Estado Democrático de Direito; a Separação dos Poderes e as Funções Legislativa
e Judiciária do Estado; a supremacia da Constituição e os Direitos Fundamentais e o
Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana; a Política Jurídica, com
seu conceito, objeto e objetivos; as fontes políticas e sociais da norma jurídica e, por
fim, o conceito de Lei, sua função e aspecto político-jurídico, o conceito de Função
Judiciária, a abordagem da Dogmática Jurídica e da Política Jurídica.
O tema da presente Tese é a Alienação Fiduciária (como forma
de Propriedade Fiduciária) de Veículos Automotores de Via Terrestre, bem como a
Responsabilidade Civil do Proprietário Fiduciário diante da Função Social da
Propriedade, à luz da Política Jurídica e no seu papel corretivo, especialmente
quanto às funções Legislativa e Judiciária do Estado. Para tanto, foram coletadas
informações que pudessem servir de fundamento ao objetivo proposto,
principalmente na busca histórica acerca da evolução do Estado Contemporâneo e
da análise do direito de Propriedade como Direito Fundamental, incorporado nas
Declarações de direitos, desde 1789. Também, importante a análise do princípio da
Dignidade da Pessoa Humana como base de vários Direitos Fundamentais que
devem assegurar a sua plena aplicação. Foi visto, ainda, o conceito, objeto e
objetivos da Política Jurídica, para que se tivesse noção da mesma, a fim de se
224 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 113.
abordar a influência da Política Jurídica na Teoria da Produção Legislativa e na
Função Judiciária do Estado.
No próximo capítulo tratar-se-á sobre o direito de Propriedade
e sua Função Social.
Capítulo 2
A PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIAL
O presente capítulo versará, inicialmente, sobre algumas
considerações acerca da evolução histórica da Propriedade, seu conceito e noções
sobre o direito real da Propriedade, a influência do Direito Romano no Direito
Positivo, que culmina na dicotomia do direito em direito público e privado. Após, será
tratado o direito de Propriedade, no Direito Civil brasileiro, bem como o surgimento
do fenômeno conhecido como Constitucionalização do direito privado. Segue-se a
Função Social da Propriedade no ordenamento jurídico brasileiro, conceituando-a e
estabelecendo-se suas finalidades no Estado Contemporâneo e, na sequência, a
Função Social da Propriedade na CRFB/88 e as características desse instituto.
2.1. CONSIDERAÇÕES SOBRE A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PR OPRIEDADE E
SEU CONCEITO
As comunidades primitivas desconheciam a Propriedade
privada, mas conheciam a Propriedade coletiva, ou seja, aquela comum a todos, de
forma que bens móveis ou imóveis pertenciam a todos, inexistindo Propriedade
particular.
Na linha evolutiva do direito de Propriedade, deve-se atentar
para o fato de que a Sociedade atual não firma mais os pressupostos para a sua
consolidação naqueles princípios estabelecidos pelas Sociedades antigas, havendo,
até mesmo, raças que nunca estabeleceram a propriedade privada. Prova disso são
os tártaros, os quais admitiam o direito de propriedade sobre rebanhos, mas não
sobre o solo. Da mesma forma os antigos germanos, aos quais não havia o direito
de propriedade da terra, mas todo ano era designado um lote para cultivo a um
integrante da tribo, havendo mudança do lote no ano seguinte. O indivíduo era
proprietário da colheita, mas não do solo225.
225 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga : estudos sobre o culto, o direito e as
instituições da Grécia e de Roma. Tradução de Edson Bini. 2. ed. Bauru: Edipro, 1999, p. 55.
Em grande parte das Sociedades primitivas o direito de
Propriedade, bem como a instituição família, foram estabelecidas com base na
religião, estando todas interligadas226.
O Direito Romano, que tratava do direito de propriedade,
somente foi conhecido a partir das Doze Tábuas. Nessa época, a venda da
Propriedade era permitida, mas, nos primórdios de Roma e na Itália, ainda antes de
Roma existir, houve inalienabilidade da terra como havia na Grécia227. Isso
porque228:
(...) A lei das Doze Tábuas, deixando no túmulo o caráter de inalienabilidade, isentou o campo de tal princípio. Permitiu-se depois que a propriedade fosse dividida no caso da existência de diversos irmãos, mas sob a condição da realização de uma nova cerimônia religiosa: a religião tão somente podia repartir aquilo que a religião havia outrora proclamado como indivisível.
E prossegue o autor229:
(...) Enfim permitiu-se que o domínio fosse vendido, mas ainda com a necessidade de formalidades de cunho religioso. A ocorrência da venda só era permissível com a presença do libriprens e mediante todos os ritos simbólicos da mancipação. Algo análogo observa-se na Grécia: a venda de uma casa ou de bens de raiz era acompanhada de um sacrifício aos deuses. Parece que toda mudança de propriedade precisava ser autorizada pela religião.
A constituição gentílica grega estabelecia a propriedade
comum dos bens, mas, na evolução da “constituição grega da época heróica”, tal
situação passou a mudar. Fatores como o direito paterno, atribuindo a herança aos
filhos, acumulando a riqueza nas famílias e não nas gens; a diferenciação de
riquezas, com o surgimento de uma nobreza hereditária e uma monarquia; a
escravidão, inclusive de membros da própria tribo, foram algumas das situações em
226 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga : estudos sobre o culto, o direito e as
instituições da Grécia e de Roma, p. 56. 227 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga : estudos sobre o culto, o direito e as
instituições da Grécia e de Roma, p. 63. 228 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga : estudos sobre o culto, o direito e as
instituições da Grécia e de Roma, p. 63. 229 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga : estudos sobre o culto, o direito e as
instituições da Grécia e de Roma, p. 63.
que se constata a decadência da constituição gentílica tradicional230. Em resumo: “a
riqueza passa a ser valorizada e respeitada como bem supremo e as antigas
instituições da gens são pervertidas para justificar-se a aquisição de riquezas pelo
roubo e pela violência.”231.
Para Engels232, entre os gregos, o surgimento da Propriedade
privada dos objetos luxuosos e rebanhos fez com que o comércio individual e a
transformação dos produtos em mercadorias se desenvolvesse, não permanecendo
mais nas mãos dos proprietários, mas, comercializando-os, desaparecessem de sua
titularidade.
Engels233, sobre a Sociedade ateniense, ensina que a mesma
deveria aprender que, com a comercialização dos produtos, “(...) o produto vem a
dominar o produtor. Com a produção de mercadorias, surgiu o cultivo individual da
terra e, em seguida, a propriedade individual do solo. Mais tarde veio o dinheiro, a
mercadoria universal pela qual todas as demais podiam ser trocadas (...)”. A
evolução da Propriedade fez com que aparecesse a Propriedade privada, que
passou a constituir um marco de status social na Sociedade ateniense, de modo que
“(...) Os direitos e os deveres dos cidadãos do Estado eram determinados de acordo
com o total de terras que possuíam e, na medida em que ia aumentando a influência
das classes abastadas, iam sendo abandonadas as antigas corporações
consangüíneas (...)”234.
Estabelecendo-se a imprescindibilidade da regência do grupo
por um representante de seus integrantes, surgiu, concomitantemente, a
Propriedade privada, a qual, originariamente, pertencia somente a este
representante da comunidade. Relativamente ao objeto, a evolução da Propriedade
privada teve início sobre os bens móveis, partindo, ulteriormente, para os bens
230 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do es tado. Tradução de
Leandro Konder. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. p. 119-120. 231 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do es tado, p.120. 232 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do es tado, p. 124-125. 233 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do es tado, p. 125. 234 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do es tado, p. 128-129.
imóveis235.
Mais tarde, o Código de Napoleão estabeleceu o absolutismo
da Propriedade privada, dizendo se tratar a mesma no: “(...) direito de gozar e de
dispor das coisas da maneira mais absoluta”. Com a evolução dos tempos e, no
mundo atual, nega-se licitude à abusividade no uso da Propriedade privada, pois a
Propriedade, nos termos atuais, funda-se em princípios de ordem pública, de modo
que o proprietário deve exercer de maneira útil a sua Propriedade. Caso este
proprietário não a use, use-a de forma ilícita, abandona-a, a consequência por tais
atos será a perda deste direito, de acordo com o ideal da sua Função Social (artigo
5o, XXII e XXIII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).
Conforme se retratou em capítulo anterior, o direito de
Propriedade teve seu reconhecimento como Direito Fundamental, a partir da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
Importa considerar, na discussão acerca do Direito
Fundamental da Propriedade, se esta pode, efetivamente, ser considerada, nos dias
atuais, um Direito Fundamental. Discute-se, a partir de Gregório Peces-Barba236,
sobre a abundância de certos bens na chamada “idade de ouro”, decorrente do
estado de natureza, em que a natureza saciava com seus bens as necessidades
humanas, não havendo a noção do “meu” e do “seu”. Desta forma, não haveria
necessidade do Direito, pois “una de las razones de la necesidad del Derecho deriva
de esa escasez relativa de bienes, que exige unos criterios de reparto, que no son
los que derivan de las reglas de la economia, sino que suponen razones Morales
que, en nuestra visión del Derecho, son asumidas por el poder y trasladadas a la
organización de la vida social que lo jurídico supone ”237.
235 GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito , p. 324-325. 236 SAUCA, José Maria (Coord). Problemas actuales de los derechos fundamentales. Universidad
Carlos III de Madrid. Boletín oficial del Estado: Madrid, 1994, p.193-213. 237 SAUCA, José Maria (Coord). Problemas actuales de los derechos fundamentales, p. 198-199,
(“(...) uma das razões da necessidade do Direito deriva dessa escassez relativa de bens, que exige critérios de divisão, que não são os que derivam das regras de economia, se não que supõem razões Morais que, em nossa visão do Direito, são assumidas pelo poder e trasladadas à organização da vida social que o jurídico supõe (...)”).
Assim, a escassez de bens constitui uma razão justificadora do
Direito válido, pois as necessidades humanas (alimentação, vestuário etc.)
demandam que os homens adquiram uma certa Propriedade de bens que não estão
mais em abundância. Segundo Hart238, vivendo o homem em Sociedade, observa-se
que seu objetivo é, em termos gerais, viver. E, para viver em paz, para recolher os
bens necessários à sua subsistência, deve haver um controle social, havendo “(...)
certas regras de conduta que qualquer organização social deve conter, para ser
viável (...) Tais princípios de conduta reconhecidos universalmente, que têm como
base as verdades elementares respeitantes aos seres humanos, ao seu ambiente
natural, e às suas finalidades, podem ser considerados o conteúdo mínimo do
Direito Natural (...)”239. Esta escassez de bens para sobrevivência, sua repartição
correta, a correção da desor-dem e a organização dos homens entre si fazem com
que o Direito seja a solução para estes problemas, a fim de que os bens sejam
devidamente distribuídos, gerando segurança social nas relações sociais240.
Essa escassez consiste num termo fundamentalmente
econômico, que pode ser entendida como “(...) diferencia entre las necesidades y los
médios disponibles para paliarlas – (...)”241, ou seja, falta daquilo que é necessário
para subsistência. Segundo Gregório Peces-Barba242:
La escasez ha sido base de la argumentación para la explicación de la aparición del Derecho y esta primera reflexión se ha movido en el ámbito del Derecho válido, del Derecho que es. En segundo lugar ha aparecido como un hecho que genera reflexiones valorativas que fundamentan criterios morales para justificar una acción positiva a través de derechos que redistribuyan esos bienes escasos o, por el contrario, para deslegitimar esos procedimientos. Aquí la escasez, en relación con los derechos, se há situado en el ámbito del Derecho justo, del Derecho que debe ser.
238 HART, Herbert L. A. O conceito de direito . 2. ed. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1986. p. 209. 239 HART, Herbert L. A. O conceito de direito , p. 209. 240 SAUCA, José Maria (Coord). Problemas actuales de los derechos fundamentales, p. 200. 241 SAUCA, José Maria (Coord). Problemas actuales de los derechos fundamentales, p. 229, (“(...)
diferença entre as necessidades e os meios disponíveis para evitá-las (...)”. 242 SAUCA, José Maria (Coord). Problemas actuales de los derechos fundamentales, p. 229, (“A escassez tem sido a base da argumentação para a explicação da aparição do Direito e esta primeira reflexão moveu-se no âmbito do Direito válido, do Direito que é. Em segundo lugar apareceu como um fato que gera reflexões valorativas que fundamentam critérios morais para justificar uma ação positiva através de direitos que redistribuam estes bens escassos, ou, pelo contrário, para deslegitimar estes procedimentos. Aqui a escassez, em relação com os direitos, situou-se no âmbito do Direito justo, do Direito que deve ser”).
Entende Peces-Barba243 que o direito de Propriedade é um
direito individual garantidor da proteção de seu titular, e neste direito a escassez de
bens é contundente, sendo, por conseguinte, impossível tê-lo como Direito
Fundamental, tecnicamente, pois, não podendo a Propriedade ser eficaz a todos,
consiste somente numa instituição de direito privado, mas não num Direito
Fundamental. A escassez, assim, é uma barreira para a eficácia da Propriedade ser
tida como Direito Fundamental, confirmando Peces-Barba244:
(...) Asi una pretensión moral (justicia), a mi juicio, para ser plenamente un derecho fundamental, tiene que ser suceptible de incorporarse a las categorias técnicas del Derecho positivo, derecho subjetivo, libertad, potestad o inmunidad (validez) y ser posible en la realidad (eficacia). Probablemente la escasez sea uno de los obstáculos más grandes a la eficacia de los derechos.
Para Rogelio Perez Perdomo245, no constitucionalismo
contemporâneo o direito de Propriedade perdeu o seu glamour como Direito
Fundamental não em decorrência do aumento de sua escassez, mas pela sua
relativa abundância, se comparada com a situação do início do século XIX, quando
tal direito foi consagrado na Declaração Universal dos direitos do Homem e do
Cidadão, de 1789. Lembra o mesmo autor246 que “(...) La experiencia histórica
muestra más bien que la concepción de un derecho como fundamental tiene más
relación con un proyecto político. (...) Pero lo que deseo destacar es que la
propiedad y el trabajo fueron, en épocas determinadas, derechos fundamentales.
(...)”.
A história do processo de constitucionalização dos direitos
humanos e da sua transformação em Direitos Fundamentais é uma demonstração
243 SAUCA, José Maria (Coord). Problemas actuales de los derechos fundamentales, p. 210-211. 244 SAUCA, José Maria (Coord). Problemas actuales de los derechos fundamentales, p. 211,
(“Assim uma pretensão moral (justiça), ao meu juízo, para ser plenamente um direito fundamental, tem que ser suscetível de incorporar-se às categorias técnicas do Direito positivo, direito subjetivo, liberdade, poder ou imunidade (validez) e ser possível na realidade (eficácia). Provavelmente a escassez seja um dos maiores obstáculos à eficácia dos direitos”).
245 SAUCA, José Maria (Coord). Problemas actuales de los derechos fundamentales, p. 262. 246 SAUCA, José Maria (Coord). Problemas actuales de los derechos fundamentales, p. 262, (“A
experiência histórica melhor mostra que a concepção de um direito como fundamental tem mais relação com um projeto político. (...) Mas o que desejo destacar é que a propriedade e o trabalho foram, em épocas determinadas, direitos fundamentais”).
de que há exigências sociais que buscam proteção em momentos históricos
diversos. A essas exigências, a consciência ética de uma determinada Sociedade
estabelece a sua definição de dignidade humana, que diz respeito aos interesses
individuais ou coletivos em certo ambiente socioeconômico247. Aí se insere o direito
de Propriedade. Diante da ameaça sofrida pela burguesia, como conseqüência das
represálias da monarquia francesa, o surgimento das idéias liberais fez com que a
Propriedade fosse considerada Direito Fundamental e sustentada, enquanto tal, até
hoje, em muitas Constituições, especialmente na Constituição Brasileira.
Para Santos248, o direito de Propriedade tem um caráter
relativo, não se podendo tê-lo como um direito absoluto, pois é contraditório se dizer
que é absoluto e que também pode sofrer limitação: “ou o direito de propriedade é
absoluto e não se impõe a ele qualquer restrição, ou se reconhece sua relatividade,
de modo a servir a interesses harmonizados com outros direitos do ser humano,
notadamente o direito à vida digna e saudável e ao emprego, dentro de uma
sociedade livre, justa e solidária, como preconiza a Constituição da República”.
No ordenamento jurídico brasileiro, contudo, deve-se
considerar que o Direito de Propriedade foi catalogado na qualidade de Direito
Fundamental249.
Conforme o Direito (“(...) um sistema de normas que regulam o
comportamento humano. (...)”250) procura se adequar às necessidades atuais e
prementes da Sociedade, também os conceitos dos institutos se moldam a esta
situação, como é o caso da Propriedade. Pelo Código Napoleão, conforme se
antecipou, no artigo 544, a Propriedade era um direito ilimitado (“La propriété est le
droit de jouir et disposer des choses de la manière plus absolue”)251. No entanto, em
função dessas mudanças sociais, a instituição da Propriedade alterou-se,
247 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e f undamentais no
Brasil . Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 198. 248 SANTOS, Eduardo Sens dos. A função social do contrato . Florianópolis: OAB/SC Editora, 2004.
p. 138. 249 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa no estado
constitucional de direito , p. 72. 250 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 5. 251 “A propriedade é o direito de usar e dispor das coisas da maneira mais absoluta”.
necessitando se amoldar conforme os ditames de caráter social, não se tornando
mais absoluta.
É o afastamento do individualismo patrimonial, um
redirecionamento da importância das relações jurídicas. O centro das relações
jurídicas passa a ser não mais a “propriedade”, mas o retorno da “pessoa” como o
núcleo de tais relações. Segundo Fachin252, este fenômeno conhecido como
“repersonalização” do Direito Civil “(...) somente encontrou explícita guarida na
Constituição Federal de 1988, não só porque explicitou o princípio da dignidade da
pessoa humana como um dos pilares da República, mas também porque a matéria
cível foi diretamente constitucionalizada”.
Para o presente estudo, compreende-se por Propriedade: o
direito de uso, gozo e disposição e reivindicação de todos os bens e/ou direitos de
alguém, respeitados os limites impostos pelo Estado, a fim de garantir a perfeita
convivência do grupo social em que se inserem. Pasold253, ao retratar sobre a opção
da Propriedade como fonte do poder, entende que esta escolha pode ter o
significado de tornar predominante o econômico sobre o humano e o social. Dessa
forma, valores como a honestidade, senso de utilidade social, caridade completa,
espírito nacional passam a ser considerados inferiores aos comportamentos das
práticas egoístas e consumistas, disseminando a miséria social e econômica, bem
como determinando o enfraquecimento da política e da cultura254. Para Pasold255,
ainda:
Evidente que não se pode ser contra a que alguém use e goze das propriedades que, com sacrifício e honestidade, adquiriu. Contudo, se este alguém pretende utilizar-se delas como fonte de poder, deve, antes de tudo, ter em mente que, na vida coletiva, somente quando o social predomina sobre o econômico, quando o humano prepondera sobre o material, há chances reais de possibilidade da Felicidade.
252 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo . Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.
99. 253 PASOLD, Cesar Luiz. Reflexões sobre o poder e o direito . Florianópolis: Estudantil, 1986. p. 16. 254 PASOLD, Cesar Luiz. Reflexões sobre o poder e o direito , p. 16. 255 PASOLD, Cesar Luiz. Reflexões sobre o poder e o direito , p. 16.
É, portanto, sobre este norte que passam a ser estudados os
itens seguintes.
2.2. O DIREITO REAL DE PROPRIEDADE
Primeiramente, importa dizer que a Propriedade consiste no
principal direito das coisas (ou direito real), de onde os demais direitos reais se
desdobram. Direito das coisas são aqueles que “atribuem ao sujeito uma dominação
direta sobre o objeto, ora abrangendo todas as suas qualidades, ora uma parte
delas”256, apresentando-se como um vínculo entre pessoa e coisa. Os direitos reais
podem recair tanto sobre coisas próprias, ou sobre coisas alheias, quando se
referem ao objeto em que recaem. Quando se refere à sua finalidade, podem ser
divididos em direitos reais de gozo e direitos reais de garantia257. Tais direitos reais
são clausulados pelo Código Civil, em seu artigo 1.225. Ensina Venosa258 que os
direitos reais somente podem ser criados pela lei, devendo se considerar, além dos
direitos reais descritos no artigo 1.225, do Código Civil, também todos aqueles que
tiverem a mesma natureza em outros diplomas legais, como a garantia fiduciária.
Dentre os direitos reais citados pelo artigo 1.225, do Código
Civil, têm-se: a Propriedade, a superfície, as servidões, o usufruto, o uso, a
habitação; o direito do promitente comprador do imóvel, o penhor, a hipoteca e a
anticrese. Importante, também, salientar que a Lei n. 9.514/97 trata acerca da
propriedade fiduciária de bens imóveis.
Rodrigues259 e Lisboa260 entendem a Propriedade como
sinônimo de “domínio”, lecionando o primeiro tratar-se de “um direito que recai
diretamente sobre a coisa e que independe, para o seu exercício, de prestação de
256 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1999. v. 1, p. 31. 257 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito das coisas. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 3-5. v.
5. 258 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil : direitos reais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. v. 5. p. 549-
550. 259 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito das coisas, v. 5, p. 76-77. 260 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : direitos reais e direitos intelectuais.
2. ed. São Paulo: RT, 2002. p. 94. v. 4.
quem quer que seja (...)”, distinguindo-se dos demais direitos reais por incidir sobre
a coisa própria , enquanto que os outros direitos reais possuem por objeto coisa
alheia.
Miranda261, no entanto, entende que Propriedade “(...) é tudo
que se tem como próprio (...)”, sendo que “(...) é próprio nosso tudo que é parte do
nosso patrimônio, que é o nome que se emprega para designar o todo composto dos
bens reunidos sob a pessoa a que pertence. (...)”. Para o mesmo autor, “Se
disséssemos ‘minha propriedade’, não aludiríamos a esse todo. O patrimônio é
coextensivo às propriedades de alguém, quer se trate de direitos reais, quer de
direitos pessoais. O domínio, não.”. Aliás, por “domínio”, entende que consiste no
“(...) direito limitado, quanto ao conteúdo, mas, dentro desse, ilimitado, de poder
sobre a coisa”.
Para Miranda262, há dois sentidos de Propriedade: a)
amplíssimo, consistindo no domínio ou qualquer direito patrimonial, abrangendo,
inclusive, direitos pessoais (direito de crédito); b) estritíssimo, sendo só o domínio.
Bessone263, ao tratar do domínio e da Propriedade, ensina que
há duas correntes que tratam da identidade de ambos os termos: uma, dizendo que
ambos são sinônimos; outra, que têm significados diversos com base em diferença
objetiva, haja vista que a Propriedade possui objeto mais amplo que o domínio, ou
seja, o objeto daquela pode ser coisa corpórea ou incorpórea, enquanto o objeto do
domínio somente pode ser de coisa corpórea. Deste último entendimento
compartilha Monteiro264.
Na visão de Aronne265, somente poderá a Propriedade
261 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado: Direito das Coisas. Propriedade. Aquisição da
propriedade imobiliária. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955. t. 11,. p. 29-30. 262 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado: Direito das Coisas. Propriedade. Aquisição da
propriedade imobiliária, t. 11. p. 9-10. 263 BESSONE, Darcy. Direitos Reais . 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 12. 264 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil . 37. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 3.
p. 83. 265 ARONNE, Ricardo. Propriedade e domínio : reexame sistemático das noções nucleares de
direitos reais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 86.
corresponder ao domínio quando se tratar de Propriedade plena, pois o domínio
restará consolidado, de maneira que a mesma pessoa deterá tanto a titularidade,
quanto todas as faculdades componentes do domínio.
Embora haja, doutrinariamente, tais diferenças, “O novo
diploma civil, assim como seu predecessor, preferiu utilizar-se da expressão
‘propriedade’, muito embora trate dela e da palavra domínio como sinônimas” 266. É
neste sentido que se entende, portanto, domínio e Propriedade, para o presente
estudo.
A Propriedade possui certos atributos, os quais podem ser
reunidos numa só pessoa (Propriedade Plena), ou podem ser desmembrados
(Propriedade Limitada). Tais atributos consistem nos seguintes267:
a) Ius utendi (direito de usar), consistindo na faculdade de, sem modificar a
substância, colocar a coisa a serviço do seu titular em benefício próprio ou de
terceiro, ou de não usá-la, mas sempre conjugando-a com sua Função Social;
b) Ius fruendi (direito de gozar), relativo à percepção dos frutos naturais ou civis
da coisa;
c) Ius abutendi (direito de dispor), envolvendo a disposição material ou jurídica,
podendo a coisa ser alienada a qualquer título (doação, troca, venda),
consistindo no fato de atingir a sua substância. Exceção a este atributo
consiste no que se entende por Propriedade Resolúvel, que resulta de
cláusula inserida no título aquisitivo, de forma que, resolvido o domínio,
entende-se resolvidos também os direitos reais que tenham sido constituídos
na sua pendência;
d) Rei vindicatio (direito de reaver a coisa), de forma que, pela vindi-catio, o
proprietário procura buscar o bem das mãos de outrem, possuidor ou
266 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : direitos reais e direitos intelectuais,
v. 4, p. 94. 267 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil: posse, propriedade, direitos reais de
fruição, garantia e aquisição. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. v. 4. p. 68-69.
detentor, que conserva a coisa sem causa jurídica ou que a possua
injustamente.
e) Função social, a qual será tratada de forma mais detida adiante.
Têm-se, ainda, como principais características da
Propriedade268:
a) o absolutismo, haja vista que o proprietário possui sobre o bem um direito
oponível erga omnes, sempre se observando a Função Social a que o bem se
destina (relativamente à Função Social da Propriedade, será tratado com
maior atenção a seguir);
b) a irrevogabilidade, não sendo suscetível de revogação por qualquer pessoa,
exceto nas hipóteses de desapropriação e na de Propriedade Resolúvel, haja
vista a superveniência do evento que modificou o direito de Propriedade, por
condição, termo ou causa diversa superveniente. Também sobre a
Propriedade Resolúvel será detida uma análise mais aprofundada no próximo
capítulo;
c) a exclusividade, não podendo haver dois, ou mais direitos reais com mesmo
conteúdo sobre a mesma coisa.
Importante ressaltar, ainda, os aspectos interno e externo da
Propriedade. Para Dantas269, o aspecto interno é a própria dominação da coisa pelo
seu titular, podendo realizar todos os atos que bem entender, enquanto que o
aspecto externo se destina à relação entre o proprietário e o não proprietário, ou
seja, à Sociedade. Dos aspectos mencionados, concentrar-se-á o estudo no aspecto
externo, o qual se refere à dinamicidade da Propriedade, ou seja, à sua Função
Social.
268 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : direitos reais e direitos intelectuais,
v. 4, p. 93-100. 269 DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil . Rio de Janeiro: Rio, 1979. p. 93. v. 3.
2.3. A INFLUÊNCIA DO DIREITO CANÔNICO NA FUNÇÃO SOC IAL DA
PROPRIEDADE
Ensina Marryman270, ao retratar sobre a influência do Direito
Canônico no direito comum, que as principais influências foram nas áreas de direito
de família e sucessões, no direito penal e direito processual e “Cuando se privó de
su jurisdicción civil a los tribunales eclesiásticos de Europa, muchos de los principios
e instituciones, sustantivos y procesales, que éstos habían desarrollado, habían sido
adoptados por los propios tribunales civiles”.
A Igreja Católica teve fundamental participação na elaboração
do conceito de Função Social da Propriedade. Neste sentido, identificam-se Santo
Ambrósio, que pretendia a Propriedade comum dos bens, a fim de se estabelecer
uma Sociedade mais justa; Santo Agostinho, combatendo a abusividade humana
sobre as coisas dadas por Deus; Santo Tomás de Aquino, que entendia ser a
Propriedade um direito natural, cujo exercício deveria ser direcionado ao bem
comum271. Além deles, os Sumos Pontífices da Igreja também se referem ao direito
de Propriedade em algumas de suas encíclicas e outros documentos, como a
encíclica Rerum novarum, de Leão XIII; Mater et magistra, do Papa João XXIII;
Quadragesimo anno, de Pio XI; Constituição Pastoral Gaudium et Spes, do Concílio
Vaticano II; Populorum Progressio, de Paulo VI272.
Para a Igreja, a Propriedade é um direito que deve ser
protegido e respeitado pelo Estado, e que traduz obrigações sociais. Na opinião de
Calvez273, a Igreja Católica se posiciona no seguinte sentido, quanto à Propriedade:
270 MARRYMAN, John Henry. La tradicion juridical romano-canonica. Traducción de Eduardo L.
Suárez. México, D.F: 1997. p. 33, (“O direito canônico influiu no jus commune principalmente nas áreas do direito familiar e sucessório (ambas partes do direito civil romano), no direito penal e no direito processual. Quando se privou de sua jurisdição civil aos tribunais eclesiásticos da Europa, muitos dos princípios e instituições, substantivos e processuais, que estes haviam desenvolvido, haviam sido adotados pelos próprios tribunais civis”).
271 MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao direito de propriedade : de acordo com o novo código civil e com o Estatuto da Cidade. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 73.
272 MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao direito de propriedade : de acordo com o novo código civil e com o Estatuto da Cidade, p. 74.
273 Apud MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao direito de propriedade : de acordo com o novo código civil e com o Estatuto da Cidade, p. 74-75.
“Primeiro: a igreja sustenta, antes de tudo, o direito que têm todos os homens de usar dos bens materiais deste mundo com um caráter estável e permanente. Segundo: Este direito garante ao homem uma esfera exterior de personalização que facilita o desenvolvimento de sua personalidade humana. Terceiro: o direito de propriedade não só estende a todos os bens de consumo, como aos de produção. Quarto: Considerando que o homem é a imagem de Deus, defende uma gestão verdadeiramente responsável, pessoal e humana, das coisas deste mundo. Quinto: O desfrute do direito de propriedade deve alcançar todos os homens, de modo que estes não fiquem alienados dentro da sociedade, servindo-lhes de garantia à sua pessoa e de abertura aos seus semelhantes. Sexto: A função social é uma característica intrínseca da propriedade, que compreende o individual e o social. Sétimo: A propriedade pública é admitida em relação àqueles bens cuja propriedade privada constitui um risco para o bem comum.
Desta forma, pode-se verificar a importância que o Direito
Canônico deu ao Positivismo Jurídico e a influência daquele, neste, servindo,
também, vários de seus princípios como o pacta sunt servanda, a teoria canônica da
culpabilidade (que impulsionou a atual teoria para o direito penal), Função Social da
Propriedade (que será tratada adiante), como normas jurídicas estabelecidas e
adotadas pelo Positivismo Jurídico274. Observa-se que a Igreja, tendo uma ligação
274 Segundo Hart, a expressão “positivismo” é utilizada na literatura anglo-americana contemporânea
com o intuito de designar uma ou mais das afirmações seguintes: “(...) (1) de que as leis são comandos de seres humanos; (2) de que não existe uma conexão necessária entre o direito e a moral, ou entre o direito como é e o direito como devia ser; (3) de que a análise ou o estudo dos significados dos conceitos jurídicos é um estudo importante que deve distinguir-se (...) das pesquisas históricas, das pesquisas sociológicas e da apreciação crítica do direito em termos de moral, finalidades sociais, funções, etc.; (4) de que um sistema jurídico é um ‘sistema lógico fechado’ em que as decisões correctas só podem deduzir-se das regras jurídicas predeterminadas através de meios lógicos; (5) de que os juízos morais não podem determinar-se como podem as afirmações de facto, através de argumento racional, demonstração ou prova (‘não cognitivismo na ética’). Bentham e Austin sustentaram os pontos de vista expressos em (1), (2) e (3), mas não os contemplados em (4) e (5); Kelsen sustenta os expressos em (2), (3) e (5), mas não os contemplados em (1) ou (4). A afirmação (4) é freqüentemente atribuída aos ‘juristas analíticos’, mas aparentemente sem boas razões.Na literatura continental, a expressão ‘positivismo’ é freqüentemente utilizada para o repúdio geral da pretensão de que certos princípios ou regras da conduta humana são susceptíveis de descoberta apenas através da razão. (...)”, in HART, Herbert L. A. O conceito de direito , p. 287-288. Para Silva, o Positivismo Jurídico “funda-se na observação empírica, no conhecimento pela razão pura.”, não sendo orientado por entendimentos metafísicos e tendo por objeto o direito vigente. (in SILVA, Moacyr Motta da. Direito, justiça, virtude moral & razão. . Curitiba: Juruá, 2003. p. 22). Segundo Melo, Positivismo Jurídico consiste na “1. Escola que reduz o Direito à sua função técnica, distinguindo-o rigorosamente da Metafísica, com o que se opõe frontalmente ao jusnaturalismo (V.). 2. Posicionamento que repele a idéia de um Direito Natural (V.) anterior e superior à positividade jurídica, vendo nesta última fonte de todo o conhecimento do direito.”, e Positivismo no “Sistema filosófico que tem como postulados principais os seguintes: a ciência é o único conhecimento possível e tudo o que não possa ser investigado por método científico não tem validade; o
muito forte com o Estado no período anterior à Revolução Francesa, influenciou
fortemente o espírito do Código Civil Francês e outros códigos realizados
posteriormente a esta Revolução, principalmente, no que diz respeito às categorias
clássicas do direito privado (propriedade, família e contratos).
Especialmente, no que diz respeito às relações negociais, a
estrutura dos Contratos teve como base o Direito Canônico, “que o desarraigou da
ausência de vinculação e do formalismo exacerbado da tipicidade, criando o
fundamento do dogma da autonomia da vontade”275.
No próximo item será realizada a abordagem sobre a dicotomia
do direito público e privado, a fim de que possa se encontrar as origens do que se
entendeu como o afastamento de ambas as searas para, finalmente, estarem,
atualmente, conectadas no que se entende por Constitucionalização do Direito Civil.
2.4. A DICOTOMIA DIREITO PÚBLICO/PRIVADO
O Código Civil Francês, de 1804, se caracteriza por ser um
ponto de referência da evolução do Direito na França, composto do Direito Romano
da Idade Média e início dos tempos modernos e do direito consuetudinário e,
embora abolindo tais direitos que antes estavam em vigor, introduziu vários de seus
conteúdos na codificação do Direito Civil276. Esta crítica se deu em decorrência das
idéias advindas do Iluminismo277 e se impregnaram na Sociedade na metade do
século XVIII e início do século XIX. Segundo Caenegen278, concentrou-se a crítica
na desigualdade das pessoas diante da lei, privilegiando as ordens da nobreza e do
clero com relação a privilégios fiscais, limitação de acesso aos cargos públicos,
método geral da ciência é o descritivo, pois cabe a qualquer ciência descrever seu objeto (...).” (in MELO, Osvaldo Ferreira de. Dicionário de política jurídica . Florianópolis: OAB/SC Editora, 2000. p. 78.).
275 SANTOS, Eduardo Sens dos. A função social do contrato , p. 28. 276 CAENEGEN, R. C. van. Uma introdução histórica ao direito privado, p. 1-2.. 277 “(...) amplo movimento europeu que assumiu uma atitude crítica diante das idéias e da sociedade
do ancien regime em geral. (...)”, in CAENEGEN, R. C. van. Uma introdução histórica ao direito privado , p. 161-162.
278 CAENEGEN, R. C. van. Uma introdução histórica ao direito privado , p. 162.
limitações às pessoas e à propriedade, às intervenções arbitrárias exercidas pela
Coroa, excluindo-se a população das participações em assuntos políticos. Também,
criticava-se a predominância da Igreja, bem como a intolerância religiosa e que as
ligações oficiais havidas entre a Igreja e o Estado eram indesejáveis. Foi uma fase
em que, “o velho mundo passou por uma renovação radical, guiada pelos princípios
da Razão humana e pelo objetivo de alcançar a felicidade do homem (...)”279.
Dessa evolução recuperou-se aquilo que o Direito Romano
estabelecia como direito público e direito privado, especialmente essa distinção, que
remonta aos ensinamentos de Ulpiano280 no sentido de que “(...) jus publicum est
quod ad statum rei romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitate, sunt
enim quaedam publice utilia, quaedam privatim”281.
Para Gomes282, nesta dicotomia, houve opção pelo critério
classificatório das normas, segundo a sua finalidade:
(...) qualificando-as como públicas, se têm por objetivo o Estado (Savigny) ou o bem da coletividade (Dernburg), ou, preponderantemente, o interesse público (Cogliolo), e como de Direito Privado, as que visam ao indivíduo, ou ao interesse particular, ou à ordem privada. Outros preferiram diferenciá-los pela diversidade do modo de sanção do Direito. No Direito Público, a sanção é indireta; no Privado, direta (Duguit). Também se procurou distingui-los formalmente através do modo por que o direito é protegido (Thon)”.
Nessa distinção, houve a divisão de disciplinas do direito que
se encaixavam de modo isolado em cada um dos lados dessa dicotomia, não
havendo interferência entre tais áreas. Assim, passaram a pertencer como áreas
clássicas do direito privado o Direito Civil e o Direito Comercial, compreendendo-se,
atualmente, também o direito do Trabalho283, pertencendo as demais áreas ao
279 CAENEGEN, R. C. van. Uma introdução histórica ao direito privado , p. 163. 280 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil . 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 8. 281 “O direito público é o que diz respeito ao Estado romano; o privado atende ao interesse de cada um, isto porque há coisas de interesse público, outras, de interesse privado”. 282 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil , p. 8. 283 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil , p. 17-18.
domínio do direito público. Segundo Gusmão284, entre esta bipartição do direito (que
não mais atende às necessidades atuais da Sociedade), estaria ultrapassada,
encontrando-se, no mundo atual, “(...) o direito misto, seja por tutelar tanto o
interesse público ou social como o interesse privado, (...) ou então por ser
constituído de normas de direito público e de direito privado (...)”. Como exemplos
têm-se o direito de família, direito do trabalho, direito profissional, direito sindical,
direito econômico, direito agrário, direito marítimo, direito aeronáutico, direito
falimentar e direito nuclear.
A dicotomia público/privado trata de estabelecer conceitos
jurídicos a priori, ou seja, sempre haverá espaço para a pergunta sobre qual a área
de domínio que o preceito jurídico tratado pertence285, achando-se tal distinção no
próprio conceito de direito. Para Radbruch286, as normas de direito público possuem
uma relação de subordinação dos destinatários das normas em relação à vinculação
do poder, ensinando que “(...) Para o Liberalismo o direito privado é o coração de
toda a vida jurídica, e o direito público, pelo contrário, apenas uma leve moldura que
deve servir de protecção ao primeiro e, particularmente, ao direito de propriedade
(...)”.
Para o anarquismo, que é uma forma exagerada do
Liberalismo, a intenção é fazer com que todo o direito público esteja dissolvido no
direito privado, enquanto que no socialismo, deseja-se o amál-gama de todo o direito
privado no direito público287. O Direito, segundo Bodenheimer288 situa-se entre a
anarquia e o despotismo, buscando manter um equilíbrio entre estas duas formas
extremas de vida social e, para que não se instaure a anarquia, o Direito limita o
alcance do poder havido entre os indivíduos particulares ou grupos privados,
limitação esta que denomina Direito privado. No intuito de evitar o despotismo,
freando o poder do governo, a limitação legal do poder conferido às autoridades
284 GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito , p. 158. 285 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito . Tradução de L. Cabral de Moncada. 6. ed. Coimbra:
Armênio Amado Editor, 1997. p. 252. 286 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito , p. 253. 287 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito , p. 251-255. 288 BODENHEIMER, Edgar. Teoría del derecho . México: Fondo de cultura Económica, 2000. p. 28.
públicas é denominada Direito público. Ambos os ramos do Direito (Direito público e
privado) possuem a mesma função geral, ou seja, criar restrições ao exercício
arbitrário e sem limites do poder.
Ocorre que o direito público e o direito privado, inseridos numa
ordem jurídica com característica social, não se encontram separados
diametralmente, mas confundem-se e invadem-se de forma recíproca289. Esta
dicotomia, na atualidade, encontra-se sujeita a críticas, especialmente fundadas no
movimento que busca a renovação do Direito, o qual, em conseqüência do
Liberalismo decorrente da Revolução Francesa, impregnava-se do individualismo
jurídico, ensinando Gomes290 que “(...) A idéia, hoje dominante, de que o fim do
Direito é satisfazer a interesses gerais, ainda quando assegura poderes individuais,
elimina, logicamente, qualquer classificação do Direito baseada na qualidade do
preceito (...)”.
Segundo Radbruch291, essa evolução da dicotomia Direito
público/privado, além de direcionada ao direito objetivo, também se reflete no âmbito
do direito subjetivo, havendo uma inserção da chamada “função social” na clássica
“faculdade de agir” (facultas agendi). Tal observação se dá a partir da afirmação
expressa do artigo 153, da Constituição de Weimar (1919) no que tange ao direito
de Propriedade: “O direito de propriedade obriga, e o seu exercício deve obedecer
ao mesmo tempo a idéia duma função que se exerce para o bem da comunidade”292.
Observa-se, nos dias atuais, a mutação de um direito liberal
para um social, no qual certas instituições de direito privado, em especial a
Propriedade e a liberdade contratual, passam a ser limitadas pelo direito público293.
A partir desta interferência havida, reciprocamente, entre direito público e privado,
passa-se à influência deste assunto no tema Constitucionalização do Direito Privado
e conseqüente análise da Propriedade, no Direito Civil brasileiro, que adiante se
289 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito , p. 256. 290 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil , p. 9. 291 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito , p. 257. 292 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito , p. 257. 293 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito , p. 258.
tratará.
2.5. A PROPRIEDADE NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO E A
CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO
Para Lobo294, a evolução do Direito Civil, na história do mundo
romano-germânico, teve sempre seu lugar isolado como ambiente privilegiado do
indivíduo, principalmente após a Revolução Francesa de 1789. Nenhum ramo do
direito estava mais distante do Direito Constitucional que o Direito Civil, pois aquele
era tido como constituição política e este, como constituição do homem comum.
As exigências da necessidade social, refletidas, inclusive, na
mudança das características do Estado (Estado Liberal para o Estado Social),
fizeram com que fossem introduzidas no corpo da Constituição Federal categorias
que antes pertenciam, exclusivamente, ao Direito Privado, como a Propriedade, a
família e as relações contratuais, razão pela qual a CRFB/88 rearticulou o direito
privado, trazendo princípios e valores que passaram a ter como núcleo a dignidade
humana. Isso fez com que, em razão de os princípios constitucionais constituírem
preceitos normativos superiores às leis ordinárias e especiais em vigor, tais
princípios devessem unificar o sistema jurídico, “orientando a interpretação e
aplicação das referidas regras infraconstitucionais”295.
A “Repersonalização” do Direito Civil configurou-se de forma
explícita na CRFB/88, principalmente, porque fundamentou o princípio da Dignidade
da Pessoa Humana como um dos princípios fundamentais da República Federativa
do Brasil e do Estado Democrático de Direito (ao lado de outros princípios como a
livre iniciativa, erradicação da pobreza e marginalização, redução das desigualdades
sociais, Função Social da Propriedade privada etc.). Também em virtude de que
aquelas categorias, que antes pertenciam exclusivamente ao Direito Civil, foram
tratadas diretamente no conteúdo da Constituição296. Isso demonstra que “A
294 LOBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito civil, Revista de informação legislativa ,
Brasília, a. 36, n o. 141, p. 99-109, jan/mar. 1999. p. 99 295 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo , p. 82. 296 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo , p. 99.
preocupação básica do Direito Civil moderno está em torno da pessoa, ser concreto,
portador de anseios e de carências”297. Tal preceito faz com que a pessoa, e não
mais o patrimônio, passe a ser o centro do sistema jurídico, tutelando amplamente a
primeira num sentido solidarista, e não mais naquele sentido individualista que
tornava o homem um ser abstrato, passando a solidariedade a adquirir um valor
jurídico298. Esta valorização faz com que o Direito se solidarize, trazendo no seu bojo
a idéia de Função Social, disciplinadora de toda a estrutura de suas instituições
jurídicas, em especial a Propriedade299. Consiste a Repersonalização do Direito,
portanto, na afirmação segundo a qual “patrimônio e pessoa não estão
absolutamente entrelaçados, nem ocupa um primeiro plano a relação entre eles”300.
Nessa perspectiva, ocorre um outro fenômeno identificado
como “Despatrimonialização dos Bens Jurídicos”, ou seja, supera-se o
individualismo patrimonial, da “(...) patrimonialidade fim a si mesma, do produtismo,
antes, e do consumismo, depois, como valores (...)”301, e opta-se pelo personalismo,
pelo ser humano como núcleo das relações jurídicas. Esta “Despatrimonialização
dos Bens Jurídicos” consiste em uma “(...) avaliação qualitativa do momento
econômico e a disponibilidade de encontrar, na exigência de tutela do homem, um
aspecto idôneo, não a ‘humilhar’ a aspiração econômica, mas, pelo menos, a
atribuir-lhe uma justificativa institucional de suporte ao livre desenvolvimento da
pessoa (...)”302.
O proprietário de algum bem deve sempre considerar o
interesse geral, pois, ainda que o direito de propriedade seja individual, o seu
exercício deve ser social303.
Há dois momentos em que a Propriedade pode ser situada,
297 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo , p. 226. 298 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo , p. 51. 299 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo , p. 50. 300 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo , p. 42. 301 PERLINGIERI, Pietro. Perfis de direito civil. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 2. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002. p. 33. 302 PERLINGIERI, Pietro. Perfis de direito civil, p. 33. 303 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo, p. 72.
nos quais houve uma transição importante para a noção deste instituto. O primeiro,
com o nascimento do Estado liberal burguês, em decorrência da Revolução
Francesa. Nesta fase, preponderava o individualismo patrimonial em que somente o
aspecto interno da Propriedade importava, prevalecendo a primazia do individual
sobre o social. O segundo momento, aquele em que se observa a passagem do
Estado liberal burguês para o Estado Social, de promoção social, em que o direito
individual não pode ser exercido ou concebido se acarretar prejuízo à coletividade.
Esse fato deu gênese ao fenômeno da “repersonalização” objetivada, deslocando a
ótica dos códigos do patrimônio para a pessoa humana, indicando a “publicização”
do Direito Civil, um dos ramos clássicos do Direito Privado. Como resultados desta
inversão de enfoque, surgem como princípios fundamentais desta visão, o da
dignidade, igualdade, boa-fé, bons costumes, reciprocidade, confiança, lealdade,
não lesividade, vulnerabilidade etc304.
Importante salientar que há uma nova visão do Direito, a partir
do fenômeno conhecido como Constitucionalização do Direito Privado. Este
fenômeno leva em consideração a quebra da dicotomia Direito Público/Privado,
fazendo com que categorias que antes pertenciam eminentemente ao Direito
Privado fossem abrangidas pela Constituição (Direito Público). Tais categorias são
as seguintes: família, contratos e Propriedade. Tal é a importância deste estudo que
doutrinadores como Fachin305 entendem que “O princípio constitucional da dignidade
da pessoa humana se impõe, atualmente, como chave hermenêutica para a leitura
do Código Civil”. Este fato diz respeito ao que se tem denominado Direito Civil
Constitucional. Conforme Arce e Valdes306:
El Derecho civil constitucional se enmarca, por su propia especificidad o connotación ‘civil’, en el ámbito de la persona, de la
304 ARONNE, Ricardo. Propriedade e domínio : reexame sistemático das noções nucleares de
direitos reais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 37-41. 305 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito civil . Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 114. 306 ARCE, Joaquin; VALDÉS, Flores. El derecho civil constitucional . Madri: Editorial Civitas, 1991.
p. 176, (“O direito civil constitucional se destaca, por sua própria especificidade ou conotação ‘civil’, no âmbito da pessoa, da família e do patrimônio, como conteúdos próprios do Direito civil. E deverá levar em consideração esta nota material naquele conceito, delimitando o sistema de normas constitucionais às relativas à proteção da pessoa, em si mesma e em suas dimensões fundamentais familiar e patrimonial, como síntese da esfera pessoal nuclear (pessoa física e jurídica) e de suas conotações essenciais para as vertentes mais inerentes, familiar e patrimonial”).
familia y del patrimonio, como contenidos propios del Derecho civil. Y habrá de tener cabida esta nota material en aquel concepto, delimitando el sistema de normas constitucionales a las relativas a la protección de la persona, en sí misma y en sus dimensiones fundamentales familiar y patrimonial, como síntesis de la esfera personal nuclear (persona física y jurídica) y de sus connotaciones esenciales hacia las vertientes más connaturales, familiar y patrimonial.
A Dignidade da Pessoa Humana consiste em princípio
fundamental da República Federativa do Brasil (art. 1o., III, da CRFB/88), norteadora
de todo o ordenamento jurídico brasileiro, de forma que qualquer norma jurídica que
entrar em conflito com o mesmo estará eivada de inconstitucionalidade.
Dessa forma, com base no princípio da Dignidade da Pessoa
Humana, as categorias clássicas de Direito Privado tiveram uma substancial
alteração em sua estrutura: a Propriedade, que possuía caráter absoluto, passa a ter
um conteúdo funcionalizado, conforme a CRFB/88; nos contratos, passa-se a
superar o dogma da autonomia da vontade que se fundava na igualdade formal,
aproximando-se à realidade fática; na família, o reconhecimento plural, não mais
baseado somente no casamento, mas em diversos relacionamentos, não tido mais
como direito imposto e imaginário307.
A partir de tais premissas, passa-se a analisar a Função Social
da Propriedade, no ordenamento jurídico brasileiro.
2.6. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
Antes de se ingressar no tema da Função Social da
Propriedade no ordenamento jurídico brasileiro, importa a realização de algumas
considerações acerca das doutrinas que fundamentam a Propriedade,
principalmente as teorias individualistas e sociais.
307 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil , p. 314.
Na lição de Radbruch308, as doutrinas mais antigas sobre o
fundamento da Propriedade são as teorias da ocupação e da especificação ou do
trabalho. A teoria da ocupação diz respeito à dominação da natureza pelo homem,
fazendo com que os objetos dessa natureza tenham um valor cultural e econômico.
Para a teoria da especificação, não é somente a pura apropriação da coisa ou objeto
da natureza que faz com que a mesma se submeta ao domínio humano, mas
apenas a transformação desses bens, através da forma que o homem, pelo seu
trabalho, deu à matéria bruta dessa natureza, sendo somente o trabalho o único
criador de bens para legitimar a Propriedade. Essa última teoria leva a conclusões
socialistas. Jhering309 ensina que a justificação moral da Propriedade e sua fonte
histórica se fixam no trabalho, de forma que “(...) Só a ligação constante com o
trabalho mantém a propriedade vigorosa e sadia, só junto a essa fonte que
constantemente a gera e renova é que ela se revela até o âmago em toda clareza e
transparência, com todas as potencialidades que encerra para o homem (...)”, sendo
que “(...) A propriedade nada mais é senão a periferia da pessoa projetada no
terreno material”310. Ambas as teorias (da ocupação e do trabalho), contudo, não
conseguem justificar a instituição da Propriedade privada em si mesma311.
Para Radbruch312, ainda, pode-se considerar a Propriedade
como um fim do indivíduo (teoria individualista ou teoria da personalidade da
Propriedade) ou da Sociedade (teoria social da Propriedade). A primeira dessas
teorias direciona-se às concepções do Liberalismo e da Democracia (encontrando
suas bases no Direito Romano), por tratar-se de uma relação entre o homem e as
coisas, as quais, também, possuem uma dignidade própria, ou algo a extrair dos
homens, exigindo que os homens utilizem, gozem cultivem, poupem tais coisas
conforme o seu valor, exigindo destes homens amor com relação à coisa, tanto
animadas quanto inanimadas313. Essa teoria da personalidade possui um limitado
308 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito , p. 269. 309 JHERING, Rudolf von. A luta pelo direito . Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret,
2002. p. 51. 310 JHERING, Rudolf von. A luta pelo direito , p. 54. 311 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito , p. 270. 312 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito , p. 271. 313 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito , p. 269-275.
campo de aplicação, não se direcionando a certas organizações como grandes
latifúndios, fábricas e bancos, mas somente ao vestuário, coleções, livros, habitação
e instrumentos e obras de arte314. Segundo Radbruch315, tais considerações sobre
esta teoria servem para se afirmar que a Propriedade, “(...) perdeu todo o caráter
duma relação jurídica em que entra alguma coisa de afeição ou de personalidade, e
se converteu numa relação em que só domina um fim económico”. Além disso,
possui a Propriedade o seu lado negativo, no sentido da exclusão de várias pessoas
desse gozo, contrapondo-se ao ponto de vista democrático, ao qual a Propriedade
só pode se justificar caso esse gozo se torne possível a todos ou se a exclusão
também se referir a todos316.
A teoria social da Propriedade dirige-se às concepções do
chamado Conservantismo e do Socialismo (cujas bases se encontram no conceito
germânico da Propriedade). Para o Socialismo, a Propriedade deve ser colocada a
serviço do indivíduo e para a teoria conservadora, a finalidade última da Propriedade
não se encontra no indivíduo, mas na própria Sociedade concebida como um todo,
acima das partes que a compõem. Segundo Radbruch317, as teorias sociais da
Propriedade separaram-se da teoria individualista da Propriedade “(...) justamente
em reconhecerem que esta harmonia preestabelecida não passa duma ilusão, e que
a função social da propriedade, longe de se achar indissoluvelmente ligada à sua
função no interesse do indivíduo, carece também de ser definida e assegurada ao
lado desta de uma maneira particular”.
Essa teoria social da Propriedade teve menção na Encíclica
papal Quadragésimo anno, distinguindo o “direito de Propriedade”, em que surge
somente o aspecto direcionado ao indivíduo, pertencendo esta consideração ao
direito natural, e o “uso da Propriedade”, nesta última, observando-se o lado social, o
interesse da coletividade, cuja óptica pertence à Ética. Desta forma, cumpre ao
legislador o dever de regular o uso desse direito de Propriedade, direcionado às
exigências do bem comum, sendo este o direcionamento traduzido na Constituição 314 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito , p. 274. 315 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito , p. 275. 316 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito , p. 276. 317 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito , p. 278.
de Weimar, conforme ensina Radbruch318:
Inspirada por critérios e pontos de vista de interesse social, a lei surge-nos pois deste modo como um terceiro poder a determinar juridicamente a estrutura da propriedade. ‘O seu conteúdo e os seus limites são marcados pela lei’. O legislador fica assim habilitado a elevar do plano moral ao plano jurídico, comunicando-lhe obrigatoriedade, esta garantia ou ‘hipoteca social da propriedade’.
Essa Função Social do Direito passa a assumir a característica
de um dever jurídico, considerando-se a Propriedade um direito limitado e
condicional, não mais se tratando de um direito incondicional e ilimitado, sagrado e
inviolável319. A Propriedade não mais se funda no interesse particular, individual. É
necessário que esse direito esteja em conformidade com os interesses coletivos,
não os afetando, seja direta ou indiretamente, possuindo, assim, uma Função Social
a ser exercida. Para tanto, necessário é verificar o que se entende por Função
Social.
2.6.1. Um conceito operacional de Função Social
Para efeitos desse estudo, antes importa esclarecer o que se
entende por Função. Por Função, entende-se um serviço, uma atividade direcionada
à ação de determinado objeto, ligada a uma condição anterior que a criou. Para
Sundfeld320, “(...) função, para o Direito, é o poder de agir cujo exercício traduz
verdadeiro dever jurídico e que só se legitima quando dirigido ao atingimento da
específica finalidade que gerou sua atribuição ao agente”.
Segundo Pasold321, esta categoria “função” está direcionada
para dois elementos: “ação” e “dever de agir”, às quais “(...) o Poder do Estado
assumirá direções fundamentais e executará as atividades necessárias à
consecução de objetivos pretendidos, como efeito do dever que o Estado tem para
com a Sociedade (...)”, sendo esta interação continuada à causa da Função Social.
318 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito , p. 279. 319 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito , p. 280. 320 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público , p. 156. 321 PASOLD, Cesar Luiz. Função social do estado contemporâneo, p. 92.
Por “Social”, por sua vez, entende-se uma situação de
contraposição ao interesse egoístico de alguém. Entende-se uma categoria
relacionada à coletividade, à Sociedade como um todo, sacrificando-se interesses
privatísticos em favor dos interesses da coletividade322. Pressupõe o ambiente
humano, segundo o qual alguém se encontra integrado.
Pasold323 ensina que o termo Função Social implica em “(...)
ações que – por dever para com a Sociedade – o Estado executa, respeitando,
valorizando e envolvendo o seu Sujeito (que é o homem individualmente
considerado e inserido na Sociedade), correspondentemente ao seu Objeto
(conjunto de áreas de atuação que dão causa às ações estatais), e cumprindo o seu
Objetivo (o Bem Comum ou Interesse Coletivo, fixado dinamicamente pelo todo
social)”324. O mesmo autor325 ensina que essa Função Social deve pressupor o
equilíbrio entre a “atividade livre” e a “atividade regulada” na Sociedade, bem como a
“atividade autoritária” e a “atividade social” no Estado.
Gonçalves326 ensina que a Função Social assume dois
aspectos: a “função impulsiva”, a qual se caracteriza como elevado rendimento da
Propriedade dos bens econômicos, e a “função limite”, a qual consiste num modo
aparentemente negativo de limite exterior, ou seja, refere-se mais aos aspectos
exteriores da forma em que a Propriedade dos bens econômicos irá agir, intervindo
na limitação da autonomia do proprietário. Tem, portanto, um caráter mais geral,
visando a tornar mais fecunda a gestão dessa Propriedade. Esta boa gestão dos
bens econômicos é um dever social do proprietário. A “função limite” é um limite
normal e constante, não se tratando de um ônus aos proprietários particulares, mas
um ponto de equilíbrio entre a convivência social e a gestão pelo proprietário.
Entende-se como “função limite” o “(...) complexo de
obrigações de direito público vinculadas ao proprietário, visando a estimular melhor
322 Aqui utilizado como sinônimo de Sociedade. 323 PASOLD, Cesar Luiz. Reflexões sobre o poder e o direito, p. 86-87. 324 Lição também exarada em PASOLD, Cesar Luiz. Função social do estado contemporâneo , p.
92-93. 325 PASOLD, Cesar Luiz. Função social do estado contemporâneo , p. 71. 326 GONÇALVES, Aderbal da Cunha. Da propriedade resolúvel . São Paulo: RT, 1978. p. 56-57.
suas energias na gestão dos bens econômicos. (...)”327.
Segundo Fachin a expressão “função social” é muito debatida,
especialmente na Sociologia, acerca da análise funcionalista dos fenômenos sociais,
havendo várias orientações interpretativas, como a função-fim (teleológica) e a
função-necessidade (fato social)328.
Para Pasold329, a expressão Função Social pode ser entendida
como ações de execução obrigatória pelo Estado, que devem respeitar, valorizar e
envolver o seu sujeito, bem como atender seu objeto e realizar seus objetivos,
privilegiando o social e os valores fundamentais do ser humano.
Cavedon330 afirma que o princípio da Função Social da
Propriedade “(...) condiciona o reconhecimento e proteção do direito do proprietário
(poder) ao direcionamento do uso dado à Propriedade para os interesses sociais
(dever) (...)”.
Assim, poderia se descrever a Função Social como uma
atividade, uma ação (poder) ligada a um interesse coletivo, afastando-se interesses
eminentemente privados em detrimento do benefício maior de uma coletividade
(dever).
2.6.2. A Função Social da Propriedade no Estado Con temporâneo e seus
objetivos
O Estado contemporâneo (estado de bem estar, estado social)
caracteriza-se principalmente pelo seu caráter intervencionista, ou seja, é o estado
“que intervém na sociedade para garantir oportunidades iguais a seus cidadãos nos
âmbitos econômico, social e cultural (...)”331. aqui, portanto, faz-se referência ao
327 GONÇALVES, Aderbal da Cunha. Da propriedade resolúvel ., p. 57. 328 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil , p. 289-290. 329 PASOLD, Cesar Luiz. Função social do estado contemporâneo , p. 100. 330 CAVEDON, Fernanda de Salles. Função social e ambiental da propriedade . Florianópolis:
Visualbooks, 2003. p. 84. 331 CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia e estado contemporâneo , p. 152.
estado contemporâneo democrático, “(...) entendido como aquele que intervém nos
domínios econômico, social e cultural, obedecidos os parâmetros mínimos de
cidadania política, justiça, representatividade, legalidade e legitimidade”332.
A importância do estudo da Função Social da Propriedade
decorre do próprio fundamento do direito de Propriedade, principalmente, no que diz
respeito ao direito brasileiro para efeitos de responsabilização civil do Proprietário
Fiduciário, na Alienação Fiduciária em Garantia de Veículos Automotores de Via
Terrestre, objeto de estudo desta Tese.
Conforme visto, o fenômeno da “repersonalização” do Direito
Civil fez com que o instituto da Propriedade, ainda que assegurado na CRFB/88,
tivesse que se amoldar às necessidades da Sociedade. Isso fez com que houvesse
um redirecionamento deste instituto, o qual deve assegurar a Dignidade da Pessoa
Humana, seja por parte do proprietário, seja àqueles sobre quem se refletirão os
efeitos desta Propriedade. Essa situação se justifica porque, relembrando Pasold333,
se alguém pretende se utilizar da Propriedade como fonte de poder, “(...) deve, antes
de tudo, ter em mente que, na vida coletiva, somente quando o social predomina
sobre o econômico, quando o humano prepondera sobre o material, há chances
reais de possibilidade da Felicidade”.
O direito de Propriedade não consiste mais em um direito
absoluto, pois deve obedecer à Função Social, isto é, à atividade ligada a um
interesse coletivo, afastando-se interesses eminentemente privatísticos em
detrimento do benefício maior de uma coletividade. Daí a importância de se salientar
a Função Social da Propriedade, principalmente no que tange ao ângulo visado no
presente estudo.
A Função Social da Propriedade pode ser interpretada como
uma expressão que designa a supremacia do interesse coletivo sobre o direito
332 CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia e estado contemporâneo , p. 153. 333 PASOLD, Cesar Luiz. Reflexões sobre o poder e o direito , p. 16.
individual334. Esta função se relaciona com a utilização da Propriedade, o que
modifica certos fatores da relação externa desse direito como, por exemplo, o seu
exercício335. A Função Social ainda encontra correspondência nos princípios da boa-
fé e de confiança recíproca do conceito moderno de obrigação, de forma que o
direito de Propriedade deve ser solidário com os interesses sociais e se adequar aos
deveres impostos ao proprietário pela política legislativa336.
Tepedino337, acerca da Função Social da Propriedade, destaca
que, no significado e extensão dessa noção (Função Social), há um ponto de
consenso, ou seja, a “(...) capacidade do elemento funcional em alterar a estrutura
do domínio, inserindo-se em seu ‘profilo interno’ e atuando como critério de
valoração do exercício do direito, o qual deverá ser direcionado para um ‘massimo
sociale’”. Quando a Propriedade não exerce sua função social, não pode ser
protegida pelo ordenamento jurídico. Com isso, tanto os bens de produção, quanto
os de consumo têm uma função social a ser exercida, vinculadas ao seu conteúdo,
como os modos de aquisição e utilização338.
Conforme Santos339, a Função Social da Propriedade pode ser
definida como “(...) uma obrigação de agir a fim de cumprir com as exigências do
bem comum e da Justiça Social, dando à propriedade uma utilidade de forma a
justificar e legitimar o próprio direito por meio desse comportamento”.
Importante destacar, ainda, a lição de Perlingieri340 acerca da
Função Social. Para ele, a Função Social consiste num conjunto de limites,
representando uma forma de pressão ao poder do proprietário, o qual, se não 334 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil , v. 3. p. 92. 335 FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporâ nea: (uma
perspectiva da usucapião imobiliária rural). Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988. p. 17.
336 FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporâ nea: (uma perspectiva da usucapião imobiliária rural). Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988. p. 17.
337 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil . 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 281-282. 338 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil . 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 281-282. 339 SANTOS, Eduardo Sens dos. A função social do contrato , p. 138. 340 PERLINGIERI, Pietro. Perfis de direito civil. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 2. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002. p. 226.
tivesse limites, ficaria livre e íntegro para exercer seu direito como lhe aprouvesse.
A Função Social tem um conteúdo cujo sentido pretende
disciplinar as formas de propriedade, devendo ser interpretada com a finalidade de
assegurar e promover os valores que o ordenamento jurídico se fundamenta341.
Deve ser entendida não como uma intervenção odiosa à propriedade, mas no
sentido de que se torna “‘a própria razão pela qual o direito de propriedade foi
atribuído a um determinado sujeito’, um critério de ação para o legislador, e um
critério de individuação da normativa a ser aplicada para o intérprete chamado a
avaliar as situações conexas à realização de atos e de atividades do titular” 342.
Corroborando as lições acima destacadas, o artigo 5o, XXIII, da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, carrega consigo o princípio
segundo o qual “a propriedade atenderá a sua função social”. Silva343, ao comentar
o referido princípio, acrescenta certas limitações do próprio Poder Público com
relação à Propriedade privada (embora sempre prevaleça o interesse público):
(...) é certo que o princípio da função social não autoriza a suprimir, por via legislativa, a instituição da propriedade privada. Contudo, parece-nos que pode fundamentar até mesmo a socialização de algum tipo de propriedade, onde precisamente isso se torne necessário à realização do princípio, que se põe acima do interesse individual. Por isso é que se conclui que o direito de propriedade (dos meios de produção especialmente) não pode mais ser tido como um direito individual. A inserção do princípio da função social, sem impedir a existência da instituição, modifica sua natureza, pelo que, como já dissemos, deveria ser prevista apenas como instituição do direito econômico.
Para Fachin344, “(...) a expressão função social corresponde a
limitações, em sentido largo, impostas ao conteúdo do direito de propriedade. (...).”.
essas limitações se fixam no sentido de beneficiar o interesse público e para
estabelecer um conceito dinâmico de propriedade, tornando-o anti-individualista,
341 PERLINGIERI, Pietro. Perfis de direito civil, p. 226. 342 PERLINGIERI, Pietro. Perfis de direito civil, p. 226. 343 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18. ed. São Paulo: Malheiros,
2000. p. 287. 344 FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporâ nea, p. 17.
fazendo com que o fundamento da função social da propriedade seja “eliminar da
propriedade privada o que há de eliminável”345.
Do que foi até aqui exposto, observa-se que a propriedade
compreende o uso, gozo, disposição e reivindicação de todos os bens e/ou direitos
de alguém. À função social da propriedade, portanto, pode-se operacionalizar o
seguinte conceito: consiste na utilização, gozo, disposição e reivindicação dos bens
e/ou direitos de alguém, afastando-se interesses eminentemente privatísticos
prejudiciais em detrimento do benefício maior de uma coletividade, de forma que,
para haver tal equilíbrio, o estado limitará e/ou estabelecerá regras à sua utilização
na conformidade do bem comum346.
De todas as considerações expostas, observa-se que a Função
Social da Propriedade, no direito brasileiro, é decorrente do fato de que o seu uso
deve estar condicionado ao bem-estar social347. Aliás, a inviolabilidade da
Propriedade é um valor importante na Sociedade ocidental, porém adverte Lloyd348
que tal direito é alvo de usurpações consideráveis, ensinando que: “(...) A
nacionalização de indústrias inteiras, o vasto controle pela legislação urbanística dos
usos do solo e das edificações, os amplos poderes de aquisição compulsória de
terras de proprietários privados sem o consentimento destes, são outras tantas
medidas hoje aceitas como características essenciais da maquinaria do Estado para
controlar o bem-estar da comunidade (...)”.
Perlingieri349 ensina que a Propriedade pode ser analisada
como situação subjetiva e relação, dizendo que a objeção doutrinária relativamente
a esta última situação consiste na não-determinação dos sujeitos titulares da
situação passiva.
345 FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporâ nea, p. 17. 346 RONCONI, Diego Richard. Falência & recuperação de empresas : análise da utilidade social de
ambos os institutos. Itajaí: Editora da Univali, 2002. p. 54. 347 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito das coisas, v. 5. p. 89. 348 LLOYD, of Hampstead, Dennis Loyd, Baron. A idéia de lei , p. 176. 349 PERLINGIERI, Pietro. Perfis de direito civil, p. 221.
Segundo Aronne350, a titularidade do proprietário não perde seu
caráter de Propriedade privada em razão da funcionalização social, mas estará
imbuído o interesse social, “(...) implicando limite e impulso, passando a ser relativa,
por relativa ser a supremacia do interesse privado, de modo a poder ser asseverado,
contemporaneamente, a weimeriana premissa de que a propriedade obriga”.
Tais influências, conforme já estabelecido, se fundamentaram,
principalmente, com as disposições estabelecidas pela Constituição de Weimar
(1919) e do México (1917), que influenciaram diretamente em aspectos do direito
privado, principalmente sobre a Propriedade e o contrato. Acompanhando essa
tendência, o legislador-constituinte, na CRFB/88, fez menção expressa dessa
interferência do direito público no direito privado, especialmente no que aqui
interessa, que é o direito de Propriedade, situação essa que passará a ser exposta.
2.7. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA CRFB/88
Na CRFB/88 há situações que consagram, expressamente, a
Função Social da Propriedade. O artigo 5o, XXII, assegura o direito de Propriedade,
ordenando, no inciso seguinte (XXIII), que a mesma atenderá sua Função Social.
Quando na CRFB/88 retrata sobre o Imposto Predial e
Territorial Urbano (IPTU), de competência dos Municípios, no artigo 156, § 1o,
ordena que tal tributo “(...) poderá ser progressivo, nos termos de lei municipal, de
forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade”. Também se faz
presente o princípio da função social da propriedade como princípio geral da
atividade econômica (art. 170, III e art. 173, § 1º, da CRFB/88).
No artigo 182, § 2o, ao se manifestar sobre a política de
desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público Municipal, conforme
diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, e que “A
propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências
350 ARONNE, Ricardo. Por uma nova hermenêutica dos direitos reais limita dos : das raízes aos
fundamentos contemporâneos, p. 100.
fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.
Também, no Capítulo referente à política agrícola e fundiária e
da reforma agrária, os artigos 184351, 185, parágrafo único352 e 186353, da CRFB/88,
também fazem referência ao princípio da função social da propriedade.
Cavedon354 afirma que este processo de publicização do direito
de Propriedade, na dimensão dos Direitos Fundamentais, se dá diante da nova
feição destes, os quais aludem à “(...) impossibilidade da plena satisfação das
liberdades individuais, se desconsideradas as liberdades sociais. Assim, liberdades
individuais e liberdades sociais estão interligadas e indissociáveis, sendo necessária
uma releitura dos Direitos Fundamentais a partir desta nova abordagem”.
A importância deste item tem relação com o assunto tratado a
seguir, o qual pretenderá demonstrar a abrangência da Função Social da
Propriedade, ou seja, em que sentido reflete esta Função Social, conforme análise
dos artigos da Constituição Federal acima colacionados.
2.8. ABRANGÊNCIA DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Quando se fala em Propriedade, constata-se que este direito
tem um conteúdo econômico, quantificável pecuniariamente. É objeto de mercado,
participando como objeto de troca ou de moeda entre as partes em uma relação
351 “Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.” 352 “Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária: (...). Parágrafo único: A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social.”. 353 “Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.” 354 CAVEDON, Fernanda de Salles. Função social e ambiental da propriedade , p. 66.
jurídica355. Neste comércio, porém, existem interesses direcionados somente para
determinada categoria de pessoas diante de um funcionamento desimpedido deste
mercado, mas há também grupos que, em virtude deste funcionamento, podem ter
seus interesses prejudicados e, neste pensamento, ensina Sen356:
(...) Esse pode ser um problema particularmente sério quando prosperam – apesar de ineficiência e vários tipos de inépcia – unidades de produção monopolistas, graças a estarem isoladas da concorrência interna ou externa. Os preços elevados ou a baixa qualidade dos produtos envolvidos nessa produção artificialmente sustentada podem impor um sacrifício significativo à população, mas um grupo de ‘industriais’ organizado e politicamente influente pode assegurar-se que seus lucros estejam bem protegidos.
Nesta constatação, observa-se que os interesses mercantis
distanciam-se do interesse público. Sen357 traz à colação o ensinamento de Vilfredo
Pareto (conhecido como a “ótima de Pareto”): “(...) se ‘uma certa medida A
representa a perda de um franco por pessoa para um grupo de mil pessoas e um
ganho de mil francos para um único indivíduo, este último envidará esforços imensos
enquanto os primeiros resistirão debilmente; e é provável que, no final, a pessoa que
está tentando assegurar os mil francos por meio de A venha a ter êxito’. (...)”.
Tal fator contribui para a desigualdade social e para a pobreza,
situações estas cujo afastamento constituem objetivos fundamentais do Estado
Democrático brasileiro (art. 3o., III, CRFB/88). E pobreza, aqui, é observada como a
privação das capacidades básicas (desemprego, baixo nível de instrução e exclusão
social), e não como baixo nível de renda358-359. Neste mesmo sentido, Dias360 ensina
355 Conforme Coelho, “(…) Relação jurídica é o vínculo entre o titular do direito subjetivo e o do dever
correspondente (...)”, in COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil . São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1. p. 281.
356 SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade . Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 145.
357 SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade , p. 147. 358 SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade , p. 109. 359 Dias conceitua “pobreza”, por outro lado, como sendo o “(...) estrato da população cuja renda não
permite o acesso aos bens de nossa civilização. Limitados e mesmo impossibilitados de atenderem suas necessidades existenciais (de alimentação, vestuário, habitação, segurança, educação, saúde, lazer, identidade, participação...), diferenciam-se os pobres dos indigentes, que não conseguem ter atendida nem mesmo a necessidade básica e fundamental de alimentação. (...)”, in DIAS, Maria da Graça Santos. A justiça e o imaginário social , p. 77.
360 DIAS, Maria da Graça Santos. A justiça e o imaginário social , p. 80.
que:
(...) A pobreza não se traduz apenas na escassez de renda, na dificuldade de ingresso no mercado de trabalho e de acesso universal aos bens de consumo coletivo e aos bens da cultura, mas também na desproteção jurídica, na falta de participação política, na perda da identidade e do sentido de dignidade humana, na desesperança de construção de um projeto pessoal e coletivo de uma vida com qualidade.
Por tais motivos, a Função Social da Propriedade tem um
alcance muito maior, especialmente diante do crescimento de um capitalismo361
desenfreado que molda a Sociedade contemporânea.
Lloyd362 agrupa os principais valores, que são considerados
direitos legais de todos os seres humanos, expressos em igualdade e democracia,
liberdade de contrato, direito de Propriedade, direito de associação, liberdade de
trabalho, liberdade da miséria e segurança social, liberdade de expressão e de
imprensa, liberdade pessoal e império da lei (devido processo legal). Ao se referir à
liberdade da miséria e segurança social, Lloyd363 explica que este direito consiste na
proteção de todos contra a pobreza e na busca de um padrão de vida razoável,
sendo um dos valores supremos do Estado moderno. Também estabelece a
tendência da repartição dos riscos de infortúnio entre a comunidade, no sentido de
solidariedade social, levando “(...) à realização de novas tentativas de ampliar a
noção de segurança a muitos outros riscos que acompanham a vida cotidiana.”364.
Cita, como exemplo, o risco de danos decorrentes de acidentes industriais e aqueles
ocasionados em vias públicas pelo uso de Veículos Automotores (situação tratada
nesta pesquisa), o que demonstra a preocupação da doutrina com relação a este
361 O núcleo do capitalismo se encontra no lucro e na Propriedade privada, sendo o lucro a diferença
entre os gastos com a produção e o que recebe o empresário com a venda do produto, conforme MACRIDIS, Roy C. Ideologias políticas contemporâneas . Tradução de Luis Tupy Caldas de Moura e Maria Inês Caldas de Moura. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982. 317 p. p. 121. Para Requião, a obtenção do lucro é a finalidade da sociedade comercial, conceituando “lucro” como “(...) o sobrevalor que a sociedade pode produzir, como resultado da aplicação do capital e outros recursos na atividade produtiva”, in REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial . 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 2. p. 239.
362 LLOYD, of Hampstead, Dennis Loyd, Baron. A idéia de lei , p. 170-201. 363 LLOYD, of Hampstead, Dennis Loyd, Baron. A idéia de lei , p. 181. 364 LLOYD, of Hampstead, Dennis Loyd, Baron. A idéia de lei , p. 181.
aspecto. Demonstrando esta tendência, Lloyd365 ensina que:
Em suma, há atualmente um sentimento geral de que talvez exista a necessidade de um sistema mais global de segurança social que proteja as pessoas contra o risco de acidentes, além dos industriais, em conseqüência dos quais elas possam ficar incapacitadas ou perder seus meios de subsistência, com grave prejuízo para elas próprias e para seus dependentes. Deve o direito de ressarcimento depender apenas, em tais casos, de se poder comprovar a negligência por parte de algum transgressor da lei? Isso talvez seja extremamente difícil de fazer em muitos casos, e pode ser considerado, num certo sentido, irrelevante para o fato de que o indivíduo sofreu uma desgraça para a qual a justiça social requer que lhe seja feita uma reparação pela comunidade como um todo, em vez de permitir que a perda recaia inteiramente sobre esse indivíduo.
Neste ponto, a Função Social da Propriedade assume um
importante relevo no intuito de dirimir esta injustiça, assegurando a Dignidade da
Pessoa Humana.
Segundo o conceito operacional adotado para esta pesquisa,
Propriedade e domínio têm o mesmo significado. Assim, podem abranger coisas
corpóreas ou incorpóreas. Quando se retrata sobre a Função Social da Propriedade,
deve-se ter em mente que a Propriedade pode tanto abranger a Propriedade
mobiliária, quanto imobiliária, material ou imaterial, plena ou limitada. Isto porque a
CRFB/88, em seu art. 5o, XXII e XXIII, não limita essa condição somente para os
bens imóveis366.
Importante ressaltar que a Propriedade, imbuída de sua
Função Social, pretende agora assegurar e promover o bem comum. Isso faz com
que o proprietário, além do poder que tem sobre a coisa (como um direito), tem um
dever para com a Sociedade, obrigando-se a dar à coisa a melhor destinação, sob a
365 LLOYD, of Hampstead, Dennis Loyd, Baron. A idéia de lei , p. 182-183.
366 “Art. 5 o. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantido-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXII– é garantido o direito de propriedade; XXIII– a propriedade atenderá a sua função social.”
óptica do interesse coletivo367. Observa-se que o princípio da Função Social da
Propriedade “(...) condiciona o reconhecimento e proteção do direito do proprietário
(poder) ao direcionamento do uso dado à Propriedade para os interesses sociais
(dever)”368.
Segundo Lloyd369, na Propriedade há o envolvimento de um
direito absoluto com relação a alguma coisa tangível ou intangível. Critica este autor
que a idéia de bem “intangível” como objeto de Propriedade (“propriedade de coisa
intangível”) foi uma criação para se evitar casos como a Propriedade de direitos
autorais ou patentes. Critica também que não há como identificar o caráter absoluto
e ilimitado do direito do proprietário pelos seguintes motivos: “(...) porque a
propriedade pode ser virtual e completamente desprovida dos elementos de fruição
e controle e, mesmo assim, continuará sendo propriedade e, além disso, porque em
lei não existe nada a que se possa chamar um direito ilimitado, pois a lei imporá
inevitavelmente restrições ao uso ou transmissão de propriedade”370.
Conforme os artigos da CRFB/88 trazidos à baila no item
anterior, observou-se que grande parte dos mesmos direciona-se à Função Social
da Propriedade imobiliária. Nesse sentido, em se tratando de Propriedade
Imobiliária, deve-se atentar para quais bens, em conformidade com os artigos 79 a
81, do Código Civil371, são entendidos como bens imóveis.
O sentido da Constituição Federal, ao retratar acerca da
Função Social da Propriedade, não quer limitar essa função somente à Propriedade
imobiliária. Ao dispor que “a propriedade atenderá sua função social”, destina-se
367 CAVEDON, Fernanda de Salles. Função social e ambiental da propriedade , p. 83. 368 CAVEDON, Fernanda de Salles. Função social e ambiental da propriedade , p. 84. 369 LLOYD, of Hampstead, Dennis Loyd, Baron. A idéia de lei , p. 412. 370 LLOYD, of Hampstead, Dennis Loyd, Baron. A idéia de lei , p. 412-413. 371 “Art. 79 . São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente. Art. 80 . Consideram-se imóveis para os efeitos legais: I – os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram; II – o direito à sucessão aberta; (...) Art. 81 . Não perdem o caráter de imóveis: I – as edificações que, separadas do solo, mas conservando sua unidade, forem removidas para outro local; II – os materiais provisoriamente separados de um prédio, para nele se reempregarem.”
esta tarefa a todo o tipo de Propriedade, conforme já tratado. Aliás, tal entendimento
alinha-se ao pensamento de Santos372, para o qual “É inegável, entretanto, e
sobretudo em vista do disposto no art. 5o., XXIII, que ao insculpir o princípio da
função social na Constituição se teve em mira a propriedade em todas as suas
formas, apenas dando maior ênfase à propriedade do solo urbano e rural”. Esse
reflexo se estabelece porque o princípio da Função Social da Propriedade “(...)
precisa passar a integrar a prática jurídica e as relações econômicas e sociais.
(...)”373.
No estudo da Função Social da Propriedade mobiliária,
importante conhecer o que compreendem “bens móveis”. Para tanto, ordena o
Código Civil, em seus artigos 82, 83 e 84, o que são bens móveis e o que são
considerados bens móveis374.
Atente-se para o fato de que, para efeitos desse estudo, tratar-
se-á da Função Social da Propriedade Fiduciária de Veículos Automotores, ou seja,
haverá o envolvimento de bens móveis, excluindo-se da análise, portanto, a Função
Social da Propriedade imobiliária. E é sobre a Propriedade Fiduciária e a Alienação
Fiduciária em Garantia, especialmente de Veículos Automotores de Via Terrestre, no
ordenamento jurídico brasileiro, que se passará a estudar no próximo capítulo.
372 SANTOS, Eduardo Sens dos. A função social do contrato , p. 141, grifado. 373 CAVEDON, Fernanda de Salles. Função social e ambiental da propriedade . p. 86. 374 “Art. 82 . São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social. Art. 83 . Consideram-se móveis para os efeitos legais: I – as energias que tenham valor econômico; II – os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes; III – os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações. Art. 84. Os materiais destinados a alguma construção, enquanto não forem empregados, conservam sua qualidade de móveis; readquirem essa qualidade os provenientes da demolição de algum prédio.”
Capítulo 3
A PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA E A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA E M
GARANTIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO CIVIL BRASILEIRO
Após o tratamento sobre a Propriedade, referido no capítulo
anterior, este capítulo tratará de um breve histórico a respeito da Propriedade
Fiduciária, conceituando a Propriedade Resolúvel (pois aquela é espécie desta) e
estabelecendo seus efeitos entre alienante e proprietário resolúvel. Em seguida,
conceituar-se-á a Propriedade Fiduciária, restringindo-se à modalidade de Alienação
Fiduciária em Garantia, a qual será abordada sob a óptica da legislação brasileira.
Depois de conceituar e estabelecer as características e natureza jurídica da
Alienação Fiduciária em Garantia, ingressar-se-á no estudo de seus requisitos
subjetivos e objetivos, com inserção do empréstimo em dinheiro em tal modalidade
de Propriedade Fiduciária. A seguir, será realizado o estudo de seus requisitos
formais, deveres do Fiduciante e Fiduciário e da Função Social da Propriedade
Fiduciária na espécie de Alienação Fiduciária em Garantia, tratando-se, ainda, sobre
as mudanças trazidas pela Lei n º 10.931, de 02 de agosto de 2004, lei esta que
modificou o conteúdo da Alienação Fiduciária em Garantia.
3.1. HISTÓRICO ACERCA DA PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA
A Propriedade Fiduciária tem como gênese a fiducia do Direito
Romano. Neste direito, havia duas espécies de fidúcia: a primeira forma era a fiducia
cum amico, realizada no interesse do Fiduciante com o intuito de facilitação da
administração, do depósito, comodato, mandato etc.375, não havendo o intuito de
garantia. A coisa era transferida a outra pessoa (ao amigo) para, ao final de
determinado prazo ou sob certa condição, ser devolvida ao proprietário376.
A segunda forma era a fiducia cum creditore. Esta consistia em
forma de garantia de uma obrigação principal, na qual o devedor operava a
375 BESSONE, Darcy. Do contrato : teoria geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 62. 376 BESSONE, Darcy. Do contrato : teoria geral, p. 62.
transferência ao credor da Propriedade de uma res mancipi, pela mancipatio ou in
jure cessio, com cláusula adjeta. Aqui, o credor tinha a obrigação de devolver a
coisa. Após o recebimento pelo credor do que lhe era devido pela obrigação
principal, este transferia novamente a Propriedade da coisa ao devedor. Desse
modo, o credor passava a ser dono da coisa. Tal forma de garantia foi muito usada
no período clássico, desaparecendo na época pós-clássica377.
Em ambos os casos, havia conjugação da relação real e
obrigacional (pessoal) e, uma vez não cumprida a obrigação, a solução era a
indenização. Bessone378 ensina que:
A posição do fiduciante, que transmitia a propriedade e se tornava credor apenas da prestação prometida (de natureza pessoal), o privava da ação de reivindicação, quando a obrigação não fosse cumprida. Esse inconveniente, ao lado da habitual desproporção entre o valor da coisa e o do crédito na fidúcia cum creditore, deu origem ao progressivo declínio da figura, no comércio jurídico romano.
Já, no direito germânico, a fiducia assumiu algumas
particularidades, dentre as quais a transmissão da Propriedade do Fiduciante ao
Fiduciário, a qual não se realizava de modo ilimitado, mas sim resolúvel, tornando
possível a reivindicação da coisa, caso o Fiduciário descumprisse a obrigação de
utilizar-se da coisa para o fim predeterminado. Pelo sistema da publicidade,
possibilitou a melhora da posição do Fiduciante, fazendo com que o contrato
passasse a ser conhecido por terceiros, o que impedia que os mesmos
argumentassem o desconhecimento da limitação da Propriedade originado pelo
pactum fiduciae379. Este fato é importante, pois a natureza resolúvel da Alienação
Fiduciária em Garantia, que será estudada adiante, filia-se mais à forma germânica
do que à romana380.
É em virtude da influência dos fatores econômicos e das
377 MARKY, Thomas. Curso elementar de direito romano. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 101-
102. 378 BESSONE, Darcy. Do contrato : teoria geral, p. 62. 379 BESSONE, Darcy. Do contrato : teoria geral, p. 62. 380 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil , v. 4. p. 273.
necessidades sociais que vários institutos do Direito Romano foram restaurados, sob
novas condições, a fim de satisfazerem as exigências sociais. Foi o que ocorreu com
a figura da fidúcia, nascida do Direito Romano e ressuscitada pelos pandectistas
alemães no direito moderno381.
3.2. CONCEITO DA PROPRIEDADE RESOLÚVEL E SEUS EFEIT OS ENTRE
ALIENANTE E PROPRIETÁRIO RESOLÚVEL
Importante conhecer, antecipadamente, o que consiste a
Propriedade Resolúvel, vez que a Propriedade Fiduciária é uma espécie daquela.
Segundo Lisboa382, Propriedade Resolúvel (ou Revogável) é uma Propriedade não
definitiva, em que o advento da condição ou termo final pode acarretar a resolução
ou a perda da Propriedade, fazendo-a retornar ao patrimônio do proprietário anterior.
Dessa forma, os direitos inerentes ao domínio do bem não poderão mais ser
exercidos pelo proprietário resolúvel, de forma que o beneficiário da resolução
poderá reivindicar a Propriedade. Assim, Propriedade Resolúvel383:
(...) é aquela que importa sujeição da transferência definitiva do domínio da coisa à verificação ou não de um fato jurídico, que pode ser: a) um evento futuro e incerto (condição); b) um evento futuro e certo ou determinável (termo); ou c) uma causa superveniente.
A Propriedade, durante a pendência ou vigência do termo ou
condição, será resolúvel. Com a resolução do direito de Propriedade, o bem retorna
ao patrimônio do titular anterior, haja vista a implementação da condição ou termo.
Também, a Propriedade se torna definitiva em favor daquele
que era o proprietário resolúvel, considerando as hipóteses em que a condição ou o
termo não se tenham perfectibilizado no período do prazo de vigência da cláusula
381 GONÇALVES, Aderbal da Cunha. Da propriedade resolúvel . São Paulo: Revista dos Tribunais,
1978. p. 210-211. 382 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : direitos reais e direitos intelectuais.
2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 191. v. 4. 383 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : direitos reais e direitos intelectuais,
v.4, p. 191.
resolutiva.
No entanto, uma vez havendo a ocorrência do evento futuro, a
condição resolutiva terá efeito retroativo, revogando-se o domínio e os direitos reais
estabelecidos no período da resolubilidade da Propriedade.
A Propriedade Resolúvel é abrigada nos artigos 1.359 e 1.360,
do Código Civil, os quais ordenam o seguinte:
Art. 1.359 . Resolvida a propriedade pelo implemento da condição ou pelo advento do termo, entendem-se também resolvidos os direitos reais concedidos na sua pendência, e o proprietário, em cujo favor se opera a resolução, pode reivindicar a coisa do poder de quem a possua ou detenha. Art. 1.360 . Se a propriedade se resolver por outra causa superveniente, o possuidor, que a tiver adquirido por título anterior à sua resolução, será considerado proprietário perfeito, restando à pessoa, em cujo benefício houve a resolução, ação contra aquele cuja propriedade se resolveu para haver a própria coisa ou o seu valor.
Podem ser citados como exemplos de Propriedade Resolúvel,
segundo Wald384: “(...) o fideicomisso, em virtude do qual a propriedade do fiduciário,
pela sua morte, se transmite ao fideicomissário. (...) a retrovenda, na qual o
vendedor, durante certo prazo, pode reaver a coisa alienada, devolvendo o preço
recebido.”. Além desses exemplos, Diniz385 cita, ainda, os seguintes: a venda a
contento, realizada sob condição resolutiva (art. 509, do Código Civil); a venda feita
a estranho, por condômino, de sua quota ideal na coisa comum indivisível, sem que
tenha obedecido ao direito de preferência garantido aos demais comunheiros, os
quais poderão, dentro de 180 dias, requerer a quota vendida (art. 504, do Código
Civil); a doação com cláusula de reversão, na qual é estipulado pelo doador que a
coisa doada retorne ao seu patrimônio, caso sobreviva ao donatário. Também (e,
principalmente, para efeitos desta pesquisa), cita-se como exemplo típico a
Alienação Fiduciária em Garantia como modalidade de Propriedade Fiduciária, que,
384 WALD, Arnoldo. Direito das coisas. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 168. 385 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 17. ed. São Paulo:
Saraiva, 2002. v. 4. p. 280-281.
por sua vez, é forma de Propriedade Resolúvel386.
Em todas as hipóteses acima aventadas, o proprietário
resolúvel, ainda que revogável o seu domínio, tem a possibilidade de agir na
qualidade de proprietário pleno, pois há limitação somente no que diz respeito à
duração do seu direito, o qual depende da ocorrência, ou não, de um fato futuro que
pode ser certo ou incerto.
Dessa forma, terá o proprietário resolúvel o direito de uso e
gozo da coisa, e de praticar atos de administração, disposição, inclusive com
possibilidade de alienação do bem. Contudo, o adquirente da coisa deverá se
submeter ao mesmo fato extintivo do domínio, isso porque o proprietário resolúvel
(que é um proprietário condicional) pode constituir direitos reais, havendo, no
entanto, a possibilidade de serem extintos com a realização da condição
resolutória387.
Na ocorrência do evento terminativo condicional aposto no
título, rompem-se, automaticamente, todos os vínculos reais de garantia e a
alienação feita a terceiros, retornando o bem ao antigo dono e operando
retroativamente a condição e o termo resolutivo388, como se nunca tivessem existido.
Para tanto, também como meio de defesa, o proprietário inicial possui ação
reivindicatória para recuperação do bem em poder de quem o detenha ou possua,
por aquisição do proprietário resolúvel389.
386 MEZZARI, Mário Pazutti. Alienação fiduciária : da lei n. 9.514, de 20-11-1997. São Paulo:
Saraiva, 1998. p. 15. 387 O Código Civil determina, em seu art. 121: “Art. 121. Considera-se condição a cláusula que,
derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto.”. Como espécie de condição tem-se a “condição resolutiva ou resolutória”, que consiste naquela condição”(...) cujo implemento faz cessar os efeitos do ato ou negócio jurídico. (...)”, in VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil : parte geral, v. 1, p. 525.
388 “Termo” é “(...) o dia do início e do fim da eficácia do negócio (...)” (VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil : parte geral, v. 1, p. 532), enquanto “termo resolutivo (termo final, extintivo ou dies ad quem)” é “(...) aquele no qual termina a produção de efeitos do negócio jurídico.” (in VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil : parte geral, v. 1, p. 532.
389 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 4. p. 281.
Esclarece Gomes390 que a natureza jurídica da Propriedade
Resolúvel é controvertida, havendo duas correntes: uma, entendendo que se trata
de modalidade especial de domínio; outra, que seria apenas hipótese de aplicação
de regras gerais sobre a condição e ao termo, bem como dos princípios relativos à
dissolução dos contratos. O mesmo autor posiciona-se junto à primeira corrente.
Os efeitos da revogação da Propriedade Resolúvel operam-se
retroativamente ao momento da aquisição, porém não totalmente. O alienante ou
terceiro investe-se no direito de Propriedade, como se o objeto da Propriedade não
tivesse pertencido temporariamente ao proprietário resolúvel, dizendo-se que esse é
efeito próprio da condição resolutiva (podendo ser constituída também com a
aposição de um termo), constante no título da constituição da Propriedade
Resolúvel391.
3.3. CONCEITO DE PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA
Embora já abarcada pelo ordenamento jurídico brasileiro na
forma de diversos institutos, como o fideicomisso, a retrovenda, a Alienação
Fiduciária em Garantia entre outros, somente com o Código Civil de 2002 é que se
estabeleceram normas gerais a respeito da Propriedade Fiduciária, nos artigos
1.361 a 1.368. É o próprio artigo 1.361, do Código Civil, que conceitua Propriedade
Fiduciária: “Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível
que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor.
Ensina Lisboa392 que Propriedade Fiduciária consiste na “(...)
propriedade resolúvel de coisa móvel infungível”, somente se constituindo através de
registro do contrato no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor
ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento,
fazendo-se a anotação no certificado de registro (artigo 1.361, § 1o, da Lei n º
10.406/02). Deve-se observar, no entanto, que a Lei n º 10.931/04 (tratada com
390 GOMES, Orlando. Direitos reais . 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980. p. 232. 391 GOMES, Orlando. Direitos reais . 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980. p. 233-234. 392 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : direitos reais e direitos intelectuais,
v. 4, p. 193.
maior ênfase, adiante), modificou a Lei n º 4.728/65, acrescentando o artigo 66-B, o
qual, em seu parágrafo 3o, permite a Alienação Fiduciária em Garantia de bens
fungíveis.
O contrato poderá ser realizado por instrumento público ou
particular, cujo registro servirá de título da Propriedade Fiduciária. Segundo o artigo
1.362, do Código Civil, este contrato deverá conter: o total da dívida, ou sua
estimativa; o prazo, ou a época do pagamento; a taxa de juros, se houver; a
descrição da coisa objeto da transferência, com os elementos indispensáveis à sua
identificação. Além destes requisitos, adere o artigo 66-B, caput, da Lei 4.728/65
(acrescentado pela Lei n º 10.931/04), que o contrato deverá conter, ainda, a
cláusula penal, o índice de atualização monetária, se houver, e as demais
comissões e encargos.
Ocorrendo o registro da Propriedade Fiduciária, há o
desdobramento da posse, de forma que o devedor (Devedor-Fiduciante393) se torna
o possuidor direto e, antes de vencida a dívida, tem o uso e gozo das utilidades da
coisa segundo a sua destinação, sujeitando-se ao risco daí advindo. O Credor
(Credor-Fiduciário394) é considerado o possuidor indireto da coisa (artigo 1.361, § 2o,
e artigo 1.363, do Código Civil). Importante salientar que, antes de vencida a dívida
e não operada a transferência da Propriedade da coisa ao proprietário anterior
(Devedor-Fiduciante), este fica obrigado, como depositário, a empregar a diligência
exigida pela natureza da coisa para sua guarda, bem como entregar o bem ao
credor, caso a dívida não seja paga no vencimento (artigo 1.363, do Código Civil
brasileiro).
Restiffe Neto395 adverte para o fato de que “(...) Proprietário,
realmente, e sobre isso não poderá subsistir dúvida alguma, é o credor fiduciário, em
favor de quem o devedor alienou. O devedor fiduciante é ‘possuidor direto, com
responsabilidade de depositário’ (caput do art. 66, da Lei n º 4.728) e não
393 Doravante simplesmente denominado Devedor ou Fiduciante. 394 Doravante simplesmente denominado Credor, Fiduciário ou Proprietário Fiduciário. 395 RESTIFFE NETO, Paulo. Garantia fiduciária . 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. p.
139.
proprietário do veículo (...)”.
Segundo já observado, a Propriedade Fiduciária é uma espécie
de Propriedade Resolúvel, em que o Credor-Fiduciário é titular do domínio (ou
Propriedade), a qual se resolverá com o implemento da obrigação (ocorrência do
termo ou condição), operando-se a transferência da Propriedade, então, para o
Devedor-Fiduciante.
Na hipótese, ainda, de não haver o adimplemento das
obrigações por parte do Devedor-Fiduciante, com o vencimento e não pagamento da
dívida, o Fiduciário obriga-se a alienar a coisa a terceiro, judicial ou
extrajudicialmente, sendo nula a cláusula dispondo que o Credor possa ficar com a
coisa. Admite-se, no entanto, que o devedor possa, com a anuência do credor, dar
seu direito eventual396 à coisa em pagamento da dívida, após o vencimento da
mesma. O produto advindo da venda do bem será utilizado para satisfação do
crédito do Fiduciário e demais despesas decorrentes dessa cobrança. Havendo
saldo, deverá o mesmo ser entregue ao Devedor, porém, se com a venda da coisa o
produto não for suficiente para o pagamento da dívida e das despesas de cobrança,
o devedor continuará obrigado pelo restante (artigos 1.364 a 1.366, do Código Civil).
O artigo 1.368, do Código Civil, determina que “O terceiro,
interessado ou não, que pagar a dívida, se sub-rogará de pleno direito no crédito e
na propriedade fiduciária”. Importante ressaltar uma alteração havida na Lei n º
10.406/02 (Código Civil), acrescendo-se ao artigo 1.368 o artigo 1.368-A (mudança
trazida pela Lei n º 10.931, de 2 de agosto de 2004, em vigor, a partir de 3 de agosto
de 2004). O texto acrescido ao Código Civil, com a redação que segue, determina a
remessa à legislação específica, no que se refere à Alienação Fiduciária tanto de
móveis (Decreto-lei 911/1969), quanto de imóveis (Lei n º 9.514/1997):
Art. 1.368-A. As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições
396 “Direito eventual” é um direito “(...) quase completo, apresentando-se como direito futuro, mas com certa relação com o presente (...)”, desfrutando já de certa proteção jurídica (VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil : parte geral, v. 1, p. 378).
deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial.
Conforme visto no conceito de Propriedade Fiduciária, o objeto
da Propriedade Fiduciária consiste em “coisa móvel infungível”. Mas, conforme
observado, a Lei n º 4.728/65, em seu artigo 66-B, § 3o, admite Alienação Fiduciária
em Garantia de coisa fungível. Entende-se por “coisa móvel infungível”, para efeitos
do conceito de Propriedade Fiduciária, os bens suscetíveis de movimento próprio, ou
de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação
econômico-social, bem como aqueles bens a ele equiparados legalmente, os quais
não podem ser substituídos por outros da mesma espécie, qualidade e
quantidade397. “Coisas fungíveis”, por sua vez, significam aqueles bens que podem
ser substituídos por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade.
Interessante ressaltar que, na modalidade de Alienação
Fiduciária em Garantia, permitiu o legislador que bens imóveis fossem objeto do
contrato, com a superveniência da Lei n º 9.514, de 20 de novembro de 1997. Esta
forma assemelha-se ao instituto do trust reciept (recibo de confiança, de garantia),
do sistema anglo-saxão, por possuir finalidade de financiar bens duráveis398,
tratando-se, portanto, de modalidade excepcional de Propriedade Fiduciária
abrangendo bens imóveis. Segundo Venosa399, porém, o instituto do trust reciept
não possui o mesmo mecanismo da Alienação Fiduciária, pois sua destinação
originária direciona-se ao consumidor final, e não somente ao comerciante ou
empresa. Além disso, no trust reciept o negócio possui por base o fator “confiança”
depositado pelo financiador no financiado, sendo que na Alienação Fiduciária este
elemento não é primordial em função dos rigorosos mecanismos colocados à
disposição do credor para recuperação do seu crédito.
A Alienação Fiduciária em Garantia somente foi introduzida no
ordenamento jurídico brasileiro com a Lei n º 4.728/1965, objetivando garantir
contratos de venda de veículos automotores e de eletrodomésticos e, somente com
397 Conceito elaborado a partir dos artigos 82, 83 e 85, do Código Civil. 398 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil : direitos reais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. v. 5. p. 552. 399 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil : direitos reais, v. 5, p. 551.
a Lei n º 9.514/97 é que os bens imóveis também passaram a ser objetos dessa
modalidade contratual400. Aliás, é o artigo 22, da Lei n º 9.514/97 que define a
Alienação Fiduciária de bens imóveis401.
Ordena o artigo 1.367, do Código Civil, que se aplique à
Propriedade Fiduciária, no que couber, os artigos adiante referenciados. O primeiro
deles é o artigo 1.421, dispondo que “O pagamento de uma ou mais prestações da
dívida não importa exoneração correspondente da garantia, ainda que esta
compreenda vários bens, salvo disposição expressa no título ou na quitação.”. Isso
demonstra a indivisibilidade da garantia oferecida com a Propriedade Fiduciária.
Também se aplica o artigo 1.425, da mesma lei, que trata das
situações em que a dívida se considera vencida antecipadamente, como a
deterioração ou depreciação do bem dado em garantia, desfalcando o contrato, de
forma que o Devedor, intimado, não o reforce ou substitua; a insolvência ou falência
do Devedor; a impontualidade no pagamento das prestações, não se podendo
alegar tal situação se o Credor receber posteriormente a prestação, o que importa a
renúncia do mesmo ao direito de execução imediata; o perecimento do bem
oferecido em garantia, não sendo substituído; a desapropriação do bem dado em
garantia, caso em que será depositada a parte do preço necessária para o
pagamento integral do Credor. Em todas estas hipóteses não são compreendidos os
juros correspondentes ao tempo ainda não decorrido (art. 1.426).
Ainda se aplica, quando cabível, o artigo 1.427, do Código
Civil, o qual ordena que o terceiro que presta garantia real (penhor, hipoteca,
anticrese) por dívida alheia não é obrigado a substituir esta garantia, ou reforçá-la
quando a mesma se perca, deteriore ou desvalorize, sem culpa sua, admitindo-se,
no entanto, exceção a esta situação quando houver disposição expressa em
contrário no contrato.
400 MEZZARI, Mario Pazutti. Alienação fiduciária : da lei n. 9.514, de 20-11-1997, p. 16-17. 401 “Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou
fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, a propriedade
resolúvel de coisa imóvel.”
Por fim, aplica-se, também, à Propriedade Fiduciária as
hipóteses de extinção do penhor (art. 1.436), ou seja, extinguindo-se a obrigação;
perecendo a coisa, renunciando o credor à coisa; confundindo-se na mesma pessoa
as qualidades de credor e dono da coisa e no caso de adjudicação judicial ou venda
da coisa empenhada, realizada pelo credor ou autorizada pelo mesmo.
Propriedade Fiduciária, portanto, consiste na Propriedade
Resolúvel de coisa móvel (fungível ou infungível), ou imóvel (infungível) que, se for
móvel, se constitui somente através de registro do contrato no Registro de Títulos e
Documentos do domicílio do devedor ou, em se tratando de veículos, na repartição
competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro,
e se imóvel, mediante registro, no competente Registro de Imóveis do contrato que
lhe serve de título, havendo o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante
possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa.
Para efeitos deste estudo, tratar-se-á, unicamente, da
Propriedade Fiduciária de coisas móveis, em especial a Alienação Fiduciária em
Garantia de Veículos Automotores de Via Terrestre.
3.4. A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA NA LEGISLAÇ ÃO BRASILEIRA
A Alienação Fiduciária em Garantia é decorrente da existência
da Propriedade Resolúvel no direito positivo brasileiro, já constante nos artigos 647
e 648, do Código Civil, de 1916.
O surgimento da Alienação Fiduciária em Garantia, no
ordenamento jurídico brasileiro, ocorreu com a edição da Lei 4.728, de 14 de julho
de 1965, a qual dispõe sobre o mercado de capitais, tendo sido regulamentada pelo
Decreto-lei 911, de 1o de outubro de 1969. Tais normas, porém, sofreram
modificação com a entrada em vigor, no dia 03 de agosto de 2004, da Lei n º 10.931,
de 02 de agosto de 2004, cujas alterações serão tratadas a seguir.
A concepção deste instituto surgiu para suprir novas
necessidades sociais, decorrentes das exigências mercantis e do dinamismo social.
Serviu como providência para atender com presteza a necessidade de oferecer
medidas legais e adequadas com a finalidade de assegurar o risco decorrente do
crédito e do desestímulo então trazido à captação de capitais. Isto fez com que a
política de desenvolvimento do mercado de capitais e o fomento do financiamento
direto ao consumidor restassem melhor estruturadas402.
3.5. CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DA ALIENAÇÃO FIDUCI ÁRIA EM
GARANTIA
A Alienação Fiduciária em Garantia403, conforme já tratado, é
uma forma de Propriedade Fiduciária, que, por sua vez, é forma de Propriedade
Resolúvel. Segundo Pereira404, pode-se conceituar a Alienação Fiduciária em
Garantia como “(...) a transferência, ao credor, do domínio e posse indireta de uma
coisa, independentemente de sua tradição efetiva, em garantia do pagamento de
obrigação a que acede, resolvendo-se o direito do adquirente com a solução da
dívida garantida”.
Para Gomes405, “Alienação fiduciária em garantia é o negócio
jurídico pelo qual o devedor, para garantir o pagamento da dívida, transmite ao
credor a propriedade de um bem, retendo-lhe a posse direta, sob a condição
resolutiva de saldá-la”. Trata-se de “(...) negócio jurídico autônomo, da espécie dos
negócios de garantia, com traços originais, mas espécie pertencente aos contratos
fiduciários”406. Em outra obra, resume o mesmo autor407 se tratar de “(...) negócio
translativo por via do qual o credor adquire, no crédito direto ao consumidor, a
propriedade do bem comprado pelo devedor”.
Nessa espécie de contrato, o credor é adquirente da
402 GONÇALVES, Aderbal da Cunha. Da propriedade resolúvel , São Paulo: Revista dos Tribunais,
1978. p. 256-258. 403 Doravante também chamado simplesmente de Alienação Fiduciária. 404 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil , v. 4. p. 273. 405 GOMES, Orlando. Contratos . 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 459. 406 GOMES, Orlando. Contratos . 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 459. 407 GOMES, Orlando. Alienação fiduciária em garantia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970. p.
79.
Propriedade Resolúvel do bem alienado, enquanto que o Devedor-Fiduciante resta
com a posse direta do bem para seu uso e gozo.
Segundo Venosa408 e Bulgarelli409, consiste em instrumento, ou
negócio jurídico que visa à garantia fiduciária, sendo um instituto que tem por
finalidade principal facilitar a aquisição de bens pelo consumidor, garantindo, de
forma mais eficaz, ao financiador, este que fica com a proteção da Propriedade
Resolúvel da coisa financiada durante o período em que a dívida não é quitada.
Assim, o Credor-Fiduciário passa a ser o proprietário de tais bens alienados, mas
esta Propriedade não é plena, mas resolúvel, de forma que, no caso da Alienação
Fiduciária, a causa da extinção da Propriedade Resolúvel é o pagamento integral da
dívida. Aliás, a finalidade da Alienação Fiduciária em Garantia de bens móveis é o
crédito ao consumidor, e não a aquisição. Este instituto passou a ser utilizado em
escala maior, principalmente, para as vendas de aparelhos eletrodomésticos e
Veículos Automotores410 (estes últimos, objeto da presente Tese).
Não há confusão entre o contrato de Alienação Fiduciária em
Garantia com o contrato de compra e venda. Procura-se assegurar a obrigação,
ocorrendo uma transmissão simbólica do bem, continuando o alienante na posse
imediata. Trata-se de constituto possessório, no qual o Credor-Fiduciário passa a ter
a propriedade e posse da coisa, mas não a disponibilidade física, que é conservada
com o alienante (ou Devedor-Fiduciante)411.
Para efeitos desse estudo, no entanto, é importante observar
que não se pode justificar a Alienação Fiduciária como um favor à Sociedade pela
facilitação da aquisição patrimonial, seja de bens móveis, seja de imóveis. Há
Sociedades Empresárias que atuam diretamente com tal atividade, lucrando com a
mesma e, em decorrência desta atividade negocial, ao contratar bens perigosos à
Sociedade, surge o risco criado por tal negociação, risco que, também, deve ser
408 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil : direitos reais, v. 5. p. 550-555. 409 BULGARELLI, Waldirio. Contratos mercantis . 9. ed. São Paulo: Atlas, 1997. p. 307-308. 410 MARTINS, Fran. Contratos e obrigações comerciais . 14. ed. Rio de janeiro: Forense, 1996. p.
183. 411 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil : direitos reais, v. 5. p. 556.
suportado, conforme se buscará comprovar adiante, pelo financiador (Credor-
Fiduciário). Este risco é ainda mais agravado quando o produto negociado tratar-se
de Veículos Automotores de Via Terrestre o que, nos dias atuais, pode ser
considerado um produto perigoso para a Sociedade, caso não seja manuseado
corretamente.
O contrato de Alienação Fiduciária em Garantia possui as
seguintes características412:
a) bilateralidade, gerando obrigações para o Fiduciante e o Fiduciário;
b) onerosidade, beneficiando tanto o Devedor-Fiduciante, sendo para ele um
instrumento creditício, quanto o Credor-Fiduciário, assegurando o negócio ao
adquirente, que passa a ser proprietário resolúvel, além do lucro almejado
nas relações mercantis com tal negócio;
c) acessoriedade, pelo fato de que a existência jurídica do contrato de Alienação
Fiduciária subordina-se à existência da obrigação garantida, seguindo-a;
d) formalidade, haja vista que o contrato de Alienação Fiduciária deve ser
realizado por instrumento escrito, público ou particular.
A Alienação Fiduciária corresponde a uma relação de duas
naturezas, o que a torna um negócio jurídico unitário, objetivamente complexo. A
primeira, de natureza obrigacional, referente à dívida, e outra, de natureza real, em
decorrência da transferência do direito de Propriedade, não sendo esta, no entanto,
definitiva, haja vista que, conforme a doutrina, a alienação possui a finalidade de
garantia, onde o Fiduciário recebe o bem não em caráter definitivo, mas sob a
condição resolutiva de devolução, imediatamente após a quitação da dívida do
Devedor-Fiduciante. Ocorre que, ainda que a transmissão seja feita apenas com a
finalidade de garantia, há a prática de um ato de disposição413.
412 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil , v. 4. p. 274-275. 413 GONÇALVES, Aderbal da Cunha. Da propriedade resolúvel , p. 259-261.
3.6. NATUREZA JURÍDICA E REQUISITOS DA ALIENAÇÃO FI DUCIÁRIA EM
GARANTIA
Pereira414 entende que a Alienação Fiduciária em Garantia, ao
lado do penhor, da hipoteca e da anticrese, possui a natureza de direito real de
garantia. Este mesmo autor415, um dos elaboradores do Projeto do Código Civil
(atual Lei n º 10.406/2002) leciona que, ao incluir o pacto de fidúcia no ordenamento
jurídico civil brasileiro, buscou-se introduzir o instituto chamado trust dos sistemas do
common law. Adiante, cita Maluf416 as palavras de Pereira:
Este novo contrato, criando ‘direito real de garantia’, implica a transferência, pelo devedor ao credor, da proprieda de e posse indireta do bem , mantida a posse direta com a alienante. É, portanto, um negócio jurídico de alienação , subordinado a uma condição resolutiva. (...) Na sua essência, a alienação fiduciária em garantia abrange dupla declaração de vontade: uma de alienação, pela qual a coisa passa ao domínio do adquirente fiduciário (correspondente a mancipatio ou a in iure cessio de sua fonte romana); outra de retorno da coisa ao domínio livre do devedor alienante (correspondente ao pactum fiduciae). A conditio está ínsita no próprio contrato, qualificando a lei de ‘resolúvel’ a propriedade. A solução da obligatio será o implemento pleno iure da condição. O contrato é bilateral, oneroso e formal. Exige instrumento escrito que se completa pela inscrição no registro de Títulos e Documentos. E somente pode ter por objeto coisa móvel. (sem grifo no original).
Para Venosa417, no entanto, o que passa a ser direito real é a
Propriedade Fiduciária mesma, e não a Alienação Fiduciária em Garantia, ao
ensinar sobre esta última que:
(...) O bem é transferido para fins de garantia. Sob esse aspecto, não se confunde com os direitos reais de garantia do Código, penhor, hipoteca e anticrese, porque nestes existe direito real limitado, enquanto na alienação fiduciária opera-se a transferência do bem. Quem aliena não grava . O devedor fiduciante aliena o bem ao credor. No penhor e na hipoteca, o credor tem direito real sobre a coisa alheia, enquanto na garantia fiduciária
414 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil , v. 4. p. 274. 415 MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao direito de propriedade . São Paulo: Saraiva, 1997.
p. 156. 416 MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao direito de propriedade , p. 157. 417 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil : direitos reais, v. 5. p. 553.
possui direito real sobre a própria coisa. (sem grifo no original).
Martins418 destaca que diversos autores (dentre eles Orlando
Gomes, Nestor José Foster, Osvaldo Opitz e Sílvia C. B. Opitz, José Carlos Moreira
Alves) buscam encontrar a natureza jurídica e a aproximação com outros contratos,
especialmente com a venda com reserva de domínio e o penhor. No entanto, na
Alienação Fiduciária em Garantia, o devedor integra-se efetivamente no domínio da
coisa, mas transfere esse domínio ao Credor Fiduciário para assegurar o
cumprimento do contrato, somente retornando a propriedade do bem alienado após
o pagamento da dívida para com o credor no prazo contratado419. O direito de
propriedade do Credor Fiduciário é tal, que a própria Lei autoriza que o bem integre
o seu patrimônio, mas com a condição, caso não cumprida a obrigação do devedor,
que o bem seja vendido. O produto da venda será destinado a pagar o Credor
Fiduciário, e o saldo, se houver, será entregue ao Devedor Fiduciante420.
Adverte Carvalho421 que reduzir a Alienação Fiduciária a uma
espécie de penhor especial é impossível, salientando que na Alienação Fiduciária
em Garantia mesclam-se o direito obrigacional (relação jurídica de fundo), o direito
real (relação jurídica acessória) e a propriedade sob condição, lembrando institutos
com base na fidúcia, em que o domínio se resolve ao operar-se a cláusula. Portanto,
extrema-se o instituto da Alienação Fiduciária em Garantia do penhor.
Caso não ocorra o cumprimento da obrigação por parte do
Fiduciante, a conseqüência será a consolidação da propriedade do bem alienado ao
Fiduciário422. Importante salientar que para Gomes423 o Fiduciário se torna
verdadeiro proprietário da coisa, somente não adquirindo sobre a mesma o poder
físico, pois o Fiduciante continua na posse do bem alienado.
418 MARTINS, Fran. Contratos e obrigações comerciais , p. 183. 419 MARTINS, Fran. Contratos e obrigações comerciais , p. 184. 420 MARTINS, Fran. Contratos e obrigações comerciais , p. 184. 421 CARVALHO, Milton Paulo de. Ainda a prisão civil em caso de alienação fiduciária: da
desconsideração do depósito, Novos Estudos Jurídicos . Itajaí, n º 12, p. 33-70, abril/2001. 422 GOMES, Orlando. Alienação fiduciária em garantia, p. 80-81. 423 GOMES, Orlando. Alienação fiduciária em garantia, p. 81.
Destaca-se, nesse ponto, que a condição do Credor-Fiduciário,
no contrato de Alienação Fiduciária em Garantia é de proprietário, ou melhor, de
Proprietário Resolúvel ou Fiduciário. Mesmo que sua Propriedade se encontre na
situação de resolubilidade, ainda assim essa Propriedade exerce uma Função
Social, pois não há limites constitucionais ou infraconstitucionais dizendo qual
espécie de Propriedade deve atender à Função Social. Entende-se, portanto, que o
bem alienado fiduciariamente, enquanto Propriedade Fiduciária do Credor-
Fiduciário, também tem sua Função Social, condicionando-se aos limites e
responsabilidades inerentes a qualquer espécie de Propriedade.
Pereira424 alerta que, para a verificação dos requisitos da
Alienação Fiduciária em Garantia, há a necessidade de se atentar para a condição
especial da sua destinação econômica e finalidade assecuratória, requisitos estes
analisados a seguir.
3.6.1. Requisitos Subjetivos da Alienação Fiduciári a em Garantia
Quanto aos requisitos subjetivos, na qualidade de sujeito
passivo da Alienação Fiduciária, pode ser alienante (Fiduciante) qualquer pessoa,
física ou jurídica, desde que possua capacidade genérica para o exercício dos atos
civis. O alienante deve ter o domínio da coisa e livre disposição da mesma, não se
exigindo, para a validade do ato, a preexistência da sua titularidade, pois a lei, nesta
modalidade de Propriedade Fiduciária, admite a sua constituição por parte do não-
proprietário, com a condição que venha a sê-lo posteriormente. Assim, a
Propriedade da coisa retrotrai com relação à sua aquisição e aos seus efeitos daí
decorrentes, desde a data do contrato, automaticamente, com a quitação da dívida
por parte do alienante (Devedor-Fiduciante). Para assegurar o cumprimento do
contrato por parte do devedor, poderão ser oferecidas diversas garantias adjuntas
ao contrato de Alienação Fiduciária, a exemplo da fiança, no contrato principal, de
aval em título vinculado ao contrato, bem como outra garantia real, desde que não
estejam incidindo sobre a coisa alienada425.
424 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil ., v. 4. p. 275. 425 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil , v. 4. p. 275.
A controvérsia, no entanto, reside na qualidade do sujeito ativo
da Alienação Fiduciária em Garantia, ou seja, o titular da Propriedade Resolúvel (ou
Propriedade Fiduciária), o adquirente Credor Fiduciário. Por um lado, é reconhecida
tal possibilidade unicamente às Instituições Financeiras, por estar o negócio
fiduciário, como visto, disciplinado na Lei n º 4.728/65, que disciplinou o mercado de
capitais, principalmente, por dispor que o instituto ingressou no ordenamento jurídico
para atendimento da política de crédito na seara dos valores mobiliários. Por outro
lado, há o entendimento de que tal regulamentação não objetivou um caráter
subjetivo, mas veículo legislativo do aparecimento do instituto da Alienação
Fiduciária em Garantia. Este último é o entendimento de Pereira426. Ensina
Venosa427 que a jurisprudência alargou o entendimento da primeira posição, citando,
inclusive, a Súmula n º 6, do Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, a qual
diz o seguinte: “os consórcios de financiamento, regularmente constituídos, podem
efetuar financiamentos mediante a alienação fiduciária de bens em garantia e, por
conseqüência, requerer a busca e apreensão, nos termos do Decreto-lei n º
911/69.”. Entende, ainda, que o instituto pode ser utilizado por qualquer Instituição
Financeira, incluídas nestas as instituições bancárias, e não apenas as sociedades
financeiras em sentido estrito. É também o entendimento de Rizzardo428, o qual
alerta o seguinte:
O que se proíbe aos contratantes não enquadrados na categoria das sociedades de crédito, investimento e financiamento, é o uso do procedimento legal do Dec.-lei 911, restrito a esta classe de pessoas jurídicas. O credor, para valer-se do instituto e consolidar seu domínio com a posse, terá de acionar o devedor com outro tipo de ação, como a de rito ordinário ou de reintegração de posse.
Em posição de vanguarda, diante da Lei n º 10.406/02, entende
Venosa429 que, da forma como a Propriedade Fiduciária de bens móveis foi tratada
pela referida lei, “(...) torna-se evidente que qualquer pessoa poderá valer-se do
instituto de direito material, salvo proibição expressa que venha a ocorrer. (...)”.
426 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil , v. 4. p. 275. 427 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil : direitos reais, v. 5. p. 557. 428 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos de crédito bancário . 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000. p. 388. 429 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil : direitos reais, v. 5. p. 557.
Segundo Fazzio Junior430, o alienante do bem (Devedor
Fiduciante) e a Instituição Financeira (Credora Fiduciária) são as partes no contrato
de Alienação Fiduciária em Garantia, por entender que “Qualquer instituição
financeira lato sensu, entre as quais as entidades bancárias, pode utilizar-se da
alienação fiduciária para garantia dos financiamentos que concede”.
Para Restiffe Neto431, “A condição de proprietário fiduciário, de
que se investe o credor, continua sendo reservada às pessoas que a lei estabelecer
e que, no momento, dentro da conjuntura econômico-jurídica prevalente, só
contempla, por razões compreensíveis, as instituições financeiras autorizadas pelo
Banco Central (RT 401/19, 421/227, 439/134 e 444/210)”. A posição do
doutrinador432 se baseia no fato de que, contrariamente, assistir-se-ia à volta da
agiotagem profissional e à “(...) reabertura oficializada das de tão triste memória
casas de penhor, agora com roupagem nova e sofisticada, de casas de fidúcia. (...)”.
Importante salientar para o fato de que, conforme tem indicado
a doutrina já examinada, somente podem realizar contratos de Alienação Fiduciária
em Garantia as sociedades de crédito, investimento e financiamento autorizadas
pelo Banco Central. Tais sociedades, revestidas que são na forma de Sociedades
Anônimas, conforme o artigo 2o. e seu parágrafo 1o., da Lei n º 6.404/76 (Lei das
Sociedades Anônimas), serão sempre mercantis433. Para Gomes434 as chamadas
“financeiras” (Instituições Financeiras) exercem uma atividade lucrativa ao exercer a
atividade de concessão do crédito para financiamento e aquisição de bens duráveis.
Na dicção da Lei n º 10.406/2002, tais sociedades são modalidades de Sociedades
430 FAZZIO JUNIOR, Waldo. Manual de direito comercial. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 556. 431 RESTIFFE NETO, Paulo. Garantia fiduciária , p. 27. 432 RESTIFFE NETO, Paulo. Garantia fiduciária, p. 27. 433 “art. 2o. Pode ser objeto da companhia qualquer empresa de fim lucrativo, não contrário à lei, à
ordem pública e aos bons costumes.
Parágrafo 1o. Qualquer que seja o objeto, a companhia é mercantil e se rege pelas leis e usos do comércio.”
434 GOMES, Orlando. Alienação fiduciária em garantia, p. 78.
Empresárias435. Por tal motivo, a análise da teoria do Risco, tratada no próximo
capítulo, restringir-se-á às Sociedades Empresárias.
Martins436 lembra que competindo às Instituições Financeiras
“(...) a privatividade das operações de empréstimo de dinheiro (de que o
financiamento ao consumidor que deseja adquirir um bem, mas não possui recursos
suficientes para tal, é uma modalidade), a operação inicial terá sempre a
participação de instituição financeira que será o credor original”. Importante se
atentar para este fato, pois o empréstimo a que se refere é do tipo feito na
modalidade de mútuo oneroso, pois não há o caráter de liberalidade nesse contrato,
mas com finalidade econômica, especulativa , ou seja, com o intuito de
remuneração do capital emprestado. Há lucratividade no contrato por parte do
mutuante. Ora, em se tratando de empréstimo de dinheiro, raramente o mútuo se
apresenta sem esse caráter especulativo ou finalidade lucrativa437. É essa
modalidade de mútuo que passará a ser analisada a seguir.
3.6.2. O empréstimo de dinheiro na Alienação Fiduci ária em Garantia
Conforme se observou, a Alienação Fiduciária em Garantia
consiste numa operação em que, aquele que financia a aquisição de algum bem
(empresta dinheiro), com o escopo de garantia (mas que possui natureza de direito
real), adquire a Propriedade Resolúvel do bem até que o valor do contrato esteja
devidamente quitado. Tais operações somente são realizadas por Instituições
Financeiras autorizadas pelo Banco Central.
Explica Tzirulnik que, em 1959, houve um grande passo para o
desenvolvimento e estruturação do Mercado de Capitais no Brasil, pela Portaria 309,
do Ministério da Fazenda, a qual permitiu que sociedades de crédito, financiamento
435 “art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto
o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e simples, as demais.
Parágrafo único. Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa.”
436 MARTINS, Fran. Contratos e obrigações comerciais , p. 187. 437 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil : Contratos em espécie. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. v. 3.
p. 237.
e investimento pudessem emitir títulos, cujas taxas de juros pudessem ser livres,
pois os títulos de emissão que eram permitidos eram as letras de câmbio. Tal
consolidação foi maior com a edição da Lei n º 4.728, de 14 de julho de 1965 e, mais
tarde, com a alteração de seu art. 66, pelo Decreto-lei 911 de 01/10/1969438.
O contrato de Empréstimo pode ser realizado em duas
modalidades: o comodato e o Mútuo. O que interessa, para efeitos dessa pesquisa,
é a última modalidade.
O Mútuo, em princípio, é contrato gratuito, porém, quando se
trata de empréstimo pecuniário, a realidade não é essa. É incomum o empréstimo
em dinheiro em que não se exigem juros439. O empréstimo (financiamento) realizado
nos contratos de Alienação Fiduciária em Garantia é realizado onerosamente, ou
seja, há o pagamento de juros sobre o capital emprestado, denominando-se esta
modalidade de Mútuo Feneratício.
Como se observou, compete o empréstimo de dinheiro às
Instituições Financeiras (também denominadas, simplesmente, financeiras),
entendendo o artigo 17, da Lei n º 4.595/64440:
Art. 17 . Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a (1) coleta, (2) intermediação ou (3) aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a (4) custódia de valor de propriedade de terceiros.
Essas, por sua vez, escudadas que estão pela lei de Mercado
de Capitais (Lei n º 4.595/64), excluem-se do sistema de juros do Código Civil e da
Lei de Usura, podendo os bancos e atividades congêneres (sujeitos prestadores de
capital nestas condições) praticar juros acima daqueles permitidos pelas respectivas
438 TZIRULNIK, Luiz. Intervenção e liquidação extrajudicial das institui ções financeiras . 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 24. 439 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil : Contratos em espécie, v. 3. p. 237. 440 NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa . São Paulo: Saraiva, 2004. v. 3. p. 656.
leis441. Conforme dispõe a Súmula 596, do Supremo Tribunal Federal:
As disposições do Decreto n º 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas que integram o Sistema Financeiro Nacional.
Atente-se para o fato de que, além dos juros praticados pelas
Instituições Financeiras prestadoras de capital, tais instituições atingem lucros com a
inserção de outros valores ao crédito efetivamente emprestado. Neste sentido,
ensina Venosa442:
Como decorrência da inflação, as instituições financeiras estabeleceram ainda, com beneplácito de órgãos oficiais, outras taxas incidentes sobre financiamentos e débitos, mascaradas sob a denominação de comissão de permanência, juros remuneratórios e outras. Essas parcelas embutem índices totais ou parciais de inflação. São estratagemas utilizados pelas instituições, a fim de aumentar as taxas de juros já elevadas e a remuneração de capital.
Também, importante salientar que, por se tratar de atividade de
financiamento própria de Instituições Financeiras, os contratos de Alienação
Fiduciária em Garantia possuem natureza mercantil, haja vista que as financeiras
são sociedades mercantis443 (ou Sociedades Empresárias444, de acordo com a nova
dicção da Lei n º 10.406/2002), o que aumenta sua responsabilidade diante do risco
da atividade econômica inerente à criação de qualquer Sociedade Empresária.
Os lucros angariados com o empréstimo de capital pelas
Instituições Financeiras, com o financiamento das atividades de Alienação Fiduciária
em Garantia, principalmente de bens considerados perigosos, como os Veículos
Automotores, estão inseridos no mesmo contexto. Neste sentido, ensina Gomes445
que, “Concedido por sociedades constituídas para o fim específico de financiar a
aquisição de bens duráveis, exercem as chamadas financeiras uma atividade 441 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil : Contratos em espécie, v. 3. p. 241-242. 442 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil : Contratos em espécie, v. 3. p. 242. 443 FRANÇA, Pedro Arruda. Contratos atípicos . 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 231. 444 Aqui entendida como “(...) o contrato celebrado entre pessoas físicas ou jurídicas, ou somente entre pessoas físicas (art. 1.039), por meio do qual estas se obrigam reciprocamente a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços”, in NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa . 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 235. 445 GOMES, Orlando. Alienação fiduciária em garantia, p. 78.
lucrativa. Acrescem a dívida, deste modo, de juros e comissões, além de estipularem
a correção monetária, que constitui atrativo para os investidores. (...)”.
Daí se infere que, por se transferir a Propriedade do bem
objeto da Alienação Fiduciária em Garantia, por meio de contrato que envolve um
bem considerado perigoso (Veículo Automotor) ao Mutuante (Credor Fiduciário);
pelo fato de que esta Propriedade possui uma Função Social; diante do lucro
auferido pelo Mutuante (Credor Fiduciário) com a operação de empréstimo e diante
do princípio segundo o qual aquele que lucra com uma situação deve responder pelo
risco ou pelas desvantagens dela resultantes, buscar-se-á demonstrar e propor a
responsabilidade solidária do Credor Fiduciário com o Devedor Fiduciante, diante da
Responsabilidade Civil Subjetiva deste, no decorrer do estudo, objetivando
assegurar a dignidade da vítima para o recebimento da indenização que, por direito,
lhe pertence.
3.6.3. Requisitos objetivos da Alienação Fiduciária em Garantia
Referentemente ao objeto da Alienação Fiduciária em Garantia
(espécie de Propriedade Fiduciária), o artigo 66446, da Lei 4.728/65, estabelecia que
somente era cabível o instituto no que dizia respeito a bens móveis, certos e
duráveis, não se aplicando a referida legislação aos bens imóveis. Pereira447
entende, a respeito, que, fora do mecanismo de execução estabelecido na
legislação especial da Alienação Fiduciária, pode comportar a coisa imóvel, na
mesma forma como os tribunais brasileiros já admitiam anteriormente à Lei n º
4.728. Isto, hoje, já é pacífico, haja vista a edição da Lei n º 9.514/97. Também a Lei
n º 10.931/04, em seu artigo 67448, ao revogar o artigo 66, da Lei n º 4.728/65, e no
artigo 58, da Lei n º 10.931/04, ao acrescentar à Lei n º 10.406/04 o artigo 1.368-
446 “Art. 66. A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição, efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal” (sem grifo no original). 447 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil , v. 4. p. 276. 448 “Art. 67. Ficam revogadas as Medidas Provisórias n º 2.160-25, de 23 de agosto de 2001, 2.221, de 4 de setembro de 2001, e 2.223, de 4 de setembro de 2001, e os arts. 66 e 66-A da Lei n º 4.728, de 14 de julho de 1.965 ” (sem grifo no original).
A449, remete à Lei 9.514/97, que trata da Alienação Fiduciária em Garantia de bens
imóveis, o que torna o instituto aplicável aos bens imóveis.
Também, entende-se possível, a Alienação Fiduciária de bens
fungíveis e consumíveis, o que acarreta dificuldades práticas, sendo obstado pela
jurisprudência tal possibilidade de extensão, no que diz respeito ao objeto450. No
entanto, a Lei n º 10.931/04, ao alterar, com seu artigo 55, a Seção XIV, da Lei n º
4.728, de 14 de julho de 1965, passou a dispor, no artigo 66-B, § 3o, desta última
Lei451, a possibilidade de Alienação Fiduciária de bens fungíveis.
3.6.4. Requisitos formais
Quanto aos requisitos formais da Alienação Fiduciária,
ressalte-se o caráter de negócio jurídico formal desta, pois exige instrumento público
ou particular escrito, a ser registrado no Registro de Títulos e Documentos do
domicílio do devedor, ou, caso se trate de veículos, na repartição competente,
fazendo-se a anotação no certificado de registro. Deve constar, neste instrumento, a
estimativa ou a menção total da dívida; prazo ou época do pagamento, taxa de juros,
se houver; descrição da coisa objeto da transferência, com os elementos
indispensáveis à sua identificação, de forma que, na sua omissão, cumpre ao
adquirente o ônus probatório da identidade da coisa de seu domínio que esteja em
poder do devedor (artigos 1.361 e 1.362, do Código Civil); também se exige a
cláusula penal, índice de atualização monetária, se houver, e demais comissões e
encargos (artigo 66-B, caput, da Lei 4.728/65).
449 “Art. 1.368-A. As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial”. 450 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil : direitos reais, v. 5. p. 557-558. 451 “Art. 66-B. (...) § 3o. É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independentemente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada” (sem grifo no original).
O objetivo do instrumento por escrito reside no fato de que,
sem o mesmo, não há possibilidade de arquivamento do Registro de Títulos e
Documentos para que valha contra terceiros. Pereira452 ensina que “(...) se a
alienação fiduciária não for oponível a terceiros não transmite a propriedade, uma
vez que é da essência desta a oponibilidade erga omnes (...)”.
O arquivamento do instrumento no Registro de Títulos e
Documentos, por cópia ou microfilmagem, completa o segundo requisito formal do
ato, dando-lhe a devida publicidade, surgindo, daí, um duplo efeito: a) validar o ato
contra terceiros, caracterizando a Propriedade da coisa transmitida a título de fiducia
ao credor; b) dar conhecimento a terceiros da garantia, a fim de proteger aquele que
tratar com o devedor, pois permitirá que o mesmo saiba da alienação da coisa e,
ainda que o devedor esteja na posse da mesma, saiba que esta não lhe pertence
por pender condição resolutiva453.
Caso o instrumento do negócio fiduciário não esteja revestido
da publicidade necessária, haverá mero direito de crédito, sem que haja a proteção
de execução direta e de oponibilidade do contrato perante terceiros.
Adiante serão tratados os deveres do Fiduciante e do
Fiduciário, apresentando-se, inicialmente, como eram tais deveres antes da entrada
em vigor da Lei n º 10.931/04. Após, tratar-se-á, especificamente, sobre as
alterações da referida Lei no instituto da Alienação Fiduciária em Garantia.
3.7. DEVERES DO FIDUCIANTE (DEVEDOR OU ALIENANTE)
Em função da bilateralidade do contrato, há obrigações para o
Credor e Devedor, gerando, concomitantemente, direitos e obrigações a ambas as
partes. Assim, os deveres do Devedor serão os direitos do Credor e vice-versa.
Na qualidade de Devedor, as principais obrigações do mesmo
incumbem na conservação e restituição da coisa, bem como no pagamento integral 452 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil , v. 4. p. 276-277. 453 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil , v. 4. p. 277.
do débito, com os seus acessórios (juros, comissões, correção monetária). Desse
modo, o pagamento pode ser realizado em prestação única, ou a prazo. Essa última
modalidade é mais comum, haja vista garantir o financiamento de vendas realizadas
diretamente ao consumidor, o que faz com que, na hipótese de inadimplemento,
sujeite-se o Devedor à execução da garantia.
Conforme retratado, utiliza-se da forma do constituto
possessório para efeitos da Alienação Fiduciária em Garantia. Deste modo, ao
Credor é transferida a Propriedade da coisa e o Devedor, na condição de possuidor
direto da mesma, tem a obrigação de manutenção e conservação do bem em seu
poder, na qualidade de depositário. Deve, ainda, o Devedor permitir ao Credor a
fiscalização do estado do bem em qualquer tempo.
O Devedor não tem a disposição do bem a qualquer título,
enquanto pender a Alienação Fiduciária, haja vista que a coisa não é sua, pois a
Propriedade da mesma foi transmitida ao Credor sob condição resolutiva, investindo-
se o Devedor-Fiduciante no direito eventual de reavê-la somente com o
cumprimento do contrato454. Caso o Devedor não venha a entregar o bem ao
Credor, havendo descumprimento contratual, incorrerá nas sanções impostas ao
depositário infiel, ou seja, à pena de prisão455. Aqui reside um dos maiores entraves
da Alienação Fiduciária: a possibilidade de prisão. Pereira456 entende ser cabível a
prisão, haja vista que esta sanção prisional é garantia efetiva para o Credor, pois,
restando o bem com o Devedor, este pode desviá-la e frustrar a segurança
contratual, impondo-se a prisão como uma sanção rigorosa. Fachin457 retrata uma
importante visão sobre o tema da prisão do Devedor na Alienação Fiduciária vista
pelos tribunais brasileiros, ensinando que, muitos julgados têm buscado um
compromisso maior com a questão principiológica no Direito, afastando o
individualismo patrimonial e deslocando a tutela jurídica patrimonial para a proteção
da pessoa humana. Defendem tais julgados, com isso, que o direito à liberdade
consiste em um direito muito maior do que o direito patrimonial, não se impondo a
454 GOMES, Orlando. Alienação fiduciária em garantia, p. 91. 455 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil , v. 4. p. 278. 456 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil , v. 4. p. 278. 457 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo , p. 77.
sanção prisional ao depositário nos contratos de Alienação Fiduciária em
Garantia458. Nessa linha de pensamento, ilustra-se com a seguinte jurisprudência:
Ação de busca e apreensão convertida em ação de depósito. Alienação fiduciária. Prisão civil. A prisão civil do depositário infiel decorre da norma constitucional, mas somente aplicável nos casos de depósitos regulares, para a guarda de bens, nos termos do Código Civil. Não pode o devedor comprometer sua liberdade como garantia de seus débitos. A liberdade é um bem da vida insubstituível e não poderá ser aferida patrimonialmente, na esfera civil. Não estão mais condizentes com os princípios atuais do respeito à dignidade da pessoa humana as normas constantes no Decreto-Lei 911/69, editadas pelo legislador monocrático, em período excepcional, sem valorar devidamente a liberdade, colocando-se o interesse setorial acima de direito consagrado universalmente. Apelo provido em parte. (APC n. 196211312, 3a Câm. Cív., TARGS. Rel. Des. Aldo Ayres Torres, Julgado em 05/03/1997).
Atualmente, no entanto, encontra-se pacificado no STJ o
entendimento segundo o qual é incabível a prisão civil em casos de Alienação
Fiduciária em Garantia, pois, “Consoante entendimento do Supremo Tribunal
Federal, comungado por este Tribunal Superior, a prisão civil do depositário infiel é
inconstitucional, em qualquer modalidade, podendo a segregação civil por dívida se
dar, apenas, nos casos de inadimplemento voluntário e inescusável de pensão
alimentícia. Incidência da Súmula Vinculante nº 25 do STF.”459. A Súmula Vinculante
n. 25 determina que “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a
modalidade do depósito”.
Havia, portanto, controvérsias em torno do assunto, porém, o
quadro acima é meramente ilustrativo, vez que não influi diretamente no objetivo
desta pesquisa, senão pela visão em que mostra prevalecer os princípios
constitucionais que se referem à repersonalização, em contraposição ao
individualismo patrimonial até então existente.
Estabelecia o artigo 66, da Lei n º 4.728, de 14/07/1965 (que 458 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo , p. 77. 459 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 191.397/SP, Rel. Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador Convocado do TJ/RS, Terceira Turma, julgado em 03/05/2011, DJe 05/05/2011). Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=aliena%E7%E3o+fiduci%E1ria+pris%E3o&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=1#, acesso em 01 fev. 2012.
disciplina o mercado de capitais e estabelece medidas para o seu desenvolvimento):
Art. 66. A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição, efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositá rio com todas as responsabilidades e encargos que lhe incum bem de acordo com a lei civil e penal (grifado).
Tal artigo, como observado anteriormente, foi revogado pela
Lei n º 10.931/04, sendo que as alterações ocorridas com a referida Lei serão
tratadas a seguir.
Nesse sentido, esclarece Gomes460 que, embora a lei (na
vigência do artigo 66, acima, revogado), atribuísse ao Fiduciante a condição de
depositário do bem alienado pelo mesmo, fiduciariamente, “(...) a posse direta é
constituída por força de obrigação, muito embora se realize pelo constituto
possessório e corresponda a um direito eventual de propriedade.”. Ora, se o
Fiduciante tem um “direito eventual de propriedade”, foi porque o Fiduciário adquiriu
a posição de proprietário do bem, não se podendo equiparar a Alienação Fiduciária
em Garantia a um mero penhor ou hipoteca, vez que nestes institutos não ocorre a
transmissão da Propriedade. A título de ilustração dessas ideias, observe-se a
seguinte decisão461:
(...) Súmula 83/STJ: o acórdão arestado está alinhado à jurisprudência deste STJ segundo a qual "O bem objeto de alienação fiduciária, que passa a pertencer à esfera patrimonial do credo r fiduciário, não pode ser objeto de penhora no processo de execu ção, porquanto o domínio da coisa já não pertence ao exe cutado, mas a um terceiro, alheio à relação jurídica " (REsp .916782/MG, Rel. Min. Eliana Calmon, DJe 21/10/2008).
Ainda, conforme o artigo 66, da Lei n º 4.728, de 14/07/1965,
acima citado, cumpria ao Devedor a satisfação do dever de indenizar decorrente de
460 GOMES, Orlando. Alienação fiduciária em garantia, p. 82, sem grifo no original. 461 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no Ag 568.008/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 16/04/2009, DJe 04/05/2009. Disponível em http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=penhora+aliena%E7%E3o+fiduci%E1ria&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=3#, acesso em 01 fev. 2012.
Responsabilidade Civil. Manifestando-se sobre a Responsabilidade Civil do
Fiduciante, ensina Restiffe Neto462 que tal responsabilidade (por indenizações
decorrentes de atos ilícitos, danos materiais ou pessoais causados a terceiros) é
atribuída não ao Proprietário Fiduciário, mas ao fiduciante. Marmitt463, neste
entendimento, justifica o seguinte: “(...) Se assim não fosse, ter-se-ia de admitir a
responsabilidade civil do proprietário fiduciário perante terceiros, com direito
regressivo contra o fiduciante, e nunca a responsabilidade direta e exclusiva deste, o
que seria um absurdo, além de colocar em risco o sistema de financiamento
estabelecido de acordo com a lei de mercado de capitais, colocado no instituto da
propriedade fiduciária em garantia (...)”.
Este é o ponto-chave do presente estudo, no intuito de
demonstrar que, diante de certos princípios constitucionais e da teoria do Risco das
Sociedades Empresárias que realizam contratos de Alienação Fiduciária em
Garantia, especialmente envolvendo Veículos Automotores, a responsabilidade deve
ser estendida ao Proprietário Fiduciário.
A proposta da presente Tese é inserida no papel corretivo da
Política Jurídica, que busca mediar a Política e o Direito, influenciando-os
reciprocamente nas mudanças sociais desejáveis464. Esse papel corretivo possui
três dimensões: epistemológica, ideológica e operacional. Dentre as três dimensões,
a Tese se concentrará na dimensão operacional, ou seja, do agir, realizando uma
idéia, um desejo465, especialmente à tarefa de produção do Direito Positivo. Daí a
necessidade de reformulação da legislação vigente, para que esteja de acordo com
os anseios da Sociedade na qual está inserida.
No entanto, independentemente de legislação específica, há a
possibilidade de se aplicar a responsabilidade civil do Proprietário Fiduciário pelos
danos causados, haja vista, inclusive, entendimentos atuais dos próprios Tribunais
462 RESTIFFE NETO, Paulo. Garantia fiduciária , p. 159-160. 463 MARMITT, Arnaldo. Responsabilidade civil nos acidentes de automóvel. Rio de Janeiro: AIDE,
1986. p. 98. 464 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito , p. 70-71. 465 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito , p. 71.
brasileiros que encaram uma visão social do direito de Propriedade.
Nesse sentido, observe-se o seguinte aresto da ementa
proferida no Recurso Especial n. 1.044.527-MG, no qual houve a responsabilidade
do proprietário de Veículo Automotor por atos envolvendo terceiro que utilizou o
veículo e ocasionou o acidente466:
CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. VÍTIMA FATAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROPRIETÁRIO DO VEÍCULO. AÇÃO PROPOSTA POR FILHO E PAIS DA VÍTIMA. REPARAÇÃO POR DANOS MATERIAIS. CABIMENTO. COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS. MAJORAÇÃO. (...)
3. O proprietário do veículo que o empresta a terceiro responde por danos causados pelo seu uso culposo. A culpa do proprietário configura-se em razão da escolha impertinente da pessoa a conduzir seu carro ou da negligência em permitir que terceiros, sem sua autorização, utilizem o veículo. (...)
No caso acima, como visto, houve mero empréstimo do
veículo por parte do proprietário do mesmo a terceiro. Veja-se que, ainda que o
titular do veículo automotor não tivesse nenhuma vantagem (pois o empréstimo,
aqui, foi na qualidade de comodato, que é gratuito), ainda assim houve
responsabilidade do proprietário.
Ora, se em contrato gratuito há essa responsabilidade, o que
se dizer, então, de um contrato em que o proprietário (aqui, fiduciário), tem lucro
com a entrega do bem a terceiro. Aqui, sim, a responsabilidade do proprietário pode
ser aplicada de forma direta, não só pelo simples fato de ser proprietário da coisa,
mas porque lucra com tal atividade. É essa, portanto, a centralização da presente
Tese.
Tais, portanto, os principais deveres do Devedor-Fiduciante e
direitos do Credor-Fiduciário. Passa-se, agora, ao estudo dos Deveres do Credor-
466 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.044.527-MG, Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, Terceira Turma, julgado em 27/09/2011. Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/jsp/revista/abreDocumento.jsp?componente=COL&sequencial=17944804&formato=PDF, acesso em 01 fev. 2012, sem grifo no original.
Fiduciário, consistentes, nos direitos do Devedor-Fiduciante.
3.8. DEVERES DO FIDUCIÁRIO (CREDOR OU ADQUIRENTE)
O Adquirente da coisa alienada (Fiduciário) tem a obrigação de
propiciar o financiamento para aquisição do bem, ou a entrega da mercadoria, caso
a garantia fiduciária seja estipulada com o fornecedor do produto alienado. Deve
respeitar também o Alienante com relação ao direito de uso regular da coisa, não
podendo se apropriar da coisa alienada (vez que a cláusula comissória é nula), nem
molestar a posse direta do bem467.
Caso inadimplida a obrigação por parte do Devedor, cumpre ao
Credor a constituição em mora do Devedor, a qual não decorre simplesmente do
vencimento do prazo, exigindo-se o protesto do título ou carta registrada, expedida
pelo Cartório de Títulos e Documentos. Realizado tal procedimento, segundo as
disposições do art. 3o, do Decreto-Lei n º 911/69 (modificado pela Lei n º 10.931/04),
havia duas possibilidades ao Credor: a) utilizar-se da busca e apreensão do bem
alienado; b) com o despacho da inicial, tendo sido executada a apreensão liminar da
coisa, o devedor era citado para apresentar contestação em três dias (a contestação
restringia-se à alegação de pagamento do débito vencido, ou exato cumprimento
das obrigações decorrentes do contrato). Caso já tivesse pago 40% (quarenta por
cento) do preço financiado, poderia o mesmo requerer purgação da mora, fixando o
juiz data para a efetivação do pagamento, em prazo não superior a dez dias,
enviando os autos ao contador para cálculo468.
Se o Devedor contestasse, ou não contestasse, ou não
purgasse a mora, sentenciaria o magistrado em cinco dias, em seguida ao prazo de
resposta do réu, independentemente de avaliação do bem. Desta sentença cabia o
recurso de agravo, com efeito devolutivo, restando a posse e propriedade do bem
consolidadas ao Credor, sendo vendida a coisa alienada para terceiro, judicial ou
extrajudicialmente e, após saldado o débito, com o principal e acessórios, haveria
467 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil , v. 4. p. 278-279. 468 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil , v. 4. p. 279-280.
restituição do saldo pelo Credor, se houvesse, ao Devedor.
Embora modificado o Decreto-Lei n º 911/69 pela Lei n º
10.931/04, as disposições a seguir continuam em vigor com as alterações da
referida norma.
Caso não tenha sido encontrado o bem alienado, o Credor
pode ingressar com ação de depósito, citando o réu para apresentar a coisa no
prazo de 48 (quarenta e oito) horas, sob pena de prisão (o impasse foi já retratado
no item anterior, relativamente à prisão civil do Devedor).
Porém, uma vez adimplida a obrigação do Devedor, o Credor
tem o dever de restituir àquele a Propriedade do bem. Caso o Credor se recuse a
devolver o bem ao Devedor, ou dar quitação, este pode promover contra o Credor a
ação de consignação em pagamento, recuperando a Propriedade do bem com a
sentença, que valerá como título liberatório. Além disso, a recusa por parte do
Credor pode ensejar o ressarcimento deste ao Devedor, de perdas e danos469.
Não desejando apreender a coisa, poderá o Credor ingressar
com procedimento executório contra o Devedor (podendo incidir a penhora em
qualquer bem seu) e/ou seus garantes (os quais se sub-rogam, na hipótese de
pagamento da dívida, na qualidade de Credores).
3.9. ALTERAÇÕES DA LEI N º 10.931 NA ALIENAÇÃO FIDU CIÁRIA EM
GARANTIA
Com o advento da Lei n º 10.931, de 02 de agosto de 2004470,
houve uma alteração substancial no que diz respeito à Alienação Fiduciária em
Garantia. Essa lei, em especial para efeitos da presente Tese, influenciou na
observação de uma das variáveis do projeto, pois revogou especificamente os 469 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil , v. 4. p. 278-279. 470 Que dispõe sobre o patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias, Letra de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Bancário, altera o Decreto-Lei n º 911, de 1o. de outubro de 1969, as Leis n º 4.591, de 16 de dezembro de 1964, n º 4.728, de 14 de julho de 1965, e n º 10.406, de 10 de janeiro de 2002, e dá outras providências, in https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Lei/L10.931.htm
artigos 66 e 66-A, da Lei n º 4.728/65, que tratavam da Responsabilidade Civil na
Alienação Fiduciária em Garantia.
No entanto, a revogação dos artigos 66 e 66-A, conforme se
poderá observar adiante, favorece a proposta dessa Tese, reforçando a necessidade
de Responsabilidade Civil do Credor-Fiduciário.
3.9.1 Alterações da Lei n º 10.931, de 2 de agosto de 2004 na Lei n º 4.728/65
Primeiramente, houve, por disposição do artigo 67, da Lei n º
10.931/2004, revogação dos artigos 66 e 66-A, da Lei n º 4.728, de 14 de julho de
1965 (Lei que disciplina o mercado de capitais), artigos estes que se referiam,
explicitamente, à Alienação Fiduciária em Garantia. Com a revogação, passa a ser
disciplinada a Alienação Fiduciária em Garantia pelo artigo 66-B, criado pela Lei n º
10.931/2004.
O caput do art. 66, da Lei 4.728/65, tratava, entre outras
coisas, da Responsabilidade Civil na Alienação Fiduciária em Garantia, com a
seguinte redação:
Art. 66 . A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição, efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que incumbem de acordo com a lei civil e penal.
Com a revogação do referido artigo, não se tratou mais sobre a
Responsabilidade Civil, mas, conforme se poderá observar a seguir, ainda há
manifestação no sentido de atribuir ao Credor-Fiduciário a qualidade de Proprietário
Fiduciário. Conseqüentemente, há necessidade de que essa espécie de Propriedade
Fiduciária exerça sua Função Social, possibilitando-se a Responsabilidade Civil
solidária do Proprietário Fiduciário.
Segundo a nova disposição legal (art. 66-B), no que diz
respeito às questões objetivas, os contratos de Alienação Fiduciária celebrados no
âmbito do mercado financeiro e de capitais, bem como em garantia de créditos
fiscais e previdenciários, além dos requisitos definidos na Lei n º 10.406, de 10 de
janeiro de 2002 (Código Civil)471, deverão conter a taxa de juros, a cláusula penal, o
índice de atualização monetária, se houver, e as demais comissões e encargos.
Conforme tal disposição, se o objeto de Propriedade Fiduciária
não se identificar por números, marcas e sinais no contrato de Alienação Fiduciária,
incumbe ao próprio Proprietário Fiduciário o ônus da prova da identificação dos bens
de seu domínio, que se encontram em poder do devedor, para ser alegado contra
terceiros (art. 66-B, § 1o).
Caso o devedor venha a alienar, ou dar em garantia a terceiros
algum bem que já tenha alienado fiduciariamente em garantia, tal ocorrência
implicará a aplicação da sanção prevista na legislação penal na qualidade de
disposição de coisa alheia como própria (artigo 171, § 2o, I, do Código Penal472).
Este dispositivo configura, de forma elementar, a qualidade de Proprietário do
Credor-Fiduciário, o que reforça ainda mais a sua responsabilidade nos termos da
presente Tese.
Admite-se, ainda, a Alienação Fiduciária de coisa fungível, bem
como a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis e de títulos de crédito. Em
tais situações, salvo disposição contrária, atribui-se ao credor a posse direta e
indireta da coisa objeto da Propriedade Fiduciária ou do título representativo do
direito ou crédito, de forma que o credor poderá vender tal bem a terceiros,
independentemente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou
471 “Artigo 1.362. O contrato, que serve de título à propriedade fiduciária, conterá: I- o total da dívida, ou sua estimativa; II- o prazo, ou a época do pagamento; III- a taxa de juros, se houver; IV- a descrição da coisa objeto da transferência, com os elementos indispensáveis à sua identificação.” 472 “Art. 171. Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento: Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa. § 1o. Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor o prejuízo, o juiz pode aplicar a pena conforme o disposto no art. 155, § 2o. § 2o. Nas mesmas penas incorre quem: I – vende, permuta, dá em pagamento, em locação ou garantia coisa alheia como própria .” (grifado).
extrajudicial, em situações de inadimplemento ou mora da obrigação garantida. No
entanto, deverá aplicar o preço da alienação no pagamento do crédito que tem e das
despesas para a realização da garantia, entregando, caso houver, o saldo ao
devedor, com o acompanhamento do demonstrativo da operação feita (artigo 66-B, §
3o, da Lei n º 4.728/65).
Na Alienação Fiduciária em Garantia, o pagamento por parte
do Devedor-Fiduciante de uma ou mais prestações da dívida não implica
exoneração correspondente da garantia, mesmo que tal garantia compreenda vários
bens, salvo disposição contrária no título ou na quitação (artigo, 66-B, § 5o, da Lei n º
4.728/65).
Considera-se vencida a dívida, na Alienação Fiduciária em
Garantia, não se computando os juros correspondentes ao tempo ainda não
decorrido (artigo, 66-B, § 5o, da Lei n º 4.728/65):
a) se houver desfalque da coisa dada em garantia por deterioração (hipótese em
que haverá sub-rogação do Credor na indenização do seguro, ou no ressarcimento
do dano), ou depreciação, e o devedor não a reforçar ou substituir, caso intimado;
b) se cair o devedor em insolvência ou falência;
c) se não forem pagas pontualmente as prestações, caso se estipular dessa forma o
pagamento, ocorrerá a renúncia do credor ao direito de execução imediata e o
recebimento posterior da prestação em atraso;
d) se o bem dado em garantia perecer e não for substituído, vencendo-se
antecipadamente a Alienação Fiduciária em Garantia se o perecimento recair sobre
o bem garantido, não abrangendo outros bens dados em garantia; subsistindo, no
caso contrário, a dívida reduzida, com a respectiva garantia sobre os demais bens,
não destruídos;
e) se houver desapropriação do bem dado em garantia, depositando-se a parte do
preço necessária para o integral pagamento do credor, vencendo-se
antecipadamente a Alienação Fiduciária em Garantia se a desapropriação recair
sobre o bem garantido, não abrangendo outros bens dados em garantia; subsistindo,
no caso contrário, a dívida reduzida, com a respectiva garantia sobre os demais
bens, não desapropriados.
Obriga-se o Credor-Fiduciário (artigo, 66-B, § 5o, da Lei n º
4.728/65):
a) a guardar a coisa na qualidade de depositário, ressarcindo a perda ou
deterioração em que for considerado culpado, podendo-se compensar a dívida até a
concorrente quantia, a importância da responsabilidade.
b) a defender a posse da coisa alienada fiduciariamente, cientificando-se o Devedor-
Fiduciante das circunstâncias que necessitem o exercício de ação possessória;
c) a imputar nas despesas de guarda e conservação, o valor dos frutos que se
apropriar, nos juros e no capital da obrigação garantida, sucessivamente;
d) a restituir a coisa alienada fiduciariamente, com seus frutos e acessões, quando
liquidada a dívida;
e) a entregar ao Devedor-Fiduciante o que sobrar da venda, pagando a dívida,
quando promovida a execução judicial ou venda amigável do bem alienado
fiduciariamente (caso autorize expressamente o contrato, ou com autorização do
Devedor por procuração).
Consideram-se causas de extinção da Alienação Fiduciária em
Garantia (artigo, 66-B, § 5o, da Lei n º 4.728/65):
a) a extinção da obrigação;
b) o perecimento da coisa;
c) a renúncia do Credor-Fiduciário, presumindo-se tal renúncia se o Credor consentir
na venda particular do bem alienado fiduciariamente, sem reserva de preço, quando
restituir sua posse ao devedor ou anuindo à substituição por outra garantia;
d) a confusão das qualidades de Credor e dono da coisa na mesma pessoa e,
operando-se a confusão somente quanto a parte da dívida decorrente da Alienação
Fiduciária em Garantia, persiste inteira a alienação respectiva quanto ao restante;
e) ocorrendo a adjudicação judicial, remissão ou venda da coisa alienada
fiduciariamente, pelo Credor-Fiduciário ou autorizada por ele.
Não se admite, na Alienação Fiduciária em Garantia, o direito
de o depositário reter o depósito até que se lhe pague a retribuição devida, o líquido
valor das despesas, ou dos prejuízos decorrentes das despesas feitas com a coisa e
dos que provierem do depósito, ainda que provando imediatamente esses prejuízos
ou despesas (artigo, 66-B, § 6o, da Lei n º 4.728/65) .
3.9.2 Alterações da Lei n º 10.931, de 2 de agosto de 2004 no Decreto-Lei nº
911/69
Também devido à determinação da Lei 10.931/04, foram
alterados dispositivos relativos ao Decreto-Lei n º 911/69 (Decreto que estabelece
normas de processo sobre Alienação Fiduciária), relativamente a dois artigos: artigo
3o (com a alteração e acréscimo de alguns parágrafos), e artigo 8o (este com o
acréscimo do artigo 8o – A).
O artigo 3o, do Decreto-Lei 911/69 estabelece, em seu caput,
que “O proprietário fiduciário ou credor poderá requerer contra o devedor ou terceiro a
busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a qual será concedida liminarmente,
desde que comprovada a mora ou o inadimplemento do devedor”.
A busca e apreensão referida se trata de processo autônomo e
independente de posterior procedimento (parágrafo 8o, do Decreto-Lei 911/69), o
que significa ser medida satisfativa, não havendo dependência de outra ação
principal.
Determina o parágrafo 1o, do Decreto-Lei 911/69, que, nos 5
(cinco) dias após a execução da liminar acima mencionada, consolidar-se-ão a
propriedade e a posse plena e exclusiva do bem no patrimônio do credor fiduciário,
“cabendo às repartições competentes, quando for o caso, expedir novo certificado
de registro de propriedade em nome do credor, ou de terceiro por ele indicado, livre
do ônus da propriedade fiduciária”.
O parágrafo 2o, do art. 3o, da Lei 911/69 (modificado pela Lei
10.931/04), determina que, no prazo de 5 (cinco) dias indicado acima (no parágrafo
1o, do art. 3o), o Devedor-Fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida
pendente, conforme os valores que o Credor-Fiduciário apresentar na petição inicial,
sendo que, em caso de pagamento, o bem lhe será entregue sem qualquer ônus.
Este parágrafo alterou profundamente o Decreto-Lei em questão, pois, antes da
substituição deste parágrafo, após o despacho da inicial e da execução da liminar, o
réu tinha a possibilidade de, após citado, em 3 (três) dias contestar o pedido, ou,
caso já tivesse pago 40% (quarenta por cento) do preço financiado, requerer a
purgação da mora. Também a nova lei (10.931/04) alterou o prazo para a
apresentação da contestação pelo Devedor-Fiduciante, de 3 (três) para 15 (quinze)
dias, da execução da liminar (parágrafo 3o, do Decreto-Lei 911/69), cabendo
apelação unicamente no efeito devolutivo, da sentença (parágrafo 4o, do Decreto-Lei
911/69). Conforme a nova disposição legal, mesmo que o devedor tenha pago a
totalidade da dívida pendente no prazo de 5 (cinco) dias após a execução da liminar,
poderá apresentar o Devedor-Fiduciante sua resposta, caso entenda haver
pagamento a maior, desejando, assim, a restituição (parágrafo 4o, do Decreto-Lei
911/69).
Caso a sentença tenha decretado a improcedência da ação de
busca e apreensão, o Credor-Fiduciário será condenado ao pagamento de multa
equivalente a 50% (cinqüenta por cento) do valor originalmente financiado,
atualizado, em favor do Devedor-Fiduciante, se o bem já tenha sido alienado (art. 3o,
parágrafo 6o, do Decreto-Lei 911/69). Tal multa não exclui a responsabilidade do
Credor-Fiduciário por perdas e danos (parágrafo 7o, art. 3o, do Decreto-Lei 911/69).
Outro artigo do Decreto-Lei 911/69 que sofreu acréscimo foi o
artigo 8o, pelo artigo 8 º -A, que assim determina:
“Art. 8o – A. O procedimento judicial disposto neste Decreto-Lei aplica-se exclusivamente às hipóteses da Seção XIV da Lei n º 4.728, de 14 de julho de 1965, ou quando o ônus da propriedade fiduciária tiver sido constituído para fins de garantia de débito fiscal ou previdenciário”.
A Seção XIV da Lei 4.728/65 é a seção que trata da Alienação
Fiduciária em Garantia, que correspondia aos artigos 66 e 66-A, os quais foram
revogados e substituídos pelo artigo 66-B, anteriormente referido.
3.9.3 Alterações da Lei n º 10.931, de 2 de agosto de 2004 na Lei n º 10.406/02
(Código Civil)
Ainda, relativamente às mudanças ocasionadas pela Lei n º
10.931/04, há a determinação do artigo 58, desta Lei, que acresce o artigo 1.368-A
ao artigo 1.368, do Código Civil (Lei n º 10.406/02). Segundo o referido artigo:
Art. 1.368-A . As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial.
Assim, remete à legislação específica que se refere à
Alienação Fiduciária em Garantia, tanto de móveis (Decreto-lei 911/1969), quanto de
imóveis (Lei n º 9.514/1997).
No que respeita à Responsabilidade Civil nos contratos de
Alienação Fiduciária em Garantia, conforme se observou, com a revogação do artigo
66, da Lei n º 4.728/65 pelo artigo 67, da Lei n º 10.931/04, não há mais norma
expressa determinando a Responsabilidade Civil do Devedor-Fiduciante. Tal
situação reforça a proposta da Tese, no sentido de se poder responsabilizar,
civilmente, também o Credor-Fiduciário, por persistir o caráter de Propriedade
Fiduciária em seu favor, ainda mais por considerar a própria Lei n º 4.728/65 (em
sua nova redação determinada pelo artigo 66-B, § 2o, acrescido pelo artigo 55, da
Lei n º 10.931/04)473, que a coisa, na Alienação Fiduciária em Garantia, não é
propriedade do Devedor-Fiduciante , mas do Credor-Fiduciário.
3.10. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA NA FORMA DE
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA E A PROPOSTA DE TE SE
Conforme foi tratado no capítulo anterior, considerando que o
artigo 5o, da CRFB/88, em seus incisos XXII e XXIII, assegura o direito à
Propriedade e alude à Função Social que esta deve exercer, observa-se que não há
limitação de espécie de Propriedade que deva atender à Função Social. Assim, tanto
a Propriedade plena, quanto a limitada, móvel ou imóvel, deverão obtemperar esta
função.
Arone474 retrata o seguinte:
473 “Art. 66-B. (...) § 2o. O devedor que alienar, ou der em garantia a terceiros, coisa que já alienara fiduciariamente em garantia, ficará sujeito à pena prevista no art. 171, § 2o, I, do Código Penal”. 474 ARONNE, Ricardo. Propriedade e domínio : reexame sistemático das noções nucleares de
direitos reais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 210.
A propriedade, na mesma medida em que positiva um dever negativo dos demais em relação ao titular, positiva deveres positivos deste em relação à comunidade em que resta inserida, cambiantes em face do caso concreto (ambos os aspectos), eis que tanto o direito de propriedade como sua função social somente ganham concreticidade na tópica incidência, axiologicamente hierarquizante.
Aqui, de modo especial, a Propriedade Fiduciária. Mais ainda,
uma modalidade sua, que é a Alienação Fiduciária em Garantia.
Como já tratado, o surgimento da Alienação Fiduciária se deu
como forma de proteção do crédito, sendo que este, no sistema de mercado de
capitais, é sua mola propulsora, ampliando e desenvolvendo o mercado consumidor,
aumentando a quantidade de financiamentos realizados pelas Instituições
Financeiras e diminuindo os custos das despesas operacionais. Isto fez com que se
facilitasse o financiamento, ampliando-se o crédito ao consumidor, popularizando-o
e inserindo no mercado um nicho de consumidores que era excluído475.
Importante ressaltar estas vantagens ocasionadas pela
Alienação Fiduciária em Garantia. Assim, há o consumidor, que se vê diante de uma
possibilidade de maior facilidade na aquisição de bens. Daí comportar a facilidade
de aquisição de, praticamente, todo tipo de coisas, desde um simples
eletrodoméstico, até bens de maior porte como veículos, máquinas, imóveis etc.
É evidente que a Alienação Fiduciária tem, ainda, uma
importante Função Social, que é a de justamente criar as possibilidades de
assegurar um maior conforto à Sociedade, propiciando a aquisição de certos
produtos que, em princípio, não poderiam ser obtidos, senão com pagamento
imediato à compra do bem. Como observado, a Alienação Fiduciária de bens pode
ser tanto imediata, com um único pagamento, ou prolongada, protraindo-se o
contrato no tempo. Esta última forma é a modalidade mais comum.
A crescente aquisição de produtos, incluindo-se uma classe de
475 GONÇALVES, Aderbal da Cunha. Da propriedade resolúvel , p. 257.
consumidores que, até então, era excluída, fez com que aumentasse o mercado
consumidor, gerando, consequentemente, mais empregos, mais impostos, maior
riqueza, sendo resultado do progresso. No entanto, importante ressaltar que, como
conseqüência desse progresso, muitos produtos colocados no mercado ocasionam
também um efeito negativo na Sociedade. O desenvolvimento de técnicas modernas
colocou à disposição do mercado para “apropriação”, inventos como o avião,
máquinas industriais, o automóvel e outros engenhos humanos, “(...) provocando a
intensidade da vida e expondo-nos a uma iminência mais acentuada de perigos
(...)”476.
É, especificamente, na hipótese da periculosidade de Veículos
Automotores e no crescimento da frota nacional, ocasionando consequências
sociais, também negativas no âmbito social, que este estudo pretende focalizar.
Disto se abstrai o aspecto negativo da Propriedade. Esta aquisição, agora, deve
estar em conformidade com os ditames sociais que impõem o condicionamento
desta Propriedade de forma a não prejudicar o interesse da Sociedade em virtude da
satisfação individual. Deve-se observar a Função Social que esta Propriedade,
indistintamente, passa a ter, analisando-se a tendência da “repersonificação” do
direito Privado, para a qual a pessoa passa a ser o centro das relações jurídicas.
Como se observou, a Alienação Fiduciária em Garantia,
segundo Gomes477, consiste no “(...) negócio jurídico pelo qual o devedor, para
garantir o pagamento da dívida, transmite ao credor a propriedade de um bem,
retendo-lhe a posse direta, sob a condição resolutiva de saldá-la”. E a Alienação
Fiduciária é modalidade de Propriedade Fiduciária. Daí se observa a qualidade de
“garantia” do bem nesta modalidade de direito real. Porém, diferentemente dos
demais direitos reais (penhor, hipoteca, anticrese), a Propriedade do bem é
transmitida ao Credor . Repete-se: embora o próprio nome do instituto “Alienação
Fiduciária em Garantia” deixe transparecer o objetivo de “garantia” pelo qual a coisa
alienada é oferecida ao proprietário resolúvel, não deixa de “ser Propriedade”478, fato
476 LIMA, Alvino. A responsabilidade civil pelo fato de outrem . Rio de Janeiro: Forense, 1973. p.
16. 477 GOMES, Orlando. Contratos . 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 459. 478 GOMES, Orlando. Alienação fiduciária em garantia, p. 80-81.
este que influenciará diretamente nos objetivos dessa pesquisa.
Ora, como proprietário, o Credor, agora titular do bem alienado,
também tem o ônus social de fazer com que esta Propriedade alcance sua Função
Social. Essa Propriedade está condicionada ao bem estar social, limitando o
proprietário, seja qual for a forma de propriedade que possua, a fazer uso da coisa
sem prejudicar o interesse da coletividade. Isto condiz com a lição trazida de
Perlingieri479, o qual ensina, ao tratar da Função Social da Propriedade, que essa
expressão:
(...) deve ser entendida não como uma intervenção ‘em ódio’ à propriedade privada, mas torna-se ‘a própria razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído a um determinado sujeito’, um critério de ação para o legislador, e um critério de individuação da normativa a ser aplicada para o intérprete chamado a avaliar as situações conexas à realização de atos e de atividades do titular.
Reforçando a condição de que a Propriedade Fiduciária possui
uma Função Social, adere-se o fato de que a Alienação Fiduciária em Garantia,
principalmente na modalidade prescrita pela Lei n. 4.728/65 e Decreto-Lei 911/69, é
realizada por sociedades de crédito, investimento e financiamento (Instituições
Financeiras). Desta atividade decorre, ainda, a alta lucratividade havida com a
negociação na modalidade de Alienação Fiduciária em Garantia. E, conforme se
observará, ubi emolumentum, ibi onus; qui habet commoda, debet ferre onera; ubi
periculum, ibi lucrum, tendo-se por base a análise da doutrina objetiva, fundada no
risco, ou seja, aquele que tirar proveito com uma situação deve responder pelas
desvantagens ou pelo risco dela oriundas.
Como visto, com o julgamento proferido no Recurso Especial n.
1.044.527-MG, o Superior Tribunal de Justiça responsabilizou civilmente, em
contrato gratuito (empréstimo) o proprietário de Veículo Automotor por atos
envolvendo terceiro que utilizou o veículo e ocasionou o acidente480 e um dos fatores
que fazem aumentar ainda mais a responsabilidade do proprietário reside na própria 479 PERLINGIERI, Pietro. Perfis de direito civil, p. 226. 480 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.044.527-MG, Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, Terceira Turma, julgado em 27/09/2011. Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/jsp/revista/abreDocumento.jsp?componente=COL&sequencial=17944804&formato=PDF, acesso em 01 fev. 2012, sem grifo no original.
onerosidade do contrato.
A proposta da Tese é no sentido de que há diversos fatores
que podem fazer com que o proprietário, mesmo que fiduciário, possa responder
pelos danos ocasionados pelo Veículo Automotor. Em síntese:
a) o proprietário é responsável civilmente pelos danos ocasionados por coisas de
sua propriedade, especialmente por coisas perigosas;
b) os Veículos Automotores são bens perigosos colocados no meio da sociedade;
c) a Função Social da Propriedade abrange, inclusive, a da Propriedade Fiduciária;
d) a Alienação Fiduciária em Garantia é espécie de Propriedade Fiduciária;
e) os contratos de Alienação Fiduciária em Garantia de Veículos Automotores são
contratos onerosos, realizados por sociedades empresárias, de forma que o
Proprietário Fiduciário lucra com a atividade, estimulando, assim, a colocação de
bens perigosos no ambiente social;
f) conforme o art. 927, parágrafo único, do Código Civil: “Haverá obrigação de
reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou
quando a atividade normalmente desenvolvida pelo au tor do dano implicar, por
sua natureza, risco para os direitos de outrem ” (Teoria do Risco, grifado);
g) conforme o art. 931, do Código Civil: “Ressalvados outros casos previstos em lei
especial, os empresários individuais e as empresas respondem
independentemente de culpa pelos danos causados pel os produtos postos em
circulação ” (Teoria do Risco, grifado);
h) ubi emolumentum, ibi onus; qui habet commoda, debet ferre onera; ubi periculum,
ibi lucrum, ou seja, tem-se por base a doutrina objetiva, fundada na Teoria do Risco
(Responsabilidade Civil Objetiva), ou seja, aquele que tirar proveito com uma
situação deve responder pelas desvantagens ou pelo risco dela oriundas e, aqui,
independentemente de culpa;
i) se, com base no Recurso Especial n. 1.044.527-MG, o Superior Tribunal de
Justiça entendeu, em contrato gratuito (empréstimo) de Veículo Automotor, que há
responsabilidade do proprietário por atos ilícitos envolvendo a coisa que esteja na
posse de terceiro, pelos elementos já levantados nas letras anteriores também há
possibilidade de responsabilizar civilmente o Proprietário Fiduciário pelos atos ilícitos
realizados pelo Devedor-Fiduciante de forma solidária.
Na óptica da CRFB/88, não havendo limitação à espécie de
Propriedade para fins de obediência da sua Função Social, observa-se que a
mesma se aplica também nas condições da Propriedade Fiduciária, principalmente,
nesse estudo, envolvendo a Alienação Fiduciária em Garantia. Desta característica,
em especial, decorre o resultado do produto científico almejado com a pesquisa, ou
seja, a Responsabilidade Civil do titular da Propriedade Fiduciária em razão (dentre
outras) desta Função Social
Capítulo 4
A RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA
E OBJETIVA NO DIREITO BRASILEIRO
Este capítulo pretende trazer noções sobre a Responsabilidade
Civil Subjetiva e Objetiva no ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, tratar-se-á
sobre o conceito, objetivo e requisitos da Responsabilidade Civil, especificando-se o
tema ao estudar a Responsabilidade Civil Subjetiva e Objetiva.
Ao se realizar o estudo sobre a Responsabilidade Civil
Objetiva, ingressar-se-á na pesquisa acerca da Teoria do Risco, das atividades de
Risco e do entendimento doutrinário, a respeito da condição de periculosidade dos
Veículos Automotores de Via Terrestre. Também será encetada pesquisa acerca da
Responsabilidade Civil direta e indireta, enfatizando-se esta última quando se estuda
a Responsabilidade por fato de outrem e pelo fato da coisa no direito brasileiro.
Encerra-se esse capítulo com as excludentes de
Responsabilidade Civil Subjetiva e Objetiva, como a legítima defesa, o estado de
necessidade, o exercício regular do direito, o estrito cumprimento de um dever legal,
culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro, caso fortuito e força maior.
4.1. CONCEITO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
De forma geral, pode-se entender a Responsabilidade, em
sentido amplo, na atribuição a um sujeito do dever de assumir as consequências de
uma ação ou evento481.
A noção de Responsabilidade apresentada para esse estudo
trata a Responsabilidade Civil de uma forma ampla, além da mera análise da
culpabilidade (dolo ou culpa do agente), adotando-se, para tanto, a doutrina
perfilhada por Josserand, por entender que há na Responsabilidade Civil a “(...)
repartição de prejuízos causados, equilíbrio de direitos e interesses, de sorte que a
responsabilidade, na concepção moderna, comporta dois pólos: o objetivo, onde
481 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. v. 4. p. 12.
reina o risco criado, e o subjetivo, onde triunfa a culpa”482.
Assim, Responsabilidade Civil, para efeitos desta pesquisa,
consiste na “(...) situação de indenizar o dano moral ou patrimonial, decorrente de
inadimplemento culposo, de obrigação legal ou contratual, ou imposta por lei”483.
Para Diniz484, Responsabilidade Civil consiste na “(...)
aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar dano moral ou patrimonial
causado a terceiros em razão de ato do próprio imputado, de pessoa por quem ele
responde, ou de fato de coisa ou animal sob sua guarda (responsabilidade
subjetiva), ou, ainda, de simples imposição legal (responsabilidade objetiva)”. Deste
conceito, observa-se, claramente, duas situações distintas de responsabilidade:
uma, baseada na culpa (Responsabilidade Civil Subjetiva ou teoria subjetiva) e
outra, que independe da comprovação da culpa do agente (Responsabilidade Civil
Objetiva ou teoria objetiva), as quais serão tratadas adiante.
A Responsabilidade Civil pode decorrer de duas situações
distintas, ou seja, a inexecução obrigacional (responsabilidade contratual) e o
inadimplemento normativo (responsabilidade extracontratual)485, esta última,
também conhecida como Responsabilidade Civil Aquiliana.
4.2. OBJETIVO E REQUISITOS DA RESPONSABILIDADE CIVI L
O objetivo da Responsabilidade Civil consiste na análise do
dano causado à vítima, seu desconforto comportamental ou dor psíquica (dano
moral), ou desequilíbrio patrimonial (dano material) e a respectiva indenização desse
dano. É elementar o efetivo “dano”, o qual, não existindo, não motiva a
indenização486. O dever de reparação é o efeito da Responsabilidade Civil487. Para
482 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil : responsabilidade civil. 16. ed. v. 7. p. 34. 483 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações . 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000. p. 273. 484 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil : responsabilidade civil, v. 7. p. 34. 485 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações , p. 273. 486 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p. 20-21.
Reis488, a Responsabilidade Civil tem índole de natureza satisfativa ou reparadora.
Na análise da Responsabilidade Civil, geralmente o que se
avalia é a conduta do agente que tenha desencadeado atos ou fatos, podendo surgir
o dever de indenizar, ainda que o dano tenha se originado somente por um ato ou
fato por parte do agente. Isto importa identificar a conduta que deu margem ao dever
de indenizar, podendo ser a responsabilidade do agente direta, se respeitar ao
próprio causador do dano, ou indireta, caso se refira a terceiro que, de alguma
forma, esteja ligado ao ofensor489. Também, para efeitos deste estudo, será
analisada a responsabilidade indireta como instrumento para a demonstração do
resultado da pesquisa.
Os requisitos para a configuração da Responsabilidade Civil
variam conforme as espécies Subjetiva ou Objetiva. Esta matéria será tratada
adiante, com mais vagar. Porém, conforme a doutrina jurídica, são requisitos gerais
para a configuração do dever de indenizar: a ação ou omissão voluntária, relação de
causalidade ou nexo causal, dano e culpa. Adverte Venosa490 que, ao se analisar a
“culpa”, observa-se “(...) a tendência jurisprudencial cada vez mais marcante de
alargar seu conceito. Surge, daí, a noção de culpa presumida, sob o prisma do dever
genérico de não prejudicar”. Adiante, segue o estudo específico dos requisitos,
anteriormente elencados, para a configuração da Responsabilidade Civil.
4.2.1. Ação (conduta humana)
Segundo Gagliano491, somente o homem, “(...) por si ou por
meio das pessoas jurídicas que forma, poderá ser civilmente responsabilizado”. Esta
responsabilização será correspondente à sua ação, ou seja, à “(...) conduta humana,
positiva ou negativa (omissão), guiada pela vontade do agente, que desemboca no
487 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil . 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, p.
421. v. 1. 488 REIS, Clayton. Avaliação do dano moral . 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 87. 489 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p. 12. 490 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p. 13. 491 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil . São Paulo: Saraiva, 2003. v. 3. p. 31.
dano ou prejuízo”492.
Observa-se que o comportamento comissivo ou omissivo, por
parte do agente, é um dos requisitos essenciais para a configuração da
Responsabilidade Civil. Para Diniz493, consiste a ação no “(...) ato humano,
comissivo ou omissivo, ilícito ou lícito, voluntário e objetivamente imputável, do
próprio agente ou de terceiro, ou o fato de animal ou coisa inanimada, que cause
dano a outrem, gerando o dever de satisfazer os direitos do lesado”.
A “voluntariedade” à qual alude a doutrina consiste no núcleo
fundamental da noção de conduta humana, resultante do livre discernimento do
ofensor, consciente do ato que está realizando494.
Para efeitos desse estudo, relativamente à conduta humana,
buscar-se-á demonstrar que o ato comissivo que responsabiliza o Credor Fiduciário
de Veículos Automotores, na Responsabilidade Civil, se dá pela própria atividade
desenvolvida pelo mesmo, com fundamento na teoria do Risco Criado e do Risco
Proveito, ainda que seu comportamento seja lícito, pois “(...) a imposição do dever
de indenizar poderá existir mesmo quando o sujeito atua licitamente. Em outras
palavras: poderá haver responsabilidade civil sem necessariamente haver
antijuridicidade, ainda que excepcionalmente, por força de norma legal”495.
A “vontade” (ou voluntariedade) será demonstrada a partir da
própria atividade desenvolvida pelo Credor Fiduciário em colocar à disposição no
mercado, por meio dos contratos que realiza (atividade intrínseca das Instituições
Financeiras), na Forma de Alienação Fiduciária, um bem perigoso (Veículo
Automotor), de cuja Propriedade, mesmo que fiduciária, é titular, ainda que o bem
esteja na posse de terceiro. Acrescente-se o fato, ainda, que este Credor Fiduciário
está lucrando com a atividade, pois, como se observou anteriormente, somente
Instituições Financeiras podem exercer a atividade de Alienação Fiduciária em 492 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 31. 493 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil : responsabilidade civil, v. 7. p. 37. 494 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 31. 495 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 36.
Garantia, e Instituições Financeiras sempre visam à finalidade lucrativa. Tomar-se-á
a ação imputável a terceiro no contrato de Alienação Fiduciária em Garantia, sendo
este terceiro o possuidor direto do bem (Veículo Automotor), o qual, diante de um
comportamento antijurídico, lesou outra pessoa, alheia ao contrato de Alienação
Fiduciária. Diante dos elementos anteriormente tratados, este fato tornará o Credor-
Fiduciante, que é Proprietário Fiduciário do bem, responsável civilmente, solidária
mente pelo dano, durante o período contratual. Tal situação se observa possível
diante do fato que “(...) o Código Civil brasileiro, além de disciplinar a
responsabilidade civil por ato próprio, reconhece também espécies de
responsabilidade civil indireta, por ato de terceiro ou por fato do animal e da coisa
(...)”496.
No desenvolvimento da ação praticada pelo agente da conduta
comissiva ou omissiva, contudo, necessita-se analisar o elemento “culpa”, o qual
será melhor abordado quando se tratar da Responsabilidade Civil Subjetiva, adiante.
4.2.2. O Nexo Causal (Nexo etiológico, relação de c ausalidade ou liame de
causalidade)
Nexo Causal, conforme Venosa497, consiste no vínculo que liga
o dano à conduta do agente (vínculo entre a ação e o prejuízo), sendo elemento
indispensável à Responsabilidade Civil, ensinando este autor que “(...) A
responsabilidade objetiva dispensa a culpa, mas nunca dispensará o nexo causal.
Se a vítima, que experimentou um dano, não identificar o nexo causal que leva o ato
danoso ao responsável, não há como ser ressarcida”.
Há dois fatores que dificultam a identificação do Nexo Causal:
a) a prova; b) a identificação do fato que consiste na real causa do dano, ainda mais
se decorre de múltiplas causas498.
496 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 34. 497 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p. 39. 498 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil., v. 4.p. 39.
Essa relação de causalidade entre o mal efetivamente causado
e a injuridicidade da ação ou omissão necessita ser estabelecida. Isso porque se
deve ter certeza que, sem o fato, não teria ocorrido o dano, não bastando que
alguém tenha contravindo certas regras, mas que, sem a contravenção, não teria
ocorrido o dano499.
Segundo Campagnucci de Caso500, a causalidade consiste em
um tema pertencente à filosofia e às ciências, aplicando-se com características
próprias para dar soluções práticas, de modo que o estudo da causalidade jurídica é
próprio das ciências culturais, tendo como fator imprescindível “el obrar contingente
de la conducta humana.”. Para o mesmo autor, “En el derecho civil la relación de
causalidad cumplimenta dos objetivos: indica la autoria o no del sujeto demandado y
determina la extensión de la reparación, de conformidad con las consecuencias que
le son atribuibles”.
A relação de causalidade implica uma objetiva imputação fática
do resultado, enquanto que a culpabilidade possui um sentido subjetivo, um
julgamento do tipo moral, ou seja, apontando a consciência da pessoa (agente do
comportamento). Também, deve ser analisada a relação de causalidade sempre
com anterioridade à culpabilidade, pois antecede uma etapa posterior que deve
julgar se houve, ou não, a culpabilidade501. Segundo a lição de Compagnucci de
Caso502:
Los dos conceptos tienen un elemento común: la previsibili-dad; aunque en la relación de causalidad debe ser analizado ‘in abstracto y ex post facto’, es decir, después de ocurrido el
499 STOCO, Rui. Responsabilidade civil e sua interpretação jurispru dencial . 3. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997, p. 63. 500 COMPAGNUCCI DE CASO, Rúben H.. Manual de obligaciones . Buenos Aires: Editorial Astrea,
1997. p. 181, (“o obrar contingente da conduta humana”) e (“No direito civil a relação de causalidade cumpre dois objetivos: indica a autoria ou não do sujeito demandado e determina a extensão da reparação, em conformidade com as consequências que lhe são atribuíveis”).
501 COMPAGNUCCI DE CASO, Rúben H.. Manual de obligaciones , p. 181-182. 502 COMPAGNUCCI DE CASO, Rúben H.. Manual de obligaciones , p. 182, (“Os dois conceitos têm
um elemento comum: a previsibilidade; ainda que na relação de causalidade deve ser analisado ‘in abstracto e ex post facto’, quer dizer, depois de ocorrido o fato, e de acordo com as regras de experiência. Na culpabilidade a análise da previsibilidade se faz desde o interior do agente, pela exteriorização de seu comportamento, levando-se em consideração a voluntariedade do ato”).
hecho, y de acuerdo a reglas de experiencia. En la culpabilidad el análisis de la previsibilidad se hace desde el interior del agente, por la exteriorización de su comportamiento, tomándose en consideración la voluntariedad del acto.
Há necessidade de se verificar, portanto, se o agente causador
é, efetivamente, o autor da condição que lhe atribui o resultado, devendo-se
analisar, também, como esse resultado é estabelecido. Apresentam-se duas teorias
referentes à causa eficiente do nexo causal: a Teoria da Equivalência das
Prestações e as Teorias Individualizadoras. Estas últimas se subdividem em Teoria
da Causa próxima, Teoria da Causa Preponderante, Teoria da Causa Eficiente e
Teoria da Causalidade Adequada503. Destas quatro subdivisões, somente será
objeto de análise a última, haja vista sua consideração no direito brasileiro. Há,
ainda, uma terceira teoria, chamada da Causalidade Direta ou Imediata, que será
também tratada.
4.2.2.1. Teoria da Equivalência das Prestações
Essa teoria também é conhecida como “condição simples” ou
da condicio sine qua non, exposta por Von Buri em 1860504, ou “teoria da
equivalência das condições”505. De acordo com essa teoria, não há distinção entre
as diversas condições que colaboram para as consequências, ou seja, “(...) tudo
aquilo que concorra para o evento será considerado causa”506, considerando-se “(...)
elemento causal todo o antecedente que haja participado da cadeia de fatos que
desembocaram no dano”507.
Para efeitos dessa teoria, entende-se que há uma valoração
equivalente entre todos os elementos concorrentes, os quais se somam, não se
503 COMPAGNUCCI DE CASO, Rúben H.. Manual de obligaciones , p. 183. 504 COMPAGNUCCI DE CASO, Rúben H.. Manual de obligaciones , p. 183. 505 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 96. 506 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 97. 507 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 97.
podendo isolá-los para efeitos de imputação508. Adverte Gagliano509 que, “Por
considerar causa todo o antecedente que contribua para o desfecho danoso, a
cadeia causal, seguindo esta linha de intelecção, poderia levar a sua investigação ao
infinito”, ilustrando, adiante que: “Nesta linha, se o agente saca a arma e dispara o
projétil, matando o seu desafeto, seria considerado causa, não apenas o disparo,
mas também a compra da arma, a sua fabricação, a aquisição do ferro e da pólvora
pela indústria etc., o que envolveria, absurdamente, um número ilimitado de agentes
na situação de ilicitude”.
Conforme Stoco510, “A teoria da ‘equivalência das condições’
vem em socorro da vítima, tentando resolver, na prática, o problema da relação
causal, e tem o mérito da simplicidade. Contudo, foi afastada por inadequada”. Para
Gagliano511, em virtude das imprecisões e inconvenientes trazidos por esta teoria, os
doutrinadores do Direito Civil não a acolheram. Justifica-se também este
posicionamento pela seguinte lição de Lisboa512:
Os antecedentes do evento danoso não podem ser analisados
sob absoluta equivalência, uma vez que tão-somente aqueles que foram diretamente necessários para concretização do prejuízo é que devem ser valorados pelo aplicador da norma jurídica. Caso contrário, chegar-se-ia ao absurdo de se falar, por exemplo, que o fabricante do veículo também poderia ser responsabilizado pelo atropelamento de um pedestre.
Importante salientar que esse último exemplo da lição acima
transcrita não se enquadra nesse estudo, pois essa Tese pretende que, na
Alienação Fiduciária em Garantia, o Fiduciário seja responsabilizado civilmente:
primeiro, por ser proprietário do bem durante o período contratual; segundo, porque,
ao estabelecer contratos de Alienação Fiduciária em Garantia cujo objeto sejam
508 COMPAGNUCCI DE CASO, Rúben H.. Manual de obligaciones , p. 182. 509 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 98. 510 STOCO, Rui. Responsabilidade civil e sua interpretação jurispru dencial , p. 63. 511 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 99. 512 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 224.
Veículos Automotores, esta atividade cria um perigo para a Sociedade (teoria do
Risco Criado); terceiro, porque, por angariar lucro, insere-se na teoria do Risco
Benefício (adiante tratada); quarto, porque, diante do ilícito causado pelo Fiduciante,
e na hipótese de insolvabilidade do mesmo, há necessidade de ressarcimento da
vítima, diante do princípio da Dignidade da Pessoa Humana, respondendo o
Fiduciário de forma solidária ao Fiduciante enquanto perdurarem os efeitos do
contrato. Afinal, “(...) um direito só e efetivo quando sua prática está assegurada;
não ter direito e tê-lo sem o poder exercer são uma coisa só. (...)”513.
Adiante será tratada a Teoria da Causalidade Adequada, a qual
é adotada pelo ordenamento jurídico civil brasileiro no âmbito da Responsabilidade
Civil.
4.2.2.2. Teoria da Causalidade Adequada
Essa teoria foi exposta por von Bar no ano 1881, desenvolvida
por von Kries, em 1888. O estudo dessa teoria se desenvolve na crítica à teoria da
equivalência, sendo a teoria cuja tendência é seguida pela maioria dos
doutrinadores penalistas modernos e entre os civilistas514. Segundo Compagnucci
de Caso515:
De conformidad con esta teoria el fenomeno causal debe ser analizado de acuerdo con las reglas de un comportamiento regular y normal, es decir, de la experiencia diária o corriente. Es necesario a posteriori del hecho establecer un juicio de
probabilidades, o pronóstico, con determinación de un cálculo de posibilidades, presciendiéndose de la realidad del acontecimiento.
513 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. v.1. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 61. 514 COMPAGNUCCI DE CASO, Rúben H.. Manual de obligaciones , p. 184. 515 COMPAGNUCCI DE CASO, Rúben H.. Manual de obligaciones , p. 184, (“Em conformidade com
esta teoria, o fenômeno causal deve ser analisado de acordo com as regras de um comportamento regular e normal, quer dizer, da experiência diária ou corrente. É necessário a posteriori do fato estabelecer um juízo de probabilidades, ou prognóstico, com determinação de um cálculo de possibilidades, prescindindo-se da realidade do acontecimento”).
Para Compagnucci de Caso516, ainda que se tenha elaborado
sobre esta teoria algumas idéias não muito claras, crê o autor que é necessário
levar-se em consideração todas as condições que integram o evento, as anteriores,
as contemporâneas e as posteriores que pudessem, ou não, ser conhecidas pelo
sujeito, impondo-se uma ampla análise do fato e do evento danoso.
A Teoria da Causalidade Adequada tem por base a “(...) causa
predominante que deflagrou o dano (...)”517. Segundo Gagliano518, “Para os adeptos
dessa teoria, não se poderia considerar causa ‘toda e qualquer condição que haja
contribuído para a efetivação do resultado’, conforme sustentado pela teoria da
equivalência, mas sim, segundo um juízo de probabilidade, apenas o antecedente
abstratamente idôneo à produção do efeito danoso, (...).”. Adiante, esclarece o
mesmo autor519 que “O ponto central para o correto entendimento desta teoria
consiste no fato de que somente o antecedente abstratamente apto à
determinação do resultado , segundo um juízo razoável de probabilidade, em que
conta a experiência do julgador, poderá ser considerado causa”; no entanto, este
fator pode, ainda, representar insegurança jurídica e subjetividade520.
Segundo Lisboa521, “Quanto maior a probabilidade que
determinada causa tenha efetivamente gerado ao dano, ela pode ser considerada
mais adequada em relação ao prejuízo”, ou seja, só a principal causa consiste
naquela própria à determinação da ocorrência do evento danoso. Afastam-se todos
aqueles elementos que não são considerados antecedentes importantes para a
configuração do dano522.
Importante salientar que, para efeitos de acidente
516 COMPAGNUCCI DE CASO, Rúben H.. Manual de obligaciones , p. 185. 517 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p. 39. 518 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3, p. 99. 519 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 100. 520 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 103 (grifo nosso). 521 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 224. 522 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 224.
automobilístico, o entendimento é de que “o dono do veículo responde sempre pelos
atos culposos de terceiro, a quem o entregou, seja seu preposto ou não”523. Neste
norte, ensina Stoco524:
Como preleciona Wladimir Valler, a responsabilidade pela reparação dos danos é, assim, em regra, do proprietário do veículo, pouco importando que o motorista não seja seu empregado, uma vez que sendo o automóvel um veículo perigoso, o seu mau uso cria a responsabilidade pel os danos causados a terceiros , nos termos do art. 159 do Código Civil, independentemente de qualquer outro dispositivo legal.
Conste-se, no entanto, que o artigo 159, do Código Civil de
1916, foi alterado pela Lei 10.406/02, agora dispondo, no mesmo sentido, o artigo
186 desta Lei. Prossegue o autor525 ensinando que:
A responsabilidade do proprietário do veículo não resulta de culpa alguma, direta ou indireta. Não se exige a culpa in vigilando ou in eligendo, nem qualquer relação de subordinação, mesmo porque o causador do acidente pode não ser subordinado ao proprietário do veículo, como, por exemplo, o cônjuge, o filho maior, o amigo, o depositário etc. Provada a responsabilidade do condutor, o proprietá rio do veículo fica necessária e solidariamente responsáve l pela reparação do dano, como criador do risco para os se us semelhantes .
Nesse sentido, inclusive, o entendimento já identificado
anteriormente, esposado no Recurso Especial n. 1.044.527-MG, em que houve o
entendimento de que persiste a responsabilidade do proprietário por atos ilícitos
envolvendo a coisa que esteja na posse de terceiro.
A respeito do Nexo de Causalidade, observou-se que o
ordenamento jurídico brasileiro adota a Teoria da Causalidade Adequada,
considerando “causa” o fator antecedente que tenha sido abstratamente apto à
determinação do resultado, diante de um juízo razoável de probabilidade. Daí se 523 STOCO, Rui. Responsabilidade civil e sua interprestação jurispr udencial . 3. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997. p. 794. 524 STOCO, Rui. Responsabilidade civil e sua interprestação jurispr udencial , p. 794 (grifo nosso). 525 STOCO, Rui. Responsabilidade civil e sua interprestação jurispr udencial . p. 794 (grifo nosso).
afastam os elementos que não devem ser considerados antecedentes para que o
dano tivesse se configurado. Aqui, alguns elementos são essenciais para este nexo
e que importam, diretamente, na Responsabilidade Civil do Credor-Fiduciário: a) o
próprio fato de ser Proprietário do bem, cuja Propriedade deve exercer, também,
uma Função Social, não prejudicando a coletividade; b) o fato de ter facilitado a
colocação de um bem considerado perigoso (Veículo Automotor) no meio da
Sociedade; c) o fato de lucrar com a colocação deste bem perigoso no meio social,
fazendo com que a Sociedade arque com o prejuízo das investidas deste bem,
decorrentes de Atos Ilícitos do possuidor direto da coisa. Todos estes fatores são
antecedentes que vinculam o Credor-Fiduciário diretamente à sua responsabilização
civil solidária com o Devedor-Fiduciante.
4.2.2.3. Teoria da Causalidade Direta ou Imediata
Esta teoria também é conhecida como “teoria da interrupção do
nexo causal”, entendendo por “causa” “(...) apenas o antecedente fático que, ligado
por um vínculo de necessariedade ao resultado danoso, determinasse esse último
como uma conseqüência sua, direta e imediata”526. Supondo-se um dano, a causa
apontada é aquela mais próxima ou remota, nesse último caso, devendo se ligar
diretamente ao dano. É, portanto, indenizável qualquer dano que possui uma causa
mesmo que remota, mas que seja necessária em razão de não haver outra causa
que explique o mesmo dano, desejando a lei que o dano “seja o efeito direto e
imediato da execução”527.
Segundo Lisboa528, nessa teoria, “Qualquer outra circunstância
que advenha como conseqüência normal dos acontecimentos é considerada causa
estranha, pois acaba por interromper o vínculo de causalidade”.
526 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 101. 527 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas conseqüências . 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 1972. p. 356. 528 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 225.
Adverte Gagliano529 que grande parte da doutrina acolhe a
teoria da causalidade adequada, ocorrendo, porém, que a teoria da Causalidade
Direta ou Imediata é, por vezes, confundida pela jurisprudência com a teoria da
Causalidade Adequada, ambas identificando-se, contudo, no âmbito de encontrar a
causalidade necessária para estabelecer a Responsabilidade Civil. Conclui o
autor530, no entanto, que “(...) a despeito de reconhecermos que o nosso Código
melhor se amolda à teoria da causalidade direta e imediata, somos forçados a
reconhecer que, por vezes, a jurisprudência adota a causalidade adequada, no
mesmo sentido”.
4.2.3. Dano
O dano, conforme anteriormente exposto, pode ser tanto
material, quanto moral. O dano é o efetivo prejuízo experimentado pela vítima do
comportamento ilícito do agente, a qual teve algum desconforto comportamental ou
dor psíquica (dano moral), ou desequilíbrio patrimonial (dano material). Segundo
Gagliano531, dano ou prejuízo é “(...) a lesão a um interesse jurídico tutelado –
patrimonial ou não – causado por ação ou omissão do sujeito infrator”.
O dano, que consiste na lesão a um interesse legítimo “que
produza imediato reflexo no patrimônio material ou imaterial do ofentido, de forma a
acarretar-lhe a sensação de perda”, pode ser de caráter patrimonial ou
extrapatrimonial532. Se patrimoniais forem os danos, “referem-se aos prejuízos
verificados em nossos bens materiais, que resultam na sua reparação, mediante a
reposição do bem perdido”533. Caso extrapatrimoniais, consistem em danos a bens
abstratos que “decorrem de um prejuízo sofrido pela vítima nos seus valores íntimos
e pessoais, que deve ser objeto de uma verba pecuniária fixada pelo juiz,
objetivando satisfazer ou compensar os valores imateriais lesionados”534.
529 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 103-105. 530 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 105. 531 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 40. 532 REIS, Clayton. Avaliação do dano moral , p. 4-8. 533 REIS, Clayton. Avaliação do dano moral , p. 7. 534 REIS, Clayton. Avaliação do dano moral , p. 8.
O dano patrimonial (material), ou a lesão concreta ao
patrimônio da vítima, causando-lhe perda ou deterioração, total ou parcial, avaliáveis
pecuniariamente, pode abranger os danos emergentes (o que a vítima efetivamente
perdeu) e também os lucros cessantes (o que a vítima deixou de lucrar com o
resultado do evento danoso)535. Traduz esse dano patrimonial a lesão a direitos e
bens economicamente apreciáveis do titular dos mesmos.
O dano moral se refere a alguma lesão de conteúdo não
aferível em dinheiro, a exemplo dos direitos da personalidade como “o direito à vida,
à integridade física (direito ao corpo, vivo ou morto, e à voz), à integridade psíquica
(liberdade, pensamento, criações intelectuais, privacidade e segredo) e à integridade
moral (honra, imagem e identidade) (...)”536. Esse dano moral pode se dividir, ainda,
em direto e indireto. Dano moral direto ocorre quando há uma lesão específica
direcionada a um direito extrapatrimonial (direitos da personalidade), e o dano moral
indireto ocorre na seguinte hipótese537:
(...) quando há uma lesão específica a um bem ou interesse de natureza patrimonial, mas que, de modo reflexo, produz um prejuízo na esfera extrapatrimonial, como é o caso, por exemplo, do furto de um bem com valor afetivo ou, no âmbito do direito do trabalho, o rebaixamento funcional ilícito do empregado, que, além do prejuízo financeiro, traz efeitos morais lesivos ao trabalhador. Gagliano538 ensina que há, contudo, a necessidade do
preenchimento de certos requisitos para que o dano seja indenizável, adiante
enumerados:
a) violação de um interesse jurídico patrimonial ou extrapatrimonial de uma
pessoa: esta pessoa pode ser física ou jurídica, pressupondo a agressão
dirigida a um bem juridicamente tutelado que pertença a um sujeito de direito,
de natureza material ou imaterial;
535 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil : responsabilidade civil, v. 7. p. 62-63. 536 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 48. 537 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 76. 538 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 43-45.
b) certeza do dano: significa que o dano abstrato ou hipotético não poderá ser
indenizado. Somente o será aquele que for efetivamente verificado;
c) subsistência do dano: quer isso dizer que o interesse na responsa-bilização
civil do ofensor deve existir quando de sua exigibilidade em juízo, pois se este
dano já tiver sido reparado pelo ofensor, tal interesse do ofendido deixa de
existir.
Adiante, serão tratados, especificamente, a Responsabilidade
Civil Subjetiva e Objetiva, sendo o dano um elemento que deve existir em ambos,
para que haja a indenização da respectiva Responsabilidade Civil.
4.3. CONCEITO E REQUISITOS DA RESPONSABILIDADE CIVI L SUBJETIVA
A regra geral vigente no ordenamento jurídico brasileiro é a da
Responsabilidade Civil Subjetiva, ou seja, a obrigação do ressarcimento em virtude
de atos ilícitos que tenham ocorrido por comportamento culposo do agente. Este
comportamento será reprovado ou censurado quando, “(...) ante as circunstâncias
concretas do caso, se entende que ele poderia ou deveria ter agido de modo
diferente”539. Assim, a Responsabilidade Civil Subjetiva baseia-se na idéia de
“culpa”, adiante tratada mais especificamente.
Conforme Stoco540, a doutrina subjetivista se baseia em três
elementos: a) ofensa a uma norma preexistente ou erro de conduta (aqui entendidas
como Ato Ilícito); b) dano; c) nexo de causalidade entre uma e outro. Trata-se, a
seguir, sobre tais elementos.
4.3.1. O Ato Ilícito
Conforme Venosa541, Atos Ilícitos são aqueles “(...) que
promanam direta ou indiretamente da vontade e ocasionam efeitos jurídicos, mas
539 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil : responsabilidade civil, v. 7. p. 62-63. 540 STOCO, Rui. Responsabilidade civil e sua interpretação jurispru dencial , p. 63. 541 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p. 22.
contrários ao ordenamento. O ato voluntário é, portanto, o primeiro pressuposto da
responsabilidade civil”.
Para Gonçalves542 Ato Ilícito consiste naquele “(...) praticado
com infração ao dever legal de não lesar a outrem. (...) É praticado com infração a
um dever de conduta, por meio de ações ou omissões culposas ou dolosas do
agente, das quais resulta dano para outrem.”. Baseia-se, assim, em um
comportamento voluntário infringente de um dever, dever este que é o elemento
próprio da Responsabilidade Civil Subjetiva. O elemento nuclear nesta espécie de
responsabilidade é o Ato Ilícito, ou seja, na transgressão ao dever de conduta.
Esse elemento, na Responsabilidade Civil Objetiva, apresenta-
se incompleto, haja vista a supressão do substrato da culpa543, que será tratada a
seguir.
4.3.2. Culpa
Como se observou, anteriormente, a regra geral da
Responsabilidade Civil, no ordenamento jurídico brasileiro, é fundamentada na
Responsabilidade Civil Subjetiva, ou seja, naquela fundada na culpa do agente.
Ordena o art. 186, do Código Civil brasileiro:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Culpa, lato sensu, pode ser entendida como a falta de atenção
que deveria o agente observar e conhecer544.
A Responsabilidade Civil Subjetiva envolve não somente o dolo
542 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro : parte geral. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1.
p. 445. 543 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p. 22. 544 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. v. 4. p. 23.
(ou vontade consciente do agente na violação do direito - delito), mas, como visto
pelo artigo acima citado, atos ou condutas eivados de negligência, imprudência ou
imperícia, entendidas como culpa em sentido estrito (quase-delito).
Na definição dos elementos da culpa em sentido estrito, ensina
Diniz545: “(...) A imperícia é falta de habilidade ou inaptidão para praticar certo ato; a
negligência é a inobservância de normas que nos ordenam agir com atenção,
capacidade, solicitude e discernimento; e a imprudência é precipitação ou o ato de
proceder sem cautela (...)”.
Além disso, há necessidade de que o Ato Ilícito e a culpa
estejam vinculados ao comportamento do agente, o que se dá pelo nexo de
causalidade, tratado anteriormente.
Importante salientar que o Código Civil de 2002 estabelece, em
seu artigo 187, o abuso de direito, também considerado Ato Ilícito e cujos efeitos são
os mesmos546. Aqui, porém, não será tratado sobre o abuso de direito, razão pela
qual não se estenderão maiores considerações sobre o mesmo.
Reitera-se que, para efeitos dessa pesquisa, a
Responsabilidade Civil Subjetiva também será importante, principalmente no que diz
respeito ao comportamento do Devedor-Fiduciante (possuidor direto do Veículo
Automotor), ao cometer o Ato Ilícito contra terceiros, que venha a responsabilizar o
Credor-Fiduciário, durante o período contratual, entre as partes do contrato de
Alienação Fiduciária em Garantia de Veículo Automotor de Via Terrestre.
De acordo com a proposta da Tese, ao cometer o Fiduciante
algum Ato Ilícito contra terceiros, durante o período contratual (do contrato de
Alienação Fiduciária em Garantia de Veículo Automotor de Via Terrestre), a
Responsabilidade Civil se estenderá, de forma objetiva, ao Credor Fiduciário. Para
545 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil : responsabilidade civil. 16. ed. v. 7. p. 40.
546 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes.
tanto, importa observar-se a conduta do Fiduciante na forma da Responsabilidade
Civil Subjetiva (se agiu com dolo ou culpa) e, em se verificando esta
responsabilidade, o dever de indenizar se estenderá, em razão da Responsabilidade
Civil Objetiva, ao Fiduciário.
4.4. CONCEITO E REQUISITOS DA RESPONSABILIDADE CIVI L OBJETIVA
Segundo Pereira547, a doutrina objetiva nasceu no século XIX,
desencadeada por Saleilles e Josserand, doutrina esta que:
(...) ao invés de exigir que a responsabilidade civil seja a resultante dos elementos tradicionais (culpa, dano, vínculo de causalidade entre uma e outro), assenta na equação binária cujos pólos são o dano e a autoria do evento danoso. Sem cogitar da imputabilidade ou investigar a antijuridicidade do fato danoso, o que importa para assegurar o ressarcimento é a verificação se ocorreu o evento e se dele emanou o prejuízo. Em tal ocorrendo, o autor do fato causador do dano é o responsável.
Ripert548 esclarece que o alargamento da aplicação das regras
a respeito da Responsabilidade Civil se deu, principalmente, no final do século XIX,
em decorrência das seguintes situações:
(...) O aumento dos prejuízos devido principalmente aos maquinismos, a dificuldade de descobrir nos acidentes de causas complexas a culpa duma pessoa responsável, a favor particular sob um regime democrático para as classes sociais às quais pertencem as vítimas naturais de certos acidentes, o aperfeiçoamento das idéias científicas e filosóficas sobre a pesquisa dos efeitos e das causas, foram as razões dominantes deste movimento.
Ensina Venosa549 que as primeiras atenuações relativas ao
547 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p.
269. 548 RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis , p. 207. 549 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p. 16.
sentido clássico de culpa “(...) traduziram-se nas ‘presunções de culpa’ e em
mitigações no rigor da apreciação da culpa em si. Os tribunais foram percebendo
que a noção estrita da culpa, se aplicada rigorosamente, deixaria inúmeras
situações de prejuízo sem ressarcimento”. Assim, o conceito de culpa foi ampliado
pela jurisprudência, a fim de atender as necessidades da vida social, de forma que
as noções acerca do significado de “risco” e “garantia” foram reforçados para
substituição da “culpa”, cuja teoria vingava550. Isto facilitou indenizar várias situações
em que a comprovação da culpa não possibilitaria tal viabilidade, em detrimento da
parte mais vulnerável, tornando-as, efetivamente, indenizáveis.
Conforme Dias551, “Não importa que a culpa conserve a
primazia, como fonte da responsabilidade civil, por ser o seu caso mais frequente. O
risco não pode ser repelido, porque a culpa muitas vezes é, sob pena de sancionar-
se uma injustiça, insuficiente como geradora da responsabilidade civil”.
A teoria da Responsabilidade Civil Objetiva considera o “dano”
e o “nexo de causalidade” como elementos principais, afastando a necessidade de
configuração do “dolo” ou da “culpa”.
Segundo Dias552, “(...) a teoria da responsabilidade objetiva, ou
doutrina do risco (...) Corresponde, em temos científicos, à necessidade de resolver
casos de danos que pelo menos com acerto técnico não seriam reparados pelo
critério clássico da culpa (...)”.
Assim, pode-se conceituar a Responsabilidade Civil Objetiva
como “(...) aquela que é apurada independentemente de culpa do agente causador
do dano, pela atividade perigosa por ele desempenhada”553.
550 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p. 17. 551 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, v.1, p. 14.
552 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, v.1, p. 49. 553 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 195.
Para Gonçalves554, “A responsabilidade objetiva funda-se num
princípio de equidade, existente desde o Direito Romano: aquele que lucra com uma
situação deve responder pelo risco ou pelas desvantagens dela resultantes (ubi
emolumentum, ibi onus; ubi commoda, ibi incommoda). Quem aufere cômodos (ou
lucros), deve suportar os incômodos (ou riscos)”.
Como anteriormente tratado, o sistema da Responsabilidade
Civil, no Brasil, adota o princípio da culpa como fundamento da Responsabilidade555.
Embora com tendência crescente a se firmar na legislação brasileira556, ante a
necessidade da vida social, a Teoria da Responsabilidade Civil Objetiva somente é
cabível quando a lei admitir de forma expressa. Acompanhando esta tendência,
observa-se a crescente procura, pela necessidade, do contrato de seguro, no qual
“(...) se encontrará a solução para a amplitude de indenização que se almeja em prol
da paz social. Quanto maior o número de atividades protegidas pelo seguro, menor
será a possibilidade de situações de prejuízo restarem irressarcidas”557.
Conforme a lição de Compagnucci de Caso558:
En paises más adelantados se intenta la reparación de las víctimas, especialmente cuando han sufrido daños personales, mediante la aplicación del sistema de la seguridad social, lo cual se denomina ‘socialización de los riesgos’. Para este régimen se toma en cuenta la protección de quien ve disminuidas sus fuerzas físicas, que en ciertos casos es el único capital con que cuenta. Así, los sistemas impuestos en Nueva Zelanda, Australia, Canadá, Suecia, Francia (en algunos
554 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil : doutrina, jurisprudência. 6. ed. São
Paulo: Saraiva, 1995. p. 6. 555 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, v.1, p. 47. 556 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p. 18. 557 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p. 15. 558 COMPAGNUCCI DE CASO, Rúben H.. Manual de obligaciones, p. 14, (“Em países mais
adiantados se intenta a reparação das vítimas, especialmente quando tenham sofrido danos pessoais, mediante a aplicação do sistema da seguridade social, o qual se denomina ‘socialização dos riscos’. Para este regime se leva em consideração a proteção de quem vê diminuídas suas forças físicas, que em certos casos é o único capital com que conta. Assim, os sistemas impostos na Nova Zelândia, Austrália, Canadá, Suécia, França (em alguns certos) tendem a estes fins. Este princípio se vislumbra como um dos elementos qualificadores do direito das obrigações do presente século e do próximo”).
supuestos) tienden a estos fines. Este principio se vislumbra como uno de los elementos cualificadores del derecho de las obligaciones del presente siglo y del próximo.
Ripert559 estabelece os pontos que favorecem a aplicação da
teoria do Risco:
(...) Pondo à conta da atividade uma responsabilidade eventual, refreia o exercício interessado duma liberdade que não quer constrangimento, e combate esse individualismo egoísta que atua sem preocupação alguma pelo interesse de outrem. Protegendo interesses materiais e morais das vítimas, essa teoria garantiu a segurança das situações contra os empreendimentos nocivos e, quando uma força nova vem ameaçar, os homens detêm essa força pela ameaça duma responsabilidade. Estabelecendo entre os homens novas causas de ação para reparação de danos, cria uma consciência mais clara da solidariedade que os une.
Para Gonçalves560, “Nos últimos tempos vem ganhando terreno
a chamada teoria do risco que, sem substituir a teoria da culpa, cobre muitas
hipóteses em que o apelo às concepções tradicionais se revela insuficiente para a
proteção da vítima (...)”.
Observa-se que a tendência é de que haja uma socialização
dos riscos, buscando-se uma solução justa ao caso, de forma que a vítima possa
lograr a devida reparação do prejuízo sofrido e que se atribua ao “responsável” o
ônus da consequência danosa561.
4.4.1. A Responsabilidade Civil Objetiva e a ativid ade de Risco
O Risco da Atividade consiste no “(...) perigo que determinada
559 RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis , p. 214. 560 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil : doutrina, jurisprudência, p. 6. 561 COMPAGNUCCI DE CASO, Rúben H.. Manual de obligaciones , p. 14.
conduta pode proporcionar à personalidade e ao patrimônio alheio”562. A tendência
socializadora dos riscos já foi tratada anteriormente. Nela se observou que a direção
tomada por diversos países foi de ampliar a responsabilidade, a fim de que o
ressarcimento pelo ilícito tivesse a devida satisfação.
A Responsabilidade Civil está vinculada, também, aos
princípios da solidariedade social e da justiça distributiva, determinada pelo art. 3o, I
e III, da CRFB/88. Tais princípios buscam uma sociedade justa, livre e solidária, a
erradicação da pobreza, da marginalização e a redução das desigualdades regionais
e sociais. Com isso a repartição dos riscos da atividade econômica passa a se
expandir, intensificando-se e desenvolvendo-se critérios de reparação civil e de
novas formas de seguro social563.
A aplicação da Responsabilidade Civil Objetiva pretende suprir
a dogmática subjetivista, no sentido de que somente o dano injusto seria causa de
reparação, diante da evolução de demandas sociais originadas com a
industrialização. Buscou-se, então, vincular “os danos decorrentes da atividade
produtiva aos riscos empresariais, poupando as vítimas da instrução probatória, nem
sempre simples ou mesmo possível, destinada a identificar a conduta culposa”564.
Segundo Ripert565, “O homem deve agir; agir comporta riscos
para o próprio e para os outros; pouco importa, visto que a ação é a lei do homem.
Mas o homem não deve agir mal, e isso sucede-se quando causa a outrem um
prejuízo que não pôde prever, impedir ou atenuar. Deve-se então dizer mea culpa, e
uma vez que o mal está feito, repará-lo”.
Neste norte, o Código Civil de 2002 estabeleceu duas formas
de reconhecimento da Responsabilidade Civil, sem se questionar a culpa do infrator
(Responsabilidade Civil Objetiva): uma por determinação legal (primeira parte), e
562 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil.
v. 2. p. 232. 563 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil , p. 175-176. 564 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil , p. 175-182. 565 RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis , p. 222.
outra, quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar,
por sua natureza, Risco para os direitos de outrem, conforme a redação do artigo
927566. Ambas as modalidades interessam para esse estudo. A primeira, porque a lei
deveria prever a responsabilidade do Credor Fiduciário, durante o período do
contrato, por ser Proprietário Fiduciário do bem; a segunda, porque os Veículos
Automotores são considerados bens perigosos, e são negociados pelos contratos de
Alienação Fiduciária em Garantia pelas “financeiras”, o que representa lucro para
estas e risco para a Sociedade.
Para Gonçalves567, “(...) a admissão da responsabilidade sem
culpa pelo exercício de atividade que, por sua natureza, representa risco para os
direitos de outrem, da forma genérica como está no texto, possibilitará ao Judiciário
uma ampliação dos casos de dano indenizável”.
Pereira568 ensina que, na Teoria do Risco:
(...) todo aquele que disponha de um conforto oferecido pelo progresso ou que realize um empreendimento portador de utilidade ou prazer, deve suportar os riscos a que exponha os outros. Cada um deve sofrer o risco de seus atos, sem cogitação da idéia de culpa, e, portanto, o fundamento da responsabilidade civil desloca-se da noção de culpa para a idéia de risco. Ao entendê-lo, os doutrinadores o encararam ora como risco-proveito, que se funda no princípio, segundo o qual é reparável o dano causado a outrem em conseqüência de uma atividade realizada em benefício do responsável (ibi emolumentum, ibi onus); ora mais genericamente como risco criado, a que se subordina todo aquele que, sem indagação de culpa, expuser alguém a suportá-lo.
Segundo Gagliano569, o artigo 927, do Código Civil, sobre a 566 “Art. 927 . Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a
repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos
especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar,
por sua natureza, risco para os direitos de outrem”. 567 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil, p. 25. 568 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil , v.1, p. 422.
Responsabilidade Civil pela Atividade de Risco, constitui um dos pontos mais
polêmicos do referido Código, pois se trata de um conceito jurídico indeterminado,
que dá margem a uma interpretação ampla por parte do magistrado, pois o conceito
de “atividade de risco” só poderá ser identificado jurisprudencialmente, ao se
analisar casos concretos submetidos ao Poder Judiciário.
O exercício da Atividade de Risco pressupõe a necessidade de
se objetivar um determinado proveito, geralmente de essência econômica, originado
como decorrência da própria atividade que seja potencialmente danosa (Risco-
proveito)570.
Ensina Gutierrez571 que os meios de produção é que devem
suportar o dano no sistema conhecido como “Risco de empresa”. Por esta teoria,
“toda actividad económica comporta la creación de un peligro para la comunidad, es
decir, es fuente de una posibilidad de daño. Simultáneamente aparece otro
fundamento, que, sumado al riesgo creado, justifica la atribución del daño: el
provecho”. Tais teorias serão, também, tratadas a seguir.
Lisboa572, ao lado da teoria do Risco da Atividade, também se
refere ao “Risco Exacerbado”, o qual consiste em “perigo extremo de dano”, fundada
a reparação do dano na periculosidade que determinadas atividades representam,
como é o caso do dano nuclear, transporte e manipulação de energia nuclear, o que
não se enquadra na presente Tese.
4.4.2. A Teoria do Risco
Segundo esta teoria, “(...) toda pessoa que exerce alguma
atividade cria um risco de dano para terceiros. E deve ser obrigada a repará-lo,
569 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 155. 570 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 156. 571 GUTIERREZ, Graciela Messina de Estrella. Responsabilidad civil de la empresa . Santa Fé, Argentina: Editorial Jurídica Panamericana S.R.L., 1996. p. 104, (“toda atividade econômica comporta a criação de um perigo para a comunidade, quer dizer, é fonte de uma possibilidade de dano. Simultaneamente aparece outro fundamento, que, somado ao risco criado, justifica a atribuição do dano: o proveito”). 572 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 232-233.
ainda que sua conduta seja isenta de culpa.”573.
Ensina Dias574, parafraseando Pontes de Miranda, que a teoria
da Responsabilidade Civil deve variar conforme o conceito do dano, com as
necessidades gnosiológicas, econômicas e políticas. A seguir, leciona que a teoria
da Responsabilidade passou por mudanças radicais, dividindo tais mudanças em
três momentos distintos:
a) individualismo, assente no princípio do atomismo social e
expresso na fórmula: autonomia de vontade + culpa extracontratual = teorias clássicas da responsabilidade civil; b) transição, por influência da máquina e do aumento dos
sinistros. Suas conseqüências-ensaios são o mutualismo, a responsabilidade por acidentes, com interpretação semi-clássica (responsabilidade pela causa final, invocação ao ubi emolumentum, ibi onus) e interpretação moderna (responsabilidade sem culpa); c) solução científica, expressa
na responsabilidade social e individual pelo dano”. Segundo já foi exposto, a deficiência da teoria da culpabilidade,
em muitos casos, deu causa à origem da Teoria do Risco. De forma geral, essa
última teoria (que possui algumas espécies), sustenta que, ainda que o sujeito
coloque toda a diligência para evitar o dano, ainda assim, é responsável pelos
perigos ou riscos que sua atuação venha a promover. Isto originou a chamada teoria
do Risco Criado e do Risco Benefício, de forma que o sujeito que obtém vantagens
ou benefícios em determinada atividade, em razão dessa atividade, possui o dever
de indenizar os danos ocasionados por ela575. Apesar de haver outras modalidades
de Teoria do Risco (integral, profissional, excepcional), a presente pesquisa se
concentrará somente na Teoria do Risco Criado e do Risco Benefício (ou Risco
Proveito).
Para Dias576, “(...) A culpa e o risco não são mais que critérios
573 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro : parte geral, v. 1. p. 451. 574 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, v.1. p. 43. 575 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p.13. 576 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, v.1, p. 43.
possíveis, mais ou menos frequentes. A distribuição do ônus do prejuízo atende,
primordialmente, ao interesse da paz social”.
O artigo 927, parágrafo único, do Código Civil, esclarece quem
será o responsável e quando ocorrerá a aludida Responsabilidade Civil Objetiva577.
Venosa578 ensina que este artigo transfere para a jurisprudência a tarefa de
conceituar a “Atividade de Risco”, no caso concreto, o que pode acarretar uma
dilatação da responsabilidade sem culpa (Responsabilidade Civil Objetiva).
Criticando essa norma, alega ser discutível a conveniência da mesma, por ser
demasiado genérica, de forma que o legislador deveria manter a definição das
situações em que, efetivamente, se aplica a teoria do Risco. Aqui, portanto, encaixa-
se a proposta que a Tese pretende estabelecer.
Para Lisboa579, “A noção de atividade perigosa evoluiu ante o
reconhecimento de que há atividades cujo risco é bem mais acentuado que as
industriais comuns e as de transporte coletivo. (...)”. O mesmo doutrinador, na
seqüência, ensina que isto fez com que surgisse a teoria do Risco Exacerbado,
consistente naquela que “(...) é apurada independentemente de culpa do agente
causador do dano, pela gravidade ou risco exacerbado da atividade perigosa por ele
desempenhada”.
Conforme Venosa580, ainda, “Todas as teorias e adjetivações
na responsabilidade objetiva decorrem da mesma idéia. Qualquer que seja a
qualificação do risco, o que importa é sua essência: em todas as situações
socialmente relevantes, quando a prova da culpa é um fardo pesado ou
intransponível para a vítima, a lei opta por dispensá-la”.
577 Art. 927 . Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a
repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos
especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. 578 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p. 15. 579 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 195. 580 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p. 17.
Gonçalves581 entende que “Na teoria do risco se subsume a
idéia do exercício de atividade perigosa como fundamento da responsabilidade civil.
O exercício de atividade que possa oferecer algum perigo representa um risco, que
o agente assume, de ser obrigado a ressarcir os danos que venham resultar a
terceiros dessa atividade”.
Esta teoria, na Itália, tem como princípio básico o fato de que “o
risco obriga”, querendo significar que aquele que deve se preparar para assumir o
risco, antecipadamente deve se precaver para contratar o seguro que cubra tais
riscos582. Em outros termos, “lo que debe ser soportado por la empresa es el riesgo
asegurable, em cuanto normalmente previsible y típicamente conocido por la
actividad económica de quien lo genera”583. A responsabilidade profissional é
avaliada em virtude do risco previsível e quantificável, que se transfere para os
custos do produto. Desta forma, o empresário possui condições de “neutralizar el
álea del daño a través del seguro; así la asunción del riesgo por el seguro viene a
formar parte del costo de la producción que es a su vez distribuido entre el
público”584. Dispõe Gutierrez585, também, que de tais circunstâncias surgem
importantes conseqüências:
“a) permite al legislador en vista a la utilidad que se deriva a toda la comunidad, imponer a ésta el peso del daño – al aumentar el costo de la producción por la aseguración-; b) genera una mejor distribución del riesgo de la actividad económica. En ese sentido, la responsabilidad constituye el
581 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil : doutrina, jurisprudência, p. 6. 582 GUTIERREZ, Graciela Messina de Estrella. Responsabilidad civil de la empresa , p. 106. 583 GUTIERREZ, Graciela Messina de Estrella. Responsabilidad civil de la empresa , p. 106, (“o que deve ser suportado pela empresa é o risco assegurável, enquanto normalmente previsível e tipicamente conhecido pela atividade econômica de quem o gera”). 584 GUTIERREZ, Graciela Messina de Estrella. Responsabilidad civil de la empresa , p. 10, (“neutralizar a álea do dano através do seguro; assim a assunção do risco pelo seguro vem a formar parte do custo da produção que é, por sua vez, distribuído entre o público”). 585 GUTIERREZ, Graciela Messina de Estrella. Responsabilidad civil de la empresa , p. 107, (“a) permite ao legislador, em vista da utilidade que se deriva a toda a comunidade, impor a esta o peso do dano – ao aumentar o custo da produção pela securitização-; b) gera uma melhor distribuição do risco da atividade econômica. Nesse sentido, a responsabilidade constitui o melhor canal para a distribuição do risco da atividade econômica entre o público: a empresa é intermediária para assumi-los entre o indivíduo e a comunidade. A função social de prevenção consiste em colocar a cargo do empresário a responsabilidade pelos danos causad os pela atividade empresarial: este trabalho de previsão é uma função indireta do Direi to ”).
mejor canal para la distribución del riesgo de la actividad económica entre el público: la empresa es intermediaria para asumirlos entre el individuo y la comunidad. La función social de prevención consiste en colocar a cargo del empre sario la responsabilidad por los daños causados por la actividad empresarial: esta labor de previsión es u na función indirecta del Derecho ” (sem grifo no original).
Seguem as considerações sobre as teorias do Risco Proveito e
do Risco Criado, modalidades da Teoria do Risco.
4.4.2.1. Teoria do Risco Proveito
Conforme Venosa586, foi no final do Século XIX que as
manifestações iniciais sobre a teoria objetiva (também conhecida como Teoria do
Risco) surgiram.
Aquele que cria um risco com a atividade por si realizada deve
suportar os danos ocasionados por sua conduta, pois tal atividade proporciona um
benefício para aquele que a exerce, cuidando-se esta teoria da chamada Teoria do
Risco Proveito587.
As bases desta teoria do Risco-Proveito remontam do Direito
Romano: “(...) na conhecida passagem de Paulo; ‘Secundum naturam est, commoda
cujusque rei eum sequi, quem sequuntur incommoda’ (fr. 10, De diversis regulis júris
antigui., L. 17), pensamento que os doutrinistas alemães expressam no ‘eigenes
Interesse, eigene Gefahr (Loning, Unger).”588.
Esta teoria prega que, havendo vantagens, deve haver
contrapartida dos riscos, exemplificando Silva589: “Quem se beneficia com as
comodidades que um automóvel propicie, razoável é que arque com as
desvantagens conseqüentes das reparações que, no uso da coisa, e por acidentes,
venha a ocasionar a terceiros”.
586 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p. 17. 587 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p. 17. 588 SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa . 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1974. p. 55. 589 SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa , p. 55.
A teoria do Risco Proveito funda-se, portanto, “(...) no princípio
de que é reparável o dano causado a outrem em conseqüência de uma atividade
realizada em benefício do responsável (ubi emolumentum, ibi onus, isto é, quem
aufere os cômodos (lucros) deve suportar os incômodos ou riscos) (...)”590.
O que se torna difícil para esta teoria é tornar claro o proveito
que decorre da atividade, podendo-se cogitar o proveito decorrente da atividade
como justificativa da responsabilidade civil objetiva, desde que à vítima cumpra
somente a prova do fato danoso e do nexo de causalidade591.
Segundo Silva592, os doutrinadores contrários à teoria do
Risco-Proveito, ao adversá-la, perguntam-se como conceituar o que se chama
“proveito”:
(...) De maneira ampla, envolvendo toda e qualquer espécie de vantagem ou, de maneira estrita, implicando apenas ganhos de natureza econômica? Que se poderia, afinal, ter por ‘proveito’, sabido como é que, de uma abstenção ou mesmo de fatos negativamente econômicos em si, pode-se usufruir, não raro, algumas vantagens? E ao demais, ali onde não se pudesse demonstrar o lucro ou o proveito, não se haveria de falar, à luz de tal ensinamento, em obrigação de reparar pelos danos eventuais. E no caso, particular, do chamado risco profissional ou industrial, a prevalecer, stricto sensu, esse fundamento doutrinário, razão, em verdade, já não mais haveria para se insistir na implantação da tese objetiva, uma vez que já fora ela acolhida na Lei de Acidentes do Trabalho, na França, pelo menos. Disso se apercebendo, trataram os defensores da responsabilidade objetiva de ampliar a área do risco, pela supressão do qualificativo ‘proveito’ que, usualmente, se lhe apunha. (...) E o fundamento doutrinário da teoria da responsabilidade civil
590 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro : parte geral, v. 1. p. 451. 591 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p. 17. 592 SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa , p. 55-56.
passou do risco-proveito ao do risco simplesmente, ou, com mais generalidade, ao do risco criado.
Segundo Silva593, “(...) A eventualidade do ganho, o fito da
atividade da qual decorram os danos, e não os resultados mesmos dela, o proveito
esperado, o enriquecimento obtido, é que seriam levados na devida conta. Só por
essa forma, razoável e inteligente, é que se poderia entender a expressão lucro-
proveito”.
4.4.2.2. A Teoria do Risco Criado
Para esta teoria, “O agente deve indenizar quando, em razão
de sua atividade ou profissão, cria um perigo. Esse, aliás, deve ser o denominador
para o juiz definir a atividade de risco no caso concreto segundo o art. 927,
parágrafo único, qual seja, a criação de um perigo para terceiros em geral”594.
Segundo Silva595:
O risco-criado não é individual, mas coletivo. E para atender a reclamos de ordem geral é que as grandes empresas se organizam. E porque o automóvel se tornou um meio de locomoção adaptável às injunções do tempo, foi que o médico, por exemplo, ou o industrial, o faz correr pelas estradas. Justo e razoável, pois não é que, aos riscos coletivos, venha a corresponder uma responsabilidade individual, daí resultando, muito pelo contrário, uma imperiosa necessidade da socialização dessa responsabilidade mesma. E se a coletivização dos riscos conduz à socialização da responsabilidade civil, daí brota o anelo de sécurité social,
afirma Rodière.
593 SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa , p. 107. 594 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p. 17. 595 SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa e socialização do risco . Belo Horizonte:
Editora Bernardo Álvares S/A., 1962. p. 295-296.
Para Gonçalves596, o Risco Criado consiste no risco “(...) a que
se subordina todo aquele que, sem indagação de culpa, expuser alguém a suportá-
lo, em razão de uma atividade perigosa (...)”.
Pereira597 filia sua opinião na teoria do Risco Criado por ser
aquele que se adapta melhor às condições da vida social, tratando-se do risco no
qual “(...) se alguém põe em funcionamento uma qualquer atividade, responde pelos
eventos danosos que esta atividade gera para os indivíduos, independentemente de
determinar se em cada caso, isoladamente, o dano é devido à imprudência, à
negligência, a um erro de conduta, e assim, se configura a teoria do risco criado”.
Ensina Pereira598, ainda, que o Projeto do Código Civil (atual
Código Civil, Lei n º 10.406/2002), adotou a doutrina do Risco Criado, proclamando
que “(...) a indenização provém de uma relação entre o fato danoso e o seu autor,
sem se indagar se aquele fato foi ou não causado pela contraveniência a uma norma
de conduta predeterminada, porém, advindo de atividade ou profissão que, por sua
natureza, gera um risco para outrem”, fórmula esta que permitirá a dilatação da
obrigação de reparar o prejuízo causado.
A teoria do Risco Criado é ampliação do conceito do Risco
Proveito, diferenciando-se desta em razão de que naquela não há a cogitação de
qualquer proveito ou vantagem ao agente, podendo haver, contudo, mera suposição.
Não há, porém, subordinação ao dever de reparação com fundamento na vantagem
aferida. O que se busca identificar na Teoria do Risco Criado é a atividade em si,
sem qualquer dependência do resultado bom ou mau ao agente599. Essa teoria é
mais eqüitativa à vítima, pois esta não precisa provar o proveito ou benefício do
agente ocasionado pelo dano, mas simplesmente assumir o agente as
conseqüências de sua atividade600.
596 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro : parte geral, v. 1. p. 451. 597 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil, p. 270. 598 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil, p. 275. 599 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil, p. 284-285. 600 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil, p. 285.
A Teoria do Risco Criado pode ser entendida com o exemplo do
automobilista601: “na doutrina do risco proveito a vítima somente teria direito ao
ressarcimento se o agente obtivesse proveito, enquanto na do risco criado a
indenização é devida mesmo no caso do automobilista estar passeando por prazer”.
Essa Teoria, como se pode observar, se ajusta e se aplica à proposta da presente
Tese.
4.5. OS VEÍCULOS AUTOMOTORES E SUA CONDIÇÃO DE PERI CULOSIDADE
O que se pretende mostrar com o presente estudo é que, pela
Teoria da Causalidade Adequada, o Credor Fiduciário é também responsável pelo
evento danoso ocasionado por culpa do Devedor Fiduciante, não só por ter colocado
em suas mãos um Veículo Automotor, cujo perigo é evidente. Por Veículos
Automotores de Via Terrestre entende-se “todo veículo a motor de propulsão que
circule por seus próprios meios, e que serve normalmente para o transporte viário de
pessoas e coisas, ou para tração viária de veículos utilizados para o transporte de
pessoas e coisas”602, tais como motocicletas, automóveis, microônibus, ônibus,
caminhonete, caminhão, e todos aqueles cuja tração se dê em virtude de algum
motor, ou seja, todos os meios motorizados de transporte de pessoas ou coisas por
via terrestre.
A respeito da condição de perigo apresentada por tais veículos,
Lloyd603 cita, como exemplo, o risco de danos ocasionados em vias públicas pelo
uso de veículos motores, hipótese tratada nesta pesquisa.
Castro604 ensina que há uma evolução no que diz respeito ao
tratamento de automóveis como sendo coisas perigosas, aptas a gerar risco: “Inicie-
se com menção aos acidentes ocorridos em carros emprestados. Com freqüência, o
proprietário de um carro empresta-o a um amigo, e este bate ou atropela alguém. O
601 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil, p. 285. 602 BRASIL. Código de Trânsito brasileiro: Lei n º 9.503, de 23 de setembro de 1997. Emílio
Sabatovski, Iara Fontoura e Tânia Saiki. Curitiba: Juruá, 1997. 603 LLOYD, of Hampstead, Dennis Loyd, Baron. A idéia de lei , p. 181. 604 CASTRO, Guilherme Couto de. A responsabilidade civil objetiva no direito brasil eiro : o papel
da culpa em seu contexto. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 37.
Judiciário é chamado a solucionar, então, contendas interpostas diretamente contra
o proprietário, em razão de ser ele o dono da coisa geradora do prejuízo”. A seguir,
completa o autor605:
Em nítida minoria, há julgados sustentando não ser o titular do bem o responsável civil, apenas em razão de ter a propriedade do veículo; se este foi emprestado para pessoa habilitada, prudente, sem problema possível de ser previsto, sustentam esses arestos que o ressarcimento deve ser buscado exclusivamente contra o condutor do auto. A visão preponderante, no entanto, afirma o dever solidário do dono, ressalvada a ação de regresso contra o condutor.
E conclui Castro606 acerca da condição de periculosidade
apresentada pelos Veículos Automotores: “A explanação correta, sustentada pela
melhor doutrina, é reconhecer, simplesmente, que a teoria do risco domina o tema,
extraída de preceitos vários, inclusive da ratio do Código Nacional de Trânsito, arts.
100-102, certo que os automóveis, em si, são bens perigosos”.
A própria Lei n º 9.503, de 23 de setembro de 1997, também
conhecida como Código de Trânsito Brasileiro, a partir do artigo 291, estabelece
várias sanções para crimes decorrentes de acidentes cometidos na direção de
Veículos Automotores. Entre tais crimes, pode-se citar os artigos607 302608, 303609,
605 CASTRO, Guilherme Couto de. A responsabilidade civil objetiva no direito brasil eiro : o papel
da culpa em seu contexto, p. 38. 606 CASTRO, Guilherme Couto de. A responsabilidade civil objetiva no direito brasil eiro : o papel
da culpa em seu contexto, p. 38. 607 Os artigos a seguir citados são extraídos de SABATOVSKI, Emílio. Código de trânsito brasileiro .
Curitiba: Juruá, 1997. p. 60-61. 608 “Art. 302. praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:
Penas – detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Parágrafo único – No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de um terço à metade, se o agente: (...)”.
609 “Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor:
Penas – detenção, de seis meses a dois anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.”.
306610, 308611, 309612, 310613 e 311614, observando-se a preocupação, também, do
legislador quanto ao perigo que tais veículos podem ocasionar com relação à vida e
à integridade física da pessoa humana. Aliás, neste sentido, Diniz615 manifesta as
principais causas determinantes dos acidentes de trânsito:
(...) desobediência às normas do Código de Trânsito (Lei n. 9.503/97); excesso de velocidade; sono ao volante; embriaguez; falta de ajuste psicofísico para dirigir o veículo; nervosismo habitual ou esporádico; uso de drogas; conversa com o acompanhante ou passageiro; estados de depressão e de angústia; desvio de atenção para contemplar pessoas que passam ao lado do veículo ou paisagens; manejo, concomitante, do volante e do aparelho de som de que é provido o carro; ato de acender cigarro quando o veículo se encontra em movimento; imperícia do condutor; ultrapassagem imprudente nas curvas; falha mecânica (RT, 451: 97, 563:146) ou más condições do veículo e de visibilidade; culpa de pedestre que, p. ex., atravessa a rua desatento à sinalização luminosa ou fora das faixas assinaladas, que desce de veículo sem a devida cautela e do lado da circulação etc.
610 “Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de
efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem:
Pena - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou habilitação para dirigir veículo automotor.”.
611 “Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada:
Penas – detenção, de seis meses a dois anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.”.
612 “Art. 309. Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano:
Penas – detenção, de seis meses a um ano, ou multa.”. 613 “Art. 310. Permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada,
com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou, ainda, a quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança:
Penas – detenção, de seis meses a um ano ou multa.”. 614 “Art. 311. trafegar em velocidade incompatível com a segurança nas proximidades de escolas,
hospitais, estações de embarque e desembarque de passageiros, logradouros estreitos, ou onde haja grande movimentação ou concentração de pessoas, gerando perigo de dano:
Penas – detenção, de seis meses a um ano, ou multa.”. 615 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil : responsabilidade civil, v. 7. p. 481.
Para Dias616, “A circulação dos automóveis criou um risco
social próprio, a que é preciso atender, estabelecendo a responsabilidade na base
dos princípios objetivos, consagrando-se como corretivo das demasias que
provavelmente acarretaria, a responsabilidade limitada e o seguro obrigatório (...)”.
Informa Diniz617, também, que “(...) a maioria de nossos juízes e tribunais (RTJ,
51:631) e mesmo o lesado têm considerado com base no direito positivo a
responsabilidade nos acidentes de trânsito objetivamente, por considerarem o
automóvel coisa perigosa”.
Conclui-se, pela análise acima, que os Veículos Automotores
são considerados produtos perigosos, que colocam em risco a vida e incolumidade
física dos integrantes da Sociedade. Ao estabelecer contratos de Alienação
Fiduciária em Garantia (que, como visto, é possível sua realização somente por
Instituições Financeiras) envolvendo Veículos Automotores como objeto do contrato,
tal atividade, que é normalmente desenvolvida por tais Instituições Financeiras
(Credor Fiduciário) colocam em risco os direitos de outrem. Além disso, e como
agravante à responsabilidade das Instituições Financeiras que realizam tais
contratos, há a responsabilidade das mesmas pela qualidade de Fiduciárias, diante
do fato que, pela alienação do veículo, permanecendo ainda este Credor Fiduciário
como proprietário do bem (e aqui ingressa a análise realizada sobre a Função Social
da Propriedade), está auferindo lucro pela Alienação Fiduciária contratada, devendo,
também, arcar com os ônus durante o período da contratação. Aqui,
especificamente, por se tratar de forma contratual realizada por Instituição
Financeira, a qual, pela Teoria do Risco Criado, decorrente da atividade empresarial
e do Risco-benefício, também responde pelo fato.
Para Silva, nem sempre o autor do risco é o autor material da
coisa que prejudicou outrem, mas todo aquele que venha a utilizar a coisa, pois, “Do
contrário ter-se-ia de chegar a conseqüências esdrúxulas, quais, dentre outras, a de
fazer responsável, por exemplo, determinada fábrica de automóveis por todos os
616 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. v.2. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 412-413. 617 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil : responsabilidade civil, v. 7. p. 484.
danos levados a efeito por intermédio dos carros de sua indústria...”618. Não se
pense, para efeitos dessa Tese, nessa hipótese. A Responsabilidade Civil seria, de
forma solidária do Proprietário Fiduciário do Veículo Automotor, enquanto
perdurarem os efeitos do contrato, primeiro por ser proprietário (ainda que em
condição resolúvel); depois, por estar lucrando com a atividade (ao contratar o
Veículo Automotor como objeto do contrato, além de estar colocando bem perigoso
no mercado, estará lucrando com as cláusulas de juros e demais encargos
estabelecidos no contrato).
Segundo Ripert619, “A responsabilidade que a jurisprudência
fez pesar sobre os exploradores de automóveis é simplesmente o encargo dum
risco. Os tribunais sabem-no muito bem. Condenam muitas vezes mesmo quando se
demonstrou a culpa da vítima, e têm o cuidado de não condenar senão nos limites
da indenização do seguro”. Ainda mais deve se estender esta responsabilidade se o
explorador, além de lucrar com esta atividade, continuar proprietário do bem, como é
a proposta desta pesquisa. Adiante, o mesmo autor620 trata dos deveres particulares
que incumbem a cada homem, os quais devem ser considerados para efeitos de
Responsabilidade Civil, e dentre eles destaca o seguinte:
2o. Aqueles que se entregam a uma atividade lícita, mas perigosa, têm obrigação de não causar prejuízo a outrem, ou, em todo caso, de reparar o prejuízo que causaram. A este título admitiu-se muito facilmente a responsabilidade em caso de uso dum novo meio de locomoção, mostrando-se menos severos quando o uso se espalhou. Os tramways foram considerados antigamente como perigosos, depois os automóveis, hoje os aviões; (...)”.
Dias621, ao tratar da Teoria Objetiva (Responsabilidade Civil
Objetiva), esclarece que a mesma se aplica a diversos setores de atividade, e, “Em
matéria de automóveis, a doutrina objetiva vem fazendo constantes progressos. Foi
a Dinamarca, por uma lei de 1906, o primeiro país a aplica-la à responsabilidade 618 SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa , p. 107. 619 RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis , p. 224. 620 RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis , p. 237. 621 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, v.1, p. 83.
derivada de acidente de automóveis. Seguiram-se a esse exemplo disposições
idênticas nas legislações austríaca (1908), alemã (1909) e italiana (1912) (...)”.
Ao tratar sobre a socialização dos riscos, ensina Silva622 que,
“(...) num Estado onde nada se pudesse recear quanto aos golpes da sorte e do azar
e às conseqüências das mais lícitas atividades, de onde, vez por outra, o dano
emerge, e onde as vítimas em potencial nada tivessem a temer quanto à
insolvabilidade no tocante à indenização que lhes fosse devida, lucrariam todos”.
Com isso, a socialização dos riscos é entendida como um fator de satisfação social
àqueles que se vêem expostos a perigos constantes, decorrentes de produtos ou
serviços perigosos dispostos na Sociedade.
4.6. A RESPONSABILIDADE POR FATO DE OUTREM E PELO F ATO DA COISA
NO DIREITO BRASILEIRO
No âmbito da classificação da Responsabilidade Civil, entre as
subdivisões realizadas pela doutrina se encontram, sob o aspecto da causa desta
responsabilidade, a Responsabilidade Civil direta (por ato pessoal, ou por fato
próprio) e indireta (ou por fato de outrem). Responsabilidade Civil direta consiste
naquela em que o próprio sujeito sobre o qual recai a imputabilidade foi o causador
do dano; Responsabilidade Civil indireta é aquela em que “(...) o ato é praticado por
terceiro (pessoa com a qual o agente mantém vínculo legal de responsabilidade) ou,
ainda, o acontecimento se deve ao instrumento causador do dano – o animal ou a
coisa -, que se encontrava na guarda intelectual do responsável.”623. Assim, o
principal pressuposto da culpa pelo fato de terceiro reside no seguinte: “(...) a culpa
de um agente, objetiva ou subjetiva, faz nascer a responsabilidade de terceiro
apontado pela lei. (...)”624.
Essa Responsabilidade Civil indireta consta no artigo 932, do
622 SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa ,. p. 177. 623 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 195-196. 624 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p. 59.
Código Civil625. Venosa626, comentando sobre o artigo 932, do Código Civil, ensina
que, embora a responsabilidade civil decorra do ato danoso dos agentes elencados
no referido artigo, o terceiro só pode responder se o ato foi praticado por culpa do
autor material do dano. Tal modalidade de culpa é explicada pela doutrina como
sendo próxima da teoria do risco, teoria esta que passou a ser contemplada pelo
Código Civil de 2002. Deve-se identificar, no caso concreto, de quem foi a causa
exclusiva do prejuízo: se o agente, ou o terceiro. Se a culpa decorreu
exclusivamente do terceiro, não há, em princípio, nexo causal, pois o fato de terceiro
só exclui o dever de indenizar quando eliminar o nexo causal, constituindo causa
estranha ao comportamento do agente. Esse agente deve provar que o fato era
inevitável e imprevisível627.
Além disso, somente em circunstâncias excepcionais tem
admitido a jurisprudência o fato de terceiro como excludente de culpa, como se
constata na Súmula 187, do Supremo Tribunal Federal628: “A responsabilidade
contratual do transportador, pelo acidente com passageiro, não é ilidida por culpa de
terceiro, contra o qual tenha ação regressiva”.
A responsabilidade pelo fato de outrem se firma na idéia de
“(...) garantia para com terceiros dos atos duma pessoa. Ela é então puramente
técnica e compete ao legislador ver até que ponto ele quer que haja na sociedade
responsáveis por outrem (...)”629.
625 “Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:
I- os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia;
II- o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições;
III- o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;
IV- os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos;
V- os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia.”. 626 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4. p. 60. 627 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4, p. 13. 628 VENOSA, Silvio. Direito Civil : Responsabilidade Civil, v. 4, p. 13. 629 RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis , p. 233.
A Responsabilidade Civil pelo Fato da Coisa, que pode ser
animada ou inanimada, consiste naquela “(...) resultante de dano por ela
ocasionado, em razão de um defeito próprio, sem que para tal prejuízo tenha
concorrido diretamente a conduta humana”, abrangendo a responsabilidade por
dano ocasionado por animas e coisas objetos de guarda, respondendo pelo prejuízo
causado tanto o possuidor quanto o seu proprietário630. Para efeitos dessa Tese
interessa a Responsabilidade pelo Fato da Coisa inanimada, pois é o caso dos
Veículos Automotores de Via Terrestre.
Segundo Dias, essa espécie de responsabilidade surgiu em
decorrência da evolução da vida moderna e pelos inventos industriais que
ampliaram as ocorrências de Responsabilidade Civil631. Para Lisboa632, “(...) para
fins de responsabilidade civil, o animal e a coisa não podem praticar fato, pois se
tornam equivalentes a mero instrumento do dano causado em desfavor da vítima ou
de seu patrimônio”, sendo este também o entendimento de Ripert633.
Segundo Ripert634, a expressão “responsabilidade pelo fato das
coisas” tem o sentido de facilitar à vítima a prova da culpa do autor, permitindo
atacar quem, embora não tenha criado o perigo, tem a guarda de coisa perigosa. A
culpa pela guarda de coisa perigosa é imprescindível para que se possa
responsabilizar o guardião do bem. Consiste essa culpa em não se precaver para
que a coisa não se torne nociva ou, ainda que impossível a precaução,
simplesmente pelo fato de se servir de coisa considerada perigosa, de forma que “a
natureza do prejuízo causado revela imediatamente a culpa do guarda da coisa.” 635.
A Responsabilidade Civil pelo fato da coisa é prestigiada pela
jurisprudência no que diz respeito aos acidentes de automóveis, sendo que a
630 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil : responsabilidade civil, v. 7, p. 467. 631 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, v.2, p. 389. 632 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 230. 633 RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis , p. 228. 634 RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis , p. 229-230. 635 RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis , p. 229-230.
obrigação pela guarda da coisa reside no impedimento de que a mesma escape do
controle humano636. Esta forma de Responsabilidade Civil “(...) se apóia em princípio
de equidade diferente, o do risco ligado a uma atividade proveitosa e independente.
Este é o critério para identificar o responsável (...)”637. Sobre este fato, manifesta-se
Dias638:
(...) O poder de direção não garante a vigilância constante, de todos os instantes, sobre a coisa, de forma que impeça venha a causar danos. A série de soluções que se desdobram nessa ordem de idéias não admite explicação que não seja fundada no proveito: o guardião é responsável, não em virtude do
ilusório poder de direção, mas porque, tirando proveito da coisa, deve, em compensação, suportar-lhe os riscos. Essa opinião é preponderante para a Tese, pois reforça a
opinião de que o Proprietário do bem na Alienação Fiduciária em Garantia, em se
tratando de Veículos Automotores, possui, também, uma responsabilidade pelo fato
de a coisa lhe pertencer, ou seja, por ser de sua titularidade. Neste sentido, ensina
Dias639 que “(...) A doutrina do risco, decorrente da atividade proveitosa e
independente, (...) corresponde melhor às exigências de uma solução
necessariamente ampla. As soluções jurisprudenciais bem podem auxiliar o trabalho
de encontrar resposta adequada aos problemas criados pela colisão de veículos
(...)”.
Importa ressaltar, ainda, que, em caso de Responsabilidade
Civil pelo fato da coisa inanimada, o dever de indenizar cumpre ao seu proprietário
em razão da presunção de sua responsabilidade pelos prejuízos que a coisa causar
a terceiros. Nesta hipótese, para afastar o nexo de causalidade, pode-se arguir
somente a culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior como excludentes
desta responsabilidade640.
636 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, v.2, p. 390-392. 637 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil., v.2, p. 394. 638 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, v.2, p. 392. 639 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, v.2, p. 395. 640 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil : responsabilidade civil, v. 7. p. 474.
A seguir, tratar-se-á das excludentes de Responsabilidade Civil
Subjetiva e Objetiva, circunstâncias estas que podem atenuar ou isentar o agente do
dever de indenizar o prejuízo causado.
4.7. AS EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJE TIVA E
OBJETIVA
As chamadas “excludentes de Responsabilidade Civil”
consistem nas “(...) situações jurídicas descritas pela lei que exoneram ao agente o
dever de indenizar”, podendo tais situações ser oriundas de causas naturais
(ocorrências inevitáveis e imprevisíveis), ou de causas voluntárias (na ocorrência de
fatos que são imputáveis a uma das partes ou a terceiro)641. A presença de alguma
das excludentes atenua ou extingue a obrigação de ressarcimento do agente à
vítima, pois atenua ou extingue a relação de causalidade642.
Consideram-se causas excludentes de Responsabilidade Civil
a culpa da vítima, o fato de terceiro, o caso fortuito e a força maior e, no âmbito
contratual, a cláusula de não indenizar643.
Diferem essas causas conforme o sistema de
Responsabilidade Civil adotado, ou seja, se Responsabilidade Civil Subjetiva ou
Objetiva. Segundo Lisboa644, consistem em excludentes da Responsabilidade Civil
Subjetiva a legítima defesa própria e de terceiro, o estado de necessidade próprio e
de terceiro, o exercício regular do direito, o estrito cumprimento do dever legal, o
caso fortuito e a força maior. Para a Responsabilidade Civil Objetiva, de uma forma
geral, aplicam-se as seguintes excludentes, as quais passarão a ser detalhadas em
seguida: culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, força maior ou caso fortuito. Diz-se
“de uma forma geral”, pois na Responsabilidade Civil Objetiva por Risco exacerbado
(como nos casos de acidente nuclear), limitam-se as excludentes em culpa exclusiva
641 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 251-252. 642 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil : responsabilidade civil. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 4. p.
164. 643 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil : responsabilidade civil, v. 4. p. 164. 644 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 252.
da vítima e força maior e, quando se trata da Responsabilidade Civil Objetiva no
âmbito da legislação de proteção ao consumidor, entende-se não se aplicar sequer o
caso fortuito e a força maior645.
4.7.1. Legítima defesa própria e de terceiro
Segundo Lisboa646, a legítima defesa consiste na repulsa a
algum mal grave, injusto, atual ou iminente a uma das partes (legítima defesa
própria) ou pessoa diversa das partes (legítima defesa de terceiro), em certa relação
jurídica, ou contra os bens de qualquer uma delas.
Difere da excludente do estado de necessidade em razão de o
indivíduo causador do dano se encontrar “(...) diante de uma situação atual ou
iminente de injusta agressão, dirigida a si ou a terceiro, que não é obrigado a
suportar”647. Havendo, no entanto, imoderação ou desnecessidade dos meios
utilizados para afastar a agressão, surgirá o excesso e, conseqüentemente, o dever
de indenizar o dano causado pelo mesmo648.
Para Venosa649, ainda que haja semelhança entre legítima
defesa e estado de necessidade, ambas as situações não se confundem, pois “(...)
Na legítima defesa, há reação do ofendido, por meio de contra-ataque; o perigo
surge de uma agressão injusta. Já o estado de necessidade surge de um
acontecimento fortuito, acidental, criado pelo próprio atingido ou por terceiro”.
4.7.2. Estado de necessidade próprio e de terceiro
Entende Gagliano650 que “estado de necessidade” consiste
“(...) na situação de agressão a um direito alheio, de valor jurídico igual ou inferior
645 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 272. 646 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 252-253. 647 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 114. 648 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 115. 649 VENOSA, Silvio. Direito Civil : parte geral, v. 1. p. 601. 650 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 112.
àquele que se pretende proteger, para remover perigo iminente, quando as
circunstâncias do fato não autorizarem outra forma de atuação”. É a situação em
que o direito de outrem é violado por alguém, sendo que este busca a remoção de
perigo iminente a um direito seu (estado de necessidade próprio) ou de terceiro
(estado de necessidade de terceiro), diferindo da legítima defesa por esta respeitar
aos direitos da personalidade, quando aquele se refere ao patrimônio do
indivíduo651. Não há necessidade, para que se configure o estado de necessidade,
de que o direito sacrificado de outrem seja inferior economicamente àquele da
pessoa que o sacrificou, exigindo-se, entretanto, a inevitabilidade do sacrifício652.
Difere, ainda, esta excludente daquela da legítima defesa
porque “(...) o agente não reage a uma situação injusta, mas atua para subtrair um
direito seu ou de outrem de uma situação de perigo concreto”653.
Há, no entanto, o dever do agente que atua em estado de
necessidade para afastar a situação perigosa dentro dos limites necessários, pois
será responsabilizado civilmente pelos excessos causados para a remoção do
referido perigo654.
4.7.3. Exercício regular do direito e o estrito cum primento do dever legal
O exercício regular do direito (também chamado “exercício
regular de um direito reconhecido”) consiste na excludente segundo a qual a
atividade humana é desenvolvida de acordo com o ordenamento jurídico, deixando
de ser considerada aquela em que se apresentar excesso desta atividade (abuso de
direito)655. Este direito deve ser reconhecido pelo ordenamento jurídico. No entanto,
se o titular do referido direito extrapolar os limites do mesmo, atuará com “abuso de
651 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 253. 652 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 254. 653 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3, p. 113. 654 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 113. 655 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 254.
direito”, ou seja, usando “(...) de um poder, de uma faculdade, de um direito ou
mesmo de uma coisa, além do que razoavelmente o Direito e a sociedade
permitem”656, tratado este abuso como ato ilícito657.
Dessa forma, nesta excludente, “(...) o exercício de um direito
elimina a ilicitude. Quem exerce um direito não provoca o dano (qui iure suo utitur
nemine facit damnum) (...)”658.
Por estrito cumprimento do dever legal entende-se a “(...)
situação em que o sujeito viola direito alheio, com a finalidade de remover perigo
iminente de um direito de terceiro”659. Esta excludente está ligada diretamente
àquela do exercício regular de um direito, pois aquele que atua no cumprimento de
um dever legal está a exercer um direito reconhecido pelo ordenamento jurídico660.
4.7.4. A culpa exclusiva da vítima
Essa espécie de excludente consiste na “(...) violação do dever
jurídico que proporciona dano ao próprio violador, durante o exercício da atividade
perigosa, pelo agente ou seu subordinado”661. Entretanto, se houver concorrência da
vítima e do agente causador do dano, a Responsabilidade Civil deste será atenuada,
mas não desaparecerá662, havendo contribuição da vítima e repartindo-se,
proporcionalmente, os prejuízos. Porém, como acentua Dias663, “(...) só o exame do
juiz de caso a caso, poderá decidir sem risco de injustiça se a culpa concorrente da
vítima deve ou não influir na atribuição dos prejuízos”.
656 VENOSA, Silvio. Direito Civil : parte geral, v. 1. p. 603. 657 VENOSA, Silvio. Direito Civil : parte geral, v. 1. p. 607. 658 VENOSA, Silvio. Direito Civil : parte geral, v. 1. p. 601. 659 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 254. 660 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil , v. 3. p. 121. 661 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 272. 662 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil : responsabilidade civil, v. 4. p. 165. 663 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, v.2, p. 696.
4.7.5. O fato de terceiro
Conhecido também como “culpa exclusiva de terceiro”, significa
a “(...) violação do dever jurídico de terceiro que proporciona dano à vítima, durante
o exercício da atividade perigosa, pelo agente ou seu subordinado”664. Assim, não
haverá Responsabilidade Civil por parte do explorador da atividade perigosa, pois a
violação foi realizada por pessoa desvinculada do causador do prejuízo665.
Segundo Dias666, “(...) terceiro é qualquer pessoa além da
vítima e do responsável. Ressalvam-se as pessoas por quem o agente responde,
tanto no regime delitual (filhos, tutelados, prepostos, aprendizes etc.) como no
campo contratual (encarregados da execução do contrato em geral), porque essas
não são terceiros, no sentido de estranhos à relação que aqui nos interessa”.
Saliente-se, ainda, que o fato de terceiro, para que tenha o
caráter de exclusão integral da Responsabilidade Civil do agente causador do dano,
deve se revestir de imprevisibilidade e irresistibilidade, assemelhando-se às
circunstâncias do caso fortuito, a seguir tratado667.
4.7.6. O caso fortuito e a força maior
Caso fortuito consiste em “(...) todo evento imprevisível e, por
vezes, inevitável, que prejudica os interesses patrimoniais ou morais da vítima.”,
tratando-se de ato relacionado com a intervenção humana 668. Contrariamente,
entende Azevedo669 que caso fortuito “(...) é o acontecimento provindo da natureza,
sem qualquer intervenção da vontade humana, (...)”, exonerando o devedor da
responsabilidade de indenizar.
664 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 272. 665 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 272. 666 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, v.2, p. 680. 667 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil : responsabilidade civil, v. 4. p. 173. 668 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 255. 669 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Curso de direito civil : teoria geral das obrigações, p. 269.
Já a força maior “(...) é todo evento inevitável e, por vezes,
imprevisível, que prejudica os interesses patrimoniais ou morais da vítima.”,
tratando-se de ato natural que acontece independentemente da intervenção direta
do ser humano (act of God)670. Em entendimento contrário, Azevedo671 entende que
se trata do “(...) fato de terceiro, ou do credor; é a atuação humana, não do devedor,
que impossibilita o cumprimento obrigacional. (...)”, havendo, também, ausência de
culpabilidade do devedor, isentando-o do dever de indenizar.
Encontra-se, ainda, na lição de Azevedo672 que não há
distinção entre caso fortuito e força maior, entendendo-se que o uso de ambas as
expressões são tidas como sinônimas. É o que se pode depreender também da
leitura do artigo 393, do Código Civil673.
Importante a lição de Rodrigues674 ao mencionar que “(...) a
ausência de culpa é gênero do qual o caso fortuito é espécie, sendo que a
inevitabilidade do evento constitui a diferença específica. Assim, o caso fortuito ou
de força maior implica a noção de ausência de culpa, mais a de inevitabilidade do
evento”. Para este autor675, as expressões “caso fortuito” e “força maior” foram
utilizadas como sinônimas, mas adverte que o legislador não realiza, por vezes,
distinções adequadas, devendo o juiz, ao aplicar a lei, “(...) ter em vista os conceitos
que a doutrina depurou, para alcançar um aperfeiçoamento técnico que a
complexidade das relações jurídicas está a exigir”.
No próximo capítulo será realizada a proposta da Tese ora
670 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil : obrigações e responsabilidade civil,
v. 2. p. 255. 671 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Curso de direito civil : teoria geral das obrigações, p. 269-270. 672 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Curso de direito civil : teoria geral das obrigações, p. 270. 673 “Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se
expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único . O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não
era possível evitar ou impedir.” 674 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil : responsabilidade civil, v. 2. p. 236. 675 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil : responsabilidade civil, v. 2. p. 240
apresentada, fundamentando-se a mesma com as observações colacionadas neste
capítulo e nos anteriores.
Capítulo 5.
RESPONSABILIDADE CIVIL SOLIDÁRIA DO PROPRIETÁRIO
FIDUCIÁRIO: A PREDIÇÃO LEGAL E A INTERPRETAÇÃO
JUDICIAL DESSA PROPOSTA
Esse capítulo se dispõe a estabelecer uma proposta no sentido
de Responsabilizar o Proprietário Fiduciário (Credor-Fiduciário) de forma solidária ao
Devedor Fiduciante. Para tanto, será desenvolvido o capítulo com uma introdução
acerca da Justiça Social e, com base nos elementos trazidos nos capítulos
anteriores, estruturar a conclusão da proposta.
5.1. CONSIDERAÇÕES SOBRE A JUSTIÇA SOCIAL
O objetivo legislativo e das decisões judiciais é realizar a
Justiça Social, a fim de atingir a felicidade plena do indivíduo e de toda a Sociedade.
Para a elaboração de um conceito de Justiça Social, necessário se faz, antes de
tudo, dissecar a expressão, a fim de que se possa entender o seu objetivo. Muito se
tem escrito e falado sobre Justiça Social, e aqui se pretende tecer algumas
considerações a fim de que a mesma seja melhor compreendida, pois ela deve ser o
objetivo almejado pelos Poderes do Estado.
Aristóteles676 assemelhava o princípio da igualdade à justiça,
dizendo: “(...) Por exemplo, parece que a igualdade seja justiça, e o é, com efeito;
mas não para todos, e sim somente entre os iguais. A desigualdade também parece
ser, e o é com efeito, mas não para todos; só o é entre aqueles que não são iguais
(...)”677.
Neste norte, mais adiante, retrata o mesmo filósofo678 que “(...)
676 ARISTÓTELES. A Política , p. 60 677 ARISTÓTELES. A Política , p. 60 678 ARISTÓTELES. A Política , p. 91.
A igualdade é a identidade de funções entre seres semelhantes, (...) e é difícil ao
Estado subsistir quando obra contra as leis da justiça (...)”. Desta forma, para
Aristóteles679, o princípio da igualdade se contextualiza em uma condição em que
não há diferenciação ou privilégios entre pessoas iguais, a fim de que se alcance a
Justiça, que, além de ser a base da Sociedade, é, ainda, “(...) uma virtude social,
que forçosamente arrasta consigo todas as outras (...)”.
Rawls680 estabelece, da mesma forma, quando retrata sobre o
princípio da igualdade, que este está intimamente ligado com a teoria de justiça, ou
seja, parte-se de uma situação na qual todos são iguais, a partir de um momento
estabelecido “contratualmente” pela Sociedade, atribuindo-se a todos os mesmos
direitos, deveres e condições. A justiça aparece, então, não somente neste momento
inicial, mas também quando se coloca em aplicação à distribuição de tais direitos e
deveres, estabelecidos legalmente pelo Estado, numa ocasião concreta, ou seja, na
efetiva atuação daquilo que se estabeleceu por “igual”. Afinal, retrata o autor que
“(...) a justiça é a virtude de práticas nas quais há interesses concorrentes, e as
pessoas se sentem habilitadas a impor seus direitos umas às outras (...)”. Ensina
este mesmo doutrinador681, ainda, que “Na justiça como eqüidade, a posição original
de igualdade corresponde ao estado de natureza na teoria tradicional do contrato
social. (...)”.
Para Dias682, “A Justiça caracteriza-se como uma práxis
humana, cuja pretensão é a resolução das questões próprias da vida social. Não
constitui uma categoria metafísica, mas sim cultural, inscrevendo-se na ordem da
história. Daí a pluralidade de sentidos da Justiça e a diversidade dos sistemas de
valores”.
Kelsen683 leciona que “Justiça absoluta é um ideal irracional.
679 ARISTÓTELES. A Política , p. 65. 680 RAWLS, John. Uma teoria da justiça . Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São
Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 140. 681 RAWLS, John. Uma teoria da justiça , p. 13. 682 DIAS, Maria da Graça Santos. A justiça e o imaginário social , p. 70. 683 KELSEN, Hans. O que é justiça?, p. 23.
Do ponto de vista do conhecimento racional, existem somente interesses humanos
e, portanto, conflitos de interesses. Para solucioná-los, existem apenas dois
caminhos: ou satisfazer um dos interesses à custa do outro, ou promover o
compromisso entre ambos (...)”.
Quando se refere ao valor “justiça”, tem-se uma diversidade de
entendimentos, muitos deles equiparando-o ao princípio da igualdade. Não há,
contudo, conceito absoluto deste valor, pois há diversas interpretações, dependendo
da concepção cultural da Sociedade em que se aplica o que se entende por
igualdade. Um fato, porém, é certo: a justiça absoluta, realmente, é um ideal
irracional, como ensina Kelsen684.
5.1.1. A Justiça Social e atributos para sua config uração
Conforme se observou, por Justiça entende-se, antes de tudo,
um valor (uma virtude, para Aristóteles), fundamentado no princípio de que se deve
tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, também conhecida como
“teoria da igualdade simples”.
Acquaviva685 ensina, ao tratar de Justiça Social, que “(...) O
adjetivo social surge no séc. XIX, com o recrudescimento das crises sócio-
econômicas, marcando bem seu caráter antiindividualista”, entendendo que se trata
de um conceito de difícil delimitação e que se encontra intrinsecamente referida na
idéia de Justiça de Aristóteles.
Dworkin686 apresenta a idéia de Michael Walzer, o qual propõe
uma teoria pluralista da Justiça Social conhecida como “teoria da igualdade
complexa”. Segundo esta teoria, os recursos de toda espécie devem ser distribuídos
igualmente à Sociedade, não permitindo preponderância de um indivíduo ou grupo
684 KELSEN, Hans. O que é justiça? , p. 23. 685 ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário jurídico brasileiro Acquaviva . 3. ed. São Paulo:
Jurídica Brasileira, 1993. p. 755. 686 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio . Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 2000. p. 320.
social sobre outro, não se autorizando, por exemplo, que haja a compra de votos
para controle da política. Caso as esferas sociais estejam intactas, sem que haja
preponderância de uma sobre outra, “não necessitamos de nenhuma comparação
geral de indivíduos em diferentes esferas; não precisamos nos preocupar com o fato
de algumas pessoas terem iates e outras nem mesmo um barco a remo, ou de que
algumas conquistem prêmios e amor enquanto outras carecem de ambos” 687.
Ao estabelecer este pensamento, Dworkin688 explica-o como
uma visão moderada e agradável do que se entende por Justiça Social. Isso porque
há uma promessa de uma sociedade que vive em paz com seus hábitos, sem
tensões, comparações, ciúmes, vivendo os cidadãos em harmonia, embora nenhum
tenha “exatamente a mesma riqueza, educação ou oportunidade que qualquer outro,
pois cada um compreende que recebeu o que a justiça exige em cada esfera e não
acha que seu auto-respeito ou posição na comunidade dependa de alguma
comparação de sua situação geral com a dos outros”.
Apesar de Dworkin689 atacar a opinião de Michael Walzer,
entendendo que “(...) O ideal de igualdade complexa que ele define não é praticável,
nem mesmo coerente (...)”, observa-se que são, pelo menos, ideais que se almejam
(harmonia, paz) numa Sociedade que busca uma efetiva justiça e, principalmente, a
paz social. Ora, a Sociedade jamais terá uma igualdade plena, de forma que as
diferenças econômicas, culturais, físicas etc. variarão conforme as pessoas que
participam da mesma Sociedade em que se pleiteia esta forma de justiça. Porém, o
que se deve pugnar para que esta Justiça Social seja efetivamente conquistada, é
que as condições para se alcançar uma melhor qualidade de vida seja oportunizada
a todos os participantes desta Sociedade (trabalho, estudo, saúde, moradia, lazer,
enfim, dignidade).
Para Pasold690, Justiça Social consiste na circunstância em que
687 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio , p. 320. 688 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio . p. 320. 689 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio . p. 322. 690 PASOLD, Cesar Luiz. Função social do estado contemporâneo . 3. ed. Florianópolis: OAB/SC
Editora, 2003. p. 96-97.
“(...) o todo contribui para com cada um, não como uma dádiva generosa e
paternalista, mas como um dever decorrente de sua condição inalienável de parte do
todo, provedor e beneficiário potencial e efetivo”, conceito este adotado para a
pesquisa. A Justiça Social, portanto, consiste na participação e contribuição de todos
para que as condições de vida favoreçam o completo desenvolvimento da
personalidade humana, atingindo o bem comum, que é a finalidade do Estado691.
5.2. O papel Corretivo da Política Jurídica no proc esso legislativo e de
interpretação do Direito
A renovação do Direito é fundamental para sua evolução. Como se
tratou no capítulo 1, numa interpretação fundamentalista do Direito, na forma da
dogmática jurídica tradicional, o julgador somente poderia apreciar o caso
concreto com base naquilo que a lei positivada predissesse. No entanto, a lei
positivada nem sempre acompanha a evolução da Sociedade, pois o processo
legislativo no país, além de moroso, por vezes não traduz os verdadeiros
interesses da Sociedade em determinado momento, trazendo, daí,
conseqüências que se afastam do alcance da Justiça Social, pois o julgador teria
que aplicar ao caso concreto leis que não estariam adequadas à realidade social.
No entanto, a lei é fundamental para ditar os rumos gerais da
Sociedade, mas sua interpretação deve ser realizada com observação de todos
os demais instrumentos que o Estado permite que sejam utilizados, inclusive
com o ajuste da lei aos princípios jurídicos inerentes ao sistema jurídico de um
país, a fim de que o bem estar, a felicidade geral e a Justiça Social sejam,
efetivamente, alcançados. Aliás, nesse sentido, ensina Melo692:
“(...) não se pode esperar a evolução do Direito apenas com a contribuição do Judiciário. A este cabe produzir a norma individualizada. Só a lei pode criar norma jurídica geral e por isso as posições doutrinárias mais prudentes propugnam pela construção de um direito renovado, positivado sempre que possível, para prevalecer o geral sobre o individual, dando-se ao juiz o poder de aplicá-lo dentro do princípio da epiquéia, entendida esta com a licitude de operar fora da letra da norma, colocando assim a hermenêutica como mediadora entre a lei e a consciência Jurídica da sociedade, nos casos concretos”.
691 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado, p. 91. 692 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 78.
Conforme se pode observar no estudo ora realizado, inexiste
legislação específica no Brasil que estabeleça a Responsabilidade Civil do
Proprietário Fiduciário (que é o possuidor indireto do bem), por atos ilícitos
realizados pelo Devedor Fiduciante de um Veículo Automotor (que é o possuidor
direto do bem).
Assim, no que diz respeito à satisfação dos interesses da pessoa
lesada por atos ilícitos realizados pelo Devedor Fiduciante em casos que
envolvam acidentes automobilísticos, se o Fiduciante não tiver bens suficientes
para compensar os danos causados à vítima, ou seus familiares, parece injusto e
contrário à consciência jurídica social que o titular do direito em desfavor do
Fiduciante padeça em seu direito, pois a especificidade do caso, numa
interpretação dogmática tradicional, assim não o permite.
No entanto, o papel corretivo da Política Jurídica propõe que tal
situação não mereça prosperar, sob pena de se causar uma injustiça social,
especialmente no caso da proposta da presente Tese, encontrando no próprio
sistema jurídico os fundamentos para a responsabilidade civil do Proprietário
Fiduciário por conta dos atos ilícitos causados pelo Fiduciante de veículo automotor,
na forma que adiante será exposta.
5.3. CONSIDERAÇÕES ACERCA DOS CAPÍTULOS ANTERIORES
Conforme se observou no primeiro capítulo, a evolução da
finalidade do Estado se encaminhou para que o mesmo atingisse o bem comum da
Sociedade. A passagem do Estado de Direito, originado pelo Liberalismo, até o
Estado Social, fez com que houvesse também uma evolução de determinados
direitos tidos como Direitos Fundamentais, em especial, o direito de Propriedade.
No Estado Liberal, o direito de Propriedade foi considerado
Direito Fundamental, ao lado da liberdade, segurança e resistência à opressão, em
decorrência da revolução da burguesia que buscava se libertar da Monarquia,
assegurando à classe burguesa o Direito de Propriedade, com a Declaração de
Direitos. O Direito de Propriedade, em especial, era extremamente individualista,
permitindo-se ao proprietário exercer este direito de forma absoluta, sem que o
interesse da coletividade fosse levado em consideração. Prevalecia o interesse do
indivíduo proprietário.
Muitos Direitos considerados Fundamentais foram introduzidos
nas Constituições de vários países, dentre eles, o direito de Propriedade. Mas a
Sociedade evoluiu. Várias transformações fizeram com que houvesse necessidade
da intervenção do Estado na vida da Sociedade, traduzindo-se esta intervenção no
chamado Estado Social, e culminando com o Estado Democrático de Direito, cuja
gênese desta intervenção estatal nos âmbitos social e econômico se deu com as
Constituições do México (1917) e de Weimar (1919) e, no Brasil, em 1934.
Um dos principais direitos que sofreu as consequências, com
esta intervenção, foi o direito de Propriedade. Na sua escala evolutiva, percebeu-se
que não se tratava mais de um direito que aspirava unicamente o individualismo do
proprietário, mas teria, agora, que se moldar às necessidades que a Sociedade lhe
impunha, ou seja, alinhou-se o direito de Propriedade à chamada Função Social da
Propriedade. Ainda com essa evolução, a Propriedade continuou a ser considerada
Direito Fundamental, mas condicionado esse poder a um dever para com a
Sociedade. No entanto, doutrinadores, como Peces-Barba693 entendem que o direito
de Propriedade não mais poderia ser considerado Direito Fundamental em
decorrência do que chamou de “escassez”, pois a Propriedade não poderia ser
eficaz a todos, mas somente consistindo numa instituição de direito privado.
No Brasil, o direito de Propriedade foi elevado à categoria de
Direito Fundamental, no artigo 5o, XXII, condicionado à sua Função Social, no inciso
XXIII, todos da CRFB/88. Quando se fala em direito de Propriedade, na Constituição
Federal, não estabelece a mesma limites para qual espécie de Propriedade, se
móvel ou imóvel, material ou imaterial. Neste sentido, a Função Social da
Propriedade direciona a utilização de toda e qualquer espécie de Propriedade em
benefício da Sociedade, e nunca contrariando os interesses desta. A exemplo da
Constituição de Weimar, a Propriedade “obriga”.
693 SAUCA, José Maria (Coord). Problemas actuales de los derechos fundamentales, p. 210-211.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em
seu artigo 1o, assenta os princípios fundamentais a que todo o sistema jurídico
constitucional e infraconstitucional devem estar dispostos. Dentre estes fundamentos
se encontra a Dignidade da Pessoa Humana (art. 1o, III, CRFB/88). Conforme se
observou, na pesquisa, a pessoa humana passa a ser o núcleo das atenções, e não
mais o individualismo patrimonial decorrente do Estado Liberal. Neste sentido, o
próprio direito de Propriedade, tido como Direito Fundamental pela Constituição,
além de se vincular à Função Social, deve se vincular à Dignidade da Pessoa
Humana, ou seja, não tornar a pessoa humana objeto de ofensas ou humilhações,
mas deverá contribuir para que a personalidade desse indivíduo se desenvolva.
Aqui, um aspecto importante: o direito de Propriedade deve se moldar de acordo
com a Dignidade da Pessoa Humana.
Observou-se que o direito de Propriedade pode ser pleno
(quando se reúnem todos os poderes – usar, gozar, dispor e reivindicar - nas mãos
do proprietário) ou limitado (quando há o desdobramento de algum dos poderes
inerentes à Propriedade em benefício de outrem). Ao se tratar da sua espécie
limitada, adentrou-se na Propriedade Resolúvel, especificamente à Propriedade
Fiduciária na modalidade de Alienação Fiduciária em Garantia de bens móveis
(Veículos Automotores de Via Terrestre). A Propriedade Resolúvel, como visto, é
uma Propriedade não definitiva, dependente de condição ou termo final que pode
ocasionar a resolução ou perda da Propriedade, fazendo com que a mesma retorne
à titularidade do proprietário anterior. A Propriedade Fiduciária é uma espécie de
Propriedade Resolúvel, em que o Credor-Fiduciário é titular do direito de
Propriedade, o qual se extinguirá com o cumprimento da obrigação imposta ao
Devedor-Fiduciante, transferindo-se a titularidade para este. Já, a Alienação
Fiduciária em Garantia é espécie de Propriedade Fiduciária que, conforme
Gomes694, consiste em “(...) negócio translativo por via do qual o credor adquire, no
crédito direto ao consumidor, a propriedade do bem comprado pelo devedor”.
Quanto à Alienação Fiduciária, há uma divergência no que diz
694 GOMES, Orlando. Alienação fiduciária em garantia , p. 79.
respeito à sua natureza jurídica. A transferência do bem é realizada para o Fiduciário
com o intuito de garantia do cumprimento do contrato por parte do Fiduciante. Por
outro lado, não se trata de uma garantia comum, como aquelas existentes no
penhor, hipoteca e anticrese. Nestas, não há a transferência da Propriedade para o
Credor, enquanto que. na Alienação Fiduciária em Garantia, é da essência do
contrato, a transferência desta titularidade. Portanto, o Fiduciário é considerado
proprietário do bem, enquanto persistirem os efeitos do contrato de Alienação
Fiduciária entre Fiduciante e Fiduciário. Como retratado por Gomes695, o Fiduciário
se transforma em verdadeiro proprietário da coisa, só não adquirindo sobre a
mesma o poder físico em razão de o Fiduciante continuar na posse direta do bem
alienado. Aqui reside um ponto importante da Alienação Fiduciária em Garantia: o
Fiduciário é proprietário da coisa alienada .
Outro aspecto substancial para a Tese reside no fato de que os
contratos de Alienação Fiduciária em Garantia somente podem ser realizados por
Instituições Financeiras (sociedades de crédito, investimento e financiamento)
autorizadas pelo Banco Central do Brasil. Estas sociedades, por obrigação legal,
devem ser revestidas da forma de Sociedades Anônimas, sendo sempre sociedades
mercantis, ou empresárias (artigo 2o, § 1o, da Lei n º 6.404/76), exercendo, portanto,
atividade lucrativa ao conceder crédito para financiamento e aquisição de bens
duráveis. Aqui, outro ponto importante: ao exercer atividade lucrativa, incidem as
Instituições Financeiras na teoria do Risco Proveit o e do Risco Criado,
devendo arcar não só com os lucros, mas com os risc os ou ônus da sua
atividade .
Nem todos os contratos de Alienação Fiduciária em Garantia,
realizados pelas Instituições Financeiras, possuem como objeto bens considerados
perigosos ou nocivos à Sociedade. No entanto, quando se trata da Alienação
Fiduciária de Veículos Automotores, observa-se uma atividade por parte das
Instituições Financeiras que pode trazer prejuízo à Sociedade, tratando-se da
facilitação da colocação de bens potencialmente perigosos no ambiente social,
lucrando com tal atividade. Aliás, “o princípio da socialização dos riscos é uma
695 GOMES, Orlando. Alienação fiduciária em garantia , p. 81.
decorrência lógica do princípio constitucional da solidariedade social, principalmente
por causa do risco da vida.”696.
Financiando a aquisição ao consumidor de Veículos
Automotores, as financeiras irão lucrar, mas colaboram para a colocação, no meio
social, de bens considerados potencialmente perigosos, criando um Risco para a
Sociedade em que tais bens serão introduzidos. A crescente aquisição de veículos,
em decorrência da facilitação dos meios para adquiri-los com o crédito direto ao
consumidor, aliado ao fato da imprudência de muitos motoristas e da potência cada
vez maior dos veículos, são fatores que contribuem para que estes sejam
considerados perigosos pela Sociedade, conforme se fundamentou,
doutrinariamente, nessa Tese. Com isso, inserem as financeiras na Teoria do Risco
Criado e do Risco Proveito, devendo, também, arcar com as consequências de sua
atividade (contratação de Veículos Automotores objetos de Alienação Fiduciária),
além de, como visto, figurarem como proprietárias do referido bem, enquanto
perdurarem os efeitos do contrato.
Segundo Jhering697, a Sociedade é a soma dos indivíduos que
a compõem, e é sobre o indivíduo que o direito mostra sua eficácia e é a ele que o
direito aproveita e impõe restrições, seguindo-se a esta colocação a seguinte
pergunta: “(...) as restrições que o indivíduo suporta no interesse da sociedade são
compensadas pelas vantagens que essa lhe oferece? (...) Principiamos pelo preço
que o indivíduo tem de pagar a fim de participar das vantagens do direito. Designo-o
como a pressão do direito sobre ele”.
Problemas consideráveis surgem, na ocorrência de acidentes
de trânsito, ocasionados por Veículos Automotores. Um dos principais consiste na
impossibilidade de cobrança, pela vítima, da indenização correspondente à
Responsabilidade Civil do causador do dano, principalmente na hipótese de o
ofensor não possuir patrimônio suficiente para saldar este débito. Quando, no
acidente, se encontra envolvido um Veículo Automotor, objeto de contrato de
696 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Doutrinas Essenciais: Responsabilidade civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 30. 697 JHERING, Rudolf von. A finalidade do direito , T. I, p. 338.
Alienação Fiduciária em Garantia ordenava a Lei n º 4.728/65, em seu artigo 66
(grifo nosso):
Art. 66. A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição, efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal.
Dessa forma, pretendia a lei que a Responsabilidade Civil, na
Alienação Fiduciária em Garantia, fosse transferida ao Fiduciante, jamais ao
Fiduciário, isto porque, conforme se fundamentou doutrinariamente, neste estudo,
não se poderia transferi-la ao Fiduciário, até mesmo porque poderia “(...) colocar em
risco o sistema de financiamento estabelecido de acordo com a Lei de Mercado de
Capitais, calcado no instituto da propriedade fiduciária em garantia”698.
Nesse ponto reside um dos principais enfoques dessa Tese,
pois se pretende propor que, diante do princípio constitucional da Dignidade da
Pessoa Humana e da teoria do Risco das Sociedades empresárias que contratam
Alienação Fiduciária em Garantia de Veículos Automotores, a Responsabilidade Civil
pelo evento danoso possa se estender de forma solidária ao proprietário Fiduciário.
Atente-se ao fato de que o proprietário Fiduciário é, efetivamente, proprietário, e sua
Propriedade deve exercer uma Função Social que deva garantir à Sociedade em
que o bem está inserido, o ressarcimento do prejuízo por ele causado,
principalmente por se entender que os Veículos Automotores são bens perigosos.
Observando-se o destaque do artigo 66, da Lei n º 4.728/65,
anteriormente citado, verifica-se que o mesmo buscou tratar da Responsabilidade
Civil nos contratos de Alienação Fiduciária em Garantia, o que não ocorreu com a
revogação deste artigo pela Lei n º 10.931/04, pois não houve qualquer tratamento
sobre esta Responsabilidade Civil. É essa lacuna que a presente Tese busca
completar.
698 RESTIFFE NETO, Paulo. Garantia fiduciária , p. 160.
Deve-se observar que a proposta da Tese se insere no papel
corretivo da Política Jurídica, na dimensão operacional da mesma, ou seja, na
realização de um querer.
Ora, imagine-se que, durante a vigência de um contrato de
Alienação Fiduciária em Garantia de um Veículo Automotor ocorresse um acidente
ocasionado por imprudência do possuidor direto do bem, o Fiduciante. A vítima,
intentando ação judicial contra o Fiduciante, resta vencedora, mas, ao executar a
sentença, observa que o Fiduciante não possui bens exequíveis ou suficientes para
saldar a indenização atribuída pela sentença.
Conforme o artigo 66, da Lei n º 4.728/65 (revogado pelo artigo
67, da Lei n º 10.931/04), nenhuma responsabilidade seria atribuída ao Fiduciário,
enquanto este foi quem participou da contratação do bem, lucrou com a atividade e
que continua sendo proprietário do Veículo Automotor. Certamente não é o desejo
da Sociedade que a vítima, que já saiu prejudicada pelo sinistro, reste mais uma vez
prejudicada com a impossibilidade de ressarcimento do dano. Disso decorreria a
necessidade de reformulação da legislação vigente, para que esta esteja em
conformidade com os anseios da Sociedade em que se insere, pois o que se almeja
é a segurança e/ou satisfação do crédito judicial atribuído à vítima de forma efetiva.
No entanto, como visto, até que se proceda a uma alteração ou predição específica
da lei nesse sentido, muitos danos, nessas circunstâncias, restariam não
indenizados, em decorrência da própria dificuldade do processo legislativo.
Ocorre que a presente Tese propõe a Responsabilidade Civil
Solidária do Credor-Fiduciário, proprietário resolúvel de um bem (veículo) colocado
no mercado, por Ato Ilícito cometido pelo Possuidor Direto do bem, diante da Função
Social da Propriedade, como forma de satisfação do crédito da vítima com base na
interpretação judicial, independentemente de legislação específica propondo tal
responsabilidade, com base nos próprios instrumentos disponibilizados pelo Estado
no sistema jurídico nacional.
A dignidade da vítima deve ser assegurada com normas
jurídicas que disponham acerca da efetiva indenização pelos danos sofridos.
Conforme observado, o artigo 66, da Lei n º 4.728/65, não se encontrava adequado
ao ordenamento constitucional, que está em nível de superioridade na hierarquia
das normas jurídicas. A Constituição Federal de 1988 buscou o fenômeno da
Repersonalização do Direito Civil, estabelecendo o princípio da Dignidade da
Pessoa Humana como um dos princípios fundamentais da República Federativa do
Brasil e do Estado democrático de Direito, sendo a pessoa, e não o patrimônio, o
núcleo do sistema jurídico. Agora, com a revogação expressa do artigo 66, da Lei
4.728/65, tal responsabilidade deve ser ainda mais incisiva ao Proprietário
Fiduciário.
Importante salientar que a Responsabilidade Civil do Credor
Fiduciário, de acordo com a proposta, deve ser solidária ao Devedor Fiduciante.
Obrigação Solidária, segundo Monteiro699, consiste naquela em que, “(...) havendo
pluralidade de credores, ou de devedores, ou ainda de uns e de outros, cada um tem
direito, ou é obrigado, pela dívida toda. (...)”. A proposta da Tese é a solidariedade
passiva (pluralidade de devedores, com obrigação pela dívida toda) entre Credor
Fiduciário e Devedor Fiduciante daquele a este.
Atenta-se para a Responsabilidade Civil solidária do Credor
Fiduciário em razão de o evento danoso, causado pelo Devedor Fiduciante, ter
ocorrido por dolo ou qualquer modalidade de culpa deste (imprudência, negligência
ou imperícia), ou seja, o Credor Fiduciário responderá, objetivamente, pelo fato de
outrem e pelo fato da coisa (Veículo Automotor de propriedade do Fiduciário).
Para isso, necessário se faz esclarecer que, para caracterizar a
Responsabilidade Civil Objetiva do Credor Fiduciário (oriunda da relação contratual
com o Devedor Fiduciante), deve-se observar, anteriormente, a Responsabilidade
Civil Subjetiva do Devedor Fiduciante (decorrente da Responsabilidade Civil
Extracontratual), a fim de que aquele responda solidária a este.
A legislação deve manter o sentimento social de segurança, no
699 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil : direito das obrigações. 32 ed. São
Paulo: Saraiva, 2003. v. 4. p. 151.
ordenamento jurídico, não podendo desrespeitar os critérios já existentes, no
ordenamento jurídico e, ainda que respeite tais critérios, não poderá incorrer em
lacunas e contradições, introduzindo critérios estranhos aos princípios do
ordenamento.
Quando se propõe: “a Responsabilidade Civil Solidária do
Credor (proprietário) Fiduciário de Veículo Automotor junto ao Devedor Fiduciante,
em decorrência de Ato Ilícito cometido por este durante o período de vigência do
contrato de Alienação Fiduciária em Garantia”, esta proposta nasce de uma revisão
dos princípios inerentes ao ordenamento jurídico que estão sendo afetados.
O estudo seguiu lições da Teoria Geral do Direito, sendo que
uma das principais lições consiste em que o ordenamento jurídico possui uma
hierarquia normativa que deve obedecer.
Observou-se que a legislação referente à Alienação Fiduciária
em Garantia data do ano de 1965 (Lei n º 4.728/65), cuja realidade social e
econômica da sua criação difere substancialmente dos princípios e regras
constantes da Constituição Federal de 1988. A referida legislação, em especial no
seu art. 66, não levou em consideração os princípios constitucionais da Função
Social da Propriedade e, principalmente, da Dignidade da Pessoa Humana,
consistindo em afronta direta à lei maior, a Constituição Federal. A Lei n º 10.931/04
também não levou em conta esta apreciação, tanto que deixou de tratar sobre a
Responsabilidade Civil decorrente. Como se demonstrou, na Alienação Fiduciária
em Garantia, o Credor Fiduciário resta como proprietário resolúvel do bem, ainda
que o mesmo seja dado como garantia do contrato, mas não se trata de mera
garantia, vez que a Propriedade do mesmo é transferida para a titularidade do
Fiduciário. Tal situação não ocorre com os institutos do penhor, da hipoteca e da
anticrese.
Dessa forma, o Credor Fiduciário, como proprietário que é, tem
uma Função Social também a zelar. Como a Função Social da Propriedade “(...)
condiciona o reconhecimento e proteção do direito do proprietário (poder) ao
direcionamento do uso dado à Propriedade para os interesses sociais (dever)
(...)”700, se o bem do Proprietário Fiduciário causar algum mal à Sociedade, deverá
ser tal proprietário responsabilizado civilmente pelo prejuízo causado. Se este
prejuízo não tiver como ser ressarcido por não poder se responsabilizar o
Proprietário Fiduciário, a vítima do evento danoso poderia restar insatisfeita no seu
direito de crédito, crédito este decorrente da indenização oriunda de sentença
judicial, restando duplamente prejudicada. Isso atentaria contra o princípio
constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, que é base para todo o
ordenamento jurídico, desde a Norma Jurídica constitucional até a
infraconstitucional.
A interpretação que a Tese se propõe, portanto, considera o
respeito à hierarquia de Normas Jurídicas existentes no ordenamento jurídico
brasileiro, obedecendo-se os princípios da Função Social da Propriedade, da
Dignidade da Pessoa Humana e da Solidariedade, com estrita vinculação aos
Direitos Fundamentais.
A Consciência Jurídica Social possui um papel importante,
pois, segundo esta consciência, a Sociedade irá selecionar aqueles preceitos que a
tradição, a experiência e os valores incutidos nesta mesma Sociedade sejam
suficientes ao alcance da Justiça Social.
No estudo realizado, demonstrou-se que, em virtude da
evolução social, principalmente pelo desenvolvimento industrial, foram criados
engenhos humanos que, embora trouxessem avanços para a Sociedade,
influenciaram, consideravelmente, para a configuração de prejuízos à vida, à
integridade física e ao meio ambiente. Com tal evolução, muitas Sociedades
Empresárias lucraram com estas atividades, inserindo bens perigosos no meio
social.
Os prejuízos causados pela inserção desses bens na
Sociedade influenciaram, diretamente, nas idéias acerca da Responsabilidade Civil,
pois a idéia que prevalecia antes desta revolução industrial era da Responsabilidade
700 CAVEDON, Fernanda de Salles. Função Social e ambiental da propriedade , p. 84.
Civil Subjetiva, baseada na culpa. Posteriormente, constatou-se a necessidade e
utilidade da teoria da Responsabilidade Civil Objetiva, baseada na teoria do Risco.
Dias701 aduz à elevação da Responsabilidade Civil Objetiva no ordenamento jurídico,
indagando:
(...) Como poderia o pedestre colhido por um automóvel, em lugar solitário, à noite, provar, na ausência de testemunhas – supondo-se que tenha sobrevivido ao acidente – que o carro estava de luzes apagadas e corria com excesso de velocidade? Como poderia o viajante que, durante o trajeto efetuado em estradas de ferro, caiu no leito da linha, provar que os empregados da estrada foram negligentes no fechamento da porta do carro, à partida da última estação? Impor à vítima ou a seus herdeiros demonstrações de sse gênero é o mesmo que lhes recusar qualquer indeniza ção: um direito só é efetivo quando sua prática está assegurada; não ter direito e tê-lo sem o poder exe rcer são uma coisa só. A teoria tradicional de responsabilidade repousava manifestamente em bases muito estreitas: cada vez mais se mostrava insuficiente e perempta (...).
No mesmo sentido da lição acima, compartilha Silva702:
Desta forma, facilitando a inserção de Veículos Automotores no meio social por contratos de Alienação Fiduciária em Garantia, lucrando com a atividade e criando um perigo à Sociedade com tal atividade, a Responsabilidade Civil Objetiva do Fiduciário, durante o período em que figure como proprietário Fiduciário do Veículo Automotor, surge como elemento de segurança à Sociedade. Esta segurança se consolida em uma maior possibilidade de cobrança da indenização fixada judicialmente, na situação em que o Fiduciante, por culpa sua, desse causa ao evento danoso. Assim, as instituições financeiras, que possuem privatividade na contratação da Alienação Fiduciária em Garantia não sairiam beneficiadas com o lucro auferido pela contratação, afastando sua responsabilidade com a facilitação da introdução de um bem perigoso. Lembre-se que o
701 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil , v. 1, p. 61 (grifo nosso). 702 SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa , p. 145 e 165.
interesse individual não pode prevalecer sobre o social. Tal situação faria com que o Fiduciário buscasse meios para se garantir em eventual obrigação de indenizar, como, por exemplo, buscando contratar seguro para tanto.
Silva703, neste exemplo, ensina: “Com efeito: pelo seguro e a
preço relativamente baixo, compra o autor o direito de não ter suas atividades
cerceadas como, a vítima, a certeza de que sempre seja indenizada, pelo
afastamento de uma possível insolvência do agente”. A seguir, ensina o mesmo
autor704:
(...) a experiência nos segreda que a mutualização dos riscos, através do seguro, oferece largas perspectivas de uma solução ideal, cômoda e, sobretudo, justa, para a matéria, por que, então, não se partir daí para uma construção mais avançada (...) nos domínios da responsabilidade civil? Com isso, não apenas se teria propiciado às futuras vítimas a certeza do ressarcimento, como se teria, também, assegurado a todos a tranqüilidade de que todos necessitam para o exercício normal de suas atividades.
Observe-se, aliás, que705:
“É no princípio da solidariedade que devemos buscar inspiração para a vocação social do direito, para a identificação do sentido prático do que seja funcionalização dos direitos e para a compreensão do que pode ser considerado parificação e pacificação social. E compreender o princípio da solidariedade é meditar acerca de lindíssima passagem da obra monumental de Calamandrei, em que ele afirma que a Justiça é vontade de reciprocidade operosa e de solidariedade humana.”.
Afigura-se, nessa situação, que o preço do seguro seria
embutido na contratação da Alienação Fiduciária em Garantia de Veículos
Automotores, mas seria uma forma de socializar o risco, assegurando aos
integrantes da Sociedade, eventuais vítimas de algum infortúnio causado pelo
703 SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa , p. 170. 704 SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa , p. 173 705 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Doutrinas Essenciais: Responsabilidade civil, p. 31.
veículo, dignidade com o efetivo cumprimento da sentença que obrigou a
indenização.
Ao comentar acerca da transformação do direito privado em
face da autonomia jurídica do coletivo constitucional, Pilati706 identifica que o
paradigma individualista dos institutos de direito privado é desmanchado, pois a
ênfase coletiva dos direitos fundamentais “(...) retira da normalidade jurídica a
especulação individualista em favor do mérito, seja o mérito do capital, seja o do
trabalho, garantidos a teor do inciso IV, do art. 1º, da CRFB.”. Prosseguindo, o
autor707 exemplifica tal situação:
“Assim, institutos como o da responsabilidade civil, do contrato, do enriquecimento sem causa, da propriedade, da empresa, dos direitos de vizinhança são transformados pelos princípios constitucionais e por uma nova hermenêutica – construtiva; passam a ser exercidos de modo a repartir melhor os riscos e custos sociais, a privilegiar o caráter alimentar, a proteger a família e o ambiente; e tendem a desestimular determinadas atividades contrárias ao interesse social retirando-lhes o atrativo econômico. (...)”.
Como o sistema jurídico consiste num meio para alcançar
determinados fins, a finalidade que a proposta da Tese apresenta é que haja
interpretação judicial construída com base nos princípios da Função Social da
Propriedade, da Dignidade da Pessoa Humana e da Solidariedade; no art. 927, do
Código Civil, que estabelece a Responsabilidade Civil Objetiva, fundada na teoria do
Risco da atividade, no sentido de se assegurar à vítima de acidente causado por
Veículo Automotor, objeto de Alienação Fiduciária em Garantia, que tenha seu
crédito, decorrente de sentença que decretou a indenização, efetivamente solvido,
principalmente por respeitar sua dignidade. A imputação solidária do Fiduciário ao
Fiduciante, é um meio para alcançar esta finalidade.
Schreiber708 ensina que a jurisprudência brasileira, com
706 PILATI, José Isaac. Propriedade & função social na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 164. 707 707 PILATI, José Isaac. Propriedade & função social na pós-modernidade, p. 164. 708 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil : da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 3. Ed. São Paulo: Atlas, 2011. pp. 253-254.
fundamento na solidariedade social, não tem deixado as vítimas sem reparação,
flexibilizando os pressupostos da responsabilização. Também entende que a própria
legislação tem expandido as situações de responsabilidade solidária e técnicas de
prevenção e precaução de danos, e forma que:
“O essencial é que se busque, por via hermenêutica ou por reforma legislativa, a substituição de uma responsabilidade individual – que, estendida pelo imperativo de proteção à vítima, acaba distribuindo de forma cada vez mais aleatória e ineficiente o custo das reparações – por uma autêntica responsabilidade social, que atribua a cada pessoa um ônus correspondente ao seu real potencial lesivo, transformando o problema dos danos em um problema de toda a sociedade.”
Não se pretende com essa Tese discutir o conceito de Justiça,
mas seria injusto verificar que o Fiduciário, responsável por colocar um Veículo
Automotor (bem considerado perigoso), decorrente da sua atividade contratual,
saísse lucrando com esta atividade, enquanto que a Sociedade, que teve que aceitar
a colocação desse bem perigoso em seu meio, tivesse que assumir todo o risco, ao
lado do Fiduciante. Este último pode não ter meios suficientes para saldar a
indenização em decorrência do infortúnio, e a Sociedade não pode ser mais uma
vez vitimada com a inadimplência da obrigação de indenizar. Afinal, segundo
Silva709, “(...) Via de regra, sobre ser o agente aquele que deu causa ao dano, seja
pela utilização da coisa perigosa, seja pelo exercício da atividade geradora de
riscos, é, também, o que aufere vantagens.”.
A interpretação judicial nesse sentido assegura um mínimo
ético, pois não persegue fins imorais, mas fins legítimos.
Da forma como estava exposta a Responsabilidade Civil do
Proprietário Fiduciário, observa-se que a lei, mesmo que administrada
imparcialmente, conflitava com a escala de valores e princípios, no momento da
decisão e, neste ponto, especialmente com a idéia de Função Social da Propriedade
e dos Princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da Solidariedade. Agora, com a
709 SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa , p. 168.
ausência de disposição acerca da Responsabilidade Civil na Alienação Fiduciária
em Garantia com a revogação do artigo 66, da Lei 4.728/65, busca-se com a
presente Tese o alcance e sentido de reunir idéias sobre os valores orientadores do
ser humano, idéias estas que diferenciam o justo do injusto, do bem relativamente
ao mal e da virtude, relativamente ao vício710. Nessa busca, portanto, é que se
pretende uma solidarização dos riscos nos contratos de Alienação Fiduciária em
Garantia de Veículos Automotores entre o proprietário Fiduciário e o Fiduciante,
decorrentes da Responsabilidade Civil.
5.4. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO E A VINCULAÇÃO
DAS RELAÇÕES PRIVADAS AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
No item 2.5, desta Tese, foram feitas referências acerca da
Constitucionalização do Direito Privado, que extirpa uma interpretação individualista
de certas categorias jurídicas, especialmente relacionadas ao Direito Privado,
fazendo com que categorias que antes se dirigiam, estritamente, às relações
particulares passassem a ter uma interferência direta pela CRFB/88.
A publicização do direito privado consistiu num fenômeno
jurídico, ocorrido no decorrer do século XX, com vistas à revisão das bases
individualistas do Código Nepoleônico, identificando a igualdade formal dos
indivíduos, a liberdade e o absolutismo da propriedade privada deste Código, que
tanto influenciou as legislações civis de países especialmente vinculados à tradição
romano-germânica, em contraposição, muitas vezes, ao bem estar da coletividade.
Buscando superar o individualismo das relações privadas, o
Estado passou a ter certa interferência em diversas áreas jurídicas, até mesmo
aquelas que, até então, eram reservadas somente aos particulares. Tal superação
procurou assegurar a solidariedade social e a função social de certas categorias de
direito privado, a razoabilidade e proporcionalidade de suas extensões,
estabelecendo normas com caráter público, com a especial tarefa de equilíbrio das
relações particulares, com a finalidade de alcançar a plena felicidade da Sociedade.
710 SILVA, Moacyr Motta da. Direito, justiça, virtude moral & razão , p. 18.
Pretendeu-se a proteção dos hipossuficientes/ vulneráveis nas relações jurídicas,
com normas de equiparação das partes, como nos contratos locatícios, relações
trabalhistas, relações consumeristas, etc..
No decorrer da publicização do direito privado, identificou-se a
Constituição do país como instrumento normativo axiológico de grande relevância,
com interferência direta em diversos ramos do Direito (Penal, Administrativo,
Processual), e também nas relações privadas (Direito Civil e Comercial).
A dicotomia direito público/privado então existente,
concentrava o Direito Civil e Direito Comercial como áreas clássicas do direito
privado. No Brasil, especialmente com a Constituição da República Federativa de
1988, diversas categorias relativas a tais áreas passaram a ter uma interferência
direta da Constituição. No âmbito da Constitucionalização do Direito Civil, por
exemplo, pretendeu-se aplicar certos princípios constitucionais que passaram a
interferir, por vezes de forma direta, em institutos como os contratos, família e
propriedade. A leitura e interpretação de tais categorias passariam a ser
reorganizadas, levando-se em consideração diversos princípios constitucionais, bem
como a existência de diversos direitos fundamentais que não poderiam colidir, ou
deveriam coexistir com tais categorias, levando-se em conta, principalmente, o
princípio da dignidade da pessoa humana.
Tal situação decorre, especialmente, da repersonificação do
direito, buscando resgatar o ser humano como o centro das atenções jurídicas, em
contraposição à “coisificação” ou “patrimonialização” do direito, com suporte em
princípios constitucionais fundamentais, como a dignidade da pessoa humana,
solidariedade, equidade, justiça social etc.
Esta repersonificação, ainda, leva em consideração não só os
princípios constitucionais fundamentais, mas também uma maior atenção aos
próprios direitos fundamentais, a fim de alcançar a plena felicidade e bem estar
social.
Para Steinmetz711 aos direitos fundamentais deve-se aplicar a
vinculação imediata dos particulares à tais direitos, haja vista que:
“A teoria da eficácia imediata (i) é uma construção dogmática que toma a sério os direitos fundamentais, (ii) é consistente e consequente com a posição constitucional especial e preferencial desses direitos e com o conceito de uma Constituição como estrutura normativa básica (fundamental) do Estado e da sociedade, e (iii) está sintonizada com o projeto – um projeto que não é somente jurídico, mas também ético e político, sobretudo no marco de uma sociedade tão desigual e injusta socialmente como a brasileira (...) – de máxima efetividade social dos direitos fundamentais.
Adiante, o mesmo autor712 leciona:
Essa vinculação se impõe com fundamento no princípio da supremacia da Constituição, no postulado da unidade material do ordenamento jurídico, na dimensão objetiva dos direitos fundamentais, no princípio constitucional da dignidade da pessoa (CF, art. 1º, III), no princípio constitucional da solidariedade (CF, art. 3º, I) e no princípio da aplicabilidade imediata dos direitos e das garantias fundamentais (CF, art. 5º, § 1º).”.
Em referência à fase pós-positivista atualmente enfrentada,
“(...) os princípios passam a ser aplicados prioritariamente às normas específicas,
pois que, segundo tal estruturação sistemática, eles são precisamente a ponte entre
o sistema social e o sistema jurídico, e não mais apenas um recurso de manutenção
do sistema como um sistema fechado, completo e avalorativo.”713.
Quanto às relações civis, Negreiros entende haver o
desaparecimento da “(...) idéia do Código Civil como ‘constituição da vida privada’,
verdadeira metáfora do sistema fechado, surgindo a Constituição como centro, não
apenas formal, mas valorativo da unidade do sistema como um todo.”714.
711 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamenta is . São Paulo: Malheiros, 2004, p. 271. 712 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamenta is . São Paulo-SP: Editora Malheiros, 2004, p. 295. 713 NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 146. 714 NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé , p. 169.
Para Perlingieri715, o Código Civil não tem mais a centralidade
das relações privadas como antigamente, sendo atingido diretamente pela
Constituição, de forma que “(...) O respeito aos valores e aos princípios
fundamentais da República representa a passagem essencial para estabelecer uma
correta e rigorosa relação entre poder do Estado e poder dos grupos, entre maioria e
minoria, entre poder econômico e os direitos dos marginalizados, dos mais
desfavorecidos.”.
A presente Tese tem como foco uma relação que, em
princípio, seria de caráter civilístico estritamente privado, envolvendo o direito de
Propriedade (art. 1.225, do Código Civil), mais propriamente a Propriedade
Resolúvel (art. 1.359, do Código Civil) e a Propriedade Fiduciária (art. 1.361, do
Código Civil).
O Direito de Propriedade sempre se encontrou no âmbito das
relações privadas, em que o absolutismo da propriedade reinava. Porém, com a
constitucionalização desse direito, atualmente o mesmo deve ser contemplado em
observância dos demais direitos e princípios constitucionais.
Tratou-se o Direito de Propriedade como direito fundamental
constitucional, no art. 5º, XXII, da CRFB/88. No entanto, embora se trate de um
direito fundamental, ele não é pleno, ou seja, não está condicionado somente à
deliberação exclusiva do seu titular, pois, logo a seguir, a própria Constituição limita-
o ao atendimento de sua função social (art. 5º, XXIII), ou seja, vincula-o ao princípio
constitucional da Função Social da Propriedade.
Veja-se que, embora o art. 1.363, caput, do Código Civil, que
trata sobre Propriedade Fiduciária, determinar que “Antes de vencida a dívida, o
devedor, a suas expensas e risco, pode usar a coisa segundo sua destinação, (...)”,
quando a Propriedade Fiduciária de Veículos Automotores é utilizada como objeto
de contratos de Alienação Fiduciária em Garantia pelas Instituições Financeiras,
estas estão desenvolvendo uma atividade que expõe um risco à Sociedade,
715 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil : introdução ao direito civil constitucional. 2. Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 6.
facilitando a circulação no meio social de bens/produtos considerados perigosos, ou
seja, implicará risco para os direitos de outrem. Por tais razões, a própria legislação
infraconstitucional (art. 927, parágrafo único, e art. 931, do Código Civil), determina a
responsabilidade civil objetiva (independentemente de culpa) das Sociedades
Empresárias (Instituições Financeiras), quando a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de
outrem. Essa responsabilidade é agravada ainda mais pelo fato de que tais
sociedades persistem na qualidade de proprietárias dos Veículos Automotores
durante o período contratual da Alienação Fiduciária em Garantia e, sendo
proprietárias, são responsáveis, pelo fato da coisa, pelos atos ilícitos ocasionados
mesmo por terceiros possuidores, com relação ao objeto da alienação.
Nesse conflito acerca do risco da Propriedade Fiduciária,
descrito no art. 1.363, caput, do Código Civil, importante mencionar a lição de
Streck716, pois este ensina que, no regime democrático, o Poder Judiciário pode
deixar de aplicar uma lei ou dispositivo de lei “(...) quando aplicar a interpretação
conforme a Constituição (verfassungskonforme Auslegugng), ocasião em que se
torna necessária uma adição de sentido ao artigo de lei para que haja plena
conformidade da norma à Constituição. Neste caso, o texto de lei (entendido na sua
‘literalidade’) permanecerá intacto; o que muda é o seu sentido, alterado por
intermédio de interpretação que o torne adequado à Constituição”.
No entanto, a Responsabilidade Civil do Proprietário Fiduciário
não se vincula somente à legislação civil infraconstitucional. Ao lado do princípio da
Função Social da Propriedade também há uma vinculação do Direito de
Propriedade, na modalidade que for (plena, limitada, bem móvel ou imóvel), aos
direitos fundamentais constitucionais da vida, liberdade, segurança, saúde, bem
como aos princípios constitucionais fundamentais da dignidade da pessoa humana,
solidariedade, equidade e justiça social, interferindo, de forma direta, na
responsabilidade civil do proprietário, ainda que fiduciário, pelos atos ilícitos
cometidos com a utilização indevida da coisa.
716 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso : constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 605.
Para Canotilho717:
(...) o Estado tem o dever de proteger o direito à vida perante eventuais agressões de outros indivíduos (...). O mesmo acontece com numerosos direitos como o direito a inviolabilidade de domicílio, o direito de proteção de dados informáticos, o direito de associação. Em todos estes casos, da garantia constitucional de um direito resulta o dever do Estado adoptar medidas positivas destinadas a proteger o exercício dos direitos fundamentais perante atividades perturbadoras ou lesivas dos mesmos, praticadas por terceiros. Daí o falar-se da função de proteção perante terceiros. Diferentemente do que acontece com a função de prestação, o esquema relacional não se estabelece aqui entre o titular do direito fundamental e o Estado (ou uma autoridade encarregada de desempenhar uma tarefa pública), mas entre o indivíduo e outros indivíduos (...).
Portanto, com o objetivo de privilegiar o “ser” ao “ter”, o Estado
oferta mecanismos constitucionais suficientes à interpretação de proteção do ser
humano vitimado em seus direitos fundamentais (vida e a integridade física) que, na
proposta desta Tese, passam a ser delineados no item a seguir.
5.5. A PROPOSTA DE INTERPRETAÇÃO JUDICIAL DA RESPON SABILIDADE
CIVIL DO PROPRIETÁRIO FIDUCIÁRIO DE VEÍCULOS AUTOMO TORES
Um dos principais objetivos da Política Jurídica consiste, como
observado no Capítulo 1, em servir como instrumento para o equacionamento de
causas e consequências baseadas em firmes estratagemas, com o fim de assegurar
uma legislação social e econômica com vistas à manutenção e preservação da
dignidade do ser humano718. Diante dos elementos colacionados nos capítulos
anteriores e dos argumentos trazidos na pesquisa que se prendem à Tese, esse
objetivo da Política Jurídica se fez presente, no sentido de propor a
Responsabilidade Civil solidária do Fiduciário junto ao Fiduciante, a fim de assegurar
a dignidade da vítima que fosse prejudicada por um Ato Ilícito cometido por este
último, ao se utilizar do Veículo Automotor.
717 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição . 3. ed. Coimbra-Portugual: Almedina, 1999, p. 409. 718 MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica , p. 104.
A proposta da Tese é no sentido de que há diversos fatores
que podem fazer com que o proprietário, mesmo que fiduciário, possa responder
pelos danos ocasionados pelo Veículo Automotor, independentemente de predição
específica na legislação nesse sentido, com base nos seguintes fundamentos:
a) o proprietário é responsável civilmente pelos danos ocasionados por coisas de
sua propriedade, especialmente por coisas perigosas;
b) os Veículos Automotores são bens perigosos colocados no meio da sociedade;
c) a Função Social da Propriedade abrange, inclusive, a da Propriedade Fiduciária;
d) a Alienação Fiduciária em Garantia é espécie de Propriedade Fiduciária;
e) os contratos de Alienação Fiduciária em Garantia de Veículos Automotores são
contratos onerosos, realizados por sociedades empresárias, de forma que o
Proprietário Fiduciário lucra com a atividade, estimulando, assim, a colocação de
bens perigosos no ambiente social;
f) conforme o art. 927, parágrafo único, do Código Civil: “Haverá obrigação de
reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou
quando a atividade normalmente desenvolvida pelo au tor do dano implicar, por
sua natureza, risco para os direitos de outrem ” (Teoria do Risco, grifado);
g) conforme o art. 931, do Código Civil: “Ressalvados outros casos previstos em lei
especial, os empresários individuais e as empresas respondem
independentemente de culpa pelos danos causados pel os produtos postos em
circulação ” (Teoria do Risco, grifado);
h) ubi emolumentum, ibi onus; qui habet commoda, debet ferre onera; ubi periculum,
ibi lucrum, ou seja, tem-se por base a doutrina objetiva, fundada na Teoria do Risco
(Responsabilidade Civil Objetiva), ou seja, aquele que tirar proveito com uma
situação deve responder pelas desvantagens ou pelo risco dela oriundas e, aqui,
independentemente de culpa;
i) se, com base no Recurso Especial n. 1.044.527-MG, o Superior Tribunal de
Justiça entendeu, em contrato gratuito (empréstimo) de Veículo Automotor, que há
responsabilidade do proprietário por atos ilícitos envolvendo a coisa que esteja na
posse de terceiro, pelos elementos já levantados nas letras anteriores também há
possibilidade de responsabilizar civilmente o Proprietário Fiduciário pelos atos ilícitos
realizados pelo Devedor-Fiduciante de forma solidária.
Na óptica da CRFB/88, não havendo limitação à espécie de
Propriedade para fins de obediência da sua Função Social, observa-se que a
mesma se aplica também nas condições da Propriedade Fiduciária, principalmente,
nesse estudo, envolvendo a Alienação Fiduciária em Garantia. Desta característica,
em especial, decorre o resultado do produto científico almejado com a pesquisa, ou
seja, a Responsabilidade Civil do titular da Propriedade Fiduciária em razão (dentre
outras) desta Função Social e do princípio da Solidariedade a fim, ainda, de
assegurar a dignidade da pessoa humana da vítima, ou de seus familiares
Dessa forma, o objetivo do Estado, que é assegurar a paz
social e o bem comum estaria mais protegido com tais dispositivos, porque, assim,
possibilita alcançar a Justiça Social que tanto se almeja.
CONCLUSÃO
O objetivo principal dessa pesquisa consistiu na
fundamentação teórica para a construção de uma proposta de Responsabilidade
Civil de forma solidária do Credor-Fiduciário, na Propriedade Fiduciária de Veículos
Automotores de Via Terrestre, por Atos Ilícitos cometidos pelo Devedor-Fiduciante
durante o período de vigência do contrato de Alienação Fiduciária em Garantia.
Diante do tema estudado, observou-se que o Direito de
Propriedade, ainda que elencado como um Direito Fundamental, perde, diante da
chamada “escassez”, tal condição, consistindo apenas numa instituição de direito
privado. Mesmo assim, não perde a obrigação de exercer sua Função Social, e,
diga-se, toda e qualquer espécie de Propriedade, seja ela bem móvel ou imóvel,
plena ou limitada, razão pela qual também a Propriedade Fiduciária, deve estar
abrangida nesta função.
A Propriedade Fiduciária, como espécie de Propriedade
Resolúvel, pode ser constituída de várias formas, escolhendo-se para a presente
Tese a Propriedade Fiduciária de Veículos Automotores de Via Terrestre,
estabelecida pelos contratos de Alienação Fiduciária em Garantia. Tais contratos,
como visto no decorrer da pesquisa, somente podem ser realizados por Instituições
Financeiras. Desta forma, por se tratar de atividade de financiamento própria de
Instituições Financeiras, os contratos de Alienação Fiduciária em Garantia possuem
natureza mercantil, haja vista que as financeiras são sociedades mercantis (ou
Sociedades Empresárias, de acordo com a nova dicção da Lei n º 10.406/2002), o
que aumenta sua responsabilidade diante do risco da atividade econômica inerente
à criação de qualquer Sociedade Empresária. Amplia-se este risco em função dos
lucros angariados com o empréstimo de capital pelas Instituições Financeiras com o
financiamento das atividades de Alienação Fiduciária em Garantia, principalmente
de bens considerados perigosos, como os Veículos Automotores. Destas atividades
decorrem a alta lucratividade havida com as negociações realizadas nos Contratos
de Alienação Fiduciária em Garantia, fundamentando-se esta responsabilidade na
Teoria Objetiva, no sentido de que ubi emolumentum, ibi onus; qui habet commoda,
debet ferre onera; ubi periculum, ibi lucrum, ou seja, todo aquele que tirar proveito
com uma situação deve responder pelas desvantagens ou pelo risco dela oriundas.
Observou-se, ainda, que, embora a Alienação Fiduciária em
Garantia seja espécie de Propriedade Fiduciária, diferentemente das demais
modalidades de direito real de garantia como a hipoteca, o penhor e a anticrese (em
que a Propriedade não é transmitida ao credor), na Alienação Fiduciária em Garantia
esta Propriedade é, efetivamente, transmitida ao Credor-Fiduciário. Isto faz com que
a Propriedade pertencente ao Credor-Fiduciário, ainda que limitada (pois é
resolúvel), imponha a este o dever de arcar com as responsabilidades deste bem,
durante o período em que o contrato entre ele e o Devedor-Fiduciante prevalecer.
Veja-se que, além da responsabilidade decorrente da Teoria do Risco, mencionada
acima, também há o fato de que o Credor-Fiduciário é o efetivo proprietário da coisa
alienada.
Para essa pesquisa, relativamente à Ação, ligada à conduta
humana, buscar-se-á demonstrar que o ato comissivo que responsabiliza o Credor-
Fiduciário de Veículos Automotores, na Responsabilidade Civil, a qual se dá pela
própria atividade desenvolvida pelo mesmo, com fundamento nas Teorias do Risco
Criado e do Risco Proveito. Isto, mesmo se o comportamento do Credor-Fiduciário
for lícito. Ora, a voluntariedade atribuída ao Credor-Fiduciário foi demonstrada com
fundamento na própria atividade desenvolvida pelo mesmo, ao colocar à disposição
do mercado, por meio dos contratos que realiza (atividade própria das Instituições
Financeiras), na forma de Alienação Fiduciária, um bem considerado potencialmente
perigoso (Veículo Automotor). A Propriedade desse bem, mesmo que fiduciária, é de
titularidade do Credor-Fiduciário, embora a posse não esteja consigo, mas com o
Devedor-Fiduciante.
O Credor-Fiduciário, na Alienação Fiduciária em Garantia,
poderá ser responsabilizado por ato de outrem (Responsabilidade Civil Indireta),
neste caso, do Devedor-Fiduciante (possuidor direto do Veículo Automotor), o qual,
diante de um comportamento antijurídico, lesou outra pessoa, alheia ao contrato de
Alienação Fiduciária. Este fato faz com que o Credor-Fiduciário, que é Proprietário
Fiduciário do bem, se torne responsável civilmente, de forma solidária pelo dano,
durante o período contratual.
Quanto ao Nexo de Causalidade, a pesquisa ainda identificará
que o ordenamento jurídico brasileiro adota a Teoria da Causalidade Adequada, na
qual poderá ser considerada “causa” o fator antecedente que tenha sido
abstratamente apto à determinação do resultado, diante de um juízo razoável de
probabilidade. Daí, afastam-se os elementos que não devem ser considerados
antecedentes para que o dano se tivesse configurado. Aqui, alguns elementos são
essenciais para este nexo e que importam, diretamente, na Responsabilidade Civil
do Credor-Fiduciário: a) o fato de ser Proprietário do bem, cuja Propriedade deve
exercer uma Função Social, não prejudicando a coletividade; b) o fato de ter
facilitado a colocação de um bem considerado potencialmente perigoso (Veículo
Automotor) no meio social; c) o fato de lucrar com a colocação deste bem perigoso
no meio social, fazendo com que a Sociedade arque com o prejuízo das investidas
deste bem, decorrentes de Atos Ilícitos do possuidor direto da coisa. Todos estes
fatores são antecedentes que vinculam o Credor-Fiduciário diretamente à sua
responsabilização civil solidária com o Devedor-Fiduciante.
Assim, observado algum prejuízo da vítima pelo
comportamento ilícito do Devedor-Fiduciante, durante o período do contrato de
Alienação Fiduciária em Garantia do Veículo Automotor, este dano deve ser
indenizado também pelo Credor-Fiduciário (diante da Responsabilidade Civil
Objetiva), solidariamente ao Devedor-Fiduciante, diante de atos culposos
(imprudência, negligência ou imperícia) deste (Responsabilidade Civil Subjetiva).
Além disso, importa salientar que a Lei n º 10.406/02
estabeleceu duas formas de reconhecimento da Responsabilidade Civil, sem se
questionar a culpa do infrator (Responsabilidade Civil Objetiva): uma por
determinação legal (primeira parte), e outra, quando a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, Risco para os direitos
de outrem, conforme a redação do artigo 927, importando ambas as modalidades
para este estudo. A primeira, porque a lei deveria prever a responsabilidade do
Credor Fiduciário, durante o período do contrato, por ser Proprietário Fiduciário do
bem; a segunda, porque os Veículos Automotores são considerados bens perigosos,
e são negociados pelos contratos de Alienação Fiduciária em Garantia pelas
Instituições Financeiras, o que representa lucro para estas e Risco para a
Sociedade.
Diante de todos esses fatores, não pode a Sociedade sair
prejudicada em função de fatores econômicos que favoreçam somente determinada
classe econômica. Caso num contrato de Alienação Fiduciária em Garantia se
atribuísse a Responsabilidade Civil exclusiva ao Devedor-Fiduciante, se este fosse
culpado por algum acidente e não tivesse patrimônio suficiente para saldar a dívida
para com a vítima, esta, por mais que buscasse o Poder Judiciário para indenizá-la,
teria uma sentença cujo conteúdo restaria inexecutável por ausência de bens para
assegurar o crédito. Basta lembrar que esta vítima pode ser qualquer indivíduo, e o
seu todo, a Sociedade, deverá arcar com esta situação? Daí a Dignidade da Pessoa
Humana, no sentido de a vítima ter devidamente cumprido o dever de indenizar e,
sobretudo, satisfeito o crédito a que faz jus.
Consideradas as situações acima, retomam-se as hipóteses de
pesquisa, a fim de identificá-las.
A primeira hipótese pretendeu que seria possível e necessária
a Responsabilidade Solidária do titular do domínio, na Propriedade Fiduciária, por
Atos Ilícitos praticados pelo Possuidor Direto da coisa, em razão da função social da
propriedade e da responsabilidade objetiva envolvendo tais casos, a qual, sob a
óptica da Política Jurídica, foi confirmada.
A segunda hipótese buscou identificar eu, diante da Função
Social da Propriedade, além de possível através de uma interpretação judicial, seria
necessária a Responsabilidade Civil do titular do domínio, na Propriedade Fiduciária,
por Atos Ilícitos praticados pelo Possuidor Direto do respectivo bem objeto do
contrato, pois se objetivaria dar segurança jurídica, com o fim de satisfazer os
créditos oriundos de Ato Ilícito causados pelo Possuidor Direto, mormente quando
este for insolvente, ou seja, não possua meios econômicos para satisfação do
crédito judicial que foi condenado a pagar. Assim, diante dos Princípios
Constitucionais da Função Social da Propriedade, da Dignidade da Pessoa Humana,
da Solidariedade social e da Justiça distributiva, das Teorias do Risco Criado e
Risco Proveito, além de possível, faz-se necessária a Responsabilidade Civil do
titular do domínio, na Propriedade Fiduciária, por Atos Ilícitos praticados pelo
Possuidor Direto do Veículo Automotor na vigência do contrato, pois objetiva a
segurança jurídica, com o fim de satisfazer os créditos oriundos de Atos Ilícitos
causados pelo Possuidor Direto, mormente quando este for insolvente, a fim de se
adequar aos ditames da Política Jurídica, confirmando-se, também, a referida
hipótese de pesquisa.
Nessas condições, em síntese:
a) por haver transferência da Propriedade do bem objeto da Alienação Fiduciária em
Garantia, por meio de contrato que envolve um bem considerado perigoso e que é
colocado no meio social, apresentando um verdadeiro potencial lesivo à Sociedade
(Veículo Automotor) ao Mutuante (Credor Fiduciário);
b) pelo fato de que esta Propriedade Fiduciária possui uma Função Social, pois não
há limitação constitucional à forma de Propriedade que deva observar tal princípio
(se Propriedade limitada, ou não);
c) por se tratarem os Veículos Automotores de bens perigosos e por financiar o
aumento da frota na Sociedade, ampliando as situações de risco social, a atividade
das Instituições Financeiras (que figuram como Proprietárias Fiduciárias e
Possuidoras indiretas de tais veículos) implica, por sua natureza, risco para os
direitos de outrem, devendo responder, independentemente de culpa por eventuais
danos ocasionados pelo Devedor Fiduciante (que é o Possuidor direto da coisa), na
forma do art. 927, parágrafo único, do Código Civil;
d) diante do lucro auferido pelo Mutuante (Proprietário Fiduciário) com a operação
de empréstimo e diante do princípio segundo o qual aquele que lucra com uma
situação deve responder pelo risco ou pelas desvantagens dela resultantes;
e) pela necessidade de se assegurar o direito da vítima atingida por um Ato Ilícito
cometido pelo Devedor-Fiduciante na vigência do Contrato de Alienação Fiduciária
em Garantia de um Veículo Automotor, que é considerado um bem potencialmente
lesivo à Sociedade, bem como pelo princípio da Solidariedade, garantindo à pessoa
da vítima a sua dignidade;
f) Por se tratar o Proprietário Fiduciário, em contratos de Alienação Fiduciária em
Garantia de Veículos Automotores, necessariamente, de sociedades empresárias e,
em função do art. 931, do Código Civil que determina: “Ressalvados outros casos
previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem
independentemente de culpa pelos danos causados pel os produtos postos em
circulação ” (Teoria do Risco);
g) com base no Recurso Especial n. 1.044.527-MG, do Superior Tribunal de Justiça,
o qual entendeu que, em contrato gratuito (empréstimo) de Veículo Automotor, há
responsabilidade do proprietário por atos ilícitos envolvendo a coisa que esteja na
posse de terceiro, há maior responsabilidade ao proprietário quando o contrato é
oneroso,
Propõe-se, com base no aspecto corretivo da Política Jurídica,
interpretação judicial no sentido de se responsabilizar, civilmente, de forma solidária
o Credor Fiduciário (Proprietário Fiduciário) por ato ilícito cometido pelo Possuidor
Direto (Devedor Fiduciante) de Veículo Automotor de Via Terrestre, alienado
fiduciariamente.
O objetivo não é, aqui, defender a extinção do contrato de
Alienação Fiduciária em Garantia de Veículos Automotores, mas de uma proposta
que pretende solidarizar a indenização cabível pelo dano ocasionado com a
constituição, pelo próprio Credor-Fiduciário, de seguro a ser acrescido no custo do
produto, enquanto perdurar o contrato, repassado tal ônus na contratação ao
Devedor-Fiduciante.
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