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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros TUDELLA, E. Rotas francesas para o teatro moderno. In: A luz na gênese do espetáculo [online]. Salvador: EDUFBA, 2017, pp. 265-311. ISBN: 978-85-232-1858-4. https://doi.org/10.7476/9788523218584.0010.
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Rotas francesas para o teatro moderno
Eduardo Tudella
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ROTAS FRANCESAS PARA O TEATRO MODERNO
Alguns comentários parecem assumir que o fim do Renas ci-
mento resultou em uma espécie de esgotamento da vitalidade do
teatro italiano, acreditando que a influência da Itália em ques-
tões teatrais se estendeu, quando muito, até o Barroco. É impor-
tante, no entanto, enfatizar que o legado da arte italiana gerou
enormes impulsos para o teatro de toda a Europa, mesmo além
dos limites cronológicos do Barroco. A práxis cênica europeia foi
sucessivamente impactada por ideias originadas na Itália, e os
ecos de tal impacto no conhecimento teatral podem ser obser-
vados na influência demonstrada, mais tarde, pelo teatro da
França, que será abordado no presente capítulo.
Determinados aspectos configuram tal influência e devem
ser listados: o desenvolvimento renascentista da perspectiva,
representando mais que um aspecto técnico e, sim, o esta-
belecimento de uma nova maneira de ver o cotidiano, subli-
nhando suas verdadeiras proporções através da interpretação
geométrica. Ficava comprovado: o rei tinha estatura humana, a
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majestade era imposta e instalada na imaginação do súdito. A perspectiva provo-
cou uma abordagem revolucionária do mundo, subvertendo o sistema filosófico
da época. A visão perspectivista questionava a filosofia do poder, cujo exercício
não era mais outorgado por Deus e, sim, uma manipulação política. A sociologia
e a ciência política do poder começavam a ser instituídas, como se pôde ver no
espelho negativo do príncipe interpretado por Maquiavel. O palco tornou-se um
espaço calculável e o teatro passou a caracterizar-se como um domínio da física,
da matemática e da mecânica, na dinâmica dos mecanismos do palco, das suas
partes e elementos, na sistematização e consequente eficiência da tecnologia
teatral. O processo foi documentado no trabalho de Sabbatini, já comentado.
Por outro lado, na França absolutista de Louis XIV, ator, dançarino e Rei-Sol, o
lugar privilegiado do monarca como figura central para quem o espetáculo é diri-
gido, teve repercussão importante. Do teatro frances da época, desde o final do
século XVI até o final do século XVII, derivou um conjunto de traços teórico-esté-
ticos que contribuíram em grande escala para o teatro moderno, de fundamento
realista. O processo gerou uma espécie de virada na contribuição da luz para a
cena incorporando também compromissos entre a cena e a visualidade, delinea-
dos no Barroco. Desenvolve-se nessa época a institucionalização das viagens pela
Itália, como parte da educação de artesãos e artistas. Alguns nomes, como Albert
Dürer (1471-1528) e Hans Holbein (ca. 1497-1543), podem ser citados como pionei-
ros nesse contexto. Agigantando seu acervo de pintura, escultura e arquitetura
a Itália funcionou como um museu didático para gerações da inteligência euro-
peia. As viagens dos artistas da época geraram enorme troca de experiências com
grande repercussão na visualidade da arte francesa e, por conseguinte, na cultura
da França, como um todo.
A inclusão do teatro francês nas presentes argumentações é motivada pelo
desafio de compreender a assertiva visual do período particularmente estudado,
uma vez que sua primeira parte, nos séculos XVI e XVII, apresenta visualidades
particulares e diversificadas, mas com excassa documentação acerca da contri-
buição da luz. Entretanto, os raros documentos citados atestarão que, com olhar
atento, é possível observar a presença de tal contribuição.
A rainha Catarina de Médici, mãe de Henri III de Valois, desejando ver também
na França o brilho do entretenimento que havia conhecido da Itália decidiu, entre
outras atitudes, levar para seu país o artista italiano Baldassare de Belgiojoso [que
ficou conhecido como Balthasar de Beaujoyeulx (também grafado Beaujoyeulx,
ca. 1535-1587)], violinista, compositor e coreógrafo. Trabalhando em Paris na
função de principal músico da corte, Beaujoyeulx foi o responsável pelo arranjo
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cênico das festividades de casamento do Duque de Joyeuse, com Margueritte de
Vaudemont, em 1581. Ele fez um espetáculo que alguns chamam de extravaganza,1
em um evento de mais de cinco horas, o Balé da rainha (Ballet comique de la reine)
apresentado na Grande salle du Petit Bourbon, no Louvre, num encaminhamento
francês de uma expressão artística que já havia mostrado suas feições também na
Itália (Figura 73).
Bergman menciona a organização cênica do espetáculo, destacando a lumino-
sidade distribuída pelos cenários simultâneos que instalavam diversos ambientes
em um mesmo espaço cênico repleto de brilhos e transparências: o interior de
um palácio, cujo trono cintilava recoberto com pedras preciosas; um bosque onde
as árvores eram constituídas por muitas lamparinas a óleo; uma caverna escura
parcialmente escondida, pois diante dela era disposto um tecido transparente
através do qual brilhavam diamantes. Por toda a cena proliferavam o dourado,
o prateado e a policromia, indicando a imperativa presença da luz na revelação
de magia e grandiosidade. (BERGMAN, 1977) Ele cita o próprio Beaujoyeulx, para
descrever os jardins de Circe:
[...] e o mais belo na abóboda, é que ela estava cheia de orifí-
cios redondos com vidros de todas as cores: atrás desses vidros,
brilhavam lamparinas a óleo lançando sobre o jardim cente-
nas de milhares de cores, através da transparência do vidro.2
(BEAUJOYEULX apud BERGMAN, 1977, p. 398, tradução nossa)
A repercussão foi tamanha que suplantou outros balés antes apresentados na
corte francesa – como A defesa do Paraíso (La defense du paradis), em 1572 e o Balé dos
poloneses (Ballet des polonais), no ano seguinte – sendo frequentemente mencionado
como o marco inicial na história do Balé. O teatro francês dos séculos XVI e XVII
apresentou organizações da cena que podem atuar como índices importantes
para o estudioso das suas relações com a imagem e provocam reflexões acerca
da presença da luz na origem dos espetáculos. A escassez de documentos rele-
vantes sobre o tema, no teatro francês do período, transforma textos como o de
Beaujoyeulx em fontes raras e estimuladoras da imaginação. Aquele momento
1 De acordo com a Enciclopédia Britânica on-line, a extravaganza é uma forma literária ou musical fundada em extrema liberdade de estilo, ostentando uma estrutura flexível, que tende a mixar elementos burlescos ou da paródia. Pode também se referir a um evento cênico, de elaborada espetacularidade, e relacionado ao Teatro de Variedades do século XVIII. (EXTRAVAGANZA, [201-])
2 “[...] et le plus beau de cette voulte paroissoit en ce qu’elle estóis tout percee de trous rond, boucher de vers de toutes sortes de couleurs: derriere ces verres reluisoyent autant les lampes à huile, lesquelles representoyent ou ce jardin cent mille couleurs, par la transparence du verre.”
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da cena francesa apresentou particularidades e mudanças que identificavam a
natureza do seu discurso visual.
Em primeiro lugar, quando se leva em conta a aplicação da luz, o teatro da
corte francesa do período desconsidera qualquer divisão entre o lugar da ação
cênica e o espaço destinado ao espectador. O público ia ao teatro para também se
colocar no centro da atenção e devia ser visto durante os espetáculos. Não se pode
esquecer que, mesmo ocorrendo em locais não concebidos originariamente como
teatros, a maioria desses acontecimentos teatrais apresentavam semelhanças nos
procedimentos de produção e aplicação da luz artificial.
Ainda assim, nem a relativa uniformidade do uso de velas e lamparinas a óleo,
difundido no continente europeu, resultou numa padronização técnico-estética,
em decorrência das características tecnológicas dos instrumentos utilizados na
iluminação dos ambientes. O trabalho de Anne Surgers fornece sólidos subsídios
para essa discussão quando ela comenta os arranjos sistemáticos da práxis cênica
francesa – desde as últimas décadas do século XVI –, destacando certas proposi-
ções espetaculares. Sua abordagem dos diferentes modos de conceber a cenogra-
fia revela possibilidades diferenciadas de espetáculos, e sugere uma incorporação
importante da luz. Tal observação deve ser sublinhada para afirmar que toda refe-
rência ao espetáculo inclui aspectos relevantes da presença da luz, mesmo que
artistas e/ou teóricos a desconsiderem, ou decidam omitir suas funções. Para que
se registre a contribuição da luz é indispensável observar indícios deixados nos
mais variados documentos.
De acordo com Surgers (2005b), o fim do século XVI indica mudanças importan-
tes no teatro francês, cujos temas já não estão atrelados exclusivamente a instân-
cias religiosas ou, nas suas próprias palavras: “[A arte] não é mais, portanto, a mani-
festação do Verbo [que se fez carne], como na Idade Média, e torna-se a representa-
ção de uma ficção mais ou menos relacionada, ou que se refere ao real, ou à verdade
[...]”.3 (SURGERS, 2005b, p. 115, grifo do autor e tradução nossa) Se for considerada
a extravaganza levada à cena por Beaujoyeulx no Grande salle du Petit Bourbon do
Louvre, pode-se ainda observar um arranjo cênico constituído de múltiplos espa-
ços que se manterá no teatro francês, registrando certa ressonância tardia do teatro
medieval. Muitos espetáculos exigiam visualidade particular que abrigasse na cena
a ficção que tem como referente o real, como diz Surgers (2005b).
Um dos principais trabalhos teóricos daquele momento, editado sob orienta-
ção oficial francesa, foi escrito por François Hédelin (1604-1676), abade de Mainac
3 “Il ne sert plus dès lors à la manifestation du Verbe comme au Moyen Âge, et devient la représentation d’une fiction en rapport de conformité ou de ressemblance plus ou moins directes avec le réel, ou le vrai, [...].”
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e Aubignac – razão que o tornou conhecido como L’Abeé D’Aubignac –, drama-
turgo e teórico. É possível destacar nessa obra elementos que podem coadjuvar na
compreensão do caráter visual do teatro da época. D’Aubignac (1715) faz comentá-
rios abrangentes, inclusive sobre os atores, dos quais exige formação apropriada,
tanto estudando, quanto praticando com artistas de reputação positiva compro-
vada, discutindo também o papel dos cenógrafos, o comportamento do público e
até a arquitetura teatral:
Acrescente-se que [nos teatros da Antiguidade, Grécia e Roma]
os assentos dos espectadores eram bem organizados, de modo
que ninguém poderia causar desordem mudando de lugar.
Hoje, as galerias e a plateia são muito incômodas e a maioria
dos camarotes está muito distante [do palco] e malsituada, e
a plateia não apresenta nenhuma elevação e nenhum assento
[...].4 (D’AUBIGNAC, 1715, p. 353, tradução nossa)
Aqui se observa o registro de aspectos importantes para as condições de visibi-
lidade nos teatros do período, derivados de espaços retangulares, ou seja: a plateia
encontrava-se ao nível do solo, sem assentos ou qualquer inclinação que favore-
cesse a visibilidade da cena; a disposição dos camarotes, instalados nas laterais
e acima da plateia, estabelecia progressiva dificuldade para que os espectadores
localizados nos camarotes laterais tivessem efetivo acesso visual ao espetáculo. Ali
acomodados, eles teriam diante de si, precisamente, outros espectadores dispostos
nos camarotes do lado oposto. Trata-se de um dado relevante para a compreensão
da convicção que se tinha do apelo visual exercido pelo espetáculo e da importân-
cia da visualidade para a cena. O arranjo arquitetônico assumia, mesmo de modo
ingênuo, uma força visual do espetáculo que o tornava capaz de atrair o olhar do
espectador. Vale lembrar que, já no início do século XIX, André Antoine critica
(1890) de modo veemente essa organização espacial do teatro, apontando-a como o
caminho a ser evitado para criar o que ele denominou de teatro “modelo”:
Todos os teatros atuais se compõem de uma plateia ao nível do
solo [...] e de uma variável quantidade de estágios superiores.
A forma circular, geralmente adotada, condena as duas fileiras
de espectadores desses planos superiores a, literalmente e sem
nenhum exagero, ser colocados uns diante dos outros. Eles não
4 “Ajoutez que les sièges des spectateurs étoient autresfois si bien ordonnez, que chacun étoit placé commo-dément & que l’on ne pouvoit faire aucun désordre pour changer de place; au lieu que maintenant les Galléries, & le Parterre sont très-incommodes, la plupart des loges étant trop éloignées & mal situées, & le Parterre n’ayant aucune élévation, ni aucun siège.”
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podem acompanhar a ação dramática, a menos que girem do-
lorosamente a cabeça na direção do palco. Se, a rigor, todas as
pessoas colocadas na primeira fileira dos balcões podem apre-
ciar os espetáculos sob uma tortura suportável, os ocupantes
das três ou quatro fileiras ao fundo são obrigados a ficar de pé,
a inclinar-se no vazio para ver uma pequena parte do palco.
Podemos mesmo afirmar que, em todos os teatros atuais, nos
últimos níveis dos balcões, há toda uma série de lugares de
onde não se vê absolutamente nada.5 (ANTOINE, 1890, p. 44-45,
grifo e tradução nossos)
Ainda hoje é possível encontrar espaços teatrais nos quais a visibilidade é
prejudicada e parte do público precisa se esforçar para ver o espetáculo; ainda se
assiste a espetáculos destratados visualmente, onde parece que o mais importante
é mostrar “alguma coisa” no palco, do que criar um discurso visualmente expres-
sivo. Parece que se cometem erros, já sublinhados no século XVII e condenados
no século XIX. A menos que se pretenda intencionalmente desconstruir uma das
mais importantes relações entre um espetáculo e o público, excluindo dessas rela-
ções a percepção visual, na qual a própria origem do termo teatro se fundamenta,
ou que se pretenda fundamentar o projeto visual da práxis cênica na improvisação
absoluta, divinizando o acaso.
Para voltar ao teatro francês do século XVII, vale citar Anne Surgers (2005b),
quando ela acentua a introdução de certo laicismo na cena francesa do período,
assim como a ausência de um lugar convencionado para a sua ocorrência,
restando como exceção a ópera de influência italiana. Ainda que se possa iden-
tificar na dramaturgia e na cenografia a presença de traços estilísticos oriundos
da Itália, a prática teatral francesa apresentava-se de modo diversificado do espe-
táculo italiano, inclusive pela diferença no uso da luz. Surgers (2005b) aponta
como razão importante para tanto, a transformação de diversos espaços em teatro,
entre eles grandes salões e pátios de castelos e hotéis, espaços abertos de jardins e
quadras de jogos precursores do tênis.
5 “Toutes les salles actuelles se composent d’un rez-de-chaussée [...] et d’un nombre variable d’étages. La forme circulaire, adoptée généralement, condamne les deux tiers des spectateurs de ces étages supérieurs à être placés littéralement et sans exagération aucune les uns em face des autres. L’action dramatique ne peut être suivie par eux sur la scène, qu’en tournant péniblement la tête. Si à la rigueur, toutes les personnes placées au premier rang d’un étage peuvent jouir du spectacle au prix d’une torture supportable, les occupants des trois ou quatre rangs placés en arrière sont obliges de se tenir debout, de s’arc-bouter, de se pencher dans le vide pour apercevoir une très petite partie du théâtre. On peut même afirmer que dans tous les théâtres actuels, il existe, aux deux derniers étages, toute une série de places d’où l’on ne voit absolument rien.”
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A configuração espacial dessas quadras repercute na construção da primeira
edificação pública francesa destinada à cena, o teatro L’Hôtel de Bourgogne (1548),
que receberia os espetáculos da Confraria da Paixão (Confrérie de la Passion) nos
momentos que antecedem a era moderna (Figuras 74 e 75). A casa de espetáculos
foi assim denominada por haver sido construída no mesmo terreno antes ocupado
pela residência parisiense da família Burgundy. Inicialmente destinado ao teatro
religioso, sob a responsabilidade da Confraria, a atividade foi interrompida no
mesmo ano, pelo rei Henry II (1519-1559), que proibiu a montagem dos “mistérios”.
O teatro passou então a ser ocupado por companhias que passavam por Paris, ou
até mesmo por espetáculos locais, que recebiam autorização especial.
A tipologia espacial e os espetáculos realizados no Hôtel de Bourgogne deno-
taram relevantes características das soluções encontradas pelos artistas da época,
na elaboração da visualidade particular do teatro daquele período. Um dos mais
importantes documentos acerca dos espetáculos realizados no Hôtel du Burgogne
apareceria na segunda metade do século XVII, Memória de inúmeros cenários
que serviram às peças contidas no presente livro, começada por Laurent Mahelot e
concluída por Michel Laurent no ano de 1673 [Mémoire de plusieurs décorations qui
serve aux pièce contenus en ce présent livre, commance par Laurent Mahelot et conti-
nué par Michel Laurent en l’année 1673 (ou 1678, como se pode ler na capa do manus-
crito)]. A edição de 1920, publicada por Henry Carrington Lancaster – professor de
literatura francesa da Universidade John Hopkins – lista relatos que teriam sido
escritos desde 1633, por Mahelot, e depois de 1643 até 1686, por Michel Laurent e/ou
outro autor não identificado.
Ainda que seja frequentemente atribuído a Mahelot, o Mémoire – como ficou
mais conhecido – inclui o decorateur (raízes do atual cenógrafo) Michel Laurent,
como coautor, e até se especula a participação de um terceiro colaborador, desco-
nhecido. O documento traz relatos acerca das montagens no Hôtel de Bourgogne
e, como o próprio título indica, refere-se a uma série de cenários de peças ali
postas em cena durante o século XVII. Os relatos incluem desenhos que regis-
tram os arranjos espaciais de quase cinco dezenas de espetáculos, entre os mais
de duzentos e cinquenta, cujos títulos são mencionados, indicando as atividades
desenvolvidas por esses artistas, entre eles predominantemente Mahelot, como
maquinista e/ou cenógrafo. Mesmo que algum comentador considere as descri-
ções incompletas e/ou imprecisas em certos relatos, os manuscritos representam
a mais valiosa fonte que registra a organização espacial, assim como procedimen-
tos ali aplicados.
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CENA COMPARTIMENTADA OU SIMULTÂNEA
Lancaster (1920, p. 34) salienta que algumas das peças montadas no Hôtel de
Bourgogne pareciam apresentar uma abordagem moderna em termos cenográfi-
cos, representando “casas e ruas” ou uma floresta, como exemplos.6 Ele diz que,
em muitos casos, era assumida uma convenção na qual o lugar objetivo onde a
ação da peça se passa é maior do que aquele disponível no palco. Por outro lado,
ainda que essa mesma convenção permitisse a disposição dos elementos de cada
dispositivo cenográfico em posições de relativa distância entre os mesmos, para o
espectador todo o quadro consistia em um único lugar iluminado de modo mais
ou menos uniforme, caracterizando a visualidade proposta que instalava uma
exposição integral do palco.
Outra observação do mesmo autor apresenta a configuração mais usada, defi-
nindo as características dos espetáculos:
Mas os cenários descritos na maioria das anotações são geral-
mente organizados como na Idade Média, em dimensão redu-
zida, para serem acomodados no palco do Hôtel [de Bourgogne].
A cena era dividida em compartimentos [cenários simultâ-
neos], ainda que cada um representasse um lugar completo
[autônomo]. A ação da peça passa de um compartimento a ou-
tro, e o espectador tem a tarefa de perceber um de cada vez.7
(LANCASTER, 1920, p. 34, grifo e tradução nossos)
O espaço teatral compartimentado propunha a estética de uma montagem
flexível e eficiente, na qual certos aspectos merecem destaque. Muitas especu-
lações podem ser feitas, uma vez que não há documentação substancial sobre a
aplicação da luz no Hôtel. Num palco de, no máximo, oito metros de largura por
sete metros de profundidade o cenógrafo distribuía indícios de vários ambien-
tes, usando os espaços laterais e o centro alto. Numa convenção simples e sofisti-
cada a ação era iniciada nas proximidades do lugar que virtualmente a abrigaria e
deslocava-se progressivamente para o espaço livre ao centro do palco.
6 O cenário de Édipo Rei, montado em 1545 no Teatro Olímpico em Vicenza, como exemplo, mostra uma inter-pretação ingênua de Tebas, considerada na Antiguidade uma grande cidade, pois tinha sete ruas e uma praça: o cenário reproduz, com certo pedantismo, exatamente esse número. Sete ruas e uma praça, ou “casas e ruas” implica uma soma que daria a impressão de cidade. Nesse mesmo raciocínio ou método, várias árvores criariam essa ideia de floresta.
7 “Mais les décors décrits dans la plupart des notices, sont plutôt disposés comme au Moyen Âge, quoique rape-tisses pour la salle de l’Hôtel. La scène se divise en compartiments, dont chacun fait un tableau complet. L’action de la pièce passe d’un compartiment à un autre et le spectateur obligeant tâche de n’en voir qu’un seul à la fois.”
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Os cenários indicavam muito mais uma alusão ao lugar da ação do que o desejo
ilusionista do modelo renascentista italiano. Um ou outro elemento cenográfico
poderia ser usado para contribuir na corporificação da cena, como uma cadeira ou
um telão ao fundo. Tal organização revela forte influência da estética do medievo,
com uma diferença principal, considerando-se que a cena simultânea medieval
ocorria em espaços abertos, em praças públicas, ou era distribuída no interior de
igrejas. No Hôtel de Bourgogne a cena estava contida num pequeno palco coberto e
confinado numa edificação.
No mesmo ano da inauguração do Hôtel de Bourgogne, ocorreu na cidade belga
de Valenciennes a montagem do Mistério da Paixão (Mystère de La Passion), um
espetáculo realizado num espaço público aberto, contando com efeitos especiais
e centenas de atores. Essa organização espetacular repercutirá na tipologia espa-
cial que orientou a proposição cênica francesa, mais tarde conhecida como cená-
rios compartimentados e simultâneos (décor a compartiments). É também justo
ponderar que o modelo perspectivista podia ser encontrado nos cenários citados,
mesmo sem o rigor de Alleoti, Torelli ou dos Bibiena. No contexto do Hôtel de
Bourgogne, cabia ao espectador a tarefa de selecionar o que devia ser “visto”, já que
os cenários estavam dispostos simultaneamente e somente um por vez deveria
ser o objeto ou tema da cena. A mencionada conjuntura técnica impedia que a
luz cumprisse efetivamente tal função. O espectador era incumbido de selecio-
nar, isolando mentalmente o local da ação para que o espetáculo ocorresse do
modo como foi concebido. Essa é uma visualidade muito particular, que se reflete
na escrita do dramaturgo, dando-lhe liberdade na elaboração da mecânica ou na
distribuição das cenas.
Os meios tecnológicos hoje disponíveis permitiriam de modo eficiente aos
olhos do espectador atual o isolamento de cada ambiente, elaborando uma visua-
lidade muito diferenciada daquela que um artista da época em questão poderia
vislumbrar. Portanto, diante da conjuntura técnica então vigente, tal isolamento
deixava de integrar aquela convenção. Pode-se até imaginar que um dramaturgo
francês do século XVII, ao escrever seu texto, projetava na imaginação a acentua-
ção de cada ambiente, através da ocupação do espaço do palco, sem vinculação
com tratos detalhados da luz, o que dava ao espetáculo por ele imaginado um
ritmo visual muito particular.
Ou seja, se o teatro efetiva uma simbiose dinâmica com a visualidade desde
sua origem na cena grega, a imaginação de um autor que escreve hoje em dia,
aliando sua experiência de espectador que “conhece” a flexibilidade e a preci-
são que a luz alcançou através dos procedimentos eletroeletrônicos, amplia suas
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opções dramatúrgicas. A luz interfere na sua escrita, e, consequentemente, em
toda a ramificação visual do espetáculo. Isso determina o modus espetacular que
o público efetivamente experimenta. A conjuntura técnica na qual a luz está inse-
rida define, portanto, a assertiva visual que instala a cena.
Mesmo sem encontrar textos que tratem separadamente suas questões técni-
cas, é possível elaborar certa conjectura no intuito de compreender as relações
entre os espetáculos mostrados no Hôtel de Bourgogne e a luz artificial então
disponível. Os desenhos incluídos no Mémoires não contemplam especificamente
aspectos da luz, e não se documentou qualquer interesse, do ponto de vista de
uma possível estética da iluminação, em destacar ou acentuar o espaço no qual se
origina a cena. Encontrando um ou outro exemplo da presença de instrumentos
destinados à luz, como no caso da descrição do cenário para Argénis (peça publi-
cada em 1631) ou Argénis et Poliarque (1630),8 de Pierre du Ryer (1606-1658), regis-
tram-se momentos nos quais os autores têm seus textos como que invadidos pela
visualidade: “É necessário que tenhamos, no meio do palco, um rico altar-mor,
duas tochas e luzes, um fogão e incenso. Em um dos lados do palco, fogos de arti-
fício escondidos no mar. Do outro lado, uma gruta [...]” (Figura 76).9 (MAHELOT
apud LANCASTER, 1920, p. 79, tradução nossa)
Observando o desenho incluído no Mémoires, define-se a presença de duas
fontes de luz (tochas), no centro, ao fundo. É possível presumir que a luz forne-
cida por essas fontes, dispostas sobre o altar, não seriam suficientes para iluminar
integralmente a cena; então, ao acrescentar o termo “luzes” (não contempladas
no desenho), o autor designa para as mesmas a função particular de promover a
visibilidade exigida pela cena, tornando-as imprescindíveis à criação das imagens
que ele vê mentalmente ao elaborar a dramaturgia, determinando a necessidade
de instrumentos “complementares” (não presentes na iluminação do ambiente
“real ou verdadeiro” representado em cena).
Não há indícios de qualquer procedimento técnico que orientasse a realiza-
ção técnica da imagem cênica projetada, tanto no desenho, quanto na descrição;
além disso, o limitado controle de instrumentos e acessórios disponíveis naquela
época resultava num altíssimo grau de dificuldade para o planejamento dessas
imagens, numa cena de tamanha complexidade visual. É possível, portanto,
8 O texto editado por de Lancaster (1920, p. 78) se refere à peça de 1630, enquanto o desenho que o ilustra é identificado como cenário para Argénis. Em qualquer caso o documento mantém seu papel de suporte para a pre-sente discussão.
9 “Il faut, au milieu du théâtre, un autel fort riche, deux flambeaux et des lumières, un rechaut, de l’encens. A un des costez du théâtre, un feu d’artifice dans une mer et caché. De l’autre costé, une grotte.”
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especular que o iluminador encontrava limites e os incorporava às soluções apli-
cadas aos espetáculos, de acordo com a conjuntura tecnológica em que ele estava
inserido. Tais variáveis definiam o modo de pensar visualmente a cena, assim
como o espetáculo que se poderia assistir.
Então, quando um aparato de luz artificial (no caso, as tochas sobre o altar)
é introduzido no espetáculo, como responsável pela iluminação do ambiente
teatralizado – e tal decisão já pode ter sido tomada pelo cenógrafo ou mesmo haver
sido indicada pelo dramaturgo –, fica estabelecido mais um problema a ser resol-
vido pela cena propriamente dita. Se o espetáculo estiver ligado a compromissos
com o real, como se pode observar na tragédia francesa do período, certas nuanças
técnico-estéticas indicarão caminhos para o planejamento da luz.
A literatura especializada do século XX, em inglês, introduziu a expressão
“luz motivada” (motivated light), para caracterizar o resultado de uma fonte de luz
dessa natureza, efetivamente presente na cena; o verbo motivar refere-se aqui ao
resultado produzido em um ambiente por diversificadas fontes de luz, como uma
lâmpada, uma fogueira, o sol, a lua, e assim por diante, incluídas na cena. O glos-
sário escrito por Norman C. Boulanger e Warren C. Lounsbury, traz o seguinte
comentário:
Espetáculos realistas devem apresentar fontes de luz realistas;
quer dizer, uma cena noturna deve parecer iluminada por uma
lâmpada, um aparato aéreo, uma lareira, ou pela luz da lua que
entra por uma janela. A aparente fonte de luz pode ser a key
light10 como a forte luz do sol através da janela ou pode ser par-
te da atmosfera, como uma fonte sugerida por uma veneziana
projetada na parede.11 (BOULANGER; LOUNSBURY, 1992, p. 102,
grifo e tradução nossos)
10 De acordo com Boulanger e Lounsbury (1992), key light é uma expressão originada na linguagem do vídeo e usada no teatro. No cinema, há a expressão “ataque”, com função similar. Refere-se à luz de maior brilho na cena, mais concentrada, aquela que modela as figuras. Há certas nuanças no uso das expressões “key light” e “high light”; a expressão “high light”, em certos casos, refere-se à luz de maior iluminância, ou brilho, incidindo sobre a cena. A formação do interessado na luz para a práxis cênica deve considerar a discussão desses conceitos, inclusive no que se refere à atmosfera, incluída no texto de Boulanger e Lounsbury (1992). Por vezes, construir a atmos-fera realista é um desafio com alto grau de dificuldade técnica, exige habilidade artística e apresenta sofisticada simplicidade visual, que não resulta em vantagem para o “iluminador”, uma vez que sua interferência não será evidenciada para o público que busca a obviedade grosseira e banalizada.
11 “Realistic plays should have realistic light sources: thus an interior night scene may appear to be lighted from a lamp, overhead fixture, fireplace, or moonlight through a window. The apparent source may be the key light such as a strong sunlight a window, or it may be part of the atmosphere such a source suggested by a projected venetian blind on the wall.”
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Se o espetáculo está orientado por alguma convenção de cunho realista e o
cenógrafo incluiu, no seu projeto, um lustre sobre uma mesa de refeições, a
geografia da cena pode parecer perfeita, sem a interferência da luz artificialmente
concebida para um espetáculo. Pode-se dizer que, numa proposta realista, a luz
da cena deveria ser simples como o ambiente sugere: ao menos uma lâmpada no
lustre sobre o centro da mesa distribui a luz para todo o ambiente, num padrão
concêntrico. Se a luz da cena for concebida seguindo essa provocação, ela, prati-
camente, não “aparecerá”, ou seja, a luz não será – ou não deveria ser – “notada”.
Caso a luz projetada por uma lâmpada instalada no lustre seja considerada
insuficiente, como assumiu Mahelot no texto já mencionado, e forem acrescen-
tadas “luzes” (hoje instrumentos – refletores – de diversos tipos) para promover a
visibilidade desejada ou necessária, o lustre terá influência direta na luz projetada
sobre a ação e originada em outras fontes aplicadas pelo iluminador. Tal influên-
cia derivará da projeção de sombras na cena, uma vez que o lustre representará
um obstáculo (entre as “luzes” e a cena), destruindo a ilusão pretendida pelo espe-
táculo: em se tratando de um lustre cuja função é iluminar o ambiente, numa
compreensão realista ele não teria sua própria sombra projetada sobre o ambiente
que está iluminando, o aconteceria como resultado de outra fonte de luz imposta,
no teatro. Caso a sombra seja revelada isso poderá provocar a desconstrução do
pensamento visual (realista) que norteia essa categoria espetacular (Figura 77).
Evitando usar como parâmetro o olhar desaprovador que se apoia no apren-
dizado do século XX para qualificar a estética realista, interessa aqui a identifica-
ção de problemas espetaculares criados pela relação direta entre essa convenção
e a luz. Apesar de ser hoje considerada um retrocesso, a simplicidade visual pode
oferecer soluções para muitos problemas cênicos, nesse caso, implicitamente
criados pela cenografia da peça citada, Argénis, que incorpora alto grau de dificul-
dade na sua elaboração e execução, mesmo com a tecnologia do século XXI.
Até se poderia considerar um bom exercício para um jovem em formação a
tarefa de produzir uma luz integrada ao ambiente de uma ação realista de modo
que os instrumentos, os acessórios e o sistema de controle não sejam os elemen-
tos centrais do discurso visual a operar na cena, no sentido que não devem ser
notados. Nessa categoria de evento, portanto, as fontes de luz inseridas no dispo-
sitivo cenográfico, porque estariam produzindo a efetiva iluminação do ambiente
“real” ou “verdadeiro” (motivated light) representado em cena, elaboravam um
problema cênico de considerável desafio para o iluminador.
O objetivo seria buscar uma luz que não causasse qualquer estranheza e,
de acordo com o propósito realista, não desse ao espectador chances de levan-
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tar questões que o afastassem do espetáculo e destruíssem a empatia: vendo a
imagem criada, o público não devia ter dúvidas acerca do ambiente da ação, o que
inclui a luz que o ilumina.
As variáveis técnico-estéticas que podem interagir numa situação dessa natu-
reza exigiriam abordagem particular que indica uma pesquisa específica. Por essa
razão, retornando às convenções teatrais do século XVII, na França, reafirme-se
que a luz realista pode se configurar como um excelente tema de pesquisa para o
designer (theatre lighting) em formação.
Na condição de dramaturgo, Du Ryer [autor de L’Argénis, versão francesa
da obra neolatina, descrita como ficção heroico-galante, de John Barclay (1582-
1621)] contava com alto grau de liberdade para elaborar ambientes e imagens das
quais o cenógrafo, assim como o figurinista, o maquiador e o aderecista se apro-
ximavam, elaborando formas, cores e texturas sem, necessariamente, a divisão
estrita de funções. A luz, contudo, era obrigada a subverter a limitada conjuntura
tecnológica, para tentar compartilhar com o público as imagens concebidas pelo
dramaturgo, pelo cenógrafo, pela presença dos atores, pela música, e assim por
diante. A criação da imagem cênica estará sempre perpassada pela compreen-
são do iluminador, envolvendo questões culturais, como a tecnologia, a estética,
a práxis de cada artista, dentre outras. A revelação da visualidade presente na
dramaturgia ocorrerá ou não, na cena, através de “trans-ações” com inúmeros
agentes culturais. De todo modo, mesmo que a dramaturgia aponte possibilida-
des muito diversificadas, como no teatro francês em questão, ainda assim não se
pode excluir a luz da realização cênica.
Se considerarmos a França do período agora em pauta, quando se concebia
um espaço teatral integralmente iluminado sem interesse na separação entre o
palco – théâtre – e a plateia, o locus da ação cênica era inscrito no espaço teatral
por uma relação entre a dramaturgia, a geografia particular da cena e a presença
dos atores. Ainda assim, quando são avaliados os instrumentos que efetivavam
a luz artificial então aplicada – tochas, candelabros e lamparinas –, assim como
os procedimentos conhecidos naquele momento, é possível aproximar o teatro
francês do legado italiano mesmo na ausência de registros sistemáticos da apli-
cação cênica da luz. Ou seja, acentuações, destaques, isolamentos de lugares e/
ou personagens, elaboração de atmosferas, entre outros. Eram desafios com alto
grau de dificuldade. Por outro lado, mesmo que sejam reconhecidas autonomias
e/ou hegemonias periódicas da dramaturgia, da cenografia e do ator, a funda-
mentação e/ou confirmação das estéticas que delas derivaram não caracterizam
maior ou menor importância da visualidade.
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278 | Eduardo Tudella
As descrições do dispositivo cenográfico que pode ser ligado à cena comparti-
mentada ou simultânea (décor à compartiments), escritas por Mahelot, já incluem
solicitações intuitivas à luz. Seus comentários acerca da tragicomédia O hipocon-
dríaco [L’hipocondre – L’hypocondriaque ou le mort amoureux (Figura 78)], de Jean
Rotrou (1609-1650), levada à cena em 1628, indicam feições de imagens visuais/
materiais:
No centro do palco temos uma câmara fúnebre e três túmulos,
com luzes que ardem, sendo que a mencionada câmara se abre
e se fecha, quando necessário. Em um lado do palco, uma bela
casa com duas cadeiras onde se pode sentar e no mesmo lado,
no quarto ato, uma árvore [...]. Do outro lado do palco, uma ma-
deira [tronco], uma toca, uma fonte e uma relva, onde se senta
ou se agacha uma dama, do mesmo lado do tronco.12 (MAHELOT
apud LANCASTER, 1920, p. 82, tradução nossa)
Ainda que se considere tal intervenção apenas uma breve sugestão de luz, ela
representa um impulso irrefreável para os artistas que definem o caráter visual do
teatro. A opinião de Lancaster, já mencionado acima, sobre as atividades desem-
penhadas por Mahelot durante os espetáculos caracteriza a ligação do decorateur
com a luz. Dentre suas atribuições estava incluída a elaboração de mecanismos
para as mudanças de cenários, efeitos sonoros e efeitos especiais de modo geral;
além de pedras caindo e ruídos de animais, ele acrescentaria raios, trovões, fogo e
também o anoitecer.
E o anoitecer ganha importância aqui, pois, de acordo com Lancaster, Mahelot
não aplicava os efeitos noturnos com a frequência necessária (de acordo com a
solicitação dos textos!); Mesmo que a dramaturgia indicasse tais efeitos os auto-
res nem sempre pareciam atendidos: “Mahelot talvez não estivesse familiari-
zado com o referido sistema, o que explica a omissão da noite nos relatos que
se referem às peças dos jovens autores como Du Ryer e Rotrou”.13 (LANCASTER,
1920, p. 39, tradução nossa)
12 “Il faut, au milleu du theatre a chambre funebre et trois tombeaux avec quantité de lumières ardantes, et que ladicte chambre s’ouvre et ferme quand il en est besoing. D’un des costez du théâtre, forme d’une maison assez belle avec deux chaires ou l’on s’assied dedans, et, du mesme costé, au quatriesme acte, un arbre [...]. De l’autre costé du théâtre, un bois, un antre, forme de fontaine, et du gazon ou tapit ou se repose une dame du mesme costé du bois.”
13 “Mahelot n’était pas, peut-être, tout à fait accoutumé à ce système, ce qui explique l’omission de la nuit de quelques notices qui appartiennent à des pièces de jeunes auteurs comme Du Ryer et Rotrou. Mahelot talvez não estivesse familiarizado com este sistema, o que explica a omissão da noite nos relatos que se referem às peças dos jovens autores como Du Ryer et Rotrou.”
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Lancaster (1920) até aponta a escassez de relatos sobre a luz, e justifica com
uma possibilidade que merece destaque:
Em Bajazet, a representação da cor local se reduz a um ‘salão
turco’. Não se fala de máquinas, exceto nos relatos sobre o
Amphitryon, uma vez que Le Mémoire não cita mais do que o títu-
lo de Andromède, peça notabilizada pelas suas máquinas [meca-
nismos para mudanças de cenários]. Já não se fala da noite, como
fez tantas vezes Mahelot, exceto para a descrição de Davineresse
[Feiticeira], onde aparece a iluminação. Provavelmente, a obri-
gação de produzir a noite já não era atribuição dos cenógrafos.14
(LANCASTER, 1920, p. 44, grifo e tradução nossos)
A noite parece representar um tema importante para a discussão daquele
teatro. Se a sua criação não era mais atribuição dos cenógrafos, alguém deveria
responsabilizar-se por isso. Cabe lembrar que Lancaster estava escrevendo sua
introdução para Le Mémoire, na segunda década do século XX, um momento no
qual a luz elétrica ganhou espaço no teatro e começavam a aparecer profissio-
nais especializados em sua aplicação. É possível, por conseguinte, que o aparente
desmembramento da equipe que criava o espetáculo, no século XVII, sugerindo
um responsável pela luz, não passasse duma conjectura de Lancaster. Por outro
lado, independentemente de quem a exercia, a atividade era imprescindível. Além
disso, ele já aponta um aspecto de grande relevância ao mencionar a demanda
apresentada pelos autores, quando solicitavam a noite nos seus textos. Como essa
função não parece ter sido documentada fica uma lacuna que pode ser preenchida
pela experiência teatral. É possível especular que alguém, ou uma equipe, tenha
sido envolvida nas resoluções de um problema tão particular. Mesmo que fosse o
cenógrafo, o diretor, ou qualquer outro membro da companhia, ele estaria contri-
buindo para a visualidade inscrita pela cena.
Para Lancaster (1920), o trabalho de Du Ryer e Rotrou mostra que a noite já estava
incorporada à dramaturgia tornando a luz indispensável para que a cena imaginada
pelo dramaturgo acontecesse diante do espectador. Afinal, pensar drama, cena, ou
acontecimento espetacular é estar sendo inevitavelmente provocado, mesmo num
movimento intuitivo, pela luz. Como se presumiu em diversos momentos, quando
se trata de elaborar a práxis cênica, desde suas primeiras imagens mentais um
convite é enviado à luz; nem sempre, no entanto, como já foi dito, ele aparece de
14 “La représentation de la couleur locale se borne à um “salon à la turque” pour Bajazet. On ne parle de machi-nes que dans la notice d’Amphitryon, car le Mémoire ne donne que le titre A’ Andromède, pièce fameuse pour ses machines. On ne parle plus de la nuit, comme faisait si souvent Mahelot, sauf dans la notice de la Devineresse, où il s’agit d’illuminations. Probablement l’obligation de faire venir la nuit n’appartient plus aux décorateurs.”
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280 | Eduardo Tudella
modo explícito. O teatro, então, exigiu progressivamente a presença de um respon-
sável pela luz cujo desempenho de natureza técnico-estética depende de alguma
habilidade e competência para o trato dessas questões. Isso inclui, tanto a apreen-
são de feições da luz nas ideias provocadoras de um espetáculo – texto, roteiro,
movimento, música, descrição verbal, improvisação –, quanto a resolução cênica
do problema.
A noite solicitada por um autor ganha muita importância, pois implica na
necessidade de controle: pode não bastar a redução da luz disponível, criando
uma penumbra generalizada, uma vez que o espetáculo pode exigir atmosfera
específica, implicando uma relação entre intensidade, distribuição, cor e movi-
mento, particulares. Atreladas às condições técnicas de cada período tais implica-
ções apresentam-se ao iluminador como problemas cênicos: que resposta visual
seria indicada para a noite proposta por determinada dramaturgia?
Uma montagem atual poderia dar ao artista grande liberdade para criar tal
condição ou qualidade, em consonância com a convenção escolhida pelo diretor,
pela geografia da cena, na ocupação da geografia pela personagem, o que pode
incluir uma solução que desconsidere qualquer indício realista da noite. Em um
texto de Shakespeare, como já se sabe, um artefato de luz artificial, por exemplo
uma tocha, pode indicar noite ou escuridão, mesmo num espetáculo apresen-
tado em pleno dia. Um sistema de contraluz que preencha todo o palco de azul,
geralmente azuis aquecidos, avioletados pela incorporação de uma sutil alma de
vermelho, pode indicar uma atmosfera noturna romântica. Inúmeras possibilida-
des se apresentam, hoje em dia, alguns séculos depois que Mahelot escreveu seu
trabalho.
Por outro lado, pode-se discutir o equívoco do uso de fórmulas como a apli-
cação redundante da mesma “família” de azuis, em contraluz, para indicar noite.
Será que basta fazer incidir sobre o palco certo matiz projetado de uma vara ao
fundo para enviar ao espectador um mar de azul através da reflexão, e teremos
sempre uma noite? Usar essa ou outra saída qualquer como fórmula que se repete
e repete, pode afastar os projetos da simplicidade e afundar a visualidade no
terreno do simplório, do senso comum.
ANDRÔMEDA: CENA E MÁQUINA
Lancaster sublinhou outra instância do comportamento da cena na França do
mesmo período referindo-se ao emprego de máquinas nos espetáculos. Essa atitude
configurava a acentuada influência do teatro italiano. Não somente nas festividades
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da realeza e na ópera inscreveu-se a presença italiana, mas também numa práxis
cênica cuja denominação pièces à machines, (literalmente, espetáculos feitos com
máquinas) revelava a incorporação de tal influência. Surgers (2005b, p. 124, grifo e
tradução nossos) define, assim, essa manifestação: “[...] todas as peças nas quais a
ação necessita de mudanças dos lugares espetaculares; as tragicomédias pré-clássi-
cas, o balé, as óperas, ou ainda as tragédias ou comédias à machine [...]”.15
Como se pode registrar, trata-se de um espectro de relativa amplitude cujo
traço de união é o dispositivo cenográfico, que se modifica e/ou se transforma.
Cabe destacar que essa mudança se refere à tecnologia da cena reinventada no
Renascimento, e que respondeu no Barroco a pressupostos de grandeza e movi-
mento, já mencionados. Assim, as manifestações que incorporavam a esté-
tica italiana, fortemente fundada na abordagem perspectivista e na “mudança
frequente e surpreendente de cenários”, difundida por Torelli e Vigarani,16 produ-
ziram direta contribuição para as piéces à machine.
Uma, dentre as mais documentadas expressões das peças realizadas com
máquinas, é Andrômeda (Andromède), montada em 1651, libreto de Corneille e
música de Charles Coypeau (1605-1677), também conhecido como Dassoucy. O espe-
táculo teve cenários de Giacomo Torelli, que havia se transferido para a França,
em 1645, indicado pelo Duque de Parma, onde alcançou sucesso com a A falsa
louca (La finta pazza), música de Francesco Sacrati e libreto de Giulio Strozzi,
montada no Salão Petit Bourbon do Louvre, quatro anos depois da estreia em
Veneza, em 1641. Em 1647, entretanto, sua montagem da tradução de Corneille
para Orfeu (L’Orfeo), no Palais Royal, recebeu grande resistência, em meio à crise
social francesa. Parte do público agitou-se contra o que entendia como desperdí-
cio, as despesas dos caríssimos espetáculos “estrangeiros”.
Tal reação negativa repercutiu na parceria entre Corneille e Torelli, originando
um novo espetáculo denominado Andromède (1650), com texto original do drama-
turgo francês que tomou como provocação o mito de Perseu e Andrômeda. Torelli
reutilizou na montagem os cenários do combatido L’Orfeo, citado como marco da
influência italiana na piéce à machine. Nagler diz que Corneille teria levado em
consideração os cenários já existentes para escrever o libreto. (NAGLER, 1952, p. 168)
15 “tous les pièces dont l’action necéssite des changement de lieux spetaculaires: les tragi-comédies pré-clas-siques, les comédie-ballets, les óperas, ou encore les tragedies ou les comédies à machine, [...].”
16 Gaspare Vigarani (1588-1663), renomado arquiteto e cenógrafo italiano, que esteve em Paris a convite de Mazarin, em 1659, para trabalhar na Salle de Machines das Tulherias. Depois do reduzido sucesso da sua cenografia para o balé de inauguração desta casa de espetáculos, em 1662, hostilizado por artistas franceses retornou para a Itália. (SURGERS, 2005, p. 175, tradução nossa)
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282 | Eduardo Tudella
Aceitando essa premissa, estaremos diante de um exemplo explícito de cumplici-
dade radical entre a visualidade e a cena.
Usar como tema o amor entre Perseu e Andrômeda já pode representar a
possibilidade de fazer repercutir no espetáculo eventos fantásticos que integram
a ação relatada no mito, envolvendo divindades e monstros. O ambiente original-
mente descrito pelo dramaturgo, logo abaixo da relação de personagens, parece de
extrema simplicidade, localizando a ação na capital do Reino de Cephée, Etiópia.
(CORNEILLE, 1862)
Os cenários dos cinco atos, cada um deles em ambiente diverso do outro,
estão ilustrados nas gravuras de François Chauveau (1613-1676), já artista proemi-
nente, que seria nomeado conselheiro da Academia Real de Pintura e de Escultura
(Académie royale de peinture et de sculpture), em 1663 (Figuras 79 a 84). As gravuras
mostram a busca pelo rigor perspectivista e configuração esquemática, apresen-
tando uma visão generalizada de cada ambiente, sem preocupações com a luz ou
a atmosfera particular de cada momento. A julgar pela esquematização observada
principalmente nas sombras das personagens, Chauveau define para o prólogo
uma luminosidade abrangente que banha uniformemente o lugar, a partir de uma
fonte natural única, ligeiramente deslocada para a esquerda. Nos dois primeiros
atos há indícios de uma luz principal ao fundo, no centro-alto, como se originada
pelo sol ou pela luminosidade do céu. No terceiro e quarto atos, ele estabelece
uma variação e sugere a fonte de luz principal vinda da esquerda.
Os desenhos para a cenografia, por vezes, mais sugerem a exposição da topo-
grafia da cena do que evocam a atmosfera do momento. Uma tarefa muito bem
colocada para um interessado nas relações entre a luz e a cena seria incluir nos seus
projetos representações pictóricas das cenas, expressando as condições climáticas,
as atmosferas, assim como os índices simbólicos da visualidade proposta, repercu-
tindo sua compreensão dessa visualidade. Isso pode contribuir para o amadureci-
mento do pensamento visual que sustenta seu projeto.
A conjectura de Bergman, na qual ele suspeita que Corneille tenha escrito
Andromède prevendo um espetáculo que usaria cenários já existentes e projetados
para o L’Orfeo, pode representar elemento decisivo no caminho para a interação
do espetáculo com a visualidade. Além disso, Bergman ainda destaca uma prová-
vel afirmação do dramaturgo, que teria apontado a aplicação dos décors à machine
na sua montagem de Andromède, como mais do que simplesmente um sistema
mecânico interferindo no espetáculo e, sim, como um elemento da poética, inte-
grado organicamente no corpo da cena: ele acentua certas definições referentes à
cenografia quando, depois de apresentar o argumento da peça discute questões
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A luz na gênese do espetáculo | 283
particulares do espaço cênico. Corneille pondera que, a despeito da diversidade de
lugares necessários para a ação, teria sido supérfluo especificar (os cenários) nos
versos, uma vez que eles são apresentados aos olhos do espectador.17 Ele ainda diz
que o único lugar apresentado rigorosamente pela fábula é o mar (com os roche-
dos, na praia onde a heroína é deixada como dádiva ao monstro), no terceiro ato.
Corneille (1862) afirma que os outros espaços da ação eram produtos de sua
própria invenção, que ela não exige cenários tão específicos e poderia ocorrer em
outro lugar, ou lugares. Corneille até usa o primeiro ato como exemplo, e argu-
menta que a ação de tirar a sorte para a indicação da próxima vítima do monstro
ocorre numa praça pública, o que não é imperativo, e explica: “[...] tudo que aí
se diz, poderia ser dito também em um palácio ou um jardim [...]”.18 (CORNEILLE
apud MARTY-LAVEAUX, 1862, p. 306, tradução nossa) Para ele, há dois conceitos
determinantes – o provável e o necessário –, remetendo a uma das características
da ação dramática moderna de natureza realista, a lógica. Vale lembrar que no seu
texto sobre o argumento de Andromède, e incluído antes da peça propriamente
dita, ele comenta e justifica mudanças operadas na narrativa do mito, quando
estabelece um número de cinco filhas para Cefeu e Cassiopeia, ao invés de apenas
uma, Andrômeda.
Em se tratando de uma dramaturgia mergulhada em temas míticos, incluindo
o trânsito de deuses, semideuses, heróis e efeitos extraordinários ocasionais, o
estabelecimento da lógica é cuidadosamente acentuado para que o contraste entre
a indicação de real e de extraordinário apresente impacto, também, e no caso,
visual. Vale lembrar que Andromède não é a primeira peça francesa a incorporar
música e o sistema décors à machine, pois, como afirma Guizot (1852), Alexander
Hardy (1570/1572-1632) já havia usado o coro em suas tragédias, assim como máqui-
nas nas pastorais. Ele especula, ainda: “[...] parece que todos os acessórios foram
combinados em ‘Casamento de Orfeu e Eurídice, ou a grande jornada das máquinas’,
montada em 1640 [...]”.19 (GUIZOT, 1852, p. 178, grifo e tradução nossos) Dando
conta de um relato do período, ele mencionou a entrada de Vênus numa enorme
estrela que ilumina todo o palco.
Dessa época, há peças cujos programas traziam uma inscrição muito impor-
tante para o contexto, informando ao espectador que ele veria cinco mudanças de
17 Parece remeter ao teatro grego e às substanciais referências a tempo e lugar, na poesia dramática da Antigui-dade, assim como ao teatro de Shakespeare, por motivo semelhante.
18 “Tout se qui s’y dit se dirait aussi bien dans cette palace qu’en ce jardin ou dans ce palais.”
19 “[...] it appears that all these accessories were combined in the “Marriage d’Orphée et Euridice ou la grande Journée des Machines”, performed in 1640, [...].”
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284 | Eduardo Tudella
cenários. Tal estratégia pressupõe uma incorporação particular da luz para interagir
nesses eventos. Era uma promessa de fusões mecânicas espetaculares de cenários,
entre um e outro ambiente, o que remete ao sistema fade in/fade out,20 introduzi-
dos mais tarde no cinema, sem mencionar a própria elaboração do cross-fade21 muito
aplicado na luz para a cena, hoje em dia. O apelo visual desse teatro até suscita uma
discussão que sublinha certa radicalização: em Androméde, o dramaturgo teria inte-
grado a música para, também e estrategicamente, camuflar o ruído dos mecanismos
que movimentavam elementos do dispositivo cenográfico. Ou seja, o som introdu-
zido como artifício para emprestar excelência à visualidade. O próprio Corneille
pode ter provocado tal discussão, quando escreveu no Examen, disposto entre o
argumento e o texto da peça:
[...] eu apliquei [a música] para, nada mais do que o entrete-
nimento dos ouvidos dos espectadores, enquanto seus olhos
observam uma máquina que sobe ou desce, ou estão presos a
alguma coisa que os impeça de prestar atenção àquilo que os
atores possam estar dizendo, como no combate entre Perseu e
o monstro.22 (CORNEILLE apud MARTY-LAVEAUX, 1862, p. 304,
tradução nossa)
Alguns comentadores questionam tal papel mecânico e superficial da música,
apontando funções mais organicamente ligadas à dramaturgia que a fazem assu-
mir papéis determinantes como aquele de dar poder a Perseu para derrotar o
monstro (POWELL, [200-]) No interesse da presente abordagem, importa mencio-
nar as dinâmicas relações que põem em jogo os diversos aspectos da práxis cênica,
incluindo a visualidade.
A despeito da escassez de relatos e documentos que tratem especificamente
das soluções técnicas referentes à contribuição da luz, assim como dos resultados
produzidos nos espetáculos do período, enfatizem-se os movimentos do drama-
turgo, que deixam pistas do seu interesse pela cena na sua condição de objeto da
percepção visual. Nicodemus Tessin, já mencionado aqui, mesmo sem apresentar
avanços significativos, do ponto de vista puramente técnico, fornece indicações
do tratamento da luz no teatro francês do século XVII.
20 Expressões da linguagem cinematográfica que se referem ao aparecimento e desaparecimento gradual da imagem.
21 Fade in e fade out (aparecer-desaparecer) simultâneos e com tempos próprios, em um movimento de luz para um espetáculo.
22 “[...] que je n’ai employée qu’à satisfaire les oreille des spectateurs, tandis que leurs yeux sont arrêtés à voir descendre ou remonter une machine, ou s’attachent à quelque chose qui les empêche de prêter attention à ce que pourraient dire les acteurs, comme fait le combat de Persée contre le monstre.”
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A luz na gênese do espetáculo | 285
Bergman (1977) enfatiza que, enquanto se podem verificar referências a uma
ribalta móvel brilhando desde o início do espetáculo, embutida no limite anterior
do palco, não há no Palais Royal, como exemplo, indicações de varas (elementos
de sustentação dispostos horizontalmente acima do espaço destinado à repre-
sentação). Antes de simplesmente sublinhar tal ausência como mera deficiência,
deve-se lembrar, no entanto, que Bergman também menciona relatos de viajantes
franceses em visita à Itália, nos quais são comentados o que os autores chamam
de cenários mal iluminados. Um julgamento que poderia ser justificado, pela
sua assertiva: “Os italianos tornaram a luz um componente mais ativo da criação
pictórica (na cena). Isso já era possível com o escurecimento da plateia e pelas
mudanças mais rápidas de cenários, com luz intensa ou reduzida”.23 (BERGMAN,
1977, p. 126-127, tradução nossa)
Na mencionada introdução para Andromède, edição de 1651, Corneille deixa
um documento valioso para a pesquisa que levou ao presente trabalho. Tal valor
já se justificaria no discurso que anuncia a estratégia aplicada pela dramaturgia,
que incorporava a visualidade do espetáculo. Considerando tratar-se de um texto
escrito em um momento decisivo para a construção da espetacularidade moderna,
essa introdução torna-se um documento provocador para as elaborações aqui
propostas. Mesmo reconhecendo as regras estabelecidas no século XVII, período
no qual o teatro francês apresenta uma compreensão peculiar da tragédia antiga e
da Poética de Aristóteles, cabe sublinhar o legado deixado por Corneille.
Discutindo e esclarecendo a construção da intriga que movimenta os confli-
tos do seu drama, justificando escolhas que determinam sua elaboração particu-
lar e/ou apontando a origem dos argumentos que provocam suas obras – como
Ovídio, no caso da peça em questão, ele produziu um relevante documento para a
compreensão da cena. Nos textos chamados Examen, que introduzem ou acompa-
nham sua obra dramática, ele construiu trilhas para a compreensão das profundas
relações entre o seu teatro e a visualidade.
Aqui será evitada a discussão de abordagens que pretendem sublinhar uma
categorização para Andromède, em que se sugere que o texto de Corneille deve ser
compreendido como um libreto, ou seja, elemento de um espetáculo cujo caráter
é notadamente musical; importa pouco também se a vinculação aos pressupos-
tos da piéce à machine deva ser reconhecida como sua característica mais deter-
minante. Nenhuma das abordagens invalidaria o principal interesse da discussão
em andamento, qual seja o de sublinhar os traços da visualidade já presentes na
23 “The Italians made light a more active part of the pictorial creation. This had already been made possible by the darkened auditorium and by the more rapid rhythm of changing décor, illuminated and in dimmed light.”
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286 | Eduardo Tudella
dramaturgia, para um espetáculo que a tome como provocação. Por outro lado, a
antecipação da cena pelo dramaturgo que escreve com o olhar voltado para o palco
é um aspecto determinante.
Para definir as bases do espetáculo desde a introdução do prólogo, Corneille dá
as mãos aos pressupostos da visualidade. Sua primeira providência é assegurar que
se ofereça ao espectador a visão frontal de uma vasta montanha de picos irregula-
res, que se elevam até as nuvens. Na base dessa montanha, há uma gruta através
da qual se vê o mar, ao longe. Diante da montanha, em cada lado do palco, muitas
árvores entrelaçadas. A primeira ação revela o grau de fantasia do tema. Ovídio
mais uma vez é a fonte, nos livros quarto e quinto da já mencionada Metamorfosis:
“Sobre um dos picos da montanha aparece Melpômene, a musa da tragédia; e no
lado oposto, no céu, o Sol que avança num carro todo iluminado, conduzido pelos
quatro cavalos, como relata Ovídio”.24 (CORNEILLE apud MARTY-LAVEAUX, 1862,
p. 258, tradução nossa)
Assim como em outras obras, a abertura de Andromède oferece pistas da gran-
diosidade pretendida: a primeira personagem é Melpômene, uma das nove musas
de acordo com a Teogonia de Hesíodo (11.75-103) – que apesar do seu canto de júbilo
ficou conhecida como Musa da Tragédia – portando uma máscara na mão direita.
O primeiro diálogo envolve Melpômene e o próprio Sol, com a maiúscula inicial
que se refere à sua presença na lista de personagens da trama (dramatis-personae).
Na edição de 1651, a relação das personagens apresenta uma divisão, introduzindo
em primeiro lugar os deuses – que aparecerão à machines – e somente depois as
personagens humanas, declarando a diferença de tratamento de tais categorias
opostas, e deixando pistas para a luz. Trata-se de um importante indício das trilhas
que guiarão um espetáculo originado em Andromède e destaca a compreensão da
visualidade nela instalada, até para que se possa negar ou desconsiderar as indi-
cações que Corneille oferece. A primeira fala da musa define a composição que o
dramaturgo imagina para a cena:
Retenha um pouco sua impetuosa corrida | Meu palco, oh Sol,
bem merece teus olhos | Jamais vistes nestes lugares | Pompa
tão majestosa:| Reuni para ser admirado | O que há de mais belo
na França e na Itália, | Adornado pelas artes das minhas irmãs:
24 “Sur un des sommets de montagne parait Melpomène, la muse de la tragédie; et, a l’opposite dans le ciel, on voi le Soleil s’avancer dans un char tout lumineux tire par les quatre chevaux qu’Ovide lui donne.”
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A luz na gênese do espetáculo | 287
| Empresta-me teus raios, para melhor iluminar.25 (CORNEILLE
apud MARTY-LAVEAUX, 1862, p. 1, tradução nossa)
São inúmeros os elementos de provocação para qualquer abordagem dessa
obra, o que sugere estreitas relações com a percepção visual. O autor convida o
espectador e promete maravilhar “os olhos” do próprio Sol, anunciando o mila-
gre que está por vir, o vigoroso brilho da atmosfera que ele mesmo via na espe-
tacularidade da sua dramaturgia. As oito irmãs de Melpômene, musas como ela
– Clio, Euterpe, Tália, Terpsícore, Érato, Polímnia, Urânia e Calíope –, trazem, não
somente a inspiração poética, mas também, simbolicamente, todas as formas de
pensamento, incluindo a eloquência, a sabedoria, a persuasão, a história, a mate-
mática e a astronomia.
Por outro lado, o autor expressa o poder do Sol, ou da luz, cujos raios são indis-
pensáveis para revelar a beleza concebida pelos artistas, pelos filósofos e pelos
homens da ciência: “Empresta-me teus raios, para melhor iluminar”.26 (CORNEILLE
apud MARTY-LAVEAUX, 1862, p. 316, tradução nossa) No final do prólogo, o Sol
afirma haver retardado o curso do tempo para contemplar o príncipe, e decide
voar rapidamente, levando Melpômene em seu carro reluzente, determinando
mais uma vez o tempo sobre a Terra. Qualquer referência futura ao controle do
tempo/espaço nas artes cênicas e no cinema não parece mera coincidência.
Em seguida, a prometida mágica dos cenários em movimento é apresen-
tada por Corneille, na transição para o primeiro ato. A grande montanha se eleva
progressivamente, em blocos de rochas e, simultaneamente, também em um
movimento progressivo, a cidade é revelada, instalando-se a praça na qual ocorre
toda a ação do ato. Ele descreve o cenário: “[...] Nos dois lados do palco e ao fundo
há magníficos palácios, diferentes na aparência, mas guardando admiravelmente
o equilíbrio e a precisão da perspectiva [...]”.27 (CORNEILLE apud MARTY-LAVEAUX,
1862, p. 320, tradução nossa)
Essa é a conjuntura das relações estético-poéticas presentes na Andromède de
Corneille. Em cada mudança de cenários, o olhar do espectador deve ser maravi-
lhado; para o segundo ato, a praça pública desvanece, enquanto surge, simulta-
neamente, um “delicioso” jardim, de acordo com adjetivação do próprio Corneille;
25 “Arrête un peu ta course impétueuse; | Mon théâtre, Soleil, mérite bien tes yeux; | Tu n’en vis jamais en ces lieux | La pompe plus majestueuse; | J’ai réuni par la faire admirer, | Tous ce qu’ont de plus beau la France et l’Italie; | De tous leurs arts mes souers l’ont embellie: | Prête-moi tes rayons pour la meieux éclairer.”
26 “Prête-moi tes rayons pour la mieux éclairez.”
27 “[...] Les deux cotés et le fond du théâtre sont des palais magnifiques, tous différents de structure, mais que gardent admirablement l’égalité et le justesse de la perspective.”
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introduzindo o terceiro ato, ele indica uma estranha metamorfose para a entrada
de Perseu, com a monstruosa cabeça da Medusa em seu escudo: o jardim se trans-
forma na imagem de um horrível espetáculo, originado no suplício de Andrômeda,
causado pela presença do funesto dispositivo da injustiça dos deuses. O mar,
rodeado de rochedos gigantescos agita, sob um vento perturbador, enormes ondas
entre as quais aparecerá o monstro enviado por Júpiter Ammon.
Aí ocorrerá a luta entre Perseu e a monstruosa criatura. Voando com a ajuda
de Pégaso, portando a cabeça da Medusa, o herói desposará a jovem, após vencer
a batalha, configurando-se o milagre anunciado por Corneille no início do ato,
quando Timante diz: “Se o céu não é injusto, dar-se-á um milagre”.28 (CORNEILLE
apud MARTY-LAVEAUX, 1862, p. 353, tradução nossa) Segundo Corneille (apud
MARTY-LAVEAUX, 1862), o quarto ato pode se passar tanto em um vestíbulo quanto
numa grande sala, onde se dará o casamento de Perseu e Andrômeda. Pilares de
cada lado, estátuas de mármore branco, tudo obedecendo à justeza da arquitetura.
Para que tal ambiente seja instalado, no entanto, as ondas devem “afundar no
palco”; ainda que indique no cenário para o quinto ato pilares semelhantes aos do
Ato 4 – com pequenas modificações – o dramaturgo revela a influência de Torelli,
e sugere um ambiente que pode se parecer com aquele que o antecede, mas deve
incorporar a grandiosidade da morada dos Deuses:
Veem-se ainda duas fileiras de pilares como no outro [cená-
rio], mas com uma ordem diferente, como nunca se ouviu
relato. Estes são de pórfiro e todas as bases e acabamentos
são de bronze, com gravuras que representam muitos deuses
e deusas. A reflexão da luz sobre o bronze produzirá um dia
extra ordinário.29 (CORNEILLE apud MARTY-LAVEAUX, 1862,
p. 380, tradução nossa)
Além de especificar a natureza plástica dos elementos que constituem o dispo-
sitivo cenográfico, Corneille conclui enfatizando o papel da luz como fator deter-
minante na efetivação do seu teatro, fazendo ecoar a já comentada repercussão do
teatro renascentista e do teatro barroco na cena francesa.
28 “Si le ciel n’est injuste, il lui doit un miracle.”
29 “On voit encore en celle-ci deus rangs de colonnes comme en l’autre, mais d’un ordre si différent, qu’on n’y remarque aucun rapport. Celles-ci sont de porphyre, et tous les accompagnements qui les soutiennent et qui les finissent, de bronze ciselé, dont la gravure représente quantité de dieux et déesses. La réflexion du lumière sur ce bronze en fait sortir um jour tout extraordinaire.”
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A luz na gênese do espetáculo | 289
PIERRE CORNEILLE COMO RESISTÊNCIA
Uma dentre as mais reconhecidas obras de Corneille, Le Cid – inicialmente clas-
sificada por ele como uma tragicomédia –, alcançou, simultaneamente, grande
aceitação do público e desaprovação de teóricos e críticos. Tal reação negativa
rendeu significativo volume de documentos, originando o episódio denomi-
nado a “Querela do Cid”, nos anos 1637 e 1638, que a tornou importante, tanto
para a dramaturgia quanto para a teoria, assim como para a crítica teatral. Além
disso, esses episódios ganham relevância quando remetem à práxis cênica, ao
tratamento do espaço teatral. Corneille escreveu Le Cid depois de desligar-se da
sociedade chamada “Os Cinco Autores” (Les cinq auteurs), criada pelo Cardeal
Richelieu,30 para congregar poetas capazes de divulgar suas ideias, em obras que
atendessem a certo ordenamento gerado por um conjunto de costumes considera-
dos importantes para o engrandecimento moral. Deviam ser seguidos pressupos-
tos de excelência da língua francesa – em acordo com os postulados da Academia
Francesa (Academie Française) – em uma dramaturgia que acompanhasse os câno-
nes originados na interpretação da estética grega da Antiguidade, seguindo um
movimento de quase um século de esforços da mesma natureza.
Tratava-se da aceitação do “modelo clássico”, em detrimento do teatro prati-
cado desde o medievo, de apelo popular na França e efetivado numa diversidade
teatral significativa que incluía milagres, mistérios, moralidades, farsas e sotties.31
É possível observar essa tendência de atender ao mencionado “modelo clássico” já
na obra de Étienne Jodelle (1532-1573) que procurava seguir estritamente as supostas
regras da dramaturgia da Antiguidade. A sua tragédia Cleópatra [Cléopâtre (1552)]
é considerada a primeira tragédie régulière,32 no caminho da tragédia neoclássica
francesa que representou parte do empenho em busca de uniformidade e preci-
são, para combater aquilo que se entendia como a desordem na linguagem e na
poesia, fortemente manifestada até as primeiras décadas do século XVII.
30 Ou Armand Jean du Plessis (1585-1642), primeiro-ministro e articulador do poder na corte francesa, desde 1628 até sua morte.
31 Espetáculo farsesco, de conteúdo politicamente agressivo, muito cultivado no século XV.
32 Cf. verbetes régulière e réglé, nas referências. No século XVI, na França, a tragédia que atendia naturalmente às regras; no caso, a convenção das três unidades [ação, tempo e lugar], derivadas de interpretações da Poética de Aristóteles. O substantivo regularité, assim como o adjetivo regulier[ière] tornaram-se fortemente ligados à tragédia; o Dictionnaire de l’Académie Française asssocia ambos ao verbete tragédia (consulta à sexta edição, de 1835). Regularidade refere-se, nesse contexto, a um padrão que se considera normal, esperado, sem extrapola-ções: O Dictionnaire universel des synonymes de la langue française inclue nos verbete réglé e régulière associações à tragédia. (GUIZOT, 1861, p. 628)
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Mitchell Greenberg (1986) se refere ao Classicismo francês como o protótipo
de uma nova estética capaz de dar cunhos de “perfeição” à obra de arte, aplicando
regras de harmonia e simetria, assim como outras propriedades similares em torno
das quais o teatro que se fazia, então, apenas tateava. Ainda segundo Greenberg
(1986), o novo modo de representação que os contemporâneos de Corneille identi-
ficavam como tragédie régulière, estabelecia relações tanto com a estética quando
com o ethos.33
Em um primeiro sentido ‘régulière’ designa uma obra que segue
as regras: regras de unidade, de imitação e verossimilhança que
foram primeiramente articuladas (ou assim se acreditava) por
Aristóteles. A tragédia regular obedece à lei. Reproduzida como
espetáculo essa obediência serve continuamente como uma
nova produção da origem da Lei, o ato que funda a organização
social. Em segundo lugar, ‘régulière’ define os parâmetros esté-
ticos de uma representação. Seguindo as regras do Classicismo
ela alcança uma totalidade, uma integridade na qual as várias
partes da obra são aglutinadas em um sistema unificado, em
uma estrutura totalizada.34 (GREENBERG, 1986, p. 66)
A opinião delineada por Kastner e Atkins (1907) ao analisarem os estudos
teóricos de Boileau (1838) [Nicolas Boileau-Despréaux (1636-1711)], indica o rumo
que se procurava: “[...] a imitação dos antigos, não porque são antigos, mas porque
ninguém [como eles] imitou a natureza com a mesma fidelidade [...]”.35 (KASTNER;
ATKINS, 1907, p. 128-129, tradução nossa)
Tal imitação da natureza encaminhava a necessidade de referência ao comen-
tado real e/ou verdadeiro e começava a ganhar destaque com a repercussão de
textos da Antiguidade clássica, principalmente a Poética, de Aristóteles, cuja inter-
pretação foi incorporada à práxis cênica do Renascimento italiano e recebeu inter-
pretação particular na França.
Pode-se dizer que a manifestação artística inclui uma aspiração latente de
reconhecer princípios do real, se o considerarmos uma compreensão dinâmica
33 Ethos, como um conjunto de ideias e atitudes relacionadas a uma organização social em particular.
34 “In a first sense ‘régulière’ designates a work which follows the rules: those rules of unity, of imitation and verisimilitude that were first articulated (or so it was thought) by Aristotle. A regular tragedy obeys the Law. This obedience, reproduced as spectacle, continually serves as a new production of the Law´s origin, the founding act of society. Secondly, ‘régulière’ defines the esthetic parameters of such a representation, by following the rules Classicism achieves a wholeness, an integrity of being in which the various part of the work are subsumed in a unified, total structure.”
35 “[...] the imitation of the ancients not because they are the ancients, but because no one since has imitated nature with the same fidelity […].”
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A luz na gênese do espetáculo | 291
que guarda relação direta com sua contemporaneidade. Os artistas e filósofos
do Renascimento na Itália são os primeiros que tratam do real de maneira siste-
mática, assim como da sua própria representação, provocados pelos escritos
de Aristóteles e de Horácio. A indicação da aparência de real é uma aspiração já
presente na mentalidade humanista de vincular o ser humano, seu ambiente e
seus desejos, à literatura. Tal mentalidade ganha força na Itália, desde o século XV
com a introdução da tradução latina da Poética de Aristóteles, considerando sua
abordagem literária, diversa da obra de Horácio, Arte poética, já conhecida desde o
século I antes de Cristo.
A divulgação do trabalho de Aristóteles através das traduções italianas, e prin-
cipalmente os comentários de Ludovico Castelvetro (1501-1571), publicados em
1570, suscitaram muitos debates na França do século XVII. As interpretações fran-
cesas culminariam com a mencionada proposição radical que ficou conhecida
como “regra das três unidades” (ação, tempo e lugar).
Mesmo levando em consideração as especulações acerca da autoria da Poética
de Aristóteles enfatize-se que uma leitura atenta de suas considerações sobre
esses pontos revela, com alguma clareza, que ele não estabeleceu essas três regras
e, tampouco exige seu cumprimento na constituição da tragédia. Vale, por conse-
guinte, lembrar texto da Poética:
A tragédia é, então, um processo de imitação de uma ação que
tem implicações sérias | é completa e tem magnitude; construí-
da com uma linguagem sensivelmente atrativa, com cada um
dos seus elementos distribuídos em partes; realizada efetiva-
mente por pessoas e não por meio de narração; através de uma
jornada de piedade e terror se dá a purificação dos atos trágicos,
os quais têm essas características emocionais.36 (ARISTÓTELES,
1983, p. 25, tradução nossa)
Aristóteles considerava que a ação deve ser completa, apresentada por atores
numa linguagem cuidadosamente elaborada com determinado ordenamento,
tornando-a capaz de purificar profundos sentimentos relativos aos atos trági-
cos, através do terror e da piedade que os mesmos provocam, e não por alguém
que narra. Certas argumentações teóricas em torno das interpretações dessa obra
concorreram para a expectativa de determinados caminhos do espetáculo, com
36 “Tragedy, then, is a process of imitating an action which has serious implications, | is complete, and possesses magnitude; by means of language which has been made sensuously attractive, with each of its varieties found separately in the parts; enacted by the persons themselves and not presented through narrative; through a course of pity and fear completing the purification of tragic acts which have those emotional characteristics.”
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especulações sobre as relações entre o tempo e o espaço que geraram demandas
particulares à luz. A resposta dos artistas a tal demanda, de acordo com as regras
aplicadas dentro das condições técnicas da luz em cada período, é questão impor-
tante para a presente abordagem.
As unidades de tempo e lugar já haviam aparecido em comentários anterio-
res. Castelvetro, contudo, mencionou pela primeira vez as três unidades como um
conjunto regulador. Ainda que a unidade de ação apareça no seu trabalho mais
como derivação do tempo e do lugar, o conjunto de regras se estabeleceu progres-
sivamente como norma crítico-literária. É importante lembrar, no entanto, que
ao comentar a Poética de Aristóteles ele aborda a dramaturgia como manifesta-
ção prática ligada ao palco, garantindo alcance diferenciado para seu trabalho,
e oferecendo trilhas para conexões com a abordagem em curso. Confrontando a
compreensão aristotélica, que lhe parece conferir um plano inferior para o espe-
táculo, ele diz: “[...] a opinião de Aristóteles que garante maior prazer na leitura de
uma tragédia do que numa representação no palco, é falsa”.37 (CASTELVETRO apud
CHARLTON, 1913, p. 83, tradução nossa)
Para ler seu trabalho, portanto, pode-se considerar a assertiva que se segue:
“[...] o palco é necessário para a sua [da dramaturgia] perfeição”.38 (CASTELVETRO
apud CHARLTON, 1913, p. 83, tradução nossa) Quando se considera o original
italiano, transcrito em nota de rodapé, notamos que Castelvetro inclui a percepção
visual, como aspecto importante na efetivação da tragédia, o que Charlton inter-
preta como sua realização no palco.
Tal abordagem ganha aqui importância, pois, como já deve estar evidente,
uma manifestação cênica que não incorpora a luz pode ser considerada extrema,
um evento para deficientes visuais, ou exceção radical. Perfeição, no contexto,
refere-se tanto ao ideal de instrução que o teatro deve assumir, quanto à sua capa-
cidade de persuadir o espectador do verdadeiro, do real, e, principalmente, da
verossimilhança presente na cena. Se a abordagem da verossimilhança parecer
dispensável em uma discussão da visualidade, vale ponderar: como uma estraté-
gia da dramaturgia, o princípio da verossimilhança é concebido para repercutir
na cena; sua efetivação visual, portanto, é inexorável. E Castelvetro elabora sua
teoria observando certas relações entre as condições materiais do espetáculo
e a verossimilhança, desinteressando-se por uma abordagem exclusivamente
37 Da tradução inglesa: “[…] the opinion of Aristotle that as much delight can be had from a mere reading of tragedy as from a performance of it on the stage, is false”.
38 “[…] the stage is a necessity for its perfection, para o original italiano: [...] la vista essendovi necessaria, se la tragedia deve havere la sua perfettione, la quale ella ha, quando e recitata in atto con la vista convenevole.”
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A luz na gênese do espetáculo | 293
literária. Ele compara poesia épica e drama, partindo da sua compreensão de
representação:
Na poesia, há dois possíveis modos de representar a ação, ou
seja, através de palavras e coisas, ou usando somente palavras;
um desses modos mais se assemelha à coisa representada, o
outro menos; palavras e coisas constituem o modo mais se-
melhante, palavras sozinhas, o menos; portanto, no primeiro
modo, palavras são representadas por palavras e coisas são
representadas por coisas.39 (CASTELVETRO apud CHARLTON,
1913, p. 83-84, tradução nossa)
Para Castelvetro, a cena tem o poder de, assemelhando-se à coisa representada
(a ação), convencer o espectador. Daí, o lugar deve atender a uma exigência parti-
cular: “[…] que o lugar da ação seja consistente, não apenas restrito a uma cidade
ou a uma casa, mas a um único lugar, cuja extensão seja visível para uma pessoa”.40
(CASTELVETRO apud CHARLTON, 1913, p. 84, tradução nossa) Destaque-se nessa
assertiva a relação entre lugar e visão para o alcance da verossimilhança, ou seja,
o espectador será convencido de que está diante de um lugar verdadeiro, ele acre-
dita que está vendo (ou que pode ver) todo o lugar representado. A unidade de
tempo está ligada, também, a presumíveis capacidades humanas de permanecer
num mesmo lugar, consideradas as necessidades básicas, como beber e comer. Ele
compreende, portanto, que sob a mesma premissa da verossimilhança, o limite
temporal da ação pode contribuir: “[…] o tempo da representação e o tempo da
ação devem coincidir exatamente”.41 (CASTELVETRO apud CHARLTON, 1913, p. 84,
tradução nossa)
Castelvetro propõe normas peculiares para a representação teatral, numa
abordagem simples da verossimilhança, com o intuito de fazer a ação no palco
alcançar aparência de verdade, ou de real:
[…] a tragédia deve ter como objeto uma ação que aconteceu
em um lugar de extensão limitada e numa extensão temporal
muito limitada, ou seja, no lugar e tempo nos quais e para os
quais os atores que representam a ação se mantêm ocupados
39 “In poetry there are possible two modes of representing action, viz., either by words and things, or by words alone; one of these modes is more similar to the thing represented, the other less; words and things together are the more similar mode, words alone the less; for in the former words are represented by words and things by things, whilst in the latter both words and things are represented by words alone.”
40 “[…] that the scene of the action must be constant, being not merely restricted to one city or house, but indeed to that one place alone which could be visible to one person”.
41 “[…] the time of the representation and that of the action represented must be exactly coincident.”
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na representação; e em nenhum outro espaço e em nenhum
outro tempo.42 (CASTELVETRO apud CHARLTON, 1913. p. 84, tra-
dução nossa)
Desses pressupostos para a elaboração precisa de um espetáculo, deriva-
rão normas literárias da mentalidade neoclássica, solidificando a exigência das
três unidades na dramaturgia. Na compreensão de Charlton, a especificidade do
drama é assim sublinhada, na obra de Castelvetro:
O teatro representa coisas através de coisas e palavras através
de palavras: a poesia épica representa coisas e palavras apenas
através de palavras. O modo de Castelvetro julgar a questão de-
termina um presságio do rigor sob o qual a verossimilhança será
atrelada ao drama.43 (CHARLTON, 1913, p. 84, tradução nossa)
A incorporação desses axiomas aponta para um movimento teórico na França
do século XVII, de grande relevância para este estudo, considerando-se a comen-
tada inclusão da luz, mesmo involuntária, nas indicações de novos caminhos para a
cena, sejam iniciativas de um teórico ou de um artista. Mesmo que o estudioso não
se dê conta disso, ou o faça intuitivamente, como ocorre frequentemente até hoje.
Ora, sem a luz a abordagem da verossimilhança seria obrigada a descartar a percep-
ção visual. Por essa razão, é importante citar determinados autores, para enfatizar o
papel da luz em estudos que abordem a visualidade particular da práxis cênica.
Na França, a divulgação do texto de Aristóteles através da tradução italiana, em
1549, gerou trabalhos de vários comentadores, elaborando-se uma interpretação
norteada por compreensão particular da verossimilhança. Oscar Gross Brockett
(1923-2010) afirmou:
Na doutrina neoclássica [derivada de interpretações da Poética
de Aristóteles], a principal demanda era a busca pela verossi-
milhança, ou aparência de verdade. A verossimilhança é um
conceito complexo, que pode ser dividido em três objetivos se-
cundários: realidade, moralidade e generalidade. No que con-
cerne à realidade os críticos alertavam os dramaturgos para que
limitassem seus assuntos e tratassem de eventos que pudessem
42 “[…] tragedy ought to have for subject an action which happened in a very limited extent of place and in a very limited extent of time, that is, in that place and in that time, in which and for which the actors representing the action remain occupied in acting; and in no other place and in no other time.”
43 “Drama represents things by things, and words by words: the epic represents things and words by words alone. Castelvetro’s way of stating the case is a foreboding of the rigor with which verisimilitude is to be screwed on the drama. The result is the unities.”
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A luz na gênese do espetáculo | 295
ocorrer na vida ‘real’. Em consequência disso, a fantasia e o so-
brenatural eram comumente evitados, a menos que represen-
tassem elementos dos mitos, da história, da Bíblia, e, mesmo
nestes casos, eles eram minimizados tanto quanto possível.
Além disso, artifícios como o coro e o solilóquio eram desacon-
selhados, pois se acreditava que não é natural uma personagem
falar em voz alta quando está sozinha, ou que ela mencione
questões pessoais na presença de um grupo tão grande quanto
o coro. Esses mecanismos dramatúrgicos foram abolidos, intro-
duzindo-se outros, como o mais típico de todos, o[a] confiden-
te, que acompanhava as personagens centrais da trama: deste
modo, elas poderiam revelar seus segredos mais íntimos.44
(BROCKETT, 1995, p. 126, grifo e tradução nossos)
As correspondências entre verossímil e verdadeiro provocaram inúmeras
discussões e abordagens teóricas. O uso da verossimilhança ou a aparência de
verdade como guia gerou uma linha limítrofe que pode se revelar tênue, apresen-
tando como referência o juízo de quem determina o que é verdadeiro, incluindo-se
aspectos da técnica dramatúrgica, e até por trás deles, questões de natureza polí-
tica. Surgers (2005b) menciona a relação entre realidade e verdade, deixando provo-
cações para a observação da verdade neoclássica, que inclui, segundo Brockett,
três objetivos que a sustentavam: a realidade, a moralidade e a generalidade.
A verdade e o real estavam submetidos a certa generalização das relações
humanas, do comportamento, que descartava particularidades. Criava-se, então,
um complexo universo que se constituía de um conjunto de normas aplicadas a
um comportamento típico generalizado, ideal, tanto da humanidade quanto da
“natureza”, passível de ser observado sistematicamente e difundido, inclusive
pelo teatro. Brockett (1995, p. 127, tradução nossa) traz a seguinte ponderação:
Ainda que o ideal didático tenha sido frequentemente afirmado
no teatro clássico, ele não recebeu ênfase até que os humanistas
do Renascimento compreenderam que tal ideal era necessário
44 “In neoclassical doctrine the fundamental demand was for verisimilitude, or the appearance of truth. A com-plex concept, verisimilitude may be divided into three subsidiary goals – reality, morality, and generality. In relation to reality critics urged dramatists to confine their subjects to events which could happen in real life. Consequently, in practice, fantasy and supernatural events were usually avoided unless they were integral parts of some received story from, myth, history, or the Bible, and even in these instances they were minimized as much as possible. Fur-thermore, such devices on the grounds that it is unnatural for characters to speak aloud while alone or to discuss private matters in the presence of a group so large as the chorus. These devices were replaced by others, of which the most typical was the inclusion of a confidant (or trusted companion) for each of the main characters, so that he might believably reveal his inmost secrets.”
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para justificar o estudo e a produção literária, numa época em
que o aprendizado estava se afastando dos conceitos puramente
teológicos.45
Brockett compreende que a necessidade de estabelecer o teatro como ferra-
menta útil para a sociedade fez com que os estudiosos afirmassem sua capacidade
de instruir, pondo, num plano inferior, a práxis literária. Na França do século XVII,
tratava-se de instalar, através do teatro, um modelo de realidade baseado no deco-
rum46 vigente, que determinava sucesso para os que cumpriam as regras e punição
para quem delas se desviasse.
Pierre Corneille alcançou sucesso, desde suas primeiras iniciativas, e ga nhan do
grande prestígio público com Le Cid (1637) desencadeou uma ruidosa controvérsia,
provocando ciúme nos concorrentes, incluindo, segundo alguns autores, o próprio
Richelieu, que se considerava poeta. Em primeiro lugar, deve-se sublinhar a desa-
provação de Richelieu ao uso de temas espanhóis como o duelo e a pompa, devido
ao confronto político entre as duas nações. Além disso, a obra de Corneille rece-
beu severas críticas baseadas na regra das três unidades. Entre aqueles que pole-
mizaram contra Corneille, estavam Jean Mairet (1604-1686), Georges de Scudéry
(1601-1657), Calveret, Charles Faucon des Ris (1612-1693) e Pierre Scarron (1541-1603).
Scudery escreveu Observações sobre o Cid [Observations sur le Cid (1637)], enquanto
Jean Chapelain (1595-1674) produziu uma compilação encomendada por Richelieu
e denominada Os Sentimentos da Academia sobre o Cid [Les sentiments de l’acade-
mie sur le Cid (1638)], atacando duramente Corneille, acusando-o de desobedecer às
normas, o que contribuiu para a mencionada controvérsia sobre sua obra.
A situação levou Corneille a deixar a sociedade (Les cinq auteurs) no vencimento
do contrato, pensando até em encerrar sua carreira como dramaturgo. No entanto,
além de responder com Desculpe, Ariste [Excuse à Ariste (1637)], Corneille escreve mais
tarde, não apenas tragédias, mas também textos teóricos em sua própria defesa,
como os Três discursos sobre a poesia dramática [Trois discours sur le poème drama-
tique (1660)], cujo tema central é a sua interpretação do modelo grego. O estudioso
francês Jean-Jacques Roubine menciona o próprio Corneille, dando abrangência para a
presente discussão. Na compreensão de Roubine, o mais importante para Corneille era
o prazer do espectador; partindo dessa premissa, mais que perseguir o verossímil e o
verdadeiro, o caminho seria buscar o necessário. Corneille teria acreditado que o prazer
45 “Although the didactic ideal had often been stated in classical times, it was not given primary emphasis until the Humanists of the Renaissance found it necessary to justify the study and writing of literature at a time when learning was moving from purely theological concerns.”
46 Ou normas de conduta baseadas na moralidade.
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do público justificaria um grande efeito, pondera Roubine, acentuando sua intenção de
se afastar dos modelos aprisionados ao verossímil, quando ele diz: “[a verossimilhança
é um] privilégio que Aristóteles nos dá, e não uma servidão que ele impõe”. (CORNEILLE
apud ROUBINE, 2003, p. 36)
Roubine define as dificuldades que a postura de Corneille lhe renderam:
A contestação cornelliana visa claramente salvaguardar uma liberdade de invenção constantemente questionada desde a Querela do Cid, mas talvez também preservar para o dramaturgo a possibilidade de explorar essa mina que é a História e servir-se teatralmente de acontecimentos ina-creditáveis, mas incontestáveis. De todo modo, a argumen-tação de Corneille não derrubará a convicção dos aristotéli-cos de estrita obediência. Por mais prestigiado que fosse o autor de Rodogune se verá isolado e sob suspeita de heresia. (ROUBINE, 2003, p. 36, grifo nosso)
Os estudos de Corneille, assim como sua poesia dramática, contudo, não
representam um movimento isolado, sendo precedidos pelo trabalho de outros
dramaturgos e teóricos, que refletem uma provável concordância com a drama-
turgia clássica, e com seus reflexos na obra de Aristóteles. Deve-se mencionar Jean
Mairet (1604-1686) que em 1631 dá um passo importante, ao concluir a tragicomé-
dia Silvanire ou A morta-viva (La Sylvanire ou La morte-vive). No texto teórico que
aparece antes da peça, denominado Prefácio em forma de discurso poético (Preface en
forme de discours poétique), ele apresenta seu postulado sobre a poesia, incluindo
uma discussão das regras da poesia dramática. Segundo Hartnoll (1957), na sua
tragédia Sofonisba [La Sophonisbe (1634)], Mairet aplica a regra (das três unidades),
produzindo o primeiro grande espetáculo francês que, atendendo a essa teoria, é
representado num palco público, introduzindo o modelo clássico no teatro fran-
cês de sua época.
O debate que acirraria as críticas a Le Cid começou a se delinear desde o fim da
primeira metade do século XVI. Em 1549, a Pléiade47 incorpora o que considera prin-
cípios aristotélicos na poesia dramática, pondo de lado a teoria de Fabri e Sibilet.48
Autores, como Julius Caesar Scaliger (1484-1555), Jacques Grévin (1538-1570), Jean De
la Taille (ca. 1540-1607) e Pierre Ronsard (1524-1585), apresentaram contribuições em
47 Associação francesa do século XVI, composta de sete autores, entre eles Étienne Jodelle, liderados por Pierre de Ronsard (1524-1585). Foi assim denominada numa referência à Pléiade, grupo também de sete autores, atuantes no reinado de Ptolemy II Philadelphus (285-246 a.c.).
48 Obras como Le grand et vrai art de pleine réthorique (1544), de Piérre Fabri, e Art poétique (1548), de Thomas Sibillet, perdem espaço para interpretações da Poética de Aristóteles.
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favor das três unidades, enquanto Jean de Beaubreuil,49 Pierre de Laudun Daigaliers
(1575-1629) e François Ogier (1597-1670) assumem posições contrárias a tais ideias.
Como já foi dito, a Academia Francesa incorporou oficialmente, em 1635, sob a
orientação de Richelieu, a regra das três unidades como premissa para a produção
da tragédia, na França. A questão já não era mais o que Aristóteles escreveu e, sim,
uma censura imposta pelo pensamento “oficial”. Na mesma conjuntura, subsistia
o espetáculo cômico, farsesco, de natureza popular e espaço cênico multifacetado,
assim como a pièce à machine, com cenários sucessivos operados por intricados
mecanismos.
Interpretações diferenciadas da verossimilhança ao longo da história, orienta-
das pela compreensão particular das suas referências baseiam-se, por sua vez, nas
necessidades humanas. De acordo com Aristóteles, a dramaturgia parece impreg-
nada de flexibilidade, fazendo o poeta interessar-se menos por aquilo que aconte-
ceu na história (da humanidade) e mais pelo que poderia haver ocorrido, no campo
do provável, assim como pelas possibilidades de natureza simbólica. Tal flexibili-
dade pode estar relacionada às diversificadas abordagens do conceito de realidade
e de verdade, assim como das suas referências. A verossimilhança, portanto, pode
se instituir tanto no interior da obra, levando-se em conta os elementos constitu-
tivos de cada manifestação poética, quanto do ponto de vista externo, ao se consi-
derar o papel que uma obra desempenha na cultura, incluindo as imposições polí-
ticas. O discurso da obra de arte interage de modo dinâmico, portanto, com outros
discursos ativos na sociedade.
As normas que orientam esses discursos atuam como referência, o conheci-
mento do qual o espectador se apropriou contribui para sua relação com a obra
e atua na sua interpretação do conceito de realidade. A unidade de ação devia
ser efetivada num jogo entre o possível e o necessário, instalando-se de modo
particular em cada obra. A mimesis aristotélica refere-se às inúmeras variáveis do
comportamento humano, libertando o drama da noção de imitação vinculada a
um padrão fundado na imutabilidade ou na cópia simplista. Como condição para
a efetivação do discurso dramático, portanto, o verdadeiro e real podem represen-
tar um espectro de grande amplitude; importa, sim, a coesão interna que regula
os elementos da narrativa. No interesse da investigação em andamento, a visuali-
dade da cena pode exercer o direito de interagir com esses pressupostos.
49 Não foi possível encontrar informação segura sobre sua data de nascimento e/ou óbito; é, no entanto, co-nhecida, a sua obra Régulus, de 1582, em cujo prefácio ele questiona a regra das três unidades, que classifica de supersticiosas. Bernard Weinberg publicou uma compilação de estudos críticos, escritos no século XVI, que inclui o mencionado trabalho de Beaubreuil. A compilação foi intitulada Critical prefaces of French Renaissance, publicada em 1950, pela Northwestern Universit Press de Illinois, EUA.
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A reação dos artistas franceses (principalmente a partir do século XVI) ao
modelo multifacetado e simultâneo da práxis cênica popular derivada do padrão
católico medieval estabeleceu a necessidade de uma ação que parecesse verdadeira
e natural, como regulação para o jogo dramático. Daí, sua relação com o espaço e
o tempo deveria também parecer verdadeira e natural. Como diz Mairet, no prefá-
cio da sua tragicomédia pastoral La Silvanire ou La morte-vive: “A segunda condi-
ção (para a constituição da poesia dramática) é a unidade de ação, ou seja, deve
haver uma ação mestra e principal à qual todas as outras se referem como as linhas
em uma circunferência convergem para o centro”.50 (MAIRET, 1631, p. 27, tradução
nossa)51 Vale destacar em Mairet a metáfora visual quando ele se refere à circun-
ferência, indicando uma figura geométrica definida pelo equilíbrio. Sublinhe-se
essa analogia, destacando sua intimidade como a visualidade; na verdade, a ação
cênica reguladora poderia ser compreendida como uma esfera, numa relação
direta com a qualidade tridimensional do espetáculo.
No que se refere ao tempo, Gazoni (2006, p. 49) cita Aristóteles: “E ainda, pela
extensão: enquanto a tragédia se esforça, o mais possível, para dar-se dentro de um
único período solar, ou pouco se distinguir disso, a epopeia é indefinida quanto ao
tempo e por isto difere”. Efetivando suas observações, Gazoni (2006, p. 49, grifo do
autor) apresenta a nota a seguir:
111 Não se pode defender, contra toda argumentação, que a
fra se tenha o caráter prescritivo rígido que quis ver nela o
Renascimento. Vários comentadores (Halliwell, Dupont-Roc e
Lallot, Gernez) chamam a atenção para este fato. Deve-se dizer,
entretanto, a favor da leitura renascentista, que a presença do
‘mais possível’ (hotimalista) e do ‘se esforça’ (peiratai) pode indu-
zir a tal interpretação.
Como se sabe, o século XVII na França exemplifica certo radicalismo na
leitura do “mais possível” assim como do “esforço”, presentes no texto aristoté-
lico, e inclui limites para o tempo da ação, como aparece em Chapelain (apud
ARNAUD, 1888, p. 343, tradução nossa): “[...] Porque a ação termina, geralmente,
entre dois sóis, isto um pouco mais ou menos que a metade de vinte e quatro
horas [...]”.52 Do ponto de vista da luz, a verossimilhança permitiria, ou exigiria,
50 “La séconde condition est l’únité d’action, c’est à dire qu’il doit avoir une maitresse e principal action à laquelle toutes les autres se rapportent comme les lignes de la circonference au centre.”
51 A edição usada na citação não apresenta numeração de páginas no prefácio. Incluí uma numeração arbitrária, na cópia com a qual trabalhei, para orientar a pesquisa e permitir o acesso posterior de interessados.
52 “[...] car d’ordinaire l’action se termine entre deux Soleils, c’est à dire un peu plus ou un peu moins que la moitié des vingt-quatre heures, [...].”
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um tratamento muito particular, de acordo com a ação e o seu ambiente. Dois
sóis, ou seja, a transição dia-noite-dia sugere ângulos, intensidades, cores, tudo
em mudança constante. Hoje em dia, tal sugestão permitiria a elaboração de um
projeto de luz com grande sofisticação e alto grau de dificuldade.
Para resistir a uma crítica efetivamente qualificada, seria recomendável a
presença de um especialista na realização de tarefa tão específica. Parece claro
que, atualmente, a elaboração de um projeto de luz para um espetáculo ligado à
estética realista, suscitaria a aplicação de muitas variáveis. Certas fórmulas cris-
talizadas, portanto, podem ser impotentes para criar os diversos momentos, pois
cada novo espaço apresenta traços particulares que indicam relações dinâmicas
com as fontes de luz atuando no ambiente, o que exigiria o tratamento muito
particular e um olhar capacitado.
Ainda através de Arnaud pode-se tomar conhecimento de que, provavel-
mente entre 1570 e 1572, já aparece num prefácio Da arte da tragédia (De l’arte de
la tragédie), na obra Saul o furioso (Saul le furieux), de Jean de la Taille a presença
da unidade de lugar na dramaturgia do período em questão: “A história ou o jogo
devem ser sempre representados em um mesmo tempo e em um mesmo lugar”.53
(DE LA TAILLE apud ARNAUD, 1888, p. 117, tradução nossa) Sem identificar na
Poética de Aristóteles, ou mesmo em Horácio, suporte para essa regra, alguns auto-
res, como Kastner e Atkins (1907), a classificam de “pura invenção”. Ainda assim,
não se pode desconsiderar a veemência de Nicolas Boileau-Despréaux, ao escrever
sua Art poétique (1674): “Que o lugar da cena seja fixo e demarcado [...] Que em um
lugar, um dia, um fato único seja consumado [...]”.54 (BOILEAU-DESPRÉAUX, 1838,
p. 29-30, tradução nossa)
Aqui se vislumbra o passo seguinte na construção da visualidade dessa derra-
deira fase da tragédia regular (tragédie regulière) francesa do século XVII. Ao discutir
a interpretação francesa de Aristóteles interessa a provável atuação da luz naquele
contexto. A exigência de um único lugar fixo e demarcado pode ter sido uma prática
comum, em Molière e Racine, como exemplos; parece prudente, entretanto, consi-
derar especulações que dão conta de particularidades apresentadas ou exigidas por
certos dramaturgos para a configuração da visualidade nos seus espetáculos, como
os últimos citados, que teriam solicitado a instalação de telões de fundo especial-
mente concebidos para espetáculos montados a partir de sua dramaturgia. Ou seja,
o lugar único ganharia um telão de fundo originalmente escolhido – ou pintado –
53 “Il faut toujours représenter l’histoire ou le jeu en un mesme temps, et en un mesme lieu.”
54 “Que le lieu de la scène y soit fixe et marquée. [...] Qu’en un lieu, qu’en un jour, un seul fait accompli […].”
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para cada espetáculo, ou ato, como uma mudança ou particularidade excepcional-
mente permitida.
Em 1640 D’Aubignac escreveu A prática teatral (La pratique du théâtre) para
atender ao Cardeal Richelieu, que demandava esclarecimentos sobre a Poética de
Aristóteles. D’Aubignac assumiu a responsabilidade, uma vez que Jean Chapelain
não aceitou a incumbência e Hippolyte-Jules Pilet de la Mesnardière (1610-1663)
deixou inacabado seu trabalho depois da morte de Richelieu (1642). D’Aubignac
publicou seu texto em 1657, estabelecendo regras para os dramaturgos france-
ses na direção da tragédie regulière ou classique. Isto parece sugerir uma reação
de D’Aubignac às proposições espaciais da simultaneidade dos décors à compar-
timents, assim como ao exagero de mudanças mecânicas nas pièces de théâtre à
machine (peças representadas com a ajuda de máquinas).
Reservando a parte final do último livro (capítulo) do seu estudo a uma propo-
sição teórica do espetáculo e até da cenografia, ele louva a destreza dos gregos da
Antiguidade. Ao elaborar sua teoria dos Spectacles (cenografia e efeitos) ele apre-
senta três categorias: coisas, ações e a simultaneidade de coisas e ações. Para coisa,
D’Aubignac (1715) usa como exemplo o céu, o mar e um grande palácio; para ação,
alguém que se atira do alto de uma torre ou de uma rocha e cai no mar; para coisas
e ações, um combate naval (que reúne embarcações e homens). Sua proposição
teórica ainda considera que tanto coisas quanto ações podem ser Miraculosas –
uma divindade que desce dos céus; Naturais – um belo deserto ou uma montanha
em chamas; e Artificiais – as grandes obras de arte, como um templo. Por outro
lado, ele adverte seus contemporâneos: “Mas agora, ainda que a Corte não os
considere inconvenientes e que o público se aglomere para contemplar qualquer
coisa desta natureza, eu não aconselharia nossos poetas a empregarem esforços
nessas Peças Representadas com a Ajuda de Máquinas [...]”.55 (D’AUBIGNAC, 1715,
p. 323, tradução nossa)
Como encaminhamento para uma teoria do espetáculo, ele declara: “Restam
os cenários permanentes, qualquer que seja a sua natureza; nesse sentido sugiro
que sejam reduzidos tanto quanto possível”.56 (D’AUBIGNAC, 1715, p. 323, tradu-
ção nossa) Ficam sublinhados, ainda, cuidados específicos: “Primeiramente, eles
devem ser indispensáveis, de modo que a peça não possa ocorrer sem esse orna-
55 “Mais maintenant, bien que la Cour ne les ait pas desagréables, & que le peuple fasse foule a toutes les occa-sions de voir quelque chose de semblable, je ne conseillerois pas a nos poètes de s’occuper souvent à faire de ces Piéces de Théâtre à Machines [...].”
56 “Il reste donc les Décorations permanentes, de quelques nature qu’élles soient; a quoi mon avis seroit de se restraindre autant qui seroit possible.”
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mento [...]. Em segundo lugar, eles devem ser agradáveis para a visão, pois é este
charme que atrai as pessoas”.57 (D’AUBIGNAC, 1715, p. 323, tradução nossa)
D’Aubignac já anuncia, portanto, a práxis cênica como um organismo em
funcionamento equilibrado, pela interação dos seus elementos. Ainda que use
termos como ornamento e charme para se referir ao cenário, e esses termos possam
indicar uma apreensão superficial da cenografia, ele também diz que o espetáculo
não se efetivará sem o mencionado “ornamento”, ampliando a sua compreensão
para considerar o dispositivo cenográfico como aspecto indispensável à consti-
tuição da práxis cênica. Recupere-se o vocábulo hedusma, usado por Aristóteles e
já mencionado no capítulo “Um presumível ponto de partida”. Trata-se da noção
de “tempero” que alcança a abrangência de traços particulares dos quais a ação
cênica é impregnada, sugerindo temperaturas, aromas, sabores, texturas, formas
e cores, com os quais o espectador estará interagindo através das imagens de natu-
reza diversificada que atuam na cena.
A CENA COMO LUGAR GENÉRICO
As preocupações de D’Aubignac ainda incluem a boa execução dos cenários, de
modo que mesmo algo abominável, monstruoso e horrível, se comparado com
a natureza, fosse bem realizado e visualmente agradável; devia ser atendido o
decoro, ou seja, respeitadas as regras de conduta, do gosto e da moralidade, da
justeza; o dispositivo cenográfico devia ser de fácil execução e os mecanismos
deviam permitir agilidade às mudanças de cenário, evitando torná-las enfado-
nhas para o espectador; devia ser observada a verossimilhança da imagem em
cena, pois não parece razoável – como exemplo – colocar uma prisão diante da
sala de um castelo, ou do quarto de uma princesa. Ele diz ainda:
Também não podemos fazer cenários contrários à Unidade de
Lugar, como o quarto de um príncipe no proscênio, do qual se
pode entrar numa floresta colocada no mesmo nível [sem qual-
quer elevação no piso], pois toda essa ficção, por mais bela que
seja para os olhos, parece deformada à Razão, que a reconhece
como falsa, ridícula, e impossível.58 (D’AUBIGNAC, 1715, p. 325,
tradução nossa)
57 “Premierement, il faut qu’elles soient necessaires et que la piéce ne puisse être joüée sans cet ornement; [...] Secondement, ils devoient être agréables à voir, car c’est ce charme que le peuple s’y laisse attirrer.”
58 “Il ne faut aussit faire des Décorations qui soient contraires à l’Unité du Lieu, comme de supposer l’Avant-Scéne pour la chambre d’un Prince, de l’aquelle on entreroit de plain-pied das une forêt; car toutes ces fictions, qoui que belles à l’oeil paroeint difforme à la Raison, qui les connoît fausses, impossibles e ridicules.”
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D’Aubignac (1975) sublinha ainda a atenção com o planejamento das mudan-
ças, evitando-se o burburinho das exclamações dos espectadores, que os impedi-
ria de ouvir o texto. Os cenários, portanto, deveriam mudar no início e no fim de
cada ato. O teatro sofisticado, nobre e de elevação moral, atendendo aos princí-
pios do provável e do possível deveria, de acordo com o pensamento da Academia,
fazer a ação se passar em um lugar único. Aí se originou outra proposição espacial
para a cena, fundamentada na unidade de lugar mencionada por D’Aubignac, e que
ficou conhecida como palais à volonté. Tratava-se de um lugar fictício, genérico,
mas capaz de abrigar quaisquer categorias de ação cênica. Tal configuração espa-
cial não se poderia efetivar sem a elaboração de um modo visual de pensar, o que
demandava qualidade específica para a luz, repercutindo na visualidade de cada
acontecimento cênico-espetacular.
Diante da dramaturgia do período podem-se compreender certos ajustes
procedidos pelos autores para o atendimento da verossimilhança, originando
uma ação cênica capaz de interagir com a visibilidade, sem comprometer aquilo
que se considerava razoável e verdadeiro. A cena, por seu turno, também pode ter
recorrido à mesma categoria de ajustes, incluindo certas mudanças, mas procu-
rando reforçar, como princípio, uma reação às tipologias cênicas praticadas na
simultaneidade do décor à compartiments e na feérica movimentação da piéce à
machines, consideradas exagero ou desvio dos propósitos da verossimilhança, do
provável e necessário.
Durante a primeira metade do século XVII, no reinado de Louis XIII, os espe-
táculos começavam nas primeiras horas da tarde permitindo que se tirasse vanta-
gem da luz natural e possibilitando, inclusive, o seu uso, com janelas laterais dos
teatros abertas durante alguns períodos no ano. Pode-se considerar, também, que
se tratava de uma medida para evitar tumultos noturnos em locais fechados, além
da necessidade de reduzir o alto custo da luz produzida artificialmente. Um decreto
de Louis XIV, seu filho, autorizou que os teatros funcionassem a partir das quatro ou
cinco horas, à tarde, o que tornou imprescindível a aplicação de luz artificial para
prover visibilidade, desde o escurecer. Por outro lado, qualquer que fosse a fonte –
ou fontes – a cena precisaria contar com a luz, para se efetivar. No entanto, seria difí-
cil assegurar o compromisso com a verossimilhança e com o verdadeiro nas pièces à
machine ou no espetáculo que usava o décor à compartiments.
Roubine (2003) discute a “Querela do Cid” e sua relação com tais convenções,
no interesse da verossimilhança:
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É com a Querela do Cid que a regra de um lugar único vai se im-
por e que a tradição barroca será condenada. Quer a ação se de-
senrole em vários lugares figurados simultaneamente (cenário
simultâneo) ou sucessivamente (mudança de cenários durante
os entreatos), tais opções são denunciadas como inverossí-
meis. Pois, como um mesmo lugar real poderia representar vá-
rios? E, além disso, a multiplicação dos lugares é fonte de con-
fusão para o espectador. É D’Aubignac quem fará a exposição
mais clara e mais sistemática da nova regra. Em primeiro lugar,
baseia-a no princípio de verossimilhança. Um único espaço, o
do palco, não seria capaz, desse ponto de vista, de representar
dois, ‘por exemplo a França e a Dinamarca, a galeria do Palácio
e as Tulherias’. Não admite portanto nem mesmo a extensão do
espaço da ação à área geográfica que um indivíduo pode per-
correr em um dia. (ROUBINE, 2003, p. 47-48)
A maioria dos autores redigia normas que se referiam originalmente à drama-
turgia e levavam em conta a flexibilidade com a qual contaria o dramaturgo.
Na abordagem da verossimilhança formulada por D’Aubignac, portanto, seria
impossível convencer o espectador que um lugar pudesse conter ou se transfor-
mar em tantos outros, como num passe de mágica. Afinal, a interpretação aris-
totélica francesa baseava-se em princípios da racionalidade dirigida contra o que
consideravam obscurantismo do passado. Para criar na cena, com alguma credi-
bilidade, as intenções do dramaturgo, o espetáculo deveria incorporar diversos
aspectos técnicos que integravam o que Roubine (2003) chama de componentes
da representação, listando: figurinos, gestual e dicção dos atores.
Ainda que devam ser consideradas as características técnicas daquele mo mento,
Roubine, assim como muitos críticos e teóricos, exclui a luz, reduzindo sua condi-
ção de importante componente da representação. Elaborar cada ambiente e transfor-
mar suas mudanças em momentos de magia e atração, nos espetáculos do Barroco,
isolar ambientes nos cenários simultâneos (décor à compartiments) e, ainda assim,
revelar de modo convincente cada quadro, eram tarefas difíceis, mas essenciais para
o espetáculo.
Essa questão inclui, portanto, um aspecto importante e pouco discutido.
Os espetáculos teatrais da época, que resultavam ou que adotavam as normas
neoclássicas das três das unidades – apresentando ação, tempo e lugar como obri-
gatoriamente únicos – sugerem uma abordagem específica da luz, justificada pela
economia de movimentos e/ou interferências, exigida por um espetáculo com
tais características. Pressupõe-se que, no caso, as cores, os ângulos, as texturas,
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os efeitos, inclusive na luz, deveriam ser criteriosamente planejados, muitíssimo
calculados e executados com parcimônia. Se a ação cênica deveria ocorrer em
um único lugar, numa extensão de tempo muito limitada, aplicando a narrativa
linear, qualquer movimento ou efeito injustificado poderia perturbar essa noção
de “unidade”, elemento decisivo da visualidade pretendida. Mais importante que
impor uma “presença visível” da luz é compreender a qualidade da luz proposta
pelo espetáculo, ou seja, sua visualidade. Essa postura permite avaliar cada inter-
ferência que se pretenda incluir, exigindo decisões autônomas do iluminador,
mas necessárias à natureza compósita da práxis cênica.
É importante contemplar nessa conjectura a dramaturgia de Jean Racine (1639-
1699), poeta, ministro de Estado, diretor teatral e fundador da Comédie Française.
Ele escreve suas peças em um momento no qual o apelo popular pela exacerba-
ção de imagens feéricas da Opéra já enfrentava resistência. A influência do teatro
italiano resultava numa elaborada ornamentação e exuberância visual ligada a
muitos movimentos nos dispositivos cenográficos, associados ao ilusionismo e à
teatralidade particular do Barroco, o que gerava críticas contundentes. Para exem-
plificar o contexto no qual Racine se insere, Karl Vossler (1872-1949),59 menciona
o trabalho do seu antecessor, Corneille, para lembrar como ele procurou superar a
interferência dos produtores e cenógrafos:
[...] ele [Corneille] varreu do seu teatro todo o encantamento do
brilho secular e refinado, todas as transformações e surpresas
no cenário, todas as maravilhas e metamorfoses; ele os transfe-
riu para as mentes e para as almas dos seus heróis e para o poder
dos seus discursos.60 (VOSSLER, 1972, p. 116, tradução nossa)
Corneille procurava combater aquilo que, em sua opinião, era uma rápida
sucessão de cenas com multiplicidade vaga e confusa, cores em excesso, exagero
ilusionista que resultava em desordem, e decidiu acentuar a personagem que fala,
transformando os outros componentes do espetáculo naquilo que Vossler (1972)
qualifica como uniformidade cinza.
O ambiente no qual se encontrava mergulhada parte do teatro, no momento
da entrada de Racine no universo da dramaturgia, é assim descrito por Vossler
(VOSSLER, 1972, p. 115): “Uma cena austera, sem cor, e personagens infladas por
59 Linguista alemão, foi professor de literatura românica na Universidade de Munique, e também trabalhou na Universidade de Heidelberg.
60 “[...] he swept from his theater all the enchanting brilliance of a secular and courtly nature, all the transforma-tions and surprises in décor, all the wonders and metamorphoses; he transferred them to the mind and souls of his heroes and to the power of their speech.”
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grandes decisões, conscientes da sua responsabilidade moral, proferindo pala-
vras que retumbavam [...]”. Tais comentários despertam de modo próprio a aten-
ção quando ele, mais uma vez, compara Corneille e Racine; na compreensão de
Vossler, Corneille define suas personagens como silhuetas traçadas com linhas
precisas e duras, enquanto Racine permite que o espírito da personagem se
expanda, fazendo-a desaparecer, confundindo-se na atmosfera, para emergir de
novo maravilhosamente viva. Seu tratamento desfavorece o detalhe naturalista,
pondo na voz do ator as cores e os sons, tornando a dramaturgia responsável por
instalar tons, meios-tons, ambiguidades, luz e sombra.
A obra de Racine revela a consistência peculiar da sua formação jansenista,
movimento espiritual de cunho puritano que desaprovava a Contrarreforma.
Órfão desde os três anos, ele passou a viver sob a supervisão dos avós, morando
em Port Royal, centro do rigor cristão de cunho ortodoxo, cuja severidade monás-
tica sob a autoridade dos sacerdotes incluía, além dos estudos teológicos, a filo-
sofia. O aprendizado da língua grega lhe permitiu ler no original e traduzir os três
grandes dramaturgos do teatro grego, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, aproximan-
do-o do teatro clássico, da natureza do trágico em si.
Em 1666, Racine inicia um conjunto de peças consideradas até hoje, princi-
palmente na França, obras primas do teatro. Vossler observa como postura chave
de Racine o rigor no princípio da unidade de lugar no seu teatro, cujas peças se
completam em um espaço ou lugar cênico concebido de forma rigorosa e econô-
mica, em parceria com a força do discurso, do som, da palavra falada, sublime e
solene, de qualidade musical. Vossler (1972, p. 117) enfatiza o ponto, quando afirma:
“O teatro de Racine não necessita ser representado para ser completamente efeti-
vo”.61 A verdade, contudo, é que suas peças foram encenadas. Para ele, o espetáculo
era tão importante que o fez romper relações com o já reconhecido Molière, em
1665, para montar suas peças no Teatro Hôtel de Bourgogne. Acredita-se que uma
das razões, senão a principal, para tal mudança, teria sido a experiência da compa-
nhia do Hôtel de Bourgogne na montagem de tragédias. A documentação acerca do
tratamento visual dispensado à sua dramaturgia nos espetáculos ali montados é
escassa. A leitura atenta das suas peças, contudo, oferece pistas da natureza cênica
que ele almejava para o seu texto.
Tome-se como primeira fonte Ifigênia [Iphigénie (1674)], apresentada pela
primeira vez no mesmo ano durante as festividades dedicadas a Louis XIV, no
Teatro de Versailles. Ainda que um estudioso, teórico ou diretor possa perscru-
61 “Racine’s drama does not need to be performed in order to be completely effective.”
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A luz na gênese do espetáculo | 307
tar no diálogo pistas para instalar a ação da peça em outro, ou em outros luga-
res, Racine afirma, na edição publicada em 1675, depois de listar as personagens
envolvidas: “A ação se passa em Áulida, na Tenda de Agamêmnon”;62 e não faz
qualquer menção a eventuais mudanças de lugar, durante a peça. Já na abertura
do diálogo, entretanto, ele procura assegurar que o espectador – não tendo lido
a rubrica – seja introduzido na atmosfera da cena, e dá a Arcas, servo do Rei, tal
função: “É o Senhor, sem dúvida! Que importante motivo | Vos faz adiantar-se
tanto à Aurora? | Uma tênue luz, apenas, me guia e te ilumina | Vossos olhos e
os meus são os únicos abertos em Áulida | Ouviste no ar algum rumor? | Teriam
os ventos nos respondido esta noite”.63 (RACINE, 1675, p. 1, tradução nossa) Essa
tradução descarta qualquer interesse em alcançar o mérito poético do texto em
questão, e apenas procura interpretar o desejo do autor em revelar o ambiente e a
atmosfera na qual instala seu drama: o sol ainda está por nascer, e o ambiente se
encontra envolto em penumbra.
Racine (1675) apresenta a situação através da réplica de Arcas investindo-o
do papel de arauto da atmosfera da ação. Essa é uma estratégia historicamente
conhecida e eficaz para o drama, sendo aplicada por Shakespeare e Ésquilo de
modo exemplar. Mas em Racine abre-se uma nova via: seus espetáculos ocorriam
em locais fechados, como o Hôtel de Bourgogne, o que sugere a possibilidade do
emprego de luz artificial para criar as atmosferas desejadas. Em Ifigênia, a ação se
refere a um Rei que decide sacrificar a própria filha para obter a vitória na guerra
e, toda a peça ocorre em um mesmo ambiente, tornando necessária a narração de
partes importantes dos acontecimentos. Ou seja, o espectador não está obrigado a
comprimir o tempo e o espaço para localizar no palco os eventos; ele é provocado
a ver, na sua imaginação, as longas viagens, as complexas ações da campanha, e
tudo aquilo que ocorre fora do espaço “único” destinado à cena.
Compreendendo o espetáculo como espaço para experimentação, não seria
surpresa se na cena seis do terceiro ato um diretor decidisse gravar e amplificar
a voz de Aquille e começar a ação com a personagem “congelada”, imóvel, diante
do espectador, que ouviria a gravação: “Madame, estou e permanecerei imóvel e
em silêncio. | Sabes que dizes tais palavras para mim, | Aquille?”.64 (RACINE, 1675,
p. 39, tradução nossa)
62 “La Scene est en Aulide, dans la Tente d’Agamemnon.”
63 “C’est vous mesme Seigneur! Quel important besoin | Vous a fait devancer l’Aurore de si loin? | A peine um foible jour vous éclaire & me guide, | Vos yeux seuls & les miens sont ouverts dans Aulide. | Avez-vous dans les airs entendu quel bruit? | Les Vents nous auroient-ils exaucer cette nuit?”
64 “Madame, je me tais & demeure immobile. | Est-ce à moi que l’on parle, & connoit-on | Achille? ”
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A imaginação que promove instigantes caminhos na elaboração cênica de um
texto poderia motivar um cenógrafo a fazer transcorrer toda ação de Ifigênia sob
algum tipo de tecido espesso, que permitisse a experimentação de uma luz difusa,
durante, praticamente, quase todo o espetáculo, como se estivesse filtrada pela
“tenda” de Agamêmnon. Tal opção apresentaria uma visualidade muito próxima
daquela vislumbrada por Racine, dramaturgo e diretor. Essa ausência-presença dos
instrumentos usados para tornar visível a cena implantaria uma qualidade muito
difusa, macia, para a luz, com sombras ambíguas, em interferência mútua. Pode
ser sublinhada, por conseguinte, a cena cinco do terceiro ato quando Arcas revela
a intenção de Agamêmnon, que planeja sacrificar a própria filha, em troca de favo-
res dos deuses, para alcançar Troia e vencer os inimigos. “Ele a espera no altar, para
sacrificá-la”.65 (RACINE, 1675, p. 39, tradução nossa) Sob a luz difusa mencionada,
uma luz “invisível”, estaria elaborada a intenção de acentuar as funções desejadas
pelo dramaturgo para a palavra, assim como para o som.
Por outro lado, aí se pode identificar enorme provocação para diretores e ilumi-
nadores. Repousar no apelo fácil dos efeitos pode dar inúmeras razões para “ilus-
trar” as emoções presentes na cena, com tantos artifícios quanto seu orçamento e
familiaridade com os truques permitissem. Ainda que tal solução possa se afastar
do logos visual indicado por Racine, inundando sua tragédia com movimentos e
cores, o propósito deste livro afasta a necessidade de avaliar uma ou outra abor-
dagem. O objetivo é apreender, no texto, a visualidade inscrita por Racine na obra
em questão. Isso até pode trazer, à tona, brechas por ele deixadas – traído pela
obra e pela própria natureza do teatro – para a compreensão da luz presente na
dramaturgia.
Considerando a mencionada cena de abertura do primeiro ato, pode-se até
identificar possibilidades para a desconstrução da uniformidade sugerida no pará-
grafo anterior, permitindo movimentos da luz, provocados pelo nascer do sol e
criando uma intensa invasão de matizes na cena. No mesmo caminho, a sequência
final da tragédia, última fala de Ulysses, encontra-se impregnada de densa atmos-
fera: “[...] Deste espetáculo pavoroso que chocou sua filha”.66 (RACINE, 1675, p. 71,
tradução nossa) Ele se refere à batalha travada por Achille contra os soldados do
rei, em defesa de Ifigênia, e já anunciada por Arcas na cena anterior: “O fatal sacri-
fício ainda não aconteceu. | [...] o ar geme, o ferro brilha”.67 (RACINE, 1675, p. 69,
tradução nossa) Na acirrada disputa, o céu geme com o movimento das setas que
65 “Il l’attend à l’autel pour la sacrifier.”
66 “De ce spectacle affreux votre fille allarmée | [...]’.
67 “Le fatal sacrifice est encore suspendu. | […] l’air gémit, le fer brille.”
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cortam o ar, formando uma nuvem de ferro sobre o campo de batalha, momento
assim descrito por Ulysses: “Traços [as setas] no ar criaram uma nuvem. | Na carni-
ficina o sangue coloria a terra”.68 (RACINE, 1675, p. 71, tradução nossa)
O sacrifício, contudo, toma outro rumo, quando se sabe que Eriphile, também
filha de Agamêmnon, será sacrificada para atender a demanda de Diane. No
mo mento em que deveria ser consumada a imolação, Eriphile nega-se a morrer pelas
mãos de estranhos e desfere, no próprio peito, um golpe fatal, com o punhal sagrado.
Ulysses, relata:
Logo seu sangue escorreu e tornou rubra a terra; | Do altar, os
Deuses fizeram ouvir o trovão, | Os ventos agitaram efusiva-
mente o ar, | E o Mar os respondeu com seu rugido. | Ao longe,
a Costa gemeu branqueada pelas ondas. | A chama da pira, so-
zinha se acendeu | O Céu brilhou em relâmpagos, e entreaber-
to | lançou sobre nós um santo horror que nos tranquilizou. |
Maravilhado, o soldado contou que numa nuvem | Diane des-
ceu sobre a pira, | E acredita que ela se elevou no seu próprio
fogo [...].69 (RACINE, 1675, p. 72, tradução nossa)
Como se pode ler, a luz e a atmosfera são criadas pela voz do ator. Se for consi-
derada a compreensão de Racine, aceitando-se a força que pulsa nessas palavras,
pode-se manter aquela luz filtrada pela “tenda” e deixar a cargo da sua poesia a
criação do ambiente. O que significa dizer: a luz da qual o autor faz impregnar sua
dramaturgia abre espaços para a visualidade da qual se impregnará um espetáculo.
Tanta intensidade poética pode, no entanto, sugerir diversificados movimen-
tos na luz. E a expressão “movimentos na luz” explicitamente abre espaços para,
além do movimento em si, a presença de cores, texturas, ângulos e intensidades,
que poderiam gerar inclusive muitas formas e sombras radicalmente definidas na
cena. Ifigênia pode, portanto, provocar diversificados tratamentos. Identificando
a visualidade proposta pelo autor, cada um pode elaborar um ponto de vista sobre
ela e seguir os caminhos pretendidos para exercer sua própria abordagem.
Rigoroso no que se refere à regra das três unidades, Racine criou um momento
diferenciado que deve ser destacado como único da sua categoria, em sua obra. Se
em peças como Ifigênia e Fedra (Phèdre), toda a ação se passa no mesmo ambiente,
68 “Déja des traits en l’air s’eslevoit un nuage. | Déja couloit le sang prémices du carnage.”
69 “A peine son sang coule e fait rougir la terre; | [...] Les Dieux son sur l’autel entendre le tonerre, Les Vents agitent l’air d’heureux frémisemens, | Et la Mer leur répond par ses mugissements. | la Rive au loin gémit blanchis-sante d’ecume. La flame du Bucher d’elle meme s’allume. | Le Ciel brille d’éclairs, s’entrouve, & parmy nous | Jette une sainte horreur, qui nous assure tous. | Le soldat etonné dit que dans une nue | jusques sur le bucher Diane est descendue, | Et croit que s’élevant à travers de ses feux, […].”
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a tragédia Atália (Athalie), originada em um tema bíblico [assim como Esther
(1689)], e publicada em 1691, apresenta um traço que a diferencia.70 (BIBLIA, 1999,
p. 441-442)
Atália foi regente de Judá no século IX a.c., depois do assassinato do seu filho
Ochosias por Jeú, e é chamada usurpadora do Reino de Judá, nos escritos bíbli-
cos. Ela era filha de Achab, Rei de Israel, e de Jézabel. Com o objetivo de por fim a
conflitos políticos, fez-se seu casamento com Joram, rei de Judá. Athalie foi, no
entanto, repudiada pelo povo e pelos sacerdotes, devido a sua adoração a Baal, para
o qual construiu um templo em Jerusalém. Tomando conhecimento da morte do
seu filho Ochosias, a regente ordena a morte de todos os membros da casa Real de
David, inclusive seus próprios netos. Em meio a tão trágicos incidentes, Josabet,
meio-irmã de Ochosias e esposa do sumo sacerdote, salva Joas juntamente com
sua ama, que são mantidos em segurança e protegidos da ira de Athalie, por sete
anos. Ao final desse período, encontra-se o “momento zero” da peça de Racine.
Ele divide a ação em cinco atos. Agora, viúva do Rei Joram, Athalie deixou a
religião da família e segue em adoração a Baal – considerado um falso deus – acre-
ditando haver dizimado toda a família real de David. Abner, oficial do exército,
declara, com júbilo, ao sumo sacerdote Joad, que reconheceria um sobrevivente
da família real como seu verdadeiro e único soberano. Revelando à sua mulher,
Josabet, o apoio de Abner, Joad decide anunciar a identidade do herdeiro, para reti-
rar Athalie do trono e restaurar sua religião e o verdadeiro reinado.
Athalie dirige-se ao templo onde encontra uma criança que já lhe havia apare-
cido em sonho. Desconhecendo tratar-se, na verdade, de Joas que escapou da morte
por ela ordenada, convida-o a morar no palácio real. A regente teme um complô,
enquanto Joad prepara o anúncio da identidade do herdeiro. Joas é declarado
descendente e sucessor dos reis de Judá. Os sacerdotes preparam-se para defender o
templo, e recebem dura reação de Athalie, que decide tomar a criança, quando final-
mente fica sabendo que se trata do seu concorrente no direito ao trono. Os soldados
de Athalie entram em pânico e a abandonam. Sua execução é ordenada por Joad,
destino que deve ser estendido a qualquer um que a apoie.
Ainda que a fábula tenha sido aqui muito resumida, o relato deixa ver a gravi-
dade dos acontecimentos. E tal gravidade torna-se evidente já na primeira rubrica
do texto: “A cena se passa no Templo de Jerusalém, no vestíbulo dos aposentos do
sumo-sacerdote”.71 Ou seja: tudo ocorrerá em um único ambiente e grande parte
70 2 Reis 11: 1-21.
71 “La scène est dans le temple de Jérusalem, dans un vestibule de l’appartement du grand-prêtre.”
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dos acontecimentos implicitamente incluídos na ação da tragédia será narrada.
A convicção de Racine da substância poética do seu texto inclui a confiança numa
espécie de espetacularidade rítmico-sonora do discurso, como em um movi-
mento menos barroco católico, e mais – num certo sentido – protestante, musi-
cal. Na antepenúltima cena da peça, contudo, Racine introduz uma exceção, numa
rubrica: “A cortina se abre”72 (Ato 5, cena 5, entre as linhas 1717 e 1718). (RACINE,
1892, p. 72, tradução nossa) Trata-se da única mudança explícita no ambiente,
levando-se em conta a maioria das suas peças e se refere à cortina no fundo da
cena, através da qual Joas é revelado. Aproxima-se o final da tragédia; no momento
seguinte, mais uma surpresa, e agora, radical: “Aqui o fundo do palco se abre: vê-se
o interior do templo, e os levitas entram de todos os lados para a cena”73 (Ato 5,
cena 5, rubrica que se segue à linha 1730). (RACINE, 1892, p. 73, tradução nossa)
Mesmo que os defensores da ação, numa possível contenda contra a pala-
vra, possam acentuar o momento como uma rendição de Racine ao poder cênico
do acontecimento efetivo, em detrimento da palavra que narra, tal abordagem
deixa de ser importante, pois interessa a aproximação com o pensamento visual
elaborado pelo dramaturgo. Ele solicita uma sensível cumplicidade da luz, cujas
mudanças significativas no ambiente devem ser aplicadas parcimoniosamente
com o intuito de preservar o impacto do momento final, a invasão dos levitas,
preparada pela abertura da cortina que revela Joas. Um momento de exceção que
representa uma confirmação da regra aplicada em outras obras. Aproximando-se
do espetáculo vislumbrado por Jean-Baptiste Racine, na sua dramaturgia, pode-se
concordar, ou apontar outras possibilidades.
72 “Le rideau se tire.”
73 “Ici le fond du théâtre s’ouvre: on voit le dedans du temple, et les lévites armés sortent de tous côtés sur la scène.”
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