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1 A INTERFERÊNCIA DO ESTADO NAS QUESTÕES DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO E SUAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL E NO ACRE SÁRVIA SILVANA SANTOS LIMA, Procuradora do Estado do Acre, especialista em Direito Público pela Faculdade Integrada de Pernambuco - Facipe; especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Acre-UFAC, especialista em Gestão Pública pela Universidade do Norte, mestre em Ciências Sociais pelo IURPEJ - Cândido Mendes e doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais, pela Universidad del Museo Social Argentino, Buenos Aires-Argentina. Resumo Ao longo da história a mulher sempre sofreu violência. Percebe-se que até hoje ocorrem desigualdades resultantes da questão de gênero, em virtude da atribuição de papéis sociais diversos às mulheres e aos homens, que colocam sempre a mulher em situação de subordinação, desta forma, estabelecendo relações de poder que se expressam na violência contra a mulher. A violência ocorrida dentro do lar constitui um desrespeito aos direitos humanos, além de apresentar especificidades, entre as quais a violência conjugal, modalidade de violência doméstica que ocorre entre os cônjuges dentro do espaço da intimidade. Os papéis sociais de gênero ainda são baseados no modelo patriarcal de dominação. Com o surgimento da Lei Federal n° 11.340, de 7 de agosto de 2006, denominada Lei Maria da Penha, criam-se políticas públicas no Brasil que visam coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e, com isso, tornou-se necessária a intervenção do Estado nas relações consideradas privadas, visando o equilíbrio das relações de poder no âmbito familiar. Palavras-chave: Violência contra a mulher; violência doméstica contra a mulher; políticas públicas e Lei Maria da Penha.

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A INTERFERÊNCIA DO ESTADO NAS QUESTÕES DE VIOLÊNCIA

DE GÊNERO E SUAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL E NO ACRE

SÁRVIA SILVANA SANTOS LIMA, Procuradora do Estado do Acre, especialista em Direito Público pela Faculdade Integrada de Pernambuco - Facipe; especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Acre-UFAC, especialista em Gestão Pública pela Universidade do Norte, mestre em Ciências Sociais pelo IURPEJ - Cândido Mendes e doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais, pela Universidad del Museo Social Argentino, Buenos Aires-Argentina.

Resumo Ao longo da história a mulher sempre sofreu violência. Percebe-se que até hoje

ocorrem desigualdades resultantes da questão de gênero, em virtude da atribuição de papéis sociais diversos às mulheres e aos homens, que colocam sempre a mulher em situação de subordinação, desta forma, estabelecendo relações de poder que se expressam na violência contra a mulher. A violência ocorrida dentro do lar constitui um desrespeito aos direitos humanos, além de apresentar especificidades, entre as quais a violência conjugal, modalidade de violência doméstica que ocorre entre os cônjuges dentro do espaço da intimidade. Os papéis sociais de gênero ainda são baseados no modelo patriarcal de dominação. Com o surgimento da Lei Federal n° 11.340, de 7 de agosto de 2006, denominada Lei Maria da Penha, criam-se políticas públicas no Brasil que visam coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e, com isso, tornou-se necessária a intervenção do Estado nas relações consideradas privadas, visando o equilíbrio das relações de poder no âmbito familiar.

Palavras-chave: Violência contra a mulher; violência doméstica contra a mulher;

políticas públicas e Lei Maria da Penha.

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1- INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 é um marco jurídico da transição ao regime

democrático, pois com ela cresceu, de forma significativa, o campo dos direitos e garantias

fundamentais. Desde o seu preâmbulo a Carta Magna dispõe:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte, para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.

Dentre os fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro, deve ser

destacado o princípio da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental. Como tal

deve permear e assegurar os direitos estabelecidos no texto magno, tais como: vida, saúde,

integridade física, honra, liberdade física e psicológica, nome, imagem, intimidade,

propriedade, a razoável duração do processo e celeridade processual etc.

A Constituição Federal de 1988 dispõe em seu artigo 5º, caput, sobre o princípio

constitucional da igualdade, perante a lei, nos seguintes termos: Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

O princípio da igualdade prevê a igualdade de aptidões e de possibilidades

virtuais dos cidadãos de gozar de tratamento isonômico pela lei. Por meio desse princípio são

vedadas as diferenciações arbitrárias e absurdas, não justificáveis pelos valores da

Constituição Federal, que têm por finalidade limitar a atuação do legislador, do intérprete ou

autoridade pública e do particular.

Tais dispositivos retrocitados, assim como o contido no art. 226, § 8º, que

estabelece: "O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a

integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações", não são

princípios abstratos, meramente programáticos, mas normas efetivas, que possuem eficácia

vinculante para o ordenamento jurídico infraconstitucional, de forma que é o ponto inicial

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para toda a legislação brasileira. Não deixam dúvidas quanto à importância que a

Constituição confere ao princípio da igualdade, tão ampla quanto possível, entre homens e

mulheres. Importante registrar a observação da doutrinadora Leda Maria Herman

(2007, p.83): A base constitucional invocada-artigo 226,§ 8º da Constituição da Repulica- consiste no dever do Estado em prestar assistência à família, não apenas como grupo ou unidade, mas em relação a cada um de seus membros, incumbindo-lhe criar, para tanto, estratégias e ferramentas de enfrentamento da violência no âmbito intrafamiliar.

No plano internacional, o Brasil é signatário desde 1996 da Convenção

Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (conhecida como

Convenção de Belém do Pará), pela qual assumiu o compromisso de: Art. 7º [omissis] (...) § 2º. Agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher. (...) § 4º. Adotar medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir, intimidar e ameaçar a mulher ou de fazer uso de qualquer método que danifique ou ponha em perigo sua vida ou integridade ou danifique sua propriedade. § 5º. Tomar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher.

A legislação deve ser interpretada de forma que proporcione a máxima efetividade à

proteção dos direitos fundamentais de todos os cidadãos e, diante do reconhecimento da

violência doméstica como um problema histórico de desigualdade nas relações de gênero, a

legislação deve ser interpretada de forma que maximize a prevenção à violência doméstica.

A Constituição da República está na integração da ordem jurídica interna e da

externa, num sistema normativo fulcrado na primazia dos valores universais da igualdade e da

não-discriminação. Resta superar as práticas culturais do país, o que impõe a mudança de

ótica e de paradigmas. Assim será possível compreender que a violência contra as mulheres é

discriminação, o que por si só justificaria a Lei nº. 11.340/2006, bem como a necessidade de

sua aplicação.

Preleciona Flávia Piovesan (2011, p.50): Os direitos humanos das mulheres são universais, internacionais, sem fronteiras. São indivisíveis, para a sua plenitude exige-se o exercício dos direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais, direitos sexuais e reprodutivos, direito a um meio ambiente sadio e equilibrado. A política do Estado que afrontar esta gramática universal de direitos anda na contramão da história e insere-se em absoluto isolamento político na ordem internacional. Apesar dos importantes avanços

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decorrentes do forte instrumental jurídico vigente - “Constituição e Tratados Internacionais” -, a eficácia prática dos novos valores é muito reduzida. A cultura jurídica vem alicerçada em diferentes paradigmas, conflitantes com a nova ordem, que esvazia e mitiga a força inovadora dos instrumentos contemporâneos.

A Lei Maria da Penha, acima de tudo, confirma que existe a desigualdade entre o

homem e a mulher. Dessa forma, implementa uma política afirmativa capaz de acelerar a

igualdade de fato entre homens e mulheres; onde deveria ser o reduto da paz e do amor, acaba

sendo um lugar de muito perigo.

Revela, ainda, a existência da dominação e da violência contra a mulher; mesmo

depois de muitas conquistas, a violência doméstica é, ainda, uma realidade. Esse marco de

violência doméstica contra as mulheres é uma expressão de manifestação da resistência do

declínio do patriarcado.

2- GÊNERO O vocábulo “gênero” (masculino e feminino) tradicionalmente utilizado como

sinônimo da indicação de sexo, isto é, o fato biológico de ser fêmea ou macho, tem sido usado

por escritores atuais para se referir às diferenças que compõem as características dos papéis

masculinos e femininos. Sexo é fisiológico, enquanto gênero, no sentido amplo, é cultural e

sociológico.

O conceito de gênero é um dos meios utilizados para analisar a relação entre a

subordinação da mulher e a mudança social e política. O gênero de um ser humano é o

significado social e político, historicamente, atribuído ao seu sexo. (Viezzer, 1989, p.107)

Nascemos machos ou fêmeas, porém somos feitos como um homem ou uma mulher.

E o processo de fazer homens e mulheres é então histórica e culturalmente variável;

consequentemente, pode ser modificado através da luta política e das políticas públicas

(Alvarez, 2000, p.09).

Essas diferenças de tratamento acabam por refletir no comportamento das crianças,

que são educadas, desde o nascimento, para adquirir características e atributos pertinentes ao

que é considerado papel masculino e papel feminino.

Ao complementar a discussão sobre o conceito de gênero, Scott mostra que não se

pode prescindir da dimensão simbólica para entender a representação do gênero em nível

societário e suas implicações para a construção do sentido da experiência. Esta dimensão é um

dos elementos definidores da categoria gênero. A autora define gênero como: Um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos e o gênero é um primeiro modo de dar significado às

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relações de poder. A palavra indicava uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como sexo ou diferença sexual (Scott, 1993, p.41).

3- VIOLÊNCIA E GÊNERO Conceituar o termo violência não constitui tarefa fácil. Primeiro, em razão da

diversidade de teorias; segundo, pela própria essência do fenômeno, que se mostra complexa.

Conforme o Dicionário Houaiss (2004, p.762), violência é uma expressão assimétrica que tem

como sinônimos: desarmonia, desconformidade, desequilíbrio, desigualdade, desproporção,

desunidade, diferença, discordância, discrepância, disparidade, dessemelhança, dessimetria,

dissimilitude, inconformidade. Tendo a violência diversos significados, pode ser a prática de

qualquer ato que cause dano físico, material, psicológico ou ideológico, que pode ser

cometido tanto por pessoas de forma isolada quanto por grupos de pessoas, instituições ou

mesmo o Estado.

Interesses, valores, saber e poder participam do conflito no âmbito macrossocial e

nas relações de “'mascaramento' ou bloqueamento de saberes locais e marginais e também

pela imposição do silêncio, do segredo e de dispositivos e de mecanismos que se exercem em

níveis diferentes e domínios e extensões variadas, sem se reduzir à economia” (Foucault,

1979, p.175).

Segundo Santos (2000, p. 248) “o poder, em nível muito geral, é qualquer relação

social regulada por uma troca desigual.”

Para Arendt (1985, p.29) a violência é como o avesso e a perda do poder legítimo.

Segundo a autora, o poder estrutura-se no processo de poder legítimo e constitui o processo de

legitimação e domínio através da violência pura, que vem à baila quando esse poder está em

vias de ser perdido.

Na concepção de Chauí (1985, p.35), “a violência deseja a sujeição consentida ou a

supressão mediatizada pela vontade do outro, a violência perfeita é aquela que resulta em

alienação, identificação da vontade e da ação de alguém com a vontade e ação contraria que a

dominam”.

4- PATRIARCADO Patriarcado é uma palavra derivada do grego pater e se refere a um território ou

jurisdição governado por um patriarca. No sentido original, este é uma autoridade masculina

religiosa que tem poder sobre todos os que lhes estão subordinados. O termo também pode ser

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estendido aos homens adultos que têm poder sobre seus familiares e empregados, concedido

tanto por autoridades religiosas que compactuam dessa dominação, quanto por autoridades

políticas que estimulam esse sistema de organização social. Em resumo, o termo patriarcado é

utilizado para se referir a um sistema ou forma de dominação que os homens exercem sobre

as mulheres, utilizando-se das diferenças biológicas e físicas.

Na conceitualização clássica weberiana, chama-se patriarcalismo a uma associação,

na maioria das vezes fundamentalmente econômica e familiar em que a dominação é exercida

normalmente por uma só pessoa, de acordo com determinadas regras hereditárias fixas

(Weber, 2004, p.151).

O patriarcalismo está presente nas mais diversas formas históricas de organização

social, ocorrendo onde e sempre que a autoridade esteja centrada no patriarca de uma

comunidade. Sendo fundado na autoridade doméstica e familiar, o patriarcado implica ainda

uma determinada divisão sexual legitimada, aceita como normal e/ou natural.

Partindo do pressuposto de que a concepção de gênero compreende uma relação

hierárquica que remete à desigualdade entre os sexos, ela está correlacionada à ideologia

patriarcal. A relação entre os conceitos de gênero e patriarcado tem levado as feministas e

intelectuais que estudam a questão das relações entre homens e mulheres em todas as esferas

da vida social a oscilar entre os dois enquadramentos, ou ainda, a superpô-los.

Assim é que, na visão de Machado, as concepções de gênero e patriarcado não são

opostas. O termo patriarcado remeteria a uma estrutura fixa que imediatamente aponta para o

exercício e a presença da dominação masculina. Diversamente, o termo gênero remeteria a

uma abordagem flexível e não universalista das relações entre homens e mulheres, implicando

a ideia de que as relações sociosimbólicas são construídas e transformáveis (Machado, 2000,

p.3).

A referida autora não entende como imprópria a utilização do conceito de

“patriarcado contemporâneo”. No entanto, considera que seu uso acaba por implicar um

sentido totalizador, tornando mais difícil a apreensão dos sentidos contraditórios das relações

sociais e empobrecendo a análise das respectivas transformações. Desta forma, as

transformações sociais contemporâneas do lugar das mulheres e dos homens e dos sentidos

das diferenças de gênero fogem ao aprisionamento do termo “patriarcado” (Machado, 2000,

p.3). Ao contrário, a utilização do conceito de relações de gênero, não define, a priori, os

sentidos das mudanças e permite construir metodologicamente uma rede de sentidos, quer

divergentes, convergentes ou contraditórios.

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Por outro lado, o conceito de gênero não implica deixar de lado o de patriarcado. Ele

apenas abre a possibilidade de novas indagações, que muitas vezes não são feitas porque o

uso exclusivo do termo patriarcado parece já conter, de uma só vez, todo um conjunto de

relações: como são e porque são. Tratar-se-ia, assim, de um sistema ou forma de dominação

que, reconhecida, já explica a desigualdade de gênero. Os homens, como categoria social,

possuem liberdade absoluta, podem ter autonomia social e política, em uma palavra,

independem de outro sexo para desenvolver suas atividades. As mulheres, por sua vez,

necessitam da autorização dos homens. A noção híbrida de “ordem patriarcal de gênero”

defendida pela referida autora, não tendo a pretensão da generalidade nem da neutralidade,

deixa propositadamente explícito o vetor da dominação e exploração, porém permite

especificá-las melhor sem deixar de reconhecer a subordinação histórica das mulheres, que

atravessa, sob as mais variadas formas, todos os períodos da chamada civilização,

permanecendo até os dias atuais (Saffioti, 2004, p.44).

Segundo Xavier (1998, p.125), temos que a “associação entre famílias e patriarcado

remete à origem do termo 'família’, oriundo do vocábulo latino famulus, que significa

“escravo domestico”. Esse novo organismo social - a família - consolidou-se enquanto

instituição na Roma Antiga. A família romana era centrada no homem, sendo as mulheres, no

geral, meras coadjuvantes. O patriarca tinha sob seu poder a mulher, os filhos, os escravos e

os vassalos, além do direito de vida e de morte sobre todos eles. A autoridade do pater

familiae sobre os filhos prevalecia até mesmo sobre a autoridade do Estado e duraria até a

morte do patriarca. Ele poderia, inclusive, transformar seu filho em escravo e vendê-lo.

Para melhor compreender o que acabamos de ver quanto ao patriarcalismo, faz-se

necessário analisar o termo família, objetivando facilitar a compreensão do estudo em

questão.

5- A FAMÍLIA A família é uma das instituições que melhor caracteriza a organização da sociedade

humana. Segundo Lévi-Strauss (1980, p.30), ela permanece como matriz do processo

civilizatório como condição para a humanização e para a socialização das pessoas. E desta

forma, mesmo sofrendo transformações ao longo do tempo, a família é identificada como o

fundamento da sociedade.

Na sociedade moderna, o grupo familiar tem sua origem no casamento. Compreende

o núcleo constituído pelo marido e pela esposa e, também, filhos.

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O vinculo familiar é regulado pelas leis, que podem gerar obrigações econômicas,

religiosas e outras, sobretudo na forma de direitos e proibições sexuais. Enfim, o vínculo

familiar também é inseparável dos sentimentos psicológicos, como amor, afeição, respeito,

medo e violência.

A família é o primeiro espaço de socialização das crianças, onde elas são educadas e

criadas, onde fazem seus primeiros aprendizados da divisão sexual do trabalho, adquirindo

assim, parte de sua identidade de gênero.

É importante ressaltar que é na família que ocorrem os primeiros indícios da

desigualdade de gêneros, sob a forma de privilégios e liberdades que são atribuídos aos filhos

em detrimento das filhas. Em geral as mulheres tendem a ser superprotegidas, no sentido de

estabelecer e regular o cotidiano delas no que diz respeito à iniciação sexual, namoros, lazer,

dentre outras restrições que aqui poderiam ser mencionadas. Por outro lado, ao homem

sempre foi concedida maior autonomia, muito relacionada à concepção de que lhes cabia o

exercício da vida pública e às mulheres, a administração do lar. Tudo isso, evidentemente,

remete à desigualdade de gênero.

6- A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA A violência doméstica é toda espécie de agressão (ação ou omissão) dirigida contra a

mulher (vítima certa) num determinado ambiente (doméstico, familiar ou de intimidade)

baseada no gênero, que lhe cause morte, lesão, sofrimento psicológico, físico ou sexual e dano

moral ou patrimonial (Cunha, 2007). Em outras palavras, é a agressão contra a mulher, num

determinado ambiente, com consequência específica de retirar seus direitos.

A violência doméstica é talvez uma das mais preocupantes expressões da dominação

masculina. No âmbito doméstico são legitimados, em muitos casos, atos de extrema violência

praticados por homens no exercício do mando e do poder patriarcal. O locus privilegiado é o

espaço doméstico e, embora não se restrinja a ele, permite a aplicação do velho adágio “em

briga de marido e mulher não se mete a colher”, de trágicas consequências, já que o Estado

justifica facilmente sua não intervenção no espaço doméstico. “Espaço doméstico” é

concebido, aqui, não apenas territorialmente, como também simbolicamente, pois muitas

vezes os homens tentam exercer seu poder sobre as ex-esposas mesmo quando já separados,

impedindo ou dificultando que elas concretizem uma melhora de vida substancial, uma vez

que a agressão que sofriam quando coabitavam com os ex-maridos não desaparece. Por outro

lado, deve-se reconhecer que há casos bem-sucedidos, que correspondem ao fato de que

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algumas mulheres se tenham mostrado independentes, bem-sucedidas financeiramente e,

sobretudo, hajam tomado a iniciativa da ruptura da relação (Saffioti, 2002, p.17).

De todas as formas de violência contra a mulher, a que tem chamado mais a atenção

dos estudiosos é a que acontece em seu próprio meio familiar, devido às graves

consequências, as quais não se resumem ao fato da agressão física em si, mas também se leva

em consideração como essa agressão física ocorre. Pode-se até reconstruir um ritual de

agressões, muitas vezes com cenas chocantes, em que a dignidade e a integridade da vítima

são totalmente solapadas.

Segundo Ganley (1995, p.26), este tipo de violência pode ser chamado também de

abuso contra a esposa, agressão marital, espancamento de mulher, espancamento de esposa e

abuso contra a parceira, sendo que esses termos são usados intercaladamente para se referir ao

problema, enquanto que em outras ocasiões um determinado termo é usado para refletir um

significado específico, como por exemplo “abuso à mulher”, para destacar o fato de que a

maioria das vezes as vítimas são mulheres.

Silva (2004, p.30) afirma que a violência doméstica é considerada um tema

“maldito”, pelo fato de que as pesquisas nessa área investigam a instituição considerada

modelar e essencial para a sociedade que é a família.

O fato de que a violência doméstica ocorre num espaço considerado seguro para as

mulheres também faz com que esse crime seja difícil de registrar, pois muitas vezes o

sofrimento é silenciado pela própria vítima. Em certa medida, isso inviabiliza uma aferição

quantitativa fiel do número de ocorrências.

Saffioti (2007, p.26) afirma que na maioria dos casos o local de ocorrência de

violência contra a mulher no Brasil é a sua própria residência, o que contribui para que a

violência contra a mulher seja um fenômeno difícil de determinar, em especial por causa da

educação diferenciada dada à mulher, que mostra o exterior como um lugar perigoso e o

interior como local seguro. Isso a levaria a não reconhecer ou omitir sua situação, pois no

caso de denúncia ou outra reação ela estaria negando a proteção idealmente representada pelo

espaço doméstico. Assim, solapam-se suas iniciativas, os valores dominantes geram um

contexto no qual ela se torna impotente.

Segundo Almeida (2007, p.23):

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(..) a violência doméstica é uma noção especializada, que designa o que é próprio da esfera privada, dimensão da vida social que vem sendo historicamente contraposta ao público, ao político. Enfatiza, portanto, uma esfera da vida, independentemente do sujeito, do objeto ou do vetor da ação.

A violência doméstica compõe um ciclo que pode se tornar vicioso, repetindo-se ao

longo de meses ou anos. Primeiro é a fase da tensão, que vai se acumulando e se manifestando

por meio de atritos, cheios de insultos e ameaças, muitas vezes recíprocos. Em seguida, vem a

fase da agressão, com a descarga descontrolada de toda aquela tensão acumulada. O agressor

atinge a vítima com empurrões, socos e pontapés, ou às vezes usa objetos, como garrafa, pau,

ferro e outros. Depois, é a vez da fase da reconciliação, em que o agressor pede perdão e

promete mudar de comportamento, ou finge que não houve nada, mas fica mais carinhoso,

bonzinho, traz presente, fazendo a mulher acreditar que aquilo não vai mais acontecer,

voltando a sentir-se segura com o seu companheiro.

É muito comum que esse ciclo se repita, com cada vez maior violência e intervalo

menor entre as fases, muitas vezes terminando em tragédia, com uma lesão grave ou até o

assassinato da mulher1.

A violência doméstica tem como motivadores a força física do homem, o uso

abusivo do álcool pelo marido, sendo este fator um agravante da violência física. Outro fator

relevante é o financeiro: muitas vezes a mulher é totalmente dependente, sendo em alguns

casos o homem o provedor da casa.

A violência doméstica permanece até os dias atuais como uma das formas de

dominação e violência contra a mulher. Nas relações entre homens e mulheres, demarcadas

pela dominação masculina, surge a Lei Maria da Penha, Lei nº 11.340/2006, que mesmo não

sendo uma autoridade conceitual é uma autoridade prático-judicial decorrente de uma vitória

do movimento de direitos humanos a partir da militância feminista, ou seja, é política e não

teórica.

7- VIOLÊNCIA DE GÊNERO Como tem sido sublinhado, na análise das relações entre homens e mulheres e

também da visão que a sociedade construiu a respeito do que seja masculino e feminino,

verificamos diferenças fundamentais nos papéis sociais atribuídos ao homem e à mulher. As

relações entre eles, via de regra, têm como característica básica a desigualdade em que o

1 Portal da Violência contra a Mulher. Sobre a Violência contra as Mulheres. Disponível em: <http://www.patriciagalvao.org.br/apc-aa-patriciagalvao/home/noticias.shtml?x=105> 19 de julho de 2007.

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elemento masculino sobressai ao feminino, mantendo sobre este domínio e subordinação. O

conceito de gênero tem a função essencial de compreender essas diferenças, levando em

consideração elementos sociais, culturais e históricos que construíram essas relações, e, em

especial, a dominação dos homens sobre as mulheres.

Segundo Viezzer (1989, p.112), “gênero é um conceito mais adequado para analisar

a relação entre a subordinação das mulheres e a mudança social e política”.

Alguns autores enfatizam a violência implicada na produção das hierarquias

resultantes da desigualdade de gênero. Assim, por exemplo, para Vázquez (1977, p.20): (...) a violência, sendo o resultado de relações sociais conflituosas, visa atingir a consciência, embora tenha imediata expressão no ser corpóreo, por meio da agressão física. Ao visar à captura da consciência, incide, sobretudo, sobre o ser social, isto é, sobre indivíduos que corporificam relações sociais.

A violência de gênero é aquela praticada em razão das diferenças sociais e das

desigualdades atribuídas ao gênero em que a relação de dominação masculina seja ameaçada

por outras categorias de gênero historicamente subordinadas. Nessa categoria analítica

enquadra-se a violência praticada contra as mulheres.

Para Saffioti e Almeida (2007, p.8) a violência de gênero é: (...) fenômeno que ocorre independentemente de qualquer fronteira de classes sociais, de tipos de cultura, de grau de desenvolvimento econômico, podendo ocorrer em qualquer lugar, no espaço publico e no espaço privado, e ser praticada em qualquer etapa da vida das mulheres e por parte de estranhos ou parentes/ conhecidos especialmente destes últimos.

Desta forma, violência de gênero é aquela praticada pelo homem contra a mulher que

revele uma concepção masculina de dominação social propiciada por reações culturalmente

desiguais entre os sexos, nas quais o masculino define sua identidade social como superior à

feminina, estabelecendo uma relação de poder e submissão que chega até mesmo ao domínio

do corpo da mulher.

8- VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER A violência contra a mulher é qualquer ato violento que tenha como sua

determinação o gênero, sendo que tais atos podem resultar em danos corporais, sexuais e

psicológicos graves para a mulher e até mesmo, às vezes, a sua morte.

A violência contra a mulher é universal e sem fronteiras, é uma realidade mundial

que se apresenta em suas diversas nuanças, conforme o contexto cultural, social e econômico

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de diversos países, está ligado à violência doméstica, ao assédio sexual, tráfico de mulheres,

turismo sexual, entre outros ângulos do mesmo fenômeno.

A Convenção de Belém do Pará (1994), utiliza a seguinte definição da violência

contra a mulher: A violência contra a mulher constitui uma violação aos direitos humanos e às liberdades fundamentais e limita total ou parcialmente a mulher o reconhecimento, gozo e exercício de tais direitos e liberdades; violência contra a mulher é qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano físico, sexual ou psicológico a mulher, tanto no âmbito público como privado.

O Conselho da Europa ao tratar da violência contra a mulher dispõe: Qualquer ato, omissão ou conduta que serve para infligir sofrimentos físicos, sexuais ou mentais, direta ou indiretamente, por meio de enganos, ameaças, coação ou qualquer outro meio, a qualquer mulher, e tendo por objetivo e como efeito intimidá-la, puni-la ou humilhá-la, ou mantê-la nos papéis estereotipados ligados ao seu sexo, ou recusar-lhe a dignidade humana, a autonomia sexual, a integridade física, mental e moral, ou abalar a sua segurança pessoal, o seu amor próprio ou a sua personalidade, ou diminuir as suas capacidades físicas ou intelectuais. 2

A relação violenta, para outros autores, é considerada uma relação de dominação.

Soares afirma que a violência doméstica ou conjugal, na sua forma mais grave, acontece pelo

desejo de uma pessoa controlar e dominar a outra e consiste em ações repetidas de coerção

progressiva por ameaças e agressões, produzindo medo, dano físico e psicológico.

A Lei Maria da Penha não é sinônimo de perfeição, nem é a solução de todos os

problemas em relação à violência contra a mulher. Contudo tem o mérito de definir a

violência doméstica e suas diversas formas de manifestações.

A violência doméstica pode se manifestar sob várias formas. A primeira é a violência

física, que é o uso da força mediante socos, tapas, pontapés, empurrões, arremesso de objetos,

queimaduras etc., visando, desse modo, ofender a integridade ou a saúde corporal da vítima,

deixando ou não marcas aparentes, naquilo que se denomina, tradicionalmente, vis corporalis

(Cunha, 2007). A segunda forma é a violência psicológica, pois entende-se que a agressão

emocional é tão grave quanto a física. O comportamento típico se dá quando o agente ameaça,

rejeita, humilha ou discrimina a vítima, demonstrando prazer quando vê o outro se sentir

amedrontado, inferiorizado e diminuído, configurando a vis compulsiva. A terceira forma de

violência doméstica é a violência sexual, que é qualquer conduta que constranja a mulher a

presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação,

ameaça, coação ou uso da força que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo,

a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao

2 Violência contra a mulher. Disponível em <http://; www.fjuventude.pt> acesso em dez. 2008.

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matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou

manipulação ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.

Agressões como essas provocam nas vítimas, não raras vezes, culpa, vergonha e medo, o que

as faz decidir, quase sempre, por ocultar o evento. A quarta forma de violência doméstica é a

violência patrimonial, que é qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição

parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores

e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades. Esta

forma de violência raramente se apresenta separada das demais, servindo, quase sempre,

como meio para agredir, física ou psicologicamente, a vítima. E a quinta e última forma de

violência doméstica é a violência moral, qualquer conduta que consista em caluniar (imputar à

vítima a prática de determinado fato criminoso sabendo ser falso), difamar (imputar à vítima a

prática de determinado fato que fira sua honra) ou injuriar (atribuir à vítima qualidades

negativas) e que normalmente se dá concomitantemente à violência psicológica (Cunha,

2007).

Todo tipo de violência doméstica, seja ela física, psicológica, moral, sexual ou

patrimonial, causa transtorno na vida da mulher, sua principal vítima. Sua rotina diária não é

mais a mesma, ela fica com vergonha de sair de casa, deixa de se relacionar com outras

pessoas, se fecha em um mundo só dela. Pode-se afirmar ainda que a mulher em situação de

violência doméstica vê-se desvalorizada, desprestigiada no seu trabalho doméstico, agredida

nesse mesmo espaço sem ter com quem socorrer-se, pois, na maioria das vezes, depende do

agressor, seja afetiva, familiar ou financeiramente.

9- CONTEXTO HISTÓRICO DOS MOVIMENTOS FEMINISTAS NO

MUNDO

O movimento feminista originou-se em um período de profundas mudanças

históricas na Europa Ocidental, no século XVIII, o qual foi marcado pela expansão do

capitalismo industrial, e ainda em pleno apogeu da Reforma Protestante e da Revolução

Francesa. Nesse contexto de expressivos ajustes sociais, percebe-se que num primeiro

momento o mercado de trabalho impunha restrições à utilização da mão-de-obra feminina,

ficando as mulheres compelidas a permanecer no espaço doméstico.

Com a ascensão do capitalismo industrial, as mulheres passam a participar também

do espaço público, inserindo-se no mercado de trabalho. Neste âmbito, não ocorreu, porém,

uma equiparação entre os gêneros, especialmente no que diz respeito ao salário. Hubermann

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(1986, p. 16) ilustra muito bem a diferenciação salarial entre homens e mulheres, que era

gritante.

Além de sua função subalterna decorrente do patriarcalismo, coube à mulher uma

segunda função, a de operária. No entanto, aí também se manifestou a desigualdade de

gênero, indicada entre outros aspectos pelos salários muito inferiores aos dos homens.

No século XVIII, período marcado pela corrida industrial e pela expansão do capital,

é realizada uma série de críticas ao aprofundamento das desigualdades sociais. Na medida em

que as diferenças entre homens e mulheres se tornavam evidentes no mercado de trabalho,

tornando-se públicas, os movimentos feministas começam a crescer e, consequentemente, a se

fortalecer. Nesse período, mulheres de todas as classes sociais passaram a tomar consciência

da sua posição de inferioridade frente aos homens e à sociedade como um todo. Começam as

mudanças nas organizações políticas, nas práticas sociais e ainda na legislação.

Na segunda metade do século XIX, o sufrágio universal foi uma das reivindicações

que caracterizou o movimento feminista. As primeiras feministas do século XIX chamaram-se

sufragistas, pois suas lutas centravam-se no voto feminino em primeiro lugar. Elas pensavam

que, alcançado este direito, todas as outras reivindicações femininas seriam automaticamente

atingidas (Muraro, 1995, p.34).

O movimento feminista também lutava por maiores oportunidades de acesso à

educação, aumento da participação no mercado de trabalho, salários iguais aos dos homens e

proteção à maternidade.

Segundo Goldemberg (1992, p. 20), na luta pela garantia de seus direitos as mulheres

atuaram de várias formas: eram passeatas, choques com a polícia, prisões, greves de fome e

até mortes.

O dia 8 de março de 1857 tornou-se referência mundial para o movimento feminista.

Naquela data, operárias de uma fábrica de tecidos, situada na cidade norte-americana de Nova

York, fizeram uma grande greve. Ocuparam a fábrica e começaram a reivindicar melhores

condições de trabalho, tais como redução na carga diária de trabalho para dez horas (as

fábricas exigiam 16 horas de trabalho diário), equiparação de salários com os homens (as

mulheres chegavam a receber até um terço do salário de um homem, para executar o mesmo

tipo de trabalho) e tratamento digno no ambiente de trabalho3.

O resultado da manifestação foi uma repressão absurdamente violenta. As mulheres

foram trancadas dentro da fábrica, que em seguida foi incendiada, num ato que resultou na 3História do Dia Internacional da Mulher. Disponível em: <http://www.suapesquisa.com/dia_internacional_da_mulher.htm> acesso em jul.2008.

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morte de aproximadamente cento e trinta tecelãs. Esse dia ficou marcado pela violência e

crueldade no tratamento das reivindicações dessas mulheres, às quais sequer foi admitido o

direito de lutar por melhores condições de vida.

No ano de 1975, por meio de um decreto, foi instituído o “Dia Internacional da

Mulher”, oficializado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Ao ser criada, tal data não

pretendia comemoração ou homenagem, pois na maioria dos países realizam-se debates e

reuniões cujo objetivo principal é discutir o papel da mulher na sociedade.

Pode-se dizer que, mesmo com todos os avanços, as mulheres ainda sofrem, em

muitos locais, com a violência masculina, divergência de salários e desvantagens na carreira

profissional. Muito foi conquistado, mas muito ainda há para ser modificado.

As reivindicações feministas pelo sufrágio universal que se iniciaram no século XIX

foram atendidas apenas na metade do século XX: nos Estados Unidos, em 1920; no Brasil, em

1934; na França, Japão e Itália, em 1939. O movimento feminista acreditava que o direito ao

voto levaria automaticamente à emancipação da mulher. Contudo, isso não aconteceu, pois a

discriminação e a dominação do homem sobre a mulher continuaram, bem como a exploração

do trabalho feminino pelo capital, evidenciando que a ação do movimento feminista deveria ir

mais além.

A crise econômica mundial dos anos de 1930 e a Segunda Guerra Mundial em 1939

marcaram uma fase de certo marasmo em todos os movimentos sociais, inclusive no

feminino. Em razão da Segunda Guerra o movimento feminista sofre uma mudança no

direcionamento de suas lutas, as ideologias do fascismo e do nazismo entram em voga e

enfraquecem os movimentos e partidos de esquerda do período. Muitas conquistas e avanços

do movimento feminista sofrem um retrocesso em quase todos os países do mundo.

Mesmo assim, pode-se dizer que esse período representa o ápice da mudança da

mentalidade das mulheres, que entraram em setores até então do domínio exclusivo

masculino. Com os homens envolvidos na guerra, as mulheres passaram a estar em toda parte,

nos hospitais, nos órgãos públicos, nas fábricas, nos cargos de chefia.

A partir desse marco, perde-se a concepção da família tradicional, pois os homens

morriam na guerra, as mulheres trabalhavam nas cidades. Ocorre uma nova fase, pois as

mulheres, durante esse período, ainda oriundas dos costumes tradicionais, tiveram que se

adequar ao momento histórico, o que não chegou a significar a superação da etapa anterior.

Mesmo com a mudança no pensamento das mulheres, o feminismo é retomado no mundo

apenas no final da década de 60, período considerado como de reconstrução. A partir deste

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momento, as mulheres defendem o interesse de gênero, começam a questionar os sistemas

culturais e políticos construídos a partir dos papéis de gênero atribuídos às mulheres. A

questão da sexualidade da mulher, a violência doméstica, assuntos que até então eram

considerados “tabus”, reservados apenas ao âmbito privado, passam a ser objeto de

reivindicação.

Na década de 70, nos Estados Unidos e na Europa, as mulheres começam a quebrar

os paradigmas da separação entre público e privado e a luta do movimento feminista nesse

período volta-se para a tentativa de igualar mulheres e homens na vida pública, no trabalho,

lutando por direitos iguais.

Assim as relações de dominação do homem sobre a mulher, passam a ser

questionadas de maneira incisiva pelos movimentos feministas. As mulheres não querem mais

ser objetos sexuais nem inorgásticas (Muraro, 1993, p.176).

As mulheres, antes participantes apenas do âmbito doméstico, avançam

definitivamente em massa ao setor público. Entenda-se a dimensão pública como social, no

sentido de ir além do ambiente privado: é ganhar espaço no mercado de trabalho, na política,

mostrar que pode desempenhar outras funções e, mais que isso, mostrar a capacidade para o

exercício de outros papéis sociais.

Diante da invasão da mulher no mundo masculino, segundo Castells (1999, p.34), as

famílias, tal como conhecemos, tornar-se-ão relíquia em um futuro próximo, fazendo-nos

sentir, às vezes dolorosamente, os abalos dessa transformação.

Essas modificações têm causas múltiplas. A primeira é a inserção da mulher no

mercado de trabalho, fazendo com que a sua contribuição financeira passasse a ser decisiva no

ambiente doméstico. Tal fato levou ao questionamento da acumulação de afazeres

domésticos, dando suporte aos movimentos feministas. Acresce que o trabalho feminino

sofreu uma profunda alteração com relação à divisão social do trabalho, devido às mudanças

tecnológicas decorrentes do processo de industrialização. No entanto, a divisão do trabalho

ainda ocorre de forma injusta e desigual, sendo definida a partir da industrialização sobre os

papéis de gênero.

Apesar de a mulher ter assumido atividades remuneradas na esfera pública, ela

continua a desempenhar atividades na esfera privada. Logo, dessa forma, continua a ser-lhe

designada uma dupla jornada de trabalho, ou seja, a mulher passa a exercer funções fora de

sua unidade doméstica, à qual estivera restrita e, ao mesmo tempo, tendo que conciliar essas

atividades com postos assalariados.

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Movimentos baseados na idéia de pôr fim à “dominação masculina” surgem com

caráter variado, buscando a igualdade, a diferenciação ou a separação em relação ao homem,

mas sempre negando a identidade da mulher, conforme definida pelos homens e venerada na

família patriarcal. As mulheres aderiram ao movimento, principalmente porque ele não se

associa a nenhuma posição ideológica. O feminismo, como um movimento que contribui para

criar uma identidade feminina autônoma, tornou-se o estandarte contra todas as causas da

opressão de gênero. Aliás, a força e a vitalidade do movimento estavam justamente na sua

diversidade, no seu poder de adaptar-se às culturas e às idades.

Castells (1999, p.29) passa, então, a classificar e explicar as tendências do

movimento com a seguinte tipologia: direitos da mulher; feminismo cultural; feminismo

essencialista; feminismo lésbico; identidades femininas específicas; feminismo pragmático.

Em síntese, a tarefa fundamental do movimento é descobrir a identidade feminina destituindo

as instituições sociais da marca de gênero, em especial os movimentos de liberação lésbica e

gay. Segundo aquele autor, esses movimentos não são simples defesa do direito de escolher a

quem amar, mas expressões poderosas de identidade sexual. O esmaecimento das fronteiras

sexuais desestrutura a família, a sexualidade, o amor, o gênero e o poder, dando lugar a uma

crítica cultural fundamental do mundo, forçando um debate amplo na sociedade.

A família patriarcal, em crise, exige uma constante negociação de papéis, o que

determina, por exemplo, o compartilhamento da criação dos filhos. Uma fuga em direção a

uma sociedade aberta levará à violência social até que novas formas de coexistência sejam

encontradas. Essas novas estruturas pós-patriarcais dependerão, essencialmente, da forma

como os movimentos se relacionarão com o Estado, último refúgio do patriarcalismo.

Nos anos 80, diferentes movimentos feministas começam a criticar a condição da

mulher no Brasil. Com uma perspectiva de resgatar a mulher e seu papel nas diferentes

sociedades, e particularmente na sociedade brasileira contemporânea, estes movimentos

sociais consolidam novas forças políticas, movimentos sociais anticoloniais, étnicos, raciais,

de homossexuais, ecológicos e de mulheres.

10- DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

A Lei Maria da Penha estabelece para o Estado a adoção de políticas públicas de

prevenção, assistência e repressão à violência, capazes de promover mudanças para a

superação da desigualdade entre homens e mulheres.

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O tema aparece em vários momentos na Lei. O artigo 3º determina ao poder público

desenvolver políticas que garantam os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações

domésticas e familiares: serviços de saúde, transporte, habitação, esporte, lazer, educação e

cultura, de acesso ao trabalho e à justiça. O artigo 8º estabelece que a política deve ser

desenvolvida “por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do

Distrito Federal, dos Municípios e de ações não-governamentais” e ter como diretrizes: I - a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação; II - a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às causas, às conseqüências e à freqüência da violência doméstica e familiar contra a mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente, e a avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas; III - o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar, de acordo com o estabelecido no inciso III do artigo 1º, no inciso IV do artigo 3º e no inciso IV do artigo 221 da Constituição Federal; IV - a implementação de atendimento policial especializado para as mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher; V - a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres; VI - a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entre estes e entidades não-governamentais, tendo por objetivo a implementação de programas de erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher; VII - a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos órgãos e às áreas enunciados no inciso I quanto às questões de gênero e de raça ou etnia; VIII - a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia; IX - o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.

O artigo 35, da Lei nº 11.340/2006, estabelece que a União, Distrito Federal,

Estados e municípios podem criar e promover serviços especializados, no limite de sua

competência, nas áreas de segurança, justiça e saúde, para atender as mulheres vítimas de

violência.

Estes serviços são: I - centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e respectivos dependentes em situação de violência doméstica e familiar; II - casas-abrigos para mulheres e respectivos dependentes menores em situação de violência doméstica e familiar;

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III - delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar; IV - programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e familiar; V - centros de educação e de reabilitação para os agressores. Art. 9º. A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso.

11- DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE GÊNERO As diferenças entre homens e mulheres são enfatizadas, estabelecendo-se uma

polaridade entre masculino e feminino, produção e reprodução, público e privado. Para o

feminismo, a diferença de poder concentra-se na esfera pública, estando nessa polaridade a

origem da subordinação das mulheres. A vertente pós-estruturalista, por sua vez, destaca o

caráter histórico das diferenças entre os gêneros e a própria construção social da percepção da

diferença sexual. Esta última corrente chama a atenção para a necessidade de romper com a

homogeneização interna do feminino e o masculino, reconhecendo a existência de diversidade

no interior de cada um, o que requer que se incorporem à análise outras dimensões das

relações sociais, tais como raça, classe e geração.

O conceito de gênero, conforme analisado anteriormente, enfatiza as relações sociais

entre os sexos, permitindo a apreensão de desigualdades entre homens e mulheres que se

constituem como um dos componentes centrais para que se gerem as desigualdades de poder.

É possível constatar que o padrão dominante nas identidades de gênero envolve uma

situação de subordinação e de dominação das mulheres, tanto na esfera pública como na

privada (Carvalho, 1998).

A análise das políticas públicas a partir da perspectiva de gênero pretende verificar

em que medida as iniciativas do Estado têm contribuído e mais, qual a importância da

interferência do Estado em relações estritamente privadas, relações de família que a princípio

seriam de interesse só dos entes que a compõem. Desta forma, observa-se a ação estatal com

foco no atendimento às mulheres. Tendo por referência a agenda de questões e propostas

elaboradas por movimentos e entidades feministas, essas medidas indicam um

reconhecimento, por parte do poder público, das diferenças de gênero que, também, incorpora

a perspectiva de gênero, entendida como uma orientação para a redução das desigualdades de

gênero.

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Essas iniciativas governamentais inserem-se no quadro de mudanças mais

abrangentes em curso no país desde o início dos anos 80, em que se destacam transformações

no perfil da ação do Estado e das políticas públicas. Como parte desse processo de

transformação, novos atores passaram a fazer parte da arena pública e novos temas foram

integrados à agenda governamental.

As mudanças ocorridas nas relações entre Estado e sociedade civil no Brasil vêm se

transformando e processando uma agenda de reforma construída com a participação de

diversos segmentos. Essa agenda reflete debates entre diferentes correntes do feminismo

contemporâneo e entre diferentes atores envolvidos na formulação de políticas públicas que

contemplam as mulheres.

A partir dos anos 70, num primeiro momento, foi enfatizada a democratização dos

processos decisórios e dos resultados das políticas públicas, reivindicando-se a ampliação do

leque de atores envolvidos nas decisões e, ao mesmo tempo, a inclusão de novos segmentos

da população brasileira entre os beneficiários dessas políticas.

As propostas priorizadas foram a descentralização e a participação da sociedade civil

na formulação e na implementação das políticas públicas. Participaram da constituição dessa

agenda os movimentos sociais das mulheres, já enfrentando a problemática de gênero.4

A história desses movimentos é também a da constituição das mulheres como sujeito

coletivo, em que elas deixam a esfera privada e passam a atuar no espaço público, tornando

públicos temas até então confinados à esfera privada.

O movimento feminista contribuiu em muito para a inclusão da questão de gênero na

agenda pública, como uma das desigualdades a serem superadas por um regime democrático.

Em razão de sua atuação, foram implantadas as primeiras políticas públicas com recorte de

gênero. É o caso, por exemplo, da criação do primeiro Conselho Estadual da Condição

Feminina, em 1983, e da primeira Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, em 1985, ambos

no Estado de São Paulo. Posteriormente, as Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher foram

implantadas em todos os Estados do Brasil. Ainda em 1985 foi criado o Conselho Nacional

dos Direitos da Mulher, órgão do Ministério da Justiça (Saffioti, 1994, p.20). Foi também a

mobilização de mulheres que levou à instituição do Programa de Assistência Integral à Saúde

da Mulher (PAISM), em 1983. A Constituição Federal de 1988 também reflete a mobilização

de mulheres. Elas estruturaram propostas apresentadas ao Congresso Constituinte sob o título

Carta das Mulheres Brasileiras.

4 Retomo aqui algumas das ideias desenvolvidas em FARAH, 1999.

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Foram incluídos diversos temas relativos à saúde, família e trabalho, com recorte de

gênero; são políticas públicas que reconhecem a diferença de gênero e, com base nesse

reconhecimento, implementam ações diferenciadas para mulheres (Costa, 1998, p.23). Foram

criados, de forma igualitária, os direitos da mulher e do homem, e ainda certos mecanismos de

proteção à violação dos direitos da mulher.

A Carta Magna garantiu ainda direitos e deveres referentes à sociedade conjugal, os

quais devem ser exercidos simultaneamente pelo homem e pela mulher, ou seja, o homem não

é mais o chefe da família.

Com a fragmentação do movimento em torno de distintos temas, a posição refratária

à participação no espaço governamental evoluiu para a constituição de organizações não-

governamentais, as quais passaram a desenvolver programas de gênero em áreas como saúde,

educação, combate à violência, geração de renda e organização de mulheres.

Progressivamente, tais organizações passaram também a dialogar com o Estado, propondo

diretrizes de ação para políticas públicas (Sarti, 1988, p.12).

Recentemente, fortaleceu-se a tendência de formulação de propostas de políticas

públicas, passando esse espaço a se constituir em espaço privilegiado na luta pela superação

da desigualdade entre mulheres e homens na sociedade brasileira. Um elemento essencial na

demanda por políticas públicas sociais é a formação de direitos garantidos em leis. Esse é

pressuposto necessário para justificar e fortalecer as ações em prol de políticas públicas.

A grande e última conquista dos últimos anos do movimento de mulheres no Brasil

deu-se com a implantação da Lei nº 11.340, publicada em 07/08/2006, que criou mecanismos

para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, lei essa que passou a ser

conhecida como Lei Maria da Penha.

Essa lei representa uma importante conquista pelo poder público para o

enfrentamento da violência de gênero, sobretudo em sua modalidade doméstica. Atualmente

todas as mulheres se encontram sob a proteção da Lei n° 11.340/06, independentemente de

religião, etnia, raça, nível cultural ou econômico etc., configurando-se violência doméstica e

familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte,

lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial (Almeida Jr.,

2007, p.56 a 59).

A proteção da mulher prevista na referida lei decorre em razão da constatação de sua

inferioridade no contexto familiar, fruto da cultura patriarcal, que com certeza facilita a sua

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vitimização no âmbito doméstico, tornando necessária a intervenção do Estado em seu favor,

de modo a propiciar meios de equilibrar as relações entre homem e mulher.

Caracteriza situação a ensejar a aplicação da lei em comento a agressão desferida

contra a mulher numa relação de afeto, não importando o fato de o agressor e a ofendida

coabitarem ou não o mesmo lar.

A Lei Maria da Penha impõe ao Poder Público o desenvolvimento de políticas

visando resguardar a mulher de toda forma de discriminação, opressão e violência, a par de

estabelecer vários meios de sua proteção. A lei recebeu este nome em razão de a farmacêutica

Maria da Penha Maia Fernandes ter sido atingida por um tiro de espingarda desferido por seu

marido, o economista Marco Antônio Herredia Viveiros, colombiano de nascimento e

naturalizado brasileiro, no dia 29 de maio de 1983, na cidade de Fortaleza, enquanto dormia.

Em consequência do tiro, que atingiu a vítima em sua coluna, destruindo a terceira e a quarta

vértebras, suportou lesões que a deixaram paraplégica. Na ocasião, Maria da Penha tinha 38

anos e três filhas com o agressor.

O caso teve tamanha repercussão que chegou ao conhecimento da Comissão

Interamericana de Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Em 20 de agosto de 1998, a referida Comissão recebeu denúncia apresentada pela própria

Maria da Penha, bem como pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL)5, pelo

Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM)6.

Em 16 de abril de 2001, em virtude de tal provocação, a Comissão Interamericana de

Direitos Humanos publicou o Relatório 54/2001 que, dada a repercussão que ganhou

inclusive no meio internacional, serviu como incentivo para que se restabelecessem as

discussões sobre a violência contra a mulher no Brasil, culminando, passados pouco mais de

cinco anos de sua publicação, com o advento, finalmente, da Lei Maria da Penha (Cunha e

Pinto, 2007). Desta forma, a mulher em situação de violência doméstica ou familiar poderá

ser incluída em programas de assistência do Governo Federal, a requerimento do juiz

condutor do processo.

Os mecanismos de assistência à mulher tripartem-se em (artigo 11 da Lei n°

11.340/06):

5 Fundado em 1991, o CEJIL é uma entidade não-governamental que tem por objetivo a defesa e promoção dos direitos humanos junto aos Estados-membros da Organização dos Estados Americanos. O CEJIL-Brasil existe desde 1994. 6 O CLADEM se constitui por um grupo de mulheres empenhadas na defesa dos direitos das mulheres da América Latina e Caribe. O CLADEM-Brasil possui escritório sediado na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.

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1) assistência social, incluindo a ofendida no cadastro de programas assistenciais do Governo Federal, Estadual e Municipal; 2) à saúde, compreendendo o acesso aos benefícios decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico, incluindo os serviços de contracepção de emergência, a profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e outros procedimentos médicos necessários e cabíveis nos casos de violência sexual; 3) à segurança pública, garantindo à vítima proteção policial, bem como abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida e, se necessário, acompanhamento da ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou domicílio familiar.

A Lei n° 11.340/06 determinou a criação dos Juizados Especiais de Violência

Doméstica e Familiar, cuja competência abarcará questões cíveis e criminais, pelos Estados,

para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência

doméstica e familiar contra a mulher.

A retrocitada lei também estabeleceu uma série de medidas protetivas de urgência

para as vítimas de violência doméstica. Hoje, nas ações penais públicas condicionadas à

representação da ofendida, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em

audiência especialmente designada para esse fim, antes do recebimento da denúncia pelo

Ministério Público (artigo 16 da Lei n° 11.340/06). Ademais, inovou quanto à aplicação da

pena, pois nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher as penas de cesta

básica ou outras de prestação pecuniária hoje estão proibidas (artigo 17 da Lei n° 11.340/06).

O legislador facultou ao juiz, como meio de assegurar proteção efetiva à mulher em situação

de risco, a adoção de medidas de ofício, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da

vítima. Poderá decretar ex officio, em qualquer fase do inquérito ou do processo criminal, a

prisão preventiva do acusado de agressão, desde que reste comprovada a necessidade da

medida para a preservação do bem-estar da mulher.

Cabe ao juiz aplicar ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes

medidas protetivas de urgência, entre outras: a - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente; b - afastamento do agressor do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; c - fixar limite mínimo de distância entre o agressor e a ofendida, seus familiares e testemunhas; d - proibir o contato, por qualquer meio de comunicação, do agressor com a ofendida, seus familiares e testemunhas, inclusive a frequentação de determinados lugares, com vistas a preserva-lhes a integridade física e psicológica; e - restringir ou suspender visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; f - determinar que sejam prestados alimentos provisórios ou provisionais (artigo 22 da Lei n° 11.340/06).

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A Lei garante assistência judiciária à ofendida, com acompanhamento obrigatório

por advogado legalmente habilitado em todos os atos processuais. Desta forma, cabe ao Poder

Público garantir os serviços da Defensoria Pública, quando a vítima de violência doméstica

não puder pagar os serviços advocatícios e as custas judiciais.

Outro ponto da lei bastante interessante é a previsão legal de uma equipe de

atendimento multidisciplinar nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde. Tanto no atendimento

à vítima quanto ao agressor, com ações voltadas à orientação, encaminhamento e prevenção.

A questão da violência doméstica não é simples como pode parecer. O relacionamento entre

homem e mulher alterna papéis ao longo do ciclo vicioso da violência, quase sempre

culminando na vitimização da mulher, fruto do desequilíbrio nas relações de poder que

permeiam o espaço doméstico. A mulher é agredida, mas o homem também fica

desestabilizado emocionalmente e psicologicamente. Daí a importância da lei quando

oportuniza assistência à vítima e ao agressor, atingidos pela violência doméstica.

É importante salientar que a interferência do Estado através da Lei Maria da Penha já

traz perspectivas de mudança no quadro de impunidade até então vigente em nosso país. E

mais, segundo os dados de avaliação do primeiro ano da vigência da referida lei, constatou-se

no Município de Rio Branco que houve uma redução da criminalidade em relação aos anos

anteriores (dados fornecidos pelo Secretário de Segurança do Estado do Acre, no I Seminário

de Avaliação do Primeiro ano da Lei Maria da Penha).

Desta forma, concordamos plenamente com Bourdieu (2007, p.45), quando afirma

que o movimento feminista contribuiu muito para uma considerável ampliação da área

política ou do politizável da mulher, e mais, que o movimento não deve tratar apenas da luta

política rotulada de feminista, como a paridade entre os homens e as mulheres; é necessária

uma ação política que leve em conta todos os efeitos da dominação masculina, tornando

imprescindível a intervenção do Estado, para que em longo prazo e trabalhando com as

contradições inerentes à ordem social ocorra um desaparecimento progressivo da dominação

masculina.

Assim sendo, é importante fortalecer as políticas públicas visando à proteção das

mulheres, que ainda hoje sofrem a dominação masculina, e mais, ainda há violência contra a

mulher nas suas variadas formas de manifestações.

A Constituição de 1988 foi um marco legal de implementação de uma agenda de

gênero, desenvolvida em razão do feminismo e dos movimentos de mulheres, tanto em nível

internacional, quanto no Brasil e no Acre. Neste Estado, destacamos a Associação das

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Lavadeiras, das Concreteiras, das Empregadas Domésticas e das Quebradeiras de Castanha,

que criaram o Movimento de Mulheres do Acre (MMA). Ainda podemos destacar a

participação de outras organizações que tiveram um papel de destaque na implementação de

políticas públicas, como o Centro de Defesa dos Direitos Humanos e Educação Popular, que

promoveu agenda de enfrentamento à violência contra a mulher; a Rede Acreana de Mulheres

e Homens, que defendeu o direito à organização e à produção das trabalhadoras rurais.

Em 1986, iniciou-se em Rio Branco um processo de crescimento da agenda de

gênero, primeiramente com a criação da 1ª Delegacia Especializada de Atendimento à

Mulher, sendo a segunda DEAM implantada no Brasil. Foi realmente a primeira ação de

enfrentamento do Estado em relação à violência doméstica. Segundo, com a criação da Casa

Rosa Mulher, que inicialmente funcionava como uma casa no enfrentamento à violência

contra as mulheres, meninas e adolescentes, através do acolhimento, orientação jurídica e

apoio psicossocial. Essa experiência foi pioneira e já recebeu diversos prêmios pela inovação

do projeto. Atualmente funciona como um centro de referência para mulheres em situação de

violência, no sentido de romper com o vínculo econômico, isto é, com a dependência

econômica que a mulher pode apresentar em relação a seu companheiro, pois neste

abrigamento o que se visa é inserir a agredida em cursos profissionalizantes, incentivando-a a

gerar renda própria, numa tentativa de combater aquilo que seria uma das razões para que a

mulher continue sendo agredida em sua existência e integridade.

Há implementação do Departamento das Relações Sociais de Gênero na Secretaria

de Estado de Cidadania e Trabalho e a criação da Casa Abrigo Mãe da Mata para abrigar

mulheres e filhos em situação de risco.

A Secretaria Estadual Extraordinária da Mulher realizou diversos programas de

enfrentamento à violência contra a mulher. Foi criada a Coordenadoria da Mulher e o

Conselho Estadual e Municipal da Mulher. Atualmente voltou a ser Secretaria com a

denominação de Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres. Uma das últimas medidas

tomadas nesse sentido foi a criação da Vara Especial para Julgar os Crimes Contra a

Violência Doméstica e Familiar sofrida pelas mulheres no Município de Rio Branco, com o

objetivo de cumprir determinação prevista na Lei Maria da Penha.

Assim, pode ser observado que as políticas públicas instituídas no Estado do Acre

são de importância fundamental para a expansão da cidadania das mulheres, sendo, contudo

necessária uma ampliação dos espaços de gestão pública. O crescimento da construção de

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mecanismos eficazes para a promoção da transversalidade é indispensável à incorporação da

perspectiva de gênero em toda a política pública.

Apesar das políticas públicas existentes tanto no Acre quanto no Brasil, ainda

persistem muitos mitos que contribuem para a manutenção da violência contra a mulher.

Segundo Soares (2002, p.23), ainda permanecem na sociedade diversos mitos que contribuem

para a continuidade deste tipo de violência, tais como: “violência doméstica ocorre muito

esporadicamente”, “a violência doméstica é um problema exclusivamente familiar”, “roupa

suja se lava em casa”, “a violência só acontece entre as famílias de baixa renda e pouca

instrução”, “os agressores não sabem controlar suas emoções” e o absurdo maior quando as

pessoas afirmam que “as mulheres provocam e gostam da violência”.

Desta forma, faz-se necessário que se busque desfazer estes mitos, procurando

entender a necessidade da interferência pública mesmo em assuntos de interesses da família,

uma vez que a violência contra a mulher já transcendeu, em muito, ao interesse privado; hoje

a violência que a mulher sofre é uma transgressão aos direitos maiores da humanidade que são

os direitos humanos.

Além disso, a Lei nº. 11.340/06 traz inovações, como medidas protetivas de

urgência, que são um verdadeiro avanço para a integridade física e moral da vítima, além de

uma garantia da aplicação da lei.

Podemos perceber que independentemente da situação socioeconômica, do acesso ou

não à informação, cultura, dentre outras questões que aqui poderiam ser mencionadas com o

objetivo de evidenciar o quanto as pessoas estão inseridas em condições desiguais, uma coisa

é fato: a mulher é vítima da violência doméstica independentemente da sua inserção na

realidade social.

A estrutura familiar predominante na sociedade ocidental continua sendo a família

patriarcal em que o pai é o cabeça da família e, portanto, lhe é atribuído o direito de aplicar os

meios que considerar importantes para preservar e reforçar sua autoridade sobre a esposa e

filhos, como forma de manter a unidade da família fundamentada no medo, na dominação.

Com isso, a mulher acaba ocupando um lugar subalterno, já que, em alguns casos, continua

dependendo economicamente de seu companheiro. Esse tipo de estrutura familiar autoritária e

patriarcal facilita a presença da violência doméstica como um fenômeno socioculturalmente

tolerado pela sociedade.

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Nesse contexto, é difícil às mulheres romper com os parceiros violentos, ainda que

pertençam às camadas sociais mais elevadas, tenham escolaridade média ou superior e

condição financeira que possa assegurar sua sobrevivência e a de seus filhos.

A violência sofrida pelas mulheres está relacionada diretamente à dominação

masculina. Segundo Bourdieu (2007, p.14), o homem domina a mulher sem perceber que está

dominando e a mulher é dominada também sem perceber. A maioria das mulheres só se dá

conta de que são dominadas quando são agredidas fisicamente.

13- DA MANUTENÇÃO DO VÍNCULO TRABALHISTA À MULHER

EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA FAMILIAR A Lei Federal nº. 11.340/2006 trouxe consigo essencial e excepcional providência

cautelar, a repercutir no âmbito das relações de trabalho e seguridade social. Dispõe o art. 9o

parágrafo 2º: § 2° O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar, para preservar sua integridade física e psicológica: I – acesso prioritário à remoção quando servidora pública, integrante da administração direta ou indireta; II – manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até 6 (seis) meses. (BRASIL, 2008, p. 866).

Cunha e Pinto (2007, p. 78) explicam que esta garantia à mulher é devida às

agressões ou aos inconvenientes com o marido no local de trabalho, como por exemplo:

perseguições, escândalos, no qual a mulher acaba ficando à mercê do empregador, que, muitas

vezes, rescinde o contato de trabalho por não mais permitir esses tipos de incidências.

Quando se tratar de funcionária pública o acesso prioritário à remoção é assegurado

pelo juiz a requerimento da parte ou do Ministério Público. A iniciativa pode ser de ofício,

contando que a ela não se oponha a vítima (DIAS, 2007, p. 94).

Cunha e Pinto (2007, p. 79) esclarecem que a servidora pública vítima de violência

doméstica ou familiar poderá ser removida, a seu pedido e independentemente do interesse da

administração, para outra sede. Mas a Lei não esclarece qual o prazo para configurar esta

remoção. A remoção seria mantida enquanto durar a situação de risco para a ofendida e,

quando, superado esse risco, a mulher voltaria a exercer seu cargo original.

Com relação à trabalhadora privada vítima de violência, uma vez demonstrado o

fumus boni iuris, fundamentado no risco de permanência no emprego, o juiz competente

deverá autorizar o seu afastamento do local de trabalho, garantida a manutenção do vínculo

empregatício no prazo de até seis meses (SOUZA, 2007, p. 62-63).

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É garantida à funcionária pública a remoção do serviço (art. 9°, § 2°, I, Lei nº

11.340/06) e à empregada privada o direito à manutenção do vínculo empregatício pelo prazo

de até seis meses (art. 9°, § 2, II, Lei nº 11.340/06), sempre que se observar que o afastamento

do local de trabalho é necessário para preservar a integridade física e psíquica da mulher

vítima de agressões domésticas ou familiares.

14- CONCLUSÃO

Conforme analisado durante todo o desenvolvimento deste artigo, a relação de

desigualdade entre o homem e a mulher é uma realidade milenar, pois esta sempre esteve em

situação de inferioridade, na qual muitas permanecem até hoje. É relevante frisar que, embora

já possamos constatar uma série de conquistas femininas, a dominação e a violência

subsistem, uma vez que o modelo patriarcal ainda é muito forte em nossa sociedade.

A Lei Maria da Penha veio, com certeza, em muito boa hora para suprir uma

necessidade real de milhares de mulheres que são vítimas da violência doméstica. Veio com a

missão de proporcionar instrumentos adequados para enfrentar um problema que aflige uma

grande parte das mulheres não só do Acre, mas também do Brasil e do mundo, criando

mecanismos para coibir a violência doméstica.

A lei impôs a adoção de medidas de políticas públicas visando construir um futuro

melhor para todas as mulheres que, até então, não tinham um instrumento jurídico que

resguardasse os seus direitos.

Que a cidadania da mulher não fique apenas restrita à ordem legal, prevista na

Constituição Federal e na Lei Maria da Penha. Que a mulher realmente possa ter o direito de

ser mulher.

Que seja respeitado o direito de a mulher ser o que tem vontade de ser: (...) vontade não apenas de chorar, amar, ser conquistada, parir, receber rosas, cobrir-se sedutoramente, com rendas, sedas e saias, longas, curtas ou rodadas, de ser feminina; mas vontade de ser cidadã e ver reconhecido seu direito de ser mulher, na dimensão do biológico, do social e do político; de ver respeitado seu direito de gritar, de dizer não, de dizer sim, de protestar, escolher e lutar; de participar do processo de construção da humanidade, e construir sua própria história e identidade, de forma real, sem traumas e espontaneamente. De ser mulher, de ser parceira, companheira e cúmplice do próprio homem, partilhando com ele, por inteiro, com respeito e integridade, uma vida de sonho e realidade (Hesketh, 2003).

Sabe-se que, por se tratar de uma temática de grandes dimensões e complexidade,

ainda há muito que se discutir e trabalhar, daí não ser nossa pretensão achar que este estudo

esteja concluído. No entanto, espera-se ter podido contribuir com aqueles que estão

envolvidos com esta causa tão justa e necessária para a construção de uma realidade na vida

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da mulher com igualdade de direitos e obrigações, em que haja a sua verdadeira cidadania,

numa demonstração plena de que homens e mulheres são iguais. E que em briga de marido e

mulher o Estado meta a colher!

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