a integral de caminhos: uma ponte entre a mecˆanica ... · equa¸c˜oes de newton, lagrange, ou...

6
Revista Brasileira de Ensino de F´ ısica, vol. 40, nº 4, e4207 (2018) www.scielo.br/rbef DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2017-0372 Sec ¸˜ ao especial - Celebrating 100 years of birth of Richard P. Feynman cb Licenc ¸a Creative Commons A Integral de Caminhos: Uma Ponte entre a Mecˆ anica Quˆ antica e a Mecˆ anica Cl´ assica The Path Integral: A bridge between Quantum and Classical Mechanics Alfredo M. Ozorio de Almeida *1 1 Centro Brasileiro de Pesquisas Fisicas, Rio de Janeiro, RJ, Brazil Recebido em 05 de Dezembro, 2017. Aceito em 15 de Fevereiro, 2018. A integral de caminhos de Feynman coloca de sa´ ıdaaa¸c˜aocl´assicanocernedaevolu¸c˜aoquˆantica.Aoinv´ es de apenas contrastar a multiplicidade de caminhos quˆanticos com a raridade das trajet´orias cl´assicas, podemos nos valer do princ´ ıpio variacional que as identificam para construir abrangentes aproxima¸ oes semicl´ assicas para o operador de evolu¸c˜ao. A transformada de Fourier de seu tra¸co fornece ent˜ao a densidade de n´ ıveisquˆanticos de energia como uma soma sobre as ´orbitas peri´odicas cl´assicas: a f´ormula do tra¸co de Gutzwiller. As ´orbitas per´ odicas tamb´ em explicam as correla¸ oes entre os n´ ıveis, seguindo padr˜ oes universais de matrizes aleat´ orias se o sistema cl´ assico for ca´ otico. Ao reverso, discrepˆ ancias entre os espectros universais e os semicl´ assicos desvendaram correla¸ oes entre ´ orbitas peri´ odicas, nunca vislumbradas ao longo da hist´ oria da mecˆanica cl´ assica. Palavras-chave: integral de caminho, trajet´oria cl´assica, princ´ ıpio variacional, ´orbita peri´odica, densidade de ıveis, matrizes aleat´ orias. The Feynman path integral places the classical action in the very core of quantum evolution. Instead of contrasting the multiplicity of quantum paths with the scarcity of classical trajectories, we can avail ourselves of the variational principle by which they are identified. This leads to wide ranging semiclassical approximations for the evolution operator. The Fourier transform of the trace of this operator then supplies the density of quantum energy levels as a sum over the classical periodic orbits: The Gutzwiller trace formula. The periodic orbits also explain the correlations between levels, following universal classes of random matrices, if the classical system is chaotic. Conversely, discrepancies between the semiclassical spectra and the universal random matrix spectra uncouvered correlations between periodic orbits that had never been suspectected in the long history of classical mechanics. Keywords: path integral, classical trajectory, variational principle, periodic orbit, level density, random matrices. Ainda que as formula¸ oes de Heisenberg e de Schr¨ odin- ger da mecˆanica quˆantica invoquem alguns elementos b´asicos da mecˆanica cl´assica, estes surgem de tal forma transfigurados que poder´ ıamos bem duvidar que lidam com os mesmos sistemas. Afinal, a trajet´ oria, solu¸ ao das equa¸c˜oes de Newton, Lagrange, ou Hamilton, persona- gem central da mecˆ anica cl´ assica, simplesmente some da mecˆ anica quˆ antica. Ou melhor, na reformula¸ ao de Feyn- man, ela retorna, mas apenas como um membro qualquer do coro, um dos m´ ultiplos caminhos que contribuem de- mocraticamente para o propagador. ´ Enaaproxima¸c˜ao semicl´assica que a trajet´oria readquire um certo desta- que ao organizar a fase dos caminhos vizinhos de forma a diminuir radicalmente o n´ umerodecontribui¸c˜oesao propagador. A rica intera¸ ao entre as mecˆ anicas cl´ assica e quˆantica que da´ ı decorre mal poderia ser antevista quando da formula¸ ao da integral de caminhos, mas tem sobre esta uma base s´ olida. * Endere¸co de correspondˆ encia: [email protected]. ´ E bom frisar que a rela¸ ao entre a mecˆ anica cl´ assica e a mecˆ anica quˆ antica de que aqui tratamos ´ e intr´ ınsica ` a estrita evoluc˜ao unit´aria desta, pertinente aos sistemas dinˆ amicos fundamentais, isolados e conservativos: O sis- tema quˆantico inicial permanece quˆantico para todo e sempre. Aqui, as trajet´ orias cl´ assicas tem papel de esque- leto sobre o qual s˜ ao tecidas as ondas quˆ anticas, tal qual os raios da ´otica geom´ etrica guiam as ondas luminosas. Da´ ı, j´a podemos antecipar que as trajet´orias ter˜ao na aproxima¸ ao semicl´ assica da mecˆ anica quˆ antica uma par- ticipa¸ ao mais coletiva do que na mecˆ anica cl´ assica. Nesse contexto, n˜ ao h´ a como pretender esclarecer qualquer as- pecto da quest˜ ao crucial de como caracter´ ısticas cl´ assicas surgem gradualmente no processo de descoerˆ encia pr´ oprio de sistemas quˆanticos n˜ao isolados [1,2]. N˜ao ´ e de sur- preender que o pr´oprio Feynman, por meio do desen- volvimento das integrais de trajet´oria conhecido como etodo de Feynman-Vernon [3, 4], desempenhou papel de destaque neste estudo, mas este ser´ a objeto de outros ensaios neste n´ umero especial. Copyright by Sociedade Brasileira de F´ ısica. Printed in Brazil.

Upload: others

Post on 25-Jul-2020

4 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A Integral de Caminhos: Uma Ponte entre a Mecˆanica ... · equa¸c˜oes de Newton, Lagrange, ou Hamilton, persona-gem central da mecˆanica cl´assica, simplesmente some da mecˆanica

Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 40, nº 4, e4207 (2018)www.scielo.br/rbefDOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2017-0372

Secao especial - Celebrating 100 years of birth ofRichard P. Feynman

cb

Licenca Creative Commons

A Integral de Caminhos: Uma Ponte entre a MecanicaQuantica e a Mecanica Classica

The Path Integral: A bridge between Quantum and Classical Mechanics

Alfredo M. Ozorio de Almeida∗1

1Centro Brasileiro de Pesquisas Fisicas, Rio de Janeiro, RJ, Brazil

Recebido em 05 de Dezembro, 2017. Aceito em 15 de Fevereiro, 2018.

A integral de caminhos de Feynman coloca de saıda a acao classica no cerne da evolucao quantica. Ao invesde apenas contrastar a multiplicidade de caminhos quanticos com a raridade das trajetorias classicas, podemosnos valer do princıpio variacional que as identificam para construir abrangentes aproximacoes semiclassicas parao operador de evolucao. A transformada de Fourier de seu traco fornece entao a densidade de nıveis quanticosde energia como uma soma sobre as orbitas periodicas classicas: a formula do traco de Gutzwiller. As orbitasperodicas tambem explicam as correlacoes entre os nıveis, seguindo padroes universais de matrizes aleatorias se osistema classico for caotico. Ao reverso, discrepancias entre os espectros universais e os semiclassicos desvendaramcorrelacoes entre orbitas periodicas, nunca vislumbradas ao longo da historia da mecanica classica.Palavras-chave: integral de caminho, trajetoria classica, princıpio variacional, orbita periodica, densidade denıveis, matrizes aleatorias.

The Feynman path integral places the classical action in the very core of quantum evolution. Instead ofcontrasting the multiplicity of quantum paths with the scarcity of classical trajectories, we can avail ourselves ofthe variational principle by which they are identified. This leads to wide ranging semiclassical approximations forthe evolution operator. The Fourier transform of the trace of this operator then supplies the density of quantumenergy levels as a sum over the classical periodic orbits: The Gutzwiller trace formula. The periodic orbits alsoexplain the correlations between levels, following universal classes of random matrices, if the classical system ischaotic. Conversely, discrepancies between the semiclassical spectra and the universal random matrix spectrauncouvered correlations between periodic orbits that had never been suspectected in the long history of classicalmechanics.Keywords: path integral, classical trajectory, variational principle, periodic orbit, level density, random matrices.

Ainda que as formulacoes de Heisenberg e de Schrodin-ger da mecanica quantica invoquem alguns elementosbasicos da mecanica classica, estes surgem de tal formatransfigurados que poderıamos bem duvidar que lidamcom os mesmos sistemas. Afinal, a trajetoria, solucao dasequacoes de Newton, Lagrange, ou Hamilton, persona-gem central da mecanica classica, simplesmente some damecanica quantica. Ou melhor, na reformulacao de Feyn-man, ela retorna, mas apenas como um membro qualquerdo coro, um dos multiplos caminhos que contribuem de-mocraticamente para o propagador. E na aproximacaosemiclassica que a trajetoria readquire um certo desta-que ao organizar a fase dos caminhos vizinhos de formaa diminuir radicalmente o numero de contribuicoes aopropagador. A rica interacao entre as mecanicas classicae quantica que daı decorre mal poderia ser antevistaquando da formulacao da integral de caminhos, mas temsobre esta uma base solida.

∗Endereco de correspondencia: [email protected].

E bom frisar que a relacao entre a mecanica classica ea mecanica quantica de que aqui tratamos e intrınsica aestrita evolucao unitaria desta, pertinente aos sistemasdinamicos fundamentais, isolados e conservativos: O sis-tema quantico inicial permanece quantico para todo esempre. Aqui, as trajetorias classicas tem papel de esque-leto sobre o qual sao tecidas as ondas quanticas, tal qualos raios da otica geometrica guiam as ondas luminosas.Daı, ja podemos antecipar que as trajetorias terao naaproximacao semiclassica da mecanica quantica uma par-ticipacao mais coletiva do que na mecanica classica. Nessecontexto, nao ha como pretender esclarecer qualquer as-pecto da questao crucial de como caracterısticas classicassurgem gradualmente no processo de descoerencia propriode sistemas quanticos nao isolados [1, 2]. Nao e de sur-preender que o proprio Feynman, por meio do desen-volvimento das integrais de trajetoria conhecido comometodo de Feynman-Vernon [3, 4], desempenhou papelde destaque neste estudo, mas este sera objeto de outrosensaios neste numero especial.

Copyright by Sociedade Brasileira de Fısica. Printed in Brazil.

Page 2: A Integral de Caminhos: Uma Ponte entre a Mecˆanica ... · equa¸c˜oes de Newton, Lagrange, ou Hamilton, persona-gem central da mecˆanica cl´assica, simplesmente some da mecˆanica

e4207-2 A Integral de Caminhos: Uma Ponte entre a Mecanica Quantica e a Mecanica Classica

Consideremos um sistema de L graus de liberdade, talque os pontos, x = (p,q), do espaco de fases classicotem como coordenadas os L momentos, p = (p1, ..., pL)e as L posicoes, q = (q1, ..., qL). Na notacao de Dirac,um auto-estado de posicao, |q−〉 evolui para o estado|q+(t)〉 = Ut|q−〉, onde Ut = e−itH/~ e o operador deevolucao e H e o operador hamiltoniano. Entao, defini-mos o propagador, alvo da integral de trajetoria, como〈q+|Ut|q−〉 = 〈q+|q−(t)〉. O interessante e detectar umadupla personalidade do propagador, pois, alem de sero overlap entre dois estados, podemos chegar a ele sopor operadores: Sendo o operador de transicao entreposicoes, |q−〉〈q+|, seu traco com o operador de evolucao,tr Ut |q−〉〈q+| = 〈q+|Ut|q−〉, ou seja, o propagador etambem elemento de matriz do operador de evolucao.

Existem varias formas de integrais de caminho, todasbaseadas na ideia de Feynman [6] (antecipada por Dirac[5]) de aproveitar a propriedade de grupo do operadorde evolucao para avaliar

Ut = limN→∞

[ Ut/NN

]N. (1)

As variacoes vem por conta da escolha de representacaodeste operador para tempos pequenos. Em vez de seguiro tratamento original de Feynman (esbocado tambem em[7]) vamos adotar aqui o de Marinov [8], pois, construidasobre caminhos no espaco de fases, se encaixa melhor nasconsideracoes que se seguem. Em todo caso, pressupoe-se,como Feynman, uma Hamiltoniana da forma

H = H(p, q) = p2

2m + V (q) , (2)

onde os operadores p e q tem L componentes de momentoe posicao. Assim, podemos escrever a representacao mistado operador de evolucao para t = ε como

〈p+|Uε|q−〉 = 〈p+|e−iεH/~|q−〉ε→0−→

〈p+|e−iεp2/2m~ e−iεV (q)/~|q−〉

= e−iε~

[p+2

2m +V (q−)]〈p+|q−〉, (3)

onde 〈p+|q−〉 ∝ e− i~ p+·q− , de forma que para tempos

pequenos temos

〈q+|Uε|q−〉 ≈1

(2π~)L/2

×∫

dp+ e− i~H(p+,q−) e− i

~ p+·(q+−q−) . (4)

Entao o propagador para o tempo completo fica

〈q+|Ut|q−〉 = limN→∞

∫...

∫dqN−1

...dq1 〈q+|Uε|qN−1〉...〈q1|Uε|q−〉

= limN→∞

∫ dpN(2π~)L/2

∫...

∫ N−1∏k=1

dpkdqk(2π~)L

× exp[i

~

N−1∑k=0

[pk+1(qk+1 − qk)− εH(pk+1,qk)]],(5)

com qN = q+ e q0 = q−.Podemos agora reconhecer na soma do expoente deste

integrando a propria acao classica,

S(q+,q−, t) =∫ t

0dt [pt · qt −H(pt,qt)] , (6)

ao longo do caminho xt = (pt,qt), discretizado em in-tervalos δt = ε. O propagador assume assim a sua formasimbolica de integral de caminho:

〈q+|Ut|q−〉 =∫

D[xt] exp[i

~S(q+,q−, t)

]. (7)

Esta integral e analoga a de Feynman, mas os cami-nhos percorrem o espaco de fases livremente, sem queos momentos fiquem atrelados ao caminho das posicoes.Tambem lidamos, de saıda, diretamente com a Hamiltoni-ana, dispensando a introducao da Lagrangiana que e maisdistante da mecanica quantica. Outras construcoes daintegral de caminho sao a da representacao de Weyl [9,10](empregada no transporte da funcao de Wigner [11]), ou ade estados coerentes [12,13] (onde os caminhos percorremum espaco de fases complexo).

A profusao de caminhos nesta bela formulacao damecanica quantica pareceriam impedir o uso direto daintegral de Feynman, a nao ser nos exemplos mais banais.Contudo, o princıpio variacional classico [14,15] surgeoportunamente para organizar este excesso: A acao (6)e estacionaria para o caminho que coincide com a tra-jetoria classica. Em outras palavras, se discretizarmos oscaminhos como em (5), a trajetoria e definida por

∂qkS(q+,q−, t) = ∂

∂pkS(q+,q−, t) = 0 , (8)

para todo k. Como a presenca dos momentos na Hamil-toniana ja e quadratica, basta agora expandir o potencialentorno das posicoes ao longo de cada trajetoria. Enume-radas pelo ındice j, suas posicoes discretizadas serao qjk,de modo que aproximamos

V (q) = V (qjk) + (q−qjk) · ∂2

∂q2V (qjk) (q−qjk) + ... (9)

Assim, o integrando em (5) se torna uma Gaussianamultidimensional, imediatamente integravel. Esse proce-dimento, conhecido como metodo da fase estacionaria,fornece entao a aproximacao semiclassica do propagador,

〈q+|Ut|q−〉SC =∑j

Dj exp[i

~Sj(q+,q−, t)

], (10)

onde Sj(q+,q−, t) e a integral da acao (6) calculada sobrea j’esima trajetoria classica entre q− e q+. (Estamos aquiomitindo pequenas correcoes de Maslov [18, 26].) Estaaproximacao foi primeiro deduzida por van Vleck [16] jaem 1928 diretamente da equacao de Schrodinger.

Atingimos aqui um bom meio termo entre a mecanicaclassica e a mecanica quantica: Equiparando a trans-formacao unitaria Ut a transformacao canonica classica,

Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 40, nº 4, e4207, 2018 DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2017-0372

Page 3: A Integral de Caminhos: Uma Ponte entre a Mecˆanica ... · equa¸c˜oes de Newton, Lagrange, ou Hamilton, persona-gem central da mecˆanica cl´assica, simplesmente some da mecˆanica

Almeida e4207-3

Ct : x− 7→ x+, carregada pelas trajetorias hamiltonianasno tempo t, a acao, Sj(q+,q−, t), toma o papel de funcaogeratriz de Ct, por meio das equacoes implıcitas [15,17]:

∂Sj∂q+

= p+ ,∂Sj∂q−

= −p− . (11)

De forma mais precisa, a transformacao global Ct temdiferentes funcoes geratrizes na vizinhanca de cada umadas trajetorias xjt . A aproximacao linearizada de incre-mentos, Cj : δx− 7→ δx+, tomados dos pontos inicial efinal de cada trajetoria, sera

δx+ =(δp+δq+

)=(

δp+δp−

δp+δq−

δq+δp−

δq+δq−

)(δp−δq−

)= Mj

t δx− , (12)

onde a matriz Jacobiana Mjt e uma matriz simpletica

conhecida como matriz de estabilidade, ou matriz demonodromia. A amplitude da contribuicao de cada umadas trajetorias ao propagador semiclassico (10) e dadapor um bloco desta matriz:

|Dj |2 =∣∣∣∣det ∂q+

∂p−

∣∣∣∣ =∣∣∣∣det ∂p−

∂q+

∣∣∣∣−1=∣∣∣∣det ∂2Sj

∂q−∂q+

∣∣∣∣−1

.

(13)Devemos notar que a linearizacao de uma transformacao

canonica equivale a aproximar quadraticamente a Hamil-toniana que gerou o movimento. Para toda Hamiltonianaquadratica (ainda que dependente do tempo), so existeuma unica trajetoria em (10), sua amplitude e constantee, melhor, essa aproximacao semiclassica passa a serexata!

A correspondencia entre a mecanica classica e a mecanicaquanica e ainda mais realcada pelo foco sobre uma unicacaracterıstica do propagador: o traco do operador deevolucao que quantifica a tendencia de qualquer estadoinicial de retornar sobre si mesmo:

tr Ut =∫

dq 〈q|Ut|q〉 . (14)

Inserindo a aproximacao semiclassica (10) para o propa-gador nesta expressao com q+ = q− = q e notando queo valor estacionario do expoente,

∂Sj∂q+

+ ∂Sj∂q−

= p+(q+, t)− p−(q−, t) = 0 , (15)

identifica aqui o momento final, p+(q) com o momentoinicial p−(q), deduzimos que a aproximacao semiclassicapara o traco, resultante do metodo de fase estacionariaaplicado a integral (14) e

trSC Ut =∑j

D′j exp[i

~S′j(t)

](16)

(ignorando de novo pequenas correcoes em ~). Aqui te-mos uma soma sobre aquelas trajetorias periodicas que

tiverem o perıodo t: Cada ponto de tal trajetoria sera umponto fixo da transformacao Ct. A acao para o retornopartindo de qualquer destes pontos sera

S′j(t) =∮j

p · dq − Ejt , (17)

sendo Ej a energia constante da trajetoria. Em conclusao,o retorno quantico toma por apoio classico o conjuntode trajetorias periodicas do sistema.

Quanto maior o tempo, maior o numero de trajetoriasperiodicas de um tıpico sistema hamiltoniano classicolimitado. (O oscilador harmonico nao e um bom exem-plo!) No limite t→∞ a soma em (16) se torna infinita.Lembrando que o traco tambem e uma soma sobre osauto-valores En da Hamiltoniana quantica,

tr Ut =∑n

〈n|e−itH/~|n〉 =∑n

e−itEn/~ , (18)

obtemos1

2π~

∫ ∞−∞

dt eitE/~ tr Ut

= 12π~

∑n

∫ ∞−∞

dt eit(E−En)/~

=∑n

δ(E − En) ≡ ρ(E). (19)

Outrossim, a densidade de estados, ρ(E), uma cara-terıstica que so cabe a um sistema quantico, repousasemiclassicamente em uma soma sobre as trajetoriasperiodicas do sistema classico correspondente. No en-tanto, devemos tomar um cuidado: Nao basta inserir(16) em (19) para calcular a aproximacao semiclassica dadensidade de estados. Perderıamos entao a forte contri-buicao das trajetorias que nao saem do lugar, no entornode t = 0, ou seja, todos os pontos iniciais. O calculodeste termo de Weyl fornece uma interpolacao suave,ρ(E), para os sucessivos picos da densidade de estados,mas que nao cabe tratar aqui. E o termo que sobra emρ(E) = ρ(E) + ρ(E) que vai somando contribuicoes cadavez mais oscilatorias das trajetorias periodicas de cres-cente perıodo, cuja interferencia em (16) vai afinando ospicos finos de (19).

A condicao estacionaria para a integral do lado es-querdo de (19) e

∂t(S′j + E t) = E − Ej = 0 , (20)

ou seja, ela seleciona as orbitas periodicas (curvas fe-chadas sem diferenciacao de tempo) sobre a camada deenergia H(x) = E, com a acao reduzida

σj(E) =∮j

p · dq . (21)

Assim, a componente oscilatoria da densidade de estadostem a aproximacao semiclassica

ρSC(E) =∑j

D′′j exp[i

~σj(E)

], (22)

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2017-0372 Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 40, nº 4, e4207, 2018

Page 4: A Integral de Caminhos: Uma Ponte entre a Mecˆanica ... · equa¸c˜oes de Newton, Lagrange, ou Hamilton, persona-gem central da mecˆanica cl´assica, simplesmente some da mecˆanica

e4207-4 A Integral de Caminhos: Uma Ponte entre a Mecanica Quantica e a Mecanica Classica

conhecida como a formula do traco de Gutzwiller (vide[18] e tambem Balian e Bloch [19]).

A beleza desta construcao formal nao deve dissiparserias duvidas sobre seu real significado: E como se sur-gisse um contexto onde o quantico fosse o conjugado deFourier do classico! Sera que podemos realmente resolveros picos finos e possıveis degenerescencias da densidadede estados ao incluir cada vez mais orbitas periodicas? En-fim, a soma sobre elas converge? O teorema de recorrenciade Poincare [20,21] garante que, em qualquer vizinhancade um ponto na camada de energia, havera uma tra-jetoria que eventualmente retorna. Partindo desta, e facilencontrar uma orbita periodica adjacente. Entao vemosque elas sao densas sobre o espaco de fases, sendo, entre-tanto, infinitamente raras: A probabilidade de um pontoinicial arbitrario cair numa orbita perodica e nula. Comoque esse especialıssimo conjunto das orbitas mais sim-ples pode tipificar a rica gama de movimentos classicosque abrangem do ultra regular (movimento harmonicomultidimensional), ao integravel (trajetorias vinculadasa superfıcies invariantes de dimensao menor que a ca-mada de energia), aos movimentos predominantementecaoticos, caracterizados pelo afastamento exponencialde trajetorias vizinhas? Em contraste com as trajetoriasperiodicas, uma trajetoria tıpica de um sistema caoticonao fecha nunca e, com o tempo, percorre ergodicamentetodo espaco de fases disponıvel energeticamente. Seraque, mesmo assim, podemos nos valer da formula do tracopara explorar a maneira que esta rica variedade classicavenha a afetar propriedades mensuraveis dos sistemasquanticos correspondentes? Nao e um empreendimentofacil, pois a linearidade da mecanica quantica impedeuma correspondencia direta com as consequencias da naolinearidade classica.

Na contramao de todas essas duvidas existe um em-prego notavel da formula do traco como organizadordo espectro de energias. A densidade de estados de umsistema que e classicamente caotico apresenta uma caco-fonia de nıveis. Contudo, sua transformada de Fourierapenas devolve, de acordo com (19), o tr Ut de ondepartimos. Fora o pico em t = 0, havera um pico em t1, aprimeira orbita periodica, seguido por picos em tj , paracada orbita periodica subsequente. O espectro de energiana parte superior da figura 1 apresenta o espectro de ener-gia experimental (ressonancias espectrais) do hidrogenioaltamente excitado em um campo magnetico [22]. Sem ocampo magnetico terıamos os nıveis do atomo de Rydberg(integravel) organizados por seus momentos angulares.A quebra de simetria pelo campo destroi as superfıciesinvariantes classicas: Os unicos invariantes sao as orbitasperiodicas isoladas. Por outro lado, o campo desorganizaos nıveis quanticos. Todos os estados compartilham carac-terısticas de ergodicidade quantica [23,24], mas sao mutu-amente ortogonais, apesar de nao serem distinguıveis pornenhuma simetria. Uma simples transformada de Fourierreimpoe uma nova ordem, os picos nıtidos de tr Ut, que

Figura 1: (a) Ressonancias espectrais de um atomo de hidrogenioem um campo magnetico. (b) Transformada de Fourier do es-pectro, com esboco das orbitas periodicas cujo perıodo corres-pondente a cada pico.

sao mostrados junto com o esboco das orbitas periodicasque lhes dao origem.

No domınio do tempo nao existe o problema de con-vergencia. So quando passamos para o domınio de ener-gia e que surgem as dificuldades. De fato, em geral aformula do traco nao converge, mas isso nao impede seuuso como ferramenta exploratoria da correspondenciaclassico-quantica. A diferenca entre os sistemas classicosregulares e os caoticos se reflete duplamente no traco deGutzwiller. Primeiro, pode-se deduzir que o numero deorbitas periodicas cresce exponencialmente com o seuperıodo, τj , se o movimento for caotico [25,26], enquantoque este crescimento e muito mais lento para sistemasregulares. Em contrapartida, a amplitude da contribuicaode cada orbita do sistema caotico cai exponencialmentecom τj . De fato, a intensidade |D′′j |2 ∼= e−λτj , onde λ eo expoente de Lyapunov que caracteriza o afastamentomedio das trajetorias vizinhas do movimento caotico.Assim, a maneira que uma unica tragetoria caotica varredensamente toda a camada de energia se reflete na densapopulacao de orbitas periodicas de perıodo arbitraria-mente longo.

A combinacao destas duas caracterısticas permite ava-liar as correlacoes do espectro para pequenos intervalos,∆, de energia,

K(∆) ≡W−1∫

dE ρ(E) ρ(E + ∆)

≈ <∑jl

∫dE D′′j(E) D′′l(E)

× exp[i

~[σj(E)− σl(E + ∆)]

], (23)

Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 40, nº 4, e4207, 2018 DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2017-0372

Page 5: A Integral de Caminhos: Uma Ponte entre a Mecˆanica ... · equa¸c˜oes de Newton, Lagrange, ou Hamilton, persona-gem central da mecˆanica cl´assica, simplesmente some da mecˆanica

Almeida e4207-5

sendo a janela de integracao, W , classicamente pequena,porem ainda contendo muitos nıveis quanticos. O fatode dσj/dE = τj(E), o perıodo da orbita, indica que amaioria desses integrandos sao altamente oscilatorios.Conservando apenas os termos em que j = l, obtemosentao a aproximacao diagonal,

Kd(∆) = <∑j

[D′′j(E)]2 exp[i

~τj(E)∆

]. (24)

E notavel que a indiscutıvel crueza deste passo aindapreserva a informacao essencial da correlacao da den-sidade de estados: Sua transformada de Fourier (devi-damente normalizada) concorda essencialmente com adas correlacoes universais dos ensembles de matrizesaleatorias [25,26,28]. Assim, atingimos uma explicacaofısica para a conjectura de Bohigas, Giannoni e Sch-mit [27], de base empırica, que as correlacoes do espectrode energias dos sistemas caoticos coincidem com essesespectros universais, fazendo ate a distincao entre asclasses de universalidade das matrizes aleatorias, como apresenca ou ausencia de simetria de reversao temporal.

Sera que a aproximacao diagonal e o maximo que po-demos almejar? A profusao de orbitas periodicas de umsistema caotico parece inibir qualquer pretensao de con-tabilizar as contribuicoes dos pares de orbitas em (23).Mais uma aplicacao surpreendente do traco de Gutzwil-ler foi entao a de partir retroativamente dos desviosdas correlacoes semiclassicas relativamente as correlacoesuniversais e conjecturar daı a existencia de pares de tra-jetorias, com quase a mesma acao, levando a termosquase diagonais a serem adicionados a Kd(∆). Parecemuita pretensao desencavar uma novidade na estruturade orbitas periodicas classicas, investigadas desde Poin-care, com base em aproximacoes semiclassicas que passampor cima de qualquer cuidado com convergencia. Naoobstante, Sieber e Richter mostraram que existem semprepares para as orbitas que tracam figuras de oito, comomostradas na figura 2 e que estas fornecem a contribuicaojusta para aprimorar a concordancia das correlacoes se-miclassicas com as correlacoes universais [29]. Assim, aponte classico-quantica abarca transito nos dois sentidos.

Enfim, ainda ha muito a entender sobre essa corres-pondencia basica. A experiencia indica que mais valelevar bem em conta a estrutura geral de ambas essas

Figura 2: As orbitas periodicas nunca se auto-intersectam noespaco de fases, mas sua projecao nas posicoes pode formar uma’figura de oito’. Na vizinhanca dessas, existe sempre uma orbitaperiodica vizinha com quase a mesma acao.

maravilhosas teorias do que fazer um grande esforcode estender para ordens superiores as aproximacoes se-miclassicas, onde elas acabam perdendo seu conteudofısico. A natureza dos auto-estados de uma Hamiltoni-ana caotica continua a ser um grande desafio. A bemda verdade, os estados que hoje em dia se preparam emanipulam no laboratorio, como os atomos de Rydberg,nao sao deste tipo exotico, sendo distinguidos por suassimetrias. Como pescar um estado ergodico no mar denıvies da figura 1? Quais seriam seus recursos quanticos?Talvez seja o caso de considera-los por hora como umareserva natural de estados quanticos, ainda nao tocadospelo homem, tanto mais nobres na sua inacessibilidade.

Devemos lembrar que a verdadeira dinamica quanticase desenvolve no domınio do tempo. Nao queremos soavaliar o espectro de energias; lidamos com a evolucaotemporal de outros personagens como observaveis, seu va-lor esperado, suas correlacoes e aı podemos, ao medir, fa-zer uma analize espectral. As aproximacoes semiclassicasfornecem expressoes para todos esses elementos em ter-mos do conjunto completo de trajetorias classicas [30].Para um tempo finito, nao precisamos nos preocuparcom a natureza regular ou caotica da evolucao classica.Mesmo para sistemas abertos, de evolucao nao unitaria,desenvolvemos expressoes semiclassicas [31] dentro deaproximacoes markovianas [1] e, talvez, se venha a en-contrar novas extensoes do metodo de Feynman-Vernonpara alargar ainda mais a ponte entre a mecanica classicae a mecanica quantica.

Agradecimentos

Agradeco os comentarios crıticos de Mucio Continentinoe Gabriel Lando, assim como apoio finceiro do CNPq edo Instituto Nacional de informacao Quantica.

Referencias

[1] D. Giulini, E. Joos, C. Kiefer, J. Kupsch, I.-O. Stama-tescu and H.D. Zeh, Decoherence and the Appearance ofa Classical World in Quantum Theory (Springer, Berlin,1996).

[2] W. Zurek, Rev. Mod. Phys. 75, 715 (2003).[3] R.P. Feynman and F.L. Vernon, Ann. Phys. 24, 118

(1963).[4] A.O. Caldeira and A.J. Leggett, Ann. Phys. (NY) 149,

374 (1983).[5] P.A.M. Dirac, Principles of Quantum Mechanics (Oxford

University Press, Oxford, 1947).[6] R.P. Feynman, Rev. Mod. Phys. 20, 367 (1948).[7] R.P. Feynman, Statistical Mechanics: A Set of Lectures

(Benjamin, Menlo Parrk, 1972).[8] M.S. Marinov, Phys. Reports 60, 1 (1960).[9] A.M. Ozorio de Almeida, Proc. R. Soc. Lond. A 439,

139 (1992).[10] A.M. Ozorio de Almeida, Phys. Rep. 295, 265 (1998).[11] E.P. Wigner, Phys Rev 40, 749 (1932).

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2017-0372 Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 40, nº 4, e4207, 2018

Page 6: A Integral de Caminhos: Uma Ponte entre a Mecˆanica ... · equa¸c˜oes de Newton, Lagrange, ou Hamilton, persona-gem central da mecˆanica cl´assica, simplesmente some da mecˆanica

e4207-6 A Integral de Caminhos: Uma Ponte entre a Mecanica Quantica e a Mecanica Classica

[12] J.R. Klauder and B.S. Skagerstam, Coherent States, Ap-plications in Physics and Mathematical Physics (WorldScientific, Singapore, 1985).

[13] M. Baranger, M.A.M. de Aguiar, F. Keck, H.J. Korschand B. Schellas, J. Phys. A: Math. Gen. 34, 7227 (2001).

[14] C. Lanczos, The Variational Principles of Mechanics(Dover Publications, New York, 1970).

[15] V.I. Arnold, Mathematical Methods of Classical Mecha-nics (Springer, Berlin, 1978).

[16] J.H. van Vleck, Proc. Nac. Acad. Sci. 14, 178 (1928).[17] H. Goldstein, Classical Mechanics (Addison-Wesley, Re-

ading, 1980), 2nd ed.[18] M. Gutzwiller, Chaos in Classical and Quantum Mecha-

nics (Springer-Verlag, New York, 1990).[19] R. Balian and C. Bloch, Ann. Phys. NY 85, 514 (1974).[20] R. Mane, Teoria Ergodica (IMPA, Rio de Janeiro, 1983).[21] O.E. Lanford, em Chaotic Behaviour of Deterministic

Systems, editado por G. Ioss, R.H.G Helleman and R.Stora (Les Houches 36, Amsterdam, 1983).

[22] A. Holle, J. Main, G. Wiebusch, H. Rottke and K.H.Welge, Phys. Rev. Lett. 61, 161 (1988).

[23] A. Shnirelman, Uspekhi Mat. Nauk. 29, 181 (1974).[24] Y. Colin de Verdiere, Comm. Math. Phys. 102, 497

(1985).[25] J.H. Hannay and A.M. Ozorio de Almeida, J. Phys. A

17, 3429 (1984).[26] A.M. Ozorio de Almeida, Hamiltonian Systems: Chaos

and Quantization (Cambridge University Press, Cam-bridge, 1988).

[27] O. Bohigas, M.J. Giannoni and C. Schmidt, Phys. Rev.Lett. 52, 1 (1984).

[28] M.V. Berry, Proc. R. Soc. Lond. A 400, 229 (1985).[29] M. Sieber and K. Richter, Physica Scripta 2001, 128

(2001).[30] A.M. Ozorio de Almeida and O. Brodier, J. Phys. A 49,

185302 (2016).[31] A.M. Ozorio de Almeida and O. Brodier, Phil. Trans. R.

Soc. A 369, 260 (2011).

Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 40, nº 4, e4207, 2018 DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2017-0372