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Thales Sallaume
A INEFICÁCIA DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL E AS NOVAS
ALTERNATIVAS ÀS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE
Centro Universitário Toledo
Araçatuba – SP
2018
Thales Sallaume
A INEFICÁCIA DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL E AS NOVAS
ALTERNATIVAS ÀS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE
Projeto de pesquisa de iniciação científica apresentado
no curso de graduação em Direito, sob a orientação do
professor Ms. Carlos Paschoalik Antunes, como
requisito parcial do Trabalho de Conclusão de Curso.
Centro Universitário Toledo
Araçatuba/SP
2018
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
Orientador: Carlos Paschoalik Antunes
_________________________________________
Examinador (a)
_________________________________________
Examinador (a)
Araçatuba, ______/______/2018.
RESUMO
O presente trabalho, realizado como requisito para a conclusão do Curso de Bacharelado em
Direito, foi realizado através de pesquisas bibliográficas e jurisprudenciais. Tem como
objetivo, a análise da efetividade e da eficácia da Lei de Execuções Penais e o estudo de
novos institutos jurídicos que podem contribuir para evitar o encarceramento e a
judicialização em massa de processos, notadamente a audiência de custódia e os núcleos
especiais criminais (Necrim’s), que estão em prática há pouco tempo e já apresentam bons
resultados à sociedade.
Palavras-chave: Direito Processual Penal; Lei de Execuções Penais; Audiência de Custódia;
Necrim’s.
.
ABSTRACT
The present work, performed as a requirement for the conclusion of the Bachelor's Degree in
Law, was carried out through bibliographical and jurisprudential research. Its objective is to
analyze the effectiveness and effectiveness of the Law on Criminal Executions and the study
of new legal institutes that can contribute to prevent the incarceration and mass judicialization
of processes, especially the custodial audience and special criminal nuclei (Necrim's), which
have been in practice for a short time and already present good results to society.
Key-words: Criminal Procedure Law; Law of Penal Executions; Custody Hearing; Necrim's.
SUMÁRIO
SUMÁRIO ................................................................................................................................. 6
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 7
I. A EVOLUÇÃO DO PROCESSO PENAL ATRAVÉS DOS TEMPOS ......................... 9
1.1 O sistema processual inquisitivo .......................................................................................... 9
1.2 O sistema processual acusatório ......................................................................................... 12
1.3 O sistema processual misto................................................................................................. 14
II. AS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE ................................................................. 17
2.1 A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) ....................................................................... 18
2.2 Espécies de penas privativas de liberdade .......................................................................... 20
2.2.1 Pena de reclusão e detenção ............................................................................................ 20
2.2.2 Pena de prisão simples ..................................................................................................... 21
III. O SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO .......................................................... 22
3.1 A inobservância dos direitos humanos dos presos ............................................................. 22
3.2 A problemática da ressocialização e a reincidência criminal ............................................. 25
IV. ALTERNATIVAS ÀS PENAS DE PRIVATIVAS DE LIBERDADE ........................ 28
4.1 As audiências de custódia ................................................................................................... 28
4.1.1 Benefícios da audiência de custódia para o sistema carcerário ....................................... 33
4.1.2 As primeiras manifestações jurisprudenciais .................................................................. 34
4.2 Os NECRIM’s - Núcleos Especiais Criminais .................................................................. 37
4.2.1 Aspectos históricos, fundamentos normativos e justificativas ........................................ 37
4.2.2 Linhas gerais e objetivos ................................................................................................. 39
4.2.3 Composição e procedimento ........................................................................................... 40
4.2.4 Efeitos da homologação judicial do acordo ..................................................................... 41
4.2.5 Atribuições e competência............................................................................................... 42
4.2.6 A visão do Ministério Público ......................................................................................... 43
CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 45
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 48
7
INTRODUÇÃO
A Lei de Execuções Penais brasileira é tida mundialmente como uma boa legislação,
tendo em vista que consagra uma série de direitos do preso e prevê o estrito respeito aos
direitos humanos, com o objetivo último de viabilizar a reinserção na sociedade daquele que
delinquiu.
Contudo, não é segredo para ninguém que todas as boas prescrições dessa lei não têm
tido qualquer efetividade prática, o que cria uma grande distância entre o que a lei prevê e o
que ocorre na prática.
No geral, as condições do sistema prisional brasileiro são péssimas, e os direitos dos
sentenciados são constantemente violados e, não são quaisquer direitos, mas os direitos mais
elementares, como a vida e a dignidade, o que acaba por acarretar em baixíssimos índices de
ressocialização após o cumprimento da pena, e o retorno do egresso ao sistema penitenciário,
criando-se um ciclo vicioso.
Todavia, dois novos institutos podem contribuir para a redução do encarceramento
desnecessário e evitar o ingresso de pessoas num sistema penitenciário que entrega o oposto
do que deveria: a audiência de custódia e os núcleos especiais criminais, e esses institutos
serão analisados como alternativa reais ao problema da superlotação e da degradação dos
indivíduos no sistema carcerário.
No primeiro capítulo serão abordadas a evolução do sistema processual penal no
tempo, tratando-se dos sistemas inquisitivo, acusatório e misto.
Em seguida, no segundo capítulo, serão abordadas as penas privativas de liberdade,
com a análise da Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210 de 11 de Julho de 1984) que versa
sobre os direitos do “reeducando”, que assim são denominados os condenados e internados no
sistema prisional brasileiro e sobre a sua reintegração ao convívio social.
Já no terceiro capítulo serão apresentadas as características marcantes do sistema
penitenciário brasileiro, em especial as constantes violações de direitos humanos e a falência
da pretensão de ressocialização dos presos, onde será tratada a questão da aptidão do sistema
penitenciário brasileiro em reeducar e ressocializar os sentenciados, ou, em outros termos, a
capacidade do sistema atual em executar e cumprir os objetivos estabelecidos na Lei de
Execução Penal.
Por fim, no quinto e último capítulo, serão analisados de maneira mais pormenorizada
os institutos da audiência de custódia e dos núcleos especiais criminais (Necrim’s), que são
8
novos institutos vigentes no direito brasileiro e que podem contribuir para o sistema criminal
que está à beira da falência.
9
I. A EVOLUÇÃO DO PROCESSO PENAL ATRAVÉS DOS TEMPOS
Neste capítulo procuraremos demonstrar a evolução do processo penal ao longo dos
tempos, no intuito de delimitarmos o atual momento que vive essa disciplina jurídica e,
consequentemente, o objeto principal deste estudo: a audiência de custódia, ou audiência de
apresentação, como também vem sendo designada.
A importância desse tipo de estudo é destacada pelo jurista alemão KONRAD HESSE
(2009, p. 02):
Só a consciência dessa historicidade permite a compreensão total e o juízo acertado
das questões jurídico-político-constitucionais. Isso é algo que não pode oferecer uma
teoria geral e abstrata insensível. Tampouco a compreensão histórica pode
prescindir, sem mais, da justificação e da configuração teórica.
Dividiu-se o encaminhamento desse estudo em três períodos históricos distintos que
representam três modelos processuais penais também distintos: o processo penal inquisitivo; o
processo penal acusatório e o processo penal misto.
No entanto, não existe uma correlação cronológica permanente entre os sistemas, isto
é, durante todo o período histórico houve idas e vindas dos sistemas.
Por exemplo, na Antiguidade, como em Roma ou na Grécia Antiga, onde já se
concebiam os princípios democráticos, vigorou em certa medida o sistema penal acusatório,
que já na Idade Média foi suplantado pelo sistema penal inquisitivo; que novamente foi
substituído pelo sistema penal acusatório, e assim por diante.
Portanto, a ordem escolhida não é necessariamente cronológica, mas didática,
começando pelo sistema processual mais arcaico (juridicamente) e encaminhando-se para os
mais modernos.
1.1 O sistema processual inquisitivo
Consultando o termo ‘inquisitivo’ nos dicionários, seremos invariavelmente remetidos
à noção de averiguação rigorosa, metódica, bem como, e mais especificamente, à noção de
tribunais eclesiásticos instituídos pela Igreja Católica nos primórdios do século XIII, que
tinham por objetivo o julgamento dos acusados de cometerem crimes contra a fé católica,
outrora denominados hereges ou feiticeiros.
10
Posteriormente, com o passar dos anos, os tribunais deixaram de ser meramente
eclesiásticos e passou a ser um modelo de jurisdição dos regimes das monarquias absolutistas
europeias, dali se espalhando para o restante do Ocidente.
O sistema processual penal inquisitivo, conforme lição de PAULO RANGEL (2010, p.
17):
Surgiu no direitocanônico e se aperfeiçoou durante os regimes monárquicos,
passando a ser adotado em quase todas as legislações europeias dos séculos XVI,
XVII e XVIII. Surgiu com sustento na afirmativa de que não se poderia deixar que a
defesa social dependesse da boa vontade dos particulares, já que eram estes que
iniciavam a persecução penal no sistema acusatório privado anterior. O cerne de tal
sistema era a reivindicação que o Estado fazia para si do poder de reprimir a prática
dos delitos, não sendo mais admissível que tal repressão fosse encomendada ou
delegada aos particulares.
O mencionado sistema surgiu em substituição ao sistema da vingança privada, que se
apresentava nos regimes das civilizações mais antigas e representou a primeira investida
estatal na assunção do monopólio da Justiça, circunstância que prepondera até nos tempos
atuais.
Tal sistema possuía características peculiares que podem ser assim resumidas:
a) As funções de acusar, julgar e defender concentravam-se em uma única figura: o
juiz inquisitor, que exercia essas três funções concomitantemente, em evidente prejuízo para o
acusado;
b) O acusado não é parte no processo, mas mero objeto que, por tal situação, não
dispunha de direitos ou garantias significativas;
c) O processo era iniciado por iniciativa do próprio julgador;
d) Inexistia qualquer possibilidade do exercício concreto e efetivo do contraditório e
da ampla defesa, já que essas garantias sequer existiam, e ao acusado era reservada tão-
somente uma dialética mais teatral do que real;
e) O processo era secreto, isto é, não vigorava a publicidade habitual dos atos
processuais tal qual existe hodiernamente;
f) A prisão processual durante o processo era a regra;
g) Havia ampla liberdade do julgador na colheita e produção de provas;
h) A tortura para a confissão do delito era recorrente, sem que isso invalidasse a
confissão.
Nesse sentido, leciona o eminente professor GUSTAVO HENRIQUE BADARÓ
(2003, p. 104):
11
No processo inquisitório, as funções de acusar, defender e julgar encontram-se
enfeixadas em uma única pessoa, que assume assim as vestes de um juiz acusador,
isto é, um inquisidor. O réu não é parte, mas objeto do processo. A ação inicia-
se exofficio, por ato do juiz. Em tal processo não havia contraditório, que não seria
nem mesmo concebível devido à falta de contraposição entre acusação e defesa.
Excluída a dialética entre acusação e defesa, a investigação cabia unilateralmente ao
inquisidor. Inconcebível, em tal sistema, a existência de uma relação jurídica
processual. O processo normalmente era escrito e secreto. O juiz inquisidor tinha
liberdade de colher provas, independentemente de sua proposição pela acusação ou
pelo acusado. O acusado, normalmente, permanecia preso durante o processo. Na
busca da verdade material, frequentemente, o acusado era torturado para que se
alcançasse a confissão.
Por fim, devemos ainda acrescentar que o sistema também alcançou e vigorou no
Brasil, mais precisamente em solo baiano, conforme as observações de MOTT (2010, p. 11):
Apenas treze anos separam a fundação da Santa Inquisição em Portugal (1536), da
fundação da cidade de Salvador (1549). Ambas tiveram sua infância no século XVI,
adolescência conturbada na metade inicial do Século XVII< idade adulta e apogeu
nas décadas finais dos seiscentos e inícios do Século XVIII, decadência a partir de
1750. A inquisição teve suas portas fechadas em 1821, enquanto a Bahia confirmou,
definitivamente, a independência do Brasil em 1823. Por diversas vezes, a
Inquisição imiscuiu-se arbitrariamente na vida dos baianos, mantendo, a ferro e
fogo, através da eficiente rede de aproximadamente um milheiro de espiões, os
temíveis Comissários e Familiares do Santo Ofício, a hegemonia da Santa Madre
Igreja: “um só rebanho e um só Pastor!”
Ante ao que foi exposto, não é preciso salientar que nesse tipo de processo as garantias
do acusado não são a preocupação central do sistema, tendo em vista que nem se poderia
considerá-lo como ‘parte’, mas como um mero objeto.
Desse modo, o sistema inquisitivo é um sistema processual meramente formal, que
embora conservasse algum aspecto de legalidade, muito se distanciava do que atualmente se
concebe como justiça material.
Diferentemente do que se pode imaginar, o Código de Processo Penal brasileiro, de
1941, teve grande inspiração inquisitorial, como ensinam TÁVORA e RODRIGUES
ALENCAR (2014, p. 47):
O Código de Processo Penal brasileiro, de 1941, seguiu essa linha de raciocínio,
inspirado que foi, em sua maior parte, no Código Rocco da Itália, de inspiração
fascista. Preponderava a idéia que colocava o juiz em uma posição hierarquicamente
superior às partes da relação jurídica processual, como uma espécie de super-parte,
sem cautelas para preservar eficazmente sua imparcialidade. O Código então
centralizou no juiz a gestão da prova, com a possibilidade de sua produção sem a
necessidade de provocação das partes, conferindo-lhes poderes como os de iniciar a
ação penal através do procedimento denominado judicialiforme (sem observar o
princípio ne procedatiudexexofficio), de controlar a função investigatória mediante a
fiscalização do arquivamento do inquérito policial e de modificar não só a
capitulação dada ao fato imputado pelo Ministério Público (emendatiolibelli) mas
também o de tomar a iniciativa para dar novo enquadramento jurídico ao fato
narrado, provocando o órgão acusatório a aditar a inicial (mutatiolibelli).
12
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, muito dessas características não
mais subsistiram, pelo instituto da (não) recepção das normas infraconstitucionais contrárias
ao texto constitucional.
No entanto, segundo alguns autores o espírito inquisitivo está presente mesmo nas
reformas legislativas posteriores, como a realizada pela Lei nº 11.690/08, que deu nova
redação ao artigo 156, I, do Código e confere ao magistrado a prerrogativa de ordenar de
ofício, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção de provas consideradas urgentes e
relevantes.
1.2 O sistema processual acusatório
O processo penal acusatório, por sua vez, é o contraponto teórico ao processo
inquisitivo.
As raízes jurídicas em tempos menos distantes desse sistema processual encontram-se
em importantes declarações de direitos inglesas, como a Magna Charta Libertarum, de 1215;
o Petition of Rights, de 1628, Bill of Rights, de 1689 e também no período histórico
conhecido como Iluminismo, que ocorreu na Europa, em meados do século XVIII.
No Brasil, tal sistema processual criou raízes mais sólidas com a Constituição de 1988,
que criou uma série de direitos democráticos de aplicação no processo penal, e é a própria
Constituição que oferece o contrabalanço democrático necessário à interpretação
(interpretação conforme à Constituição) dos dispositivos de feição inquisitiva que constam no
Código de Processo Penal, e que foram mencionados no tópico anterior.
Conforme os ensinamentos de TÁVORA e RODRIGUES ALENCAR (2014, p. 48):
Com origem que remonta ao Direito Grego, o sistema acusatório é o adotado no
Brasil, de acordo com o modelo plasmado na Constituição Federal de 1988. Com
efeito, ao estabelecer como função privativa do Ministério Público a promoção da
ação penal (art. 129, I, CF88) a Carta deixou nítida a preferência por esse modelo
que tem como características fundamentais a separação entre as funções de acusar,
defender e julgar, conferidas a personagens distintos. Os princípios do contraditório,
da ampla defesa e da publicidade regem todo o processo; o órgão julgador é dotado
de imparcialidade; o sistema de apreciação das provas é o do livre convencimento
motivado. Nota-se que o que efetivamente o sistema inquisitorial do acusatório é a
posição dos sujeitos processuais e o sistema de gestão da prova, não sendo mais o
juiz, por excelência, o seu gestor.
De fato, no sistema acusatório o Estado cria uma instituição autônoma e independente
para ser o titular da ação penal pública, o Ministério Público, sendo certo que alguns tipos de
13
ações penais ainda são de titularidade de particulares, no caso das ações penais privadas, mas
o que não desfigura a idéia de que a figura do acusador é diferente das figuras do defensor e,
principalmente, do defensor.
Passa a existir, portanto, três partes processuais distintas: o juiz, que atua com
imparcialidade, mediante provocação e equidistância das outras partes interessadas, quais
sejam, o Ministério Público (ou algum particular em casos específicos) e o réu, que não passa
mais a ser tratado como objeto do litígio, mas podendo exercer firmemente seus direitos e
garantias constitucionalmente asseguradas.
O Professor LOPES JR (2008, p. 58) elenca as características do sistema acusatório
contemporâneo:
a) clara distinção entre as atividades de acusar e julgar;
b) iniciativa probatória deve ser das partes;
c) mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio a labor de
investigação e passivo no que se refere à coleta da prova, tanto de imputação como
de descargo;
d) tratamento igualitário das partes (igualdade de oportunidades no processo);
e) procedimento é em regra oral (predominantemente);
f) plena publicidade de todo procedimento (ou de sua maior parte);
g) contraditório e possibilidade de resistência (defesa)
h) ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre
convencimento motivado do órgão jurisdicional;
i) instituição, atendendo a critérios de segurança jurídica (e social) da coisa julgada;
j) Possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição.
A pedra de toque desse sistema é, sem dúvida, a separação das funções de acusação e
julgamento, sobretudo no sentido da perda da imparcialidade do julgador que se
responsabiliza pela colheita de provas.
Esse aspecto é enfatizado em toda a sua importância por GERALDO PRADO (2007,
p. 138):
Quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo
penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigosamente
comprometedora da imparcialidade do julgador. Desconfiado da culpa do acusado,
investe o juiz na direção da introdução de meios de provas que sequer foram
considerados pelo órgão de acusação, ao qual nessas circunstâncias, acaba por
substituir. Mas do que isso, aqui igualmente se verificará o mesmo tipo de
comprometimento psicológico objeto das reservas quanto ao poder do próprio juiz
iniciar o processo, na medida que o juiz se fundamentará, normalmente, nos
elementos de prova que ele mesmo incorporou ao processo, por considerar
importantes para o deslinde da questão. Isso acabará afastando o juiz da desejável
posição de seguro distanciamento das partes e de seus interesses contrapostos,
posição essa apta a permitir a melhor ponderação e conclusão.
14
Também é importante ressaltar a questão do inquérito policial, onde praticamente
inexistem contraditório ou ampla defesa, partes ou a publicidade que regem o processo penal
acusatório.
Seria o inquérito policial, portanto, uma negação do sistema penal acusatório
brasileiro?
A resposta é indubitavelmente negativa, tendo em vista que o inquérito policial situa-
se numa fase pré-processual, de investigação, e não de julgamento e formação de culpa.
Além disso, no próprio procedimento do inquérito policial há certas limitações ao
investigador, como nos casos onde não se possa repetir a prova em juízo, o que impõe-lhe
assegurar a participação do indiciado (na medida do possível) na produção da prova, para
garantir a efetividade dos direitos constitucionais.
De todo modo, o sistema processual penal acusatório é diretamente ligado ao nível
democrático de cada nação.
Nesse sentido, vale transcrever as observações realizadas por LOPES JUNIOR (2008,
p. 57):
Pode-se constatar que predomina o sistema acusatório nos países que respeitam mais
a liberdade individual e que possuem uma sólida base democrática. Em sentido
oposto, o sistema inquisitório predomina historicamente em países de maior
repressão, caracterizados pelo autoritarismo ou totalitarismo, em que fortalece a
hegemonia estatal em detrimento dos direitos individuais. Cronologicamente, em
linhas gerais, o sistema acusatório predominou até meados do século XII, sendo
posteriormente substituído, gradativamente, pelo modelo inquisitório que prevaleceu
com plenitude até o final século XVIII (em alguns países, até parte do século XIX),
momento em que os movimentos sociais e políticos levaram a uma nova mudança
de rumos.
Contudo, embora possamos detectar predominância de um ou outro sistema processual
mundo à fora, devemos também ressaltar que muitas vezes os sistemas são combinados,
dando origem a um sistema misto, que será analisado no próximo tópico deste trabalho.
1.3 O sistema processual misto
O sistema penal misto tem suas raízes históricas muito remotas. Sua primeira aparição
se deu na Revolução Francesa, mais especificamente no Código de Instrução Criminal de
1808.
15
De acordo com os ensinamentos de TÁVORA e RODRIGUES ALENCAR (2014, p.
48) esse sistema:
Caracteriza-se por uma instrução preliminar secreta e escrita, a cargo do juiz, com
poderes inquisitivos, no intuito da colheita de provas, e por uma fase contraditória
(judicial) em que se dá o julgamento, admitindo-se o exercício da ampla defesa e de
todos os direitos dela decorrentes.
E, ainda mencionados autores (2014, p. 49) as fases desse sistema podem ser
elencadas nos seguintes termos:
a) Investigação preliminar, a cargo da polícia judiciária;
b) Instrução preparatória, patrocinada pelo juiz instrutor;
c) Julgamento: só este último, contudo, sob o crivo do contraditório e ampla defesa;
d) Recurso: normalmente há o “recurso de cassação”, no qual se ipugnam apenas as
questões de direito, mas também é possível o “recurso de apelação”, no qual são
impugnadas as questões de fato e de direito.
Portanto, ante todas essas informações, pode-se comprovar que o sistema penal misto
não significa uma mistura desordenada e desregrada dos sistemas penais inquisitivo e
acusatório.
Muito por outro lado: consiste num amplo sistema que contém duas fases distintas: a
inquisitiva e a acusatória, sendo a primeira destituída de todas as garantias processuais
constitucionais e, a segunda, onde essas garantias passam a ter efetividade a plena
aplicabilidade.
Nesse sentido, AVENA (2009, p. 10):
O sistema processual penal misto abrange duas fases processuais distintas: uma
inquisitiva, destituída de contraditório, publicidade e defesa, na qual é realizada uma
investigação preliminar e uma instrução preparatória; outra posterior a essa,
correspondente ao momento em que se realizará o julgamento, assegurando-se ao
acusado, nesta segunda fase, todas as garantias do processo acusatório.
Por fim, embora o sistema misto não seja apenas uma mistura dos sistemas processuais
penais inquisitivo e acusatório, mas um processo que engloba duas fases distintas e
sequenciais, também é certo que nenhuma dessas fases abriga um sistema penal puro, sem
qualquer influência de outro.
BADARÓ (2003, p. 104) levanta esse aspecto:
Tais sistemas, contudo, são abstrações ou modelos ideais. Atualmente não existem
sistemas acusatórios ou inquisitórios “puros”. Nenhum legislador estrutura o
processo penal de forma totalmente acusatória ou inteiramente inquisitória. A
análise dos diversos ordenamentos jurídicos demonstra a possibilidade de várias
combinações de características dos sistemas acusatório ou inquisitório: ora o
processo é prevalentemente acusatório, ora apresenta maiores características
inquisitoriais.
16
O acerto desses comentários é visível quando, como já dissemos neste trabalho,
algumas garantias do processo acusatório podem ser exercidas no inquérito policial e, quando
no processo penal há alguns elementos tipicamente inquisitivos, como a busca de provas pelo
magistrado.
17
II. AS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE
As penas privativas de liberdade, como o próprio nome sugere, são sanções impostas
pelo Estado ao condenado que restringem, em maior ou menor grau, a sua liberdade, mediante
o seu recolhimento temporário a algum estabelecimento prisional, com o objetivo último de
ressocializá-lo.
Suas linhas gerais são traçadas pelo artigo 33 do Código Penal, que estabelece as
espécies de penas privativas de liberdade, os seus regimes de cumprimento e dá outras
providências:
Art. 33 - A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi-aberto ou
aberto. A de detenção, em regime semi-aberto, ou aberto, salvo necessidade de
transferência a regime fechado. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
§ 1º - Considera-se: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
a) regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou
média;
b) regime semi-aberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou
estabelecimento similar;
c) regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou estabelecimento
adequado.
§ 2º - As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma
progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e
ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso: (Redação dada pela
Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em
regime fechado;
b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não
exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi-aberto;
c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos,
poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto.
§ 3º - A determinação do regime inicial de cumprimento da pena far-se-á com
observância dos critérios previstos no art. 59 deste Código.(Redação dada pela Lei
nº 7.209, de 11.7.1984)
§ 4o O condenado por crime contra a administração pública terá a progressão de
regime do cumprimento da pena condicionada à reparação do dano que causou, ou à
devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais. (Incluído pela
Lei nº 10.763, de 12.11.2003)
Neste capítulo examinar-se-ão alguns aspectos relacionados às penas privativas de
liberdade para, num segundo momento, analisar se as finalidades pretendidas estão sendo
alcançadas.
18
2.1 A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84)
A Lei de Execução Penal, Lei nº 7.210 de julho de 1984 versa sobre os direitos do
“reeducando”, que são os condenados e internados no sistema prisional brasileiro e sobre a
sua reintegração ao convívio social.
Nos termos de seu artigo 1º, a execução penal visa “efetivar as disposições de sentença
ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do
condenado e do internado”.
Segundo MIRABETE (2006, p. 26):
Contém, o artigo 1º da Lei de Execução Penal duas ordens de finalidade. A primeira
delas é a correta efetivação dos mandamentos existentes na sentença ou outra
decisão criminal, destinados a reprimir e prevenir delitos. Ao determinar que a
execução penal “tem por objetivo efetivar disposições da sentença ou decisão
criminal”, o disposto registra formalmente o objetivo da realização penal concreta
do título executivo constituídos por tais decisões. A segunda é de “proporcionar
condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”
instrumentalizada por meio de oferta de meios pelos quais os apenados e os
submetidos às medidas de segurança possam participar construtivamente da
comunhão social.
Isto é, a lei de execução penal dá cumprimento às sanções impostas pela sentença
penal condenatória e, com isso, visa recuperar o condenado, para que o mesmo volte para o
convívio social sem que volte a delinquir.
A lei é estruturada e dividida em sete títulos, que tratam do objeto e da aplicação da lei
de execução penal; do condenado e do internado; do trabalho durante o cumprimento da pena;
dos órgãos da execução penal; dos estabelecimentos penais; da execução das penas em
espécie; da execução das medidas de segurança e dos incidentes de execução.
Dentre essas disposições, vale destacar os deveres dos condenados, estabelecidos no
artigo 39:
Art. 39. Constituem deveres do condenado:
I - comportamento disciplinado e cumprimento fiel da sentença;
II - obediência ao servidor e respeito a qualquer pessoa com quem deva relacionar-
se;
III - urbanidade e respeito no trato com os demais condenados;
IV - conduta oposta aos movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de
subversão à ordem ou à disciplina;
V - execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas;
VI - submissão à sanção disciplinar imposta;
VII - indenização à vitima ou aos seus sucessores;
19
VIII - indenização ao Estado, quando possível, das despesas realizadas com a sua
manutenção, mediante desconto proporcional da remuneração do trabalho;
IX - higiene pessoal e asseio da cela ou alojamento;
X - conservação dos objetos de uso pessoal.
Bem como, os direitos do preso, estabelecidos no artigo 41:
Art. 41 - Constituem direitos do preso:
I - alimentação suficiente e vestuário;
II - atribuição de trabalho e sua remuneração;
III - Previdência Social;
IV - constituição de pecúlio;
V - proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a
recreação;
VI - exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas
anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena;
VII - assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa;
VIII - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo;
IX - entrevista pessoal e reservada com o advogado;
X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados;
XI - chamamento nominal;
XII - igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da
pena;
XIII - audiência especial com o diretor do estabelecimento;
XIV - representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito;
XV - contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e
de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes.
XVI – atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da
responsabilidade da autoridade judiciária competente. (Incluído pela Lei nº
10.713, de 2003)
Parágrafo único. Os direitos previstos nos incisos V, X e XV poderão ser suspensos
ou restringidos mediante ato motivado do diretor do estabelecimento.
Fácil notar a existência de um regime democrático (ao menos formalmente) que visa a
recuperação do preso e não a mera vingança, pelo fato de os direitos do condenado serem
estabelecidos em maior número do que os deveres.
Contudo, conforme PASTANA (2009, p. 124):
O sistema penal brasileiro caminha, atualmente, menos para a consolidação
democrática, e muito mais para a atuação simbólica, traduzida em aumento
desproporcional de penas, maior encarceramento, supressão de direitos e garantias
processuais, endurecimento da execução penal, entre outras medidas igualmente
severas. Tal sistema opera no sentido do “excesso de ordem”, único capaz de
tranquilizar nossa atual sociedade de consumo hedonista e individualista.
De fato, assiste razão à autora, tendo em vista que, conforme será exposto mais adiante
nesse trabalho, a lei de execução penal tem falhado gravemente no seu mister ressocializador.
20
2.2 Espécies de penas privativas de liberdade
No ordenamento jurídico brasileiro são conhecidas três espécies de penas privativas de
liberdade: reclusão, detenção e prisão simples.
Essas três espécies podem ser designadas pelo gênero “penas de prisão”.
As penas de reclusão e detenção são aplicáveis no caso de cometimento de crimes
propriamente ditos (isto é, não em casos de contravenção penal, onde a pena aplicável é a
prisão simples).
2.2.1 Pena de reclusão e detenção
A mais grave das penas privativas de liberdade é a pena de reclusão, e o seu regime de
cumprimento (regime fechado, semiaberto ou aberto) se dará conforme a gravidade do delito
pelo qual fora condenado.
Em regra, a pena de reclusão é prevista em tipos penais que estabelecem no mínimo 01
ano de pena, e nunca será superior ao máximo legal de 30 (trinta) anos, nos termos do Código
Penal.
Já a pena de detenção é aplicável nos crimes menos graves e, diferentemente da pena
de reclusão, seu regime de cumprimento terá início no regime semiaberto ou aberto, exceto
em caso de necessidade de transferência do condenado para o regime fechado.
Atualmente, a diferenciação entre as penas de reclusão e detenção é meramente
formal.
Conforme PRADO (2010, p. 576):
A diferenciação entre reclusão e detenção hoje se restringe quase que
exclusivamente ao regime de cumprimento da pena, que na primeira hipótese deve
ser feito em regime fechado, semi-aberto, enquanto na segunda alternativa –
detenção admite-se a execução somente em regime semi-aberto ou aberto, segundo
dispõe o artigo 33, caput, do código Penal.
De fato, as diferenças entre ambas não são substanciais.
21
2.2.2 Pena de prisão simples
A prisão simples tem aplicabilidade nas sanções impostas pelo cometimento de
contravenções penais, que encontram-se previstas no Decreto-Lei nº 3.688/41, popularmente
conhecido como Lei das Contravenções Penais.
Conforme o artigo 6º do Decreto-Lei:
Art. 6º. A pena de prisão simples deve ser cumprida, sem rigor penitenciário, em
estabelecimento especial ou seção especial de prisão comum, em regime semiaberto
ou aberto.
§1º. O condenado à pena de prisão simples fica sempre separado dos condenados à
pena de reclusão ou detenção.
§2º. O trabalho é facultativo, se a pena aplicada não excede a 15 (quinze) dias.
Como as contravenções penais são infrações menos graves à ordem social, o legislador
houve por bem sancioná-las tão-somente com a prisão simples, que só poderá ser executada
em regime semiaberto ou aberto, com a devida separação do condenado a esse tipo de prisão
daqueles que cumprem pena de reclusão ou detenção.
22
III. O SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO
Neste capítulo será abordada a questão da aptidão do sistema penitenciário brasileiro
em reeducar e ressocializar os sentenciados, ou, em outras palavras, a aptidão para o
cumprimento dos objetivos estabelecidos na Lei de Execução Penal.
No fundo, a intenção é responder a pergunta: os condenados à pena privativa de
liberdade estão, de fato, sendo ressocializado dentro dos presídios brasileiros?
Segundo PRADO (2010, p. 578), não: “Há um verdadeiro descompasso entre a
realidade concreta e a utopia legal no que diz respeito ao Sistema Penal, pois é visível que as
normas não condizem com a realidade do sistema e a prisão está longe de cumprir um papel
ressocializador.”
Passa-se agora ao exame dos motivos concreto da afirmação do doutrinador.
3.1 A inobservância dos direitos humanos dos presos
Direitos humanos são aqueles direitos reconhecidos no mundo civilizado a qualquer
ser humano, sem que se cogita da necessidade de preenchimento de qualquer característica ou
outro requisito para que qualquer pessoa possa titularizá-los.
Nesse passo, não há dúvidas de que os presos são legítimos titulares de direitos
humanos e, ao serem reclusos, são despidos apenas do direito de liberdade de locomoção.
Portanto, durante a execução penal os presos devem ter seus direitos humanos respeitados e
isso implica, sobretudo, na proteção de sua dignidade (CF88, art. 1, III).
Contudo, são diárias as notícias de superlotação, falta de condições materiais de
habitação e até mesmo casos espantosos de tortura e esquartejamento, praticados pelos
próprios presos.
Sobre a superlotação, vale transcrever matéria jornalística do portal UOL (2017):
Hoje, o país tem uma taxa de superlotação nas cadeias de 197,4%, o que significa
que existe quase o dobro de detentos em relação ao número de vagas. Os dados
foram divulgados nesta sexta-feira (8) pelo Ministério da Justiça e Segurança
Pública e se referem a junho de 2016. São 726.712 presos para 368.049 vagas.
Nenhum dos 26 Estados nem o Distrito Federal seguem o percentual estipulado pela
resolução. A exceção são os quatro presídios federais de segurança máxima, com
taxa de lotação de 52,5%.
23
De fato, vê-se que o quadro é assustador, tendo em vista que para cada vaga existente
no sistema penitenciário brasileiro, há dois presos.
Além dos problemas óbvios de superlotação, como aumento de tensão, motins e
rebeliões, há também problemas quando a salubridade do local, que acaba desencadeando
doenças que se proliferam entre os presos.
Matéria da revista Carta Capital (2017) ressalta esse último aspecto:
A superlotação das unidades se tornou uma fonte de proliferação de doenças
infectocontagiosas, como explica Natália Madureira Ferreira, médica e docente do
curso de medicina da Universidade Federal de Uberlândia.“Sobre o número de
pacientes dentro do sistema prisional, existe uma correlação direta entre a
quantidade de presos e a qualidade de vida dentro do presídio”,afirma a médica.No
último mês, uma infestação de doenças de pele no presídio da Papuda, no Distrito
Federal, acometeu mais de 2 mil pessoas detidas, em cinco unidades do complexo,
de acordo a Secretaria de Segurança Pública da capital nacional.
Embora os relatos anteriores sejam graves, o cenário assume proporções de catástrofe
quando se examinam acontecimentos brutais que ocorreram no presídio de Urso Branco (RO)
e no presídio de Pedrinhas (MA).
Em vistoria às dependências do primeiro dos presídios mencionados, que é habitado
por prisioneiro de duas facções criminosas rivais que disputam o controle da unidade, a
Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Porto Velho (2007) elaborou o seguinte registro:
Quase 100 mortes em cinco anos: é este o saldo de presos assassinados nas
dependências do presídio Urso Branco, conseqüência do total descaso do Estado
brasileiro em relação a pessoas que estavam sob sua tutela. Os crimes ocorreram em
situações de violência extremada, quando presos degolaram e mutilaram outros
internos, em rebeliões e brigas de grupos rivais.
No mesmo relatório, a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Porto Velho (2007)
ainda relata episódios de tortura praticada não pelos detentos, contra outros detentos, mas pelo
próprio Estado:
No final de 2006, o Estado resolveu “intervir” no Urso Branco, utilizando-se da
tortura como instrumento de ordem. O recente episódio de 9 de julho de 2007 - com
todos os presos do Urso Branco deitados, nus, na quadra de futebol da unidade, em
pleno meio-dia e a execução sumária de um interno, com um tiro na cabeça, também
nesta ocasião - simboliza a forma como o Brasil quer obter o controle da unidade, às
custas da violação da vida e integridade física dos internos. Em menos de seis
meses, quatro diretores do Urso Branco foram afastados da função por responderem
a processos administrativos disciplinares decorrentes de denúncias de tortura contra
presos.
Ponto que deve ser ressaltado é que esses episódios ocorreram após a Corte
Interamericana de Direitos Humanos expedir a Resolução de 18 de Junho de 2002, com
recomendações ao Brasil para que efetivasse os direitos humanos nos presídios.
24
Todavia, essas recomendações foram solenemente ignoradas:
Estes cinco anos, entretanto, foram caracterizados pela desídia do Estado em
cumprir aquelas determinações; desídia que tem por origem a falta de interesse
político dos agentes públicos em cumprir suas obrigações previstas não somente na
Constituição Federal, mas igualmente nas normas internacionais de proteção às
pessoas privadas de liberdade e na Convenção Americana de Direitos Humanos, que
o Brasil é signatário desde 1992. (Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Porto
Velho, 2007).
Como se não bastasse, situação semelhante teve curso no presídio de Pedrinhas, no
Maranhão, nacionalmente conhecido pelas barbáries que ali ocorrem.
Matéria do Correio da Bahia (2014) dá dimensão da situação:
Um vídeo gravado em dezembro (2013) por detentos mostra outros presos
decapitados no complexo de Pedrinhas, em São Luís, no Maranhão. Na
penitenciária, 62 presos foram mortos desde o ano passado. O vídeo, entregue à
Folha de S. Paulo e divulgado nesta terça-feira (7), tem dois minutos e 32 segundos.
Os próprios presos rebelados fazem o vídeo - para se preservar, eles filmam somente
os pés deles mesmos. Eles se divertem filmando os rivais mortos, cravejados de
balas, e sem cabeças. No chão, é possível perceber sangue. A cena se passa no
Centro de Detenção Provisória, de Pedrinhas, na zona rural da capital maranhense.
Ante esse relato, desnecessário discorrer sobre outras condições do presídio, pois é de
se supor as condições de habitação, higiene e densidade populacional que ali vigoram.
De qualquer modo, BARROS LEAL (2010, p. 96) faz um apanhado geral das
condições que vigoram nos presídios brasileiros:
Evidente superlotação, que além de provocar amontoamento de presos, dificulta
funções e serviços básicos, como alimentação, saúde, higiene, segurança, trabalho,
educação, recreação e assistências em geral; Presos em delegacias ou cadeias
públicas à espera de uma vaga nas prisões, eis que a insuficiência de vagas nos
cárceres é situação rotineira; Situações estruturais totalmente comprometidas, com
instalações inadequadas, celas sem lavatório, cama, colchões ou lençóis, com
infiltrações, baratas, pulgas, percevejos e ratos, aonde não penetram raios do sol e
onde o odor fétido de urina e excremento, acumulados em pequenas cubas ou sacos
de plástico, torna-se insuportável, em completo abandono as mais elementares
normas de higiene; Alto índice de doenças e absoluta ausência de tratamento
médico; Reclusos sadios com doentes mentais, e estes últimos sem tratamento
adequado e acorde com os preceitos médicos e legais; Elevada taxa de suicídios e
homicídios realizados das mais aterrorizantes formas: presos decapitados,
esquartejados, mutilados, degolados; Violência sexual, muitas vezes cometidas por
presos diagnosticados como soropositivos ou aidéticos; Rebeliões, motins, e crime
organizado, onde os próprios presos aplicam sanções, decidem quem deve viver ou
morrer, comandam a extorsão, o narcotráfico e o mercado do sexo; Abuso de poder
e corrupção de agentes penitenciários e autoridades que fazem cobrança ilegal de
serviços e pagamentos de cotas por proteção ou para liberação de castigos físicos;
Maus-tratos, torturas, castigos físicos, por parte dos agentes penitenciários e
policiais; Presos cumprindo condenação superior à fixada na sentença, sem desfrutar
de trabalho externo, liberdade condicional ou outros benefícios da lei; Presos sem
condenação, ou que tenham sido absolvidos ou condenados a pena inferior ao tempo
do encarceramento sem que recebam qualquer indenização; Presos tendo que ceder a
própria esposa ou filha donzela, no dia de visita, ao líder da cela, da rua ou do
25
pavilhão, sob ameaça de represálias; Prisões onde mulheres e crianças são
encarceradas junto com homens, e as autoridades fingem desconhecer estupro diário
e sistemático de uma jovem de 15 anos, detida numa cela com cerca de trinta presos,
durante 24 dias, forçada a manter relações sexuais para não morrer de fome; Prisões
onde jogam futebol com a cabeça de presos mortos; Prisões onde o trabalho é um
prêmio e os internos ocupam seu tempo ocioso, perdido, tecendo os fios de rebeliões
e fugas, que serão mais tarde exploradas por manchetes dos jornais e pelos
noticiários da televisão que anunciarão de maneira destacada seu enfrentamento com
a polícia e talvez seus óbitos; Prisões onde não há água potável e os alimentos que se
servem, sem nenhuma regularidade, contêm resíduos fecais; Prisões onde os
encarcerados se suicidam em protesto e dor e se amotinam ante a lentidão de seus
processos.
A conclusão evidente a partir do exposto é que ante a ausência de respeito aos direitos
humanos dos presos, é impossível que haja qualquer expectativa real de ressocialização, pois
não se pode imaginar que em lugares como os mencionados existam condições mínimas de
estudo ou trabalho.
Contudo, isso será examinado no próximo tópico.
3.2 A problemática da ressocialização e a reincidência criminal
Ressocialização é a reinserção do apenado na sociedade, dentro de uma expectativa de
que o mesmo não volte a delinquir.
Traz em si as noções de reeducar, readequar (o comportamento) e eliminar
comportamentos anti-sociais do indivíduo que delinquiu e sofreu uma reprimenda penal, bem
como, a intenção última da aplicação da pena privativa de liberdade.
Nesse sentido, PRADO (2010, p. 156) discorre sobre a ressocialização:
Orienta esforços no sentido de dotar tais pessoas com conhecimentos capazes de
estimularem a transformação da sociedade vigente, com a finalidade de restabelecer
ao delinquente o respeito por estas normas básicas, tomando-o capaz de
corresponder no futuro as expectativas nelas contidas, evitando assim, o
cometimento de novos crimes, a reincidência, mas deparados com o nosso atual
sistema podemos sintetizar uma diminuição do efeito e alcance da finalidade
pretendida.
De fato, em regra, a ressocialização só será possível se o período de cumprimento da
pena for capaz de incutir no preso a noção do valor do trabalho e das portas que podem ser
abertas através do estudo.
Não por acaso, a Lei de Execuções Penais traz disposições sobre trabalho, aduzindo
que o mesmo é um “dever social e condição de dignidade humana” e ainda, que terá
“finalidade educativa e produtiva”. (Art. 28).
26
Bem como, disposições sobre o estudo no capítulo onde trata da remição, isto é, da
possibilidade de o preso deduzir da pena o tempo gasto em atividades de trabalho ou estudo:
Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá
remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena. (Redação
dada pela Lei nº 12.433, de 2011).
§ 1o A contagem de tempo referida no caput será feita à razão de: (Redação
dada pela Lei nº 12.433, de 2011)
I - 1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas de frequência escolar - atividade de
ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de
requalificação profissional - divididas, no mínimo, em 3 (três) dias; (Incluído
pela Lei nº 12.433, de 2011)
II - 1 (um) dia de pena a cada 3 (três) dias de trabalho. (Incluído pela Lei nº
12.433, de 2011)
§ 2o As atividades de estudo a que se refere o § 1o deste artigo poderão ser
desenvolvidas de forma presencial ou por metodologia de ensino a distância e
deverão ser certificadas pelas autoridades educacionais competentes dos cursos
frequentados. (Redação dada pela Lei nº 12.433, de 2011)
§ 3o Para fins de cumulação dos casos de remição, as horas diárias de trabalho e de
estudo serão definidas de forma a se compatibilizarem. (Redação dada pela Lei
nº 12.433, de 2011)
§ 4o O preso impossibilitado, por acidente, de prosseguir no trabalho ou nos estudos
continuará a beneficiar-se com a remição .(Incluído pela Lei nº 12.433, de 2011)
§ 5o O tempo a remir em função das horas de estudo será acrescido de 1/3 (um
terço) no caso de conclusão do ensino fundamental, médio ou superior durante o
cumprimento da pena, desde que certificada pelo órgão competente do sistema de
educação. (Incluído pela Lei nº 12.433, de 2011)
Contudo, como alerta BARROS LEAL (2010, p. 104), a ressocialização traduz “a
pretensão de transformar a pena em oportunidade para promover a reintegração social do
condenado, mas esbarra em dificuldades inerentes ao próprio encarceramento”.
De fato, assiste razão ao professor.
Conforme matéria da revista Isto É (2013), a taxa de reincidência dos egressos do
sistema penitenciário é altíssima:
No Brasil, sete em cada dez presos que deixam o sistema penitenciário voltam ao
crime, uma das maiores taxas de reincidência do mundo, disse nesta segunda-feira
(5) o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), ministro Cezar Peluso. Segundo ele, atualmente cerca de 500 mil
pessoas cumprem pena privativa de liberdade no Brasil. “A taxa de reincidência no
nosso país chega a 70%. Isto quer dizer que sete em cada dez libertados voltam ao
crime. É um dos maiores índices do mundo”.
Outro ponto abordado pela matéria acima citada (2013) foi o baixo índice de presos
que trabalham ou estudam durante o cumprimento da pena e a desqualificação dos mesmos
para ingressarem no mercado de trabalho após o livramento:
Nem todos [os presos] estão aptos ao trabalho. Dentro deste cenário, temos um
quadro muito pequeno de presos trabalhando. Menos de 14% dos 500 mil presos
[existentes no país] trabalham, e menos de 8% estudam. Podemos ver por aí que
27
temos um desafio enorme pela frente no sentido de qualificar esta população e
quebrar este ciclo de criminalidade que vem sendo gerado ao longo do tempo”, disse
Luciano Losekann, juiz auxiliar da presidência do CNJ e coordenador do
Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Setor Carcerário.
Diante de todas essas condições e situações, forçosa a conclusão de ineficácia da Lei
de Execução Penal na concretização de seu objetivo primordial: a reintegração do preso à
sociedade.
Assim, mais viável que o encarceramento, é a busca de alternativas fora da prisão,
como as penas substitutivas ou restritivas de direito.
No entanto, dois institutos relativamente novos no direito brasileiro podem contribuir
para que se evitem encarceramentos desnecessários, notadamente a audiência de custódia e os
núcleos especiais criminais, que serão analisados em seguida.
28
IV. ALTERNATIVAS ÀS PENAS DE PRIVATIVAS DE LIBERDADE
Ante a falência do nosso sistema prisional, que já se pode observar ao longo desse
trabalho, convém o exame de fórmulas e institutos alterativos às penas de privação de
liberdade, tais como as audiências de custódia, os NECRIM’s (Núcleos Especiais Criminais),
as penas substitutivas e a privatização de presídios, que já ocorre com resultados positivos em
alguns lugares do país.
4.1 As audiências de custódia
A audiência de custódia, que também tem sido chamada de audiência de apresentação,
é uma audiência onde se apresenta ao magistrado, em prazo exíguo, o indivíduo preso em
flagrante delito.
Conforme os ensinamentos dos doutrinadores OLIVEIRA, JUNIOR, SOUZA e
SILVA (2015, p. 108):
A denominada audiência de apresentação ou de custódia é um instrumento de
natureza pré-processual que pode ser definido como um ato destinado a concretizar
o direito reconhecido a todo indivíduo preso, a ser conduzido, sem demora, à
presença de um autoridade judiciária (juiz, desembargador ou ministro, a depender,
da incidência ou não, de foro por prerrogativa de função) com o objetivo de que a
prisão em flagrante seja analisada, quanto a sua legalidade e necessidade e seja
cessada a constrição, se ilegal, ou mesmo ratificada e fortalecida através da
decretação da prisão preventiva, ou, ainda, substituída por outra medida cautelar
alternativa, se cabível. Nessa mesma ocasião ainda é possível exercer o controle
judicial sobre prática nefasta e ainda vigente, consistente em submeter o custodiado
a atos de maus tratos e tortura.
E, ainda, segundo os mesmos autores:
Trata-se de relevante instrumento de garantia dos direitos humanos fundamentais
que fortalece a visão do juiz como fiador desses mesmos direitos perante a
sociedade e as instituições políticas hoje fragilizadas pela desconfiança de que são
protagonistas de abusos e torturas por ocasião da realização de prisões em flagrantes
e da documentação. Mesmo que não se justifique essa desconfiança sobre o trabalho
policial, a certeza de que o preso será apresentado de imediato a uma autoridade
judiciária cumpre uma importante função preventiva contra possíveis abusos, afinal,
na abalizada visão de Zafaroni “os processos penais se desenvolvem em um mundo
real, no qual se violam direitos humanos todos os dias, ainda que as leis estabeleçam
garantias formais que, na prática não são observadas por diversas razões.
29
Portanto, a finalidade da realização das audiências de custódia é, nitidamente, a
melhor tutela de direitos e garantias fundamentais processuais dos indivíduos.
Isso por que, como discorre BADARÓ (2015):
Ao ouvir o defensor e o acusado, o juiz terá oportunidade de examinar todos os fatos
que militam a favor de sua prisão – e que foram considerados pela autoridade
policial ao prendê-lo em flagrante delito – bem como considerar osargumentos
contrários à prisão preventiva e decidir sobre a sua manutenção, substituição por
medida alternativa à prisão ou mesmo a sua simples revogação, tendo uma visão
mais completa da situação. A oitiva do preso tem característica precípua de um
interrogatório pro libertate, prescindindo de uma finalidade investigativa, irá
possibilitar-lhe o exercício da própria autodefesa, esclarecendo sua posição com
relação à individualização das exigências cautelares contra ele consideradas
existentes.
Como sabido, o Código de Processo Penal impõe à autoridade policial o dever de
encaminhar os autos de prisão em flagrante em até 24 (vinte e quatro) horas após a prisão, a
fim de que o magistrado decida sobre a legalidade e a manutenção ou não da prisão.
Essa determinação consta do artigo 306 do Código:
Art. 306. A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados
imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à
pessoa por ele indicada. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). § 1o Em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será encaminhado
ao juiz competente o auto de prisão em flagrante e, caso o autuado não informe o
nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública. (Redação dada
pela Lei nº 12.403, de 2011).
Ao receber os autos de prisão em flagrante, o juiz deverá adotar uma das providências
elencadas no artigo 310 do Código de Processo Penal.
Quais sejam:
Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá
fundamentadamente: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). I - relaxar a prisão ilegal; ou (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos
constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as
medidas cautelares diversas da prisão; ou (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. (Incluído pela Lei nº 12.403,
de 2011).
Parágrafo único. Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente
praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do art. 23 do
Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, poderá,
fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de
comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação.
Embora essa seja uma providência salutar, e um mecanismo de controle judicial da
legalidade e necessidade de prisões, a mera vista dos autos de prisão em flagrante não dá ao
magistrado a segurança e a certeza que a entrevista pessoal com o detento poderia lhe dar e,
30
por outro lado, também não dá ao preso a oportunidade de expor suas razões frente a
autoridade judicial, que é por natureza imparcial e não participou da produção das provas.
E. ainda, conforme BADARÓ (2015) essa disposição não é suficiente para dar
cumprimento ao tratado internacional, e deixa o Brasil numa situação de descumprimento do
Pacto:
O sistema brasileiro, segundo o qual basta que o juiz seja“comunicado
imediatamente” (Constituição, art. 5º,caput, inc. LXII),instrumentalizado pela regra
do § 1º do art. 306 do Código de Processo
Penal, prevendo que, “em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, s
eráencaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante” são
claramenteincompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos,
violando a regrado art. 7(5).
Por isso, a audiência de custódia, especialmente designada para potencializar o
controle judicial sobre as prisões se mostra um procedimento de fundamental importância
para segurança jurídica e para a efetivação dos direitos humanos dos presos.
Por isso, sua instituição consta de importantes tratados internacionais de direitos
humanos, como o Pacto Internacional sobre Direitos Humanos, de 1966 e o E o Pacto de San
Jose da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), de 1969, que já foram
analisados no capítulo anterior e em relação aos quais o Brasil (que é signatário de ambos)
assume uma postura omissa em não dar cumprimento às cláusulas que preveem a realização
desse tipo de audiência.
Ressalte-se, ainda, que PELLEGRINI GRINOVER, MAGALHÃES GOMES FILHO
e SCARANCE FERNANDES (2009, p. 71) conferem à Convenção Americana o caráter de
norma constitucional:
Todas as garantias processuais penais da Convenção Americanaintegram, hoje, o
sistema constitucional brasileiro, tendo o mesmo nível hierárquico das normas
inscritas na Lei Maior. Isso querdizer que as garantias constitucionais e as da
Convenção Americanase integram e se completam; e, na hipótese de ser uma mais
amplaque a outra, prevalecerá a que melhor assegure os direitosfundamentais.
Contudo, recentemente o Brasil (através do Conselho Nacional de Justiça) se moveu
no sentido de, enfim, dar cumprimento à implementação das audiências de apresentação.
Conforme OLIVEIRA, JUNIOR, SOUZA e SILVA (2015, p. 119):
Driblando a longa espera pela regulamentação, por parte do Poder Legislativo, de
um procedimento que garanta a concretização do direito reconhecido a todo
indivíduo preso, a ser conduzido, sem demora, à presença de uma autoridade
judiciária, o Conselho Nacional de Justiça optou por orientar os Tribunais a
regulamentarem administrativamente o procedimento a ser adotado na audiência
destinada ao cumprimento do comando emanado do Pacto de São José da Costa
Rica e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
31
Essa orientação foi formalizada em fevereiro de 2015, e contou com a parceria do
Ministério da Justiça e do Tribunal de Justiça de São Paulo, conforme noticia veiculada no
sítio virtual do CNJ e prevê mais que a mera apresentação do preso a um juiz, mas também
previu a criação de outras medidas mais adequadas que podem ser adotadas pelo magistrado.
Conforme a publicação (2015):
Em fevereiro de 2015, o CNJ, em parceria com o Ministério da Justiça e o TJSP,
lançou o projeto Audiência de Custódia, que consiste na garantia da rápida
apresentação do preso a um juiz nos casos de prisões em flagrante. A ideia é que o
acusado seja apresentado e entrevistado pelo juiz, em uma audiência em que serão
ouvidas também as manifestações do Ministério Público, da Defensoria Pública ou
do advogado do preso.
Durante a audiência, o juiz analisará a prisão sob o aspecto da legalidade, da
necessidade e da adequação da continuidade da prisão ou da eventual concessão de
liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. O juiz poderá
avaliar também eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras
irregularidades.
O projeto prevê também a estruturação de centrais de alternativas penais, centrais de
monitoramento eletrônico, centrais de serviços e assistência social e câmaras de
mediação penal, que serão responsáveis por representar ao juiz opções ao
encarceramento provisório.
O primeiro tribunal brasileiro a seguir a orientação do Conselho Nacional de Justiça e
regulamentar administrativamente a realização das audiências de custódia foi o Tribunal de
Justiça de São Paulo, através do Provimento Conjunto nº 03/2015.
Seguem os três primeiros (e mais importantes) artigos do provimento conjunto:
Art. 1º. Determinar, em cumprimento ao disposto no artigo 7º, item 5, da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), a
apresentação de pessoa detida em flagrante delito, até 24 horas após a sua prisão,
para participar de audiência de custódia.
Art. 2º. A implantação da audiência de custódia no Estado de São Paulo será
gradativa e obedecerá ao cronograma de afetação dos distritos policiais aos juízo
competentes.
Parágrafo único. A Corregedoria Geral da Justiça disciplinará por provimento a
implantação da audiência de custódia no Estado de São Paulo e o cronograma de
afetação dos distritos policiais aos juízos competentes.
Art. 3º. A autoridade policial providenciará a apresentação da pessoa detida, até 24
horas após a sua prisão, ao juiz competente, para participar da audiência de custódia.
§ 1º. O auto de prisão em flagrante será encaminhado na forma do artigo 306,
parágrafo 1º, do Código de Processo Penal, juntamente com a pessoa detida.
§ 2º. Fica dispensada a apresentação do preso, na forma do parágrafo 1º, quando
circunstâncias pessoais, descritas pela autoridade policial no auto de prisão em
flagrante, assim justificarem.(grifo)
Há dois pontos louváveis na regulamentação paulista: o fato de haver prazo fixado de
apresentação do preso (no caso, 24 horas), e a obrigatoriedade de participação do Ministério
Público (art. 6º, §2º), enquanto se verifica que nas regulamentações realizadas em outros
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Estados, como no Rio de Janeiro, por exemplo, não há prazo fixado para realização da
audiência e nem a obrigatoriedade da participação do Ministério Público.
De qualquer modo, a regulamentação paulista não escapa de receber críticas quando
prevê a possibilidade da não realização da audiência em função de circunstâncias pessoais do
preso.
Conforme BADARÓ (2015):
Outro ponto criticável é a possibilidade de não realização da audiência, já que por
decisão judicial fundamentada poderá ser "dispensada a apresentação do preso
quando forem reconhecidas circunstâncias pessoais que a inviabilizem" (artigo 2,
parágrafo único). A audiência é obrigatória segundo o CIDH. No caso, condições
pessoais do preso podem justificar a demora maior na realização (por exemplo: se
estiver hospitalizado), mas não a sua não realização.Não poderão, contudo,
caracterizar motivos para não apresentação, por exemplo, a gravidade do crime ou
mesmo a alegada periculosidade do agente. (grifo)
Atualmente, catorze Estados federativos já realizam as audiências de custódia. Além
de São Paulo, a prática foi regulamentada no Maranhão, Mato Grosso, Espírito Santo, Paraná,
Amazonas, Minas Gerais, Pernambuco, Piauí, Ceará, Paraíba, Rio Grande do Sul, Paraná,
Tocantins e Amazonas. (CNJ, 2015).
Portanto, embora não exista lei formal (aprovada pelo Congresso Nacional)
regulamentando a prática no Brasil, o que temos é a previsão em tratados internacionais
devidamente incorporados ao nosso sistema normativo (com hierarquia supralegal, segundo o
STF ou constitucional, segundo Ada Pelegrini Grinover) e a operacionalização administrativa
das audiências no âmbito dos tribunais de cada entidade federativa, o que não retira sua
legitimidade jurídica.
Ademais, sobre a questão da legitimidade jurídica do instituto, devemos ainda lembrar
que o Supremo Tribunal Federal foi provocado mediante ação direta de inconstitucionalidade
(ADI 5240) a declarar a inconstitucionalidade dos provimentos do Tribunal de Justiça de São
Paulo que regulamentaram a prática em seu âmbito de atuação.
A ação foi apresentada pela Associação dos Delegados de Polícia (ADEPOL) e arguia
vício formal no provimento conjunto do Tribunal de Justiça e da Corregedoria Geral da
Justiça do Estado de São Paulo que regulamentou as audiências de custódia, já que o
instrumento legislativo adequado a essa criação, no entendimento da impetrante, seria a lei
federal, bem como, vício material, já que as regulamentações teriam interferido direta e
negativamente nas atribuições dos Delegados de Polícia, constantes dos parágrafos 4º e 6º do
artigo 144 da Constituição Federal.
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A ação foi julgada improcedente por maioria de votos, ficando vencido o Ministro
Marco Aurélio Mello, que dela não conhecida.
O principal argumento utilizado pelo relator, Ministro Luiz Fux para rejeitar o pedido
de declaração de inconstitucionalidade foi o de que o provimento conjunto impugnado não
inovou no mundo jurídico, mas tão-somente regulamentou a execução do direito fundamental
do preso em flagrante de ser levado sem demora à presença de uma autoridade judiciária, que
é expressamente previsto em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Por fim, também consignou o Ministro Fux que o provimento conjunto em questão
estava em plena sintonia também com a teleologia do Código de Processo Penal:
Não é por acaso que o Código de Processo Penal brasileiro consagra a regra de
pouco uso na prática forense, mas ainda assim fundamental, no seu artigo 656,
segundo o qual, recebida a petição de habeas corpus, o juiz, se julgar necessário e
estiver preso o paciente, mandará que este lhe seja imediatamente apresentado em
data e hora que designar. Verifico aqui que não houve, por parte da portaria do
Tribunal de Justiça, nenhuma extrapolação daquilo que já consta da Convenção
Americana, que é ordem supralegal, e do próprio CPP, numa interpretação
teleológica dos seus dispositivos. (STF – ADI 5240 – Rel. Ministro Luiz Fux –
Julgado em 30/08/2015 – Publicado em: 31/08/2015).
Desse modo, não resta muito a se arguir com relação à legalidade e à
constitucionalidade das audiências de custódia.
4.1.1 Benefícios da audiência de custódia para o sistema carcerário
A Defensoria Pública da União publicou em seu website uma lista razoável de
vantagens que enxerga na aplicação do instituto (2015) que não poderia deixar de ser aqui
mencionada:
1.Combate a superlotação carcerária: A apresentação imediata da pessoa detida ao
juiz é um mecanismo que possibilita à autoridade judiciária a apreciação da
legalidadeda prisão. A realização da audiência de custódia minimiza a possibilidade
de prisões manifestamente ilegais.
2. Inibe a execução de atos de tortura, tratamento cruel, desumano e degradante em
interrogatórios policiais: Atos de tortura violam os direitos fundamentais do cidadão,
e apesar das providências tomadas contra estes atos nos últimos anos no Brasil,
ainda são recorrentes os casos em que a tortura ainda é praticada durante
interrogatórios policiais.
3. Viabiliza o respeito às garantias constitucionais: A realização de audiências de
custódia garantiria, no Brasil, o efetivo respeito ao princípio constitucional do
contraditório, conforme Art. 5º, LV, CF.
4. É demanda social expressa em iniciativa legislativa: O Projeto de Lei 554/2011,
de autoria do senador Antônio Carlos Valadares, propõe a alteração do parágrafo 1º
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do artigo 306 do Código de Processo Penal incluindo a obrigatoriedade da realização
de audiências de custódia no processo penal brasileiro.
5.Reforça o compromisso do Brasil na proteção dos Direitos Humanos: a Convenção
Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), ratificada
pelo Brasil em 1992, dispõe que “toda pessoa detida deve ser conduzida, sem
demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada a exercer funções
judiciais” (art. 7º).
6. Renova as credenciais do Brasil no cenário internacional: Organismos e atores
internacionais – tais como a “HumanRightsWatch”, organização não governamental
dedicada à proteção dos direitos humanos em todo o mundo, e o Conselho de
Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) – já sinalizaram sobre
a importância da audiência de custódia.
7. Adequa o ordenamento jurídico interno para cumprimento de obrigações
internacionais, conforme exige o artigo 2° da Convenção Americana de Direitos
Humanos (CADH), segundo o qual é dever dos Estados-partes a adoção disposições
de direito interno compatíveis com as normas contidas no referido Tratado.
Conforme dispõe essa normativa, “se o exercício dos direitos e liberdades
mencionados no artigo 1º [da CADH] ainda não estiver garantido por disposições
legislativas ou de outra natureza, os Estados-partes comprometem-se a adotar, de
acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção,
as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar
efetivos tais direitos e liberdades”.
8.Reforça a integração jurídica latino-americana: O instituto da audiência de
custódia é, atualmente, parte do ordenamento jurídico de diversos países da América
Latina – a exemplo do Peru, México, Argentina, Chile e Equador. (grifo)
De fato, todos os aspectos levantados são muito relevantes.
No entanto, apenas a existência dos três primeiros já representam um fantástico
avanço na realidade jurídica e social brasileira, que ainda convive com superlotação; torturas
na fase pré-processual e na fase de cumprimento das penas e desrespeito a direitos humanos e
garantias processuais fundamentais, o que também vai contra as expectativas de
ressocialização.
4.1.2 As primeiras manifestações jurisprudenciais
Quando os primeiros movimentos estatais na busca de implementar as audiências de
custódia começaram, inevitavelmente toda a comunidade jurídica passou a atentar-se aos
tratados internacionais de direitos humanos que as fundamentam, bem como, aos
provimentos administrativos que passaram a regulamentá-las.
Assim, ante a ausência de realização das audiências nos casos concretos, os advogados
passaram a reputar as prisões ilegais e a pedir o seu imediato relaxamento, alicerçados em
entendimentos de peso, como o de BADARÓ (2015), que transcrevemos abaixo:
A resposta, sem qualquer margem de dúvida é: a prisão em flagrante que for
convertida em prisão preventiva, sem que seja observado o art. 7(5)da Convenção
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Americana de Direitos Humanos será ilegal e, como toda e qualquer prisão ilegal,
deverá ser imediatamente relaxada pela autoridade judiciária, nos exatos termos do
art. 5º, caput, inciso LXV, da Constituição. A realização da chamada audiência de
custódia é etapa procedimental essencial para a legalidade da prisão. A análise do
conteúdo e do fundamento do direito de o preso ser conduzido, sem demora, à
presença de um juiz, para o controle judiciário da sua prisão em flagrante, foi feita
nesse estudo. A ilegalidade da prisão que não observe tal regra é evidente e a mesma
deverá ser imediatamente relaxada. (grifo)
Contudo, esse entendimento doutrinário ainda não foi transposto para o âmbito
jurisprudencial, e não se pode encontrar qualquer decisão que repute ilegais prisões realizadas
sem a observância da realização das audiências de apresentação.
Nesse sentido, OLIVEIRA, JUNIOR, SOUZA e SILVA (2015, p. 103):
Não obstante a importância fundamental da audiência de custódia e a sua necessária
implantação, para dar cumprimento ao Pacto de San Jose da Costa Rica e ao Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, os Tribunais vem decidindo que a sua
ausência não torna automaticamente o modelo de apreciação do flagrante hoje
aplicado, pois embora sem a presença física do preso, a legalidade da medida é
objeto de análise fundamentada por um autoridade judiciária, que é obrigada a
verificar, inclusive, se a hipótese contempla relaxamento da prisão pré-cautelar, a
conversão em prisão preventiva ou a imposição de medidas cautelares alternativas à
prisão (CPP, arts. 306 a 310).
Guilherme de Souza Nucci, citado por FRANCISCO SANNINI NETO (2015)
também compartilha do entendimento de que a não realização da audiência de custódia não
torna a prisão ilegal:
Inicialmente, quanto à afirmada ilegalidade da prisão em flagrante, ante a ausência
de imediata apresentação dos pacientes ao Juiz de Direito, entendo inexistir qualquer
ofensa aos tratados internacionais de Direitos Humanos. Isto porque, conforme
dispõe o art. 7º, 5, da Convenção Americana de Direitos Humanos, toda pessoa
presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou
outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais. No cenário jurídico
brasileiro, embora o Delegado de Polícia não integre o Poder Judiciário, é certo que
a Lei atribui a esta autoridade a função de receber e ratificar a ordem de prisão em
flagrante. Assim, in concreto, os pacientes foram devidamente apresentados ao
Delegado, não se havendo falar em relaxamento da prisão. Não bastasse, em 24
horas, o juiz analisa o auto de prisão em flagrante.
No mais, todos os tribunais do país vem reiteradamente dizendo que não existe
ilegalidade na prisão sem a realização das audiências de custódia.
Esses posicionamentos podem ser explicitados nos seguintes acórdãos, do Tribunal de
Justiça de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Distrito Federal e Maranhão:
HABEAS CORPUS - ROUBO MAJORADO - AUSÊNCIA DE REALIZAÇÃO DE
AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA - NULIDADE - INOCORRÊNCIA - ORDEM
DENEGADA. - A ausência de realização da audiência de custódia, por si só, não é
capaz de ensejar a ilegalidade da prisão do paciente, se as suas garantias
constitucionais foram devidamente observadas, sendo a prisão decretada em estrita
observância aos dispositivos do Código de Processo Penal. (TJ-MG - HC:
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10000150609634000 MG , Relator: Agostinho Gomes de Azevedo, Data de
Julgamento: 20/08/2015, Câmaras Criminais / 7ª CÂMARA CRIMINAL, Data de
Publicação: 27/08/2015)
HABEAS CORPUS. Alegação de não realização da Audiência de Custódia. 1. A
audiência de custódia é objeto do Projeto de Lei de Iniciativa do Senado PLS nº 554
-, que, alterando o artigo 306, do Código de Processo Penal, a institui, objetivando a
apresentação do preso à Autoridade judicial, no prazo de 24 horas após efetivada sua
prisão em flagrante, e encontra amparo no Pacto de São José da Costa Rica
(Convenção Americana sobre Direitos Humanos) e no Pacto de Direitos Civis e
Políticos, que estabelecem que, qualquer pessoa presa ou encarcerada em
decorrência de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do Juiz
ou de outra Autoridade habilitada por lei, a exercer funções judiciais, tendo o direito
de ser julgada em prazo razoável, ou de ser posta em liberdade, visando, o referido
Projeto, a adequar o ordenamento jurídico brasileiro, em razão de não haver previsão
expressa acerca do que seria a mencionada condução do preso ¿sem demora¿ à
presença do Juiz. 2. Entretanto, o Projeto de Lei encontra-se em tramitação e, ainda
que se tenha notícia da implementação das audiências de custódia, aquele está em
sua fase inicial, não havendo como reconhecer ilegalidade da prisão do ora paciente,
em razão da não realização da audiência de custódia no caso em questão. Isto
porque, embora o Brasil seja signatário dos Tratados internacionais supracitados,
ainda não há regulamentação acerca da realização do referido ato, nos Tribunais
pátrios. ORDEM DENEGADA.
(TJ-RJ - HC: 00125604720158190000 RJ 0012560-47.2015.8.19.0000, Relator:
DES. KATIA MARIA AMARAL JANGUTTA, Data de Julgamento: 26/05/2015,
SEGUNDA CAMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 01/06/2015 15:41)
HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA.
AUSÊNCIA. IMPOSIÇÃO DE FIANÇA. FUNDAMENTAÇÃO. ÔNUS DA
PROVA. DENEGAÇÃO DA ORDEM. A audiência de custódia, prevista no Pacto
de São José da Costa Rica, é objeto do Projeto de Lei de Iniciativa do Senado (PLS
nº 554, de 2011), que tem por escopo alterar o artigo 306 do Código de Processo
Penal. O referido Projeto ainda está em andamento, inexistindo hoje lei,
regulamentação e estrutura apropriada para a realização de tais audiências nos
tribunais pátrios, pelo que não há falar, na espécie, em ilegalidade da prisão do
paciente, mas sim em falta de amparo legal a embasar o pleito defensivo. Acresce
que o direito brasileiro não oferece garantia de comparecimento do preso perante o
juízo em sede de investigação policial. É-lhe garantido apenas o direito à
comunicação ao magistrado da ocorrência da prisão, nos termos do art. 5º, LXII, da
Constituição Federal c/c o art. 306 do Código de Processo Penal. Releva que a
legislação processual penal foi alterada, precisamente para contemplar o
esgotamento da prisão em flagrante com a imediata análise, pelo juiz, da
necessidade da manutenção da prisão cautelar, convertida em preventiva, na forma
do art. 310 do Código de Processo Penal. Assim, o sistema brasileiro repudia prisões
automáticas, exigindo ordem judicial fundamentada para que a prisão processual se
mantenha. Com isso, o direito interno oferece mais garantias ao preso do que o
Pacto de São José determina, eliminando a necessidade da audiência de custódia. A
não realização da audiência de custódia não acarreta a anulação da decisão tomada
pelo MM. Juiz no caso, eis que viável, na forma da lei vigente, a aplicação de
medida cautelar diversa da prisão, diante da adequação e necessidade, em razão das
circunstâncias da espécie. Não demonstrada pela defesa a necessidade de dispensa
ou redução da fiança, arbitrada em valor condizente com os termos legais, com a
razoabilidade e com a proporcionalidade, inexiste constrangimento ilegal a ser
sanado. A fiança tem de implicar ônus financeiro para o afiançado, caso contrário
não atenderia às finalidades de assegurar o comparecimento aos atos processuais, de
inibir a prática de novos ilícitos penais e de garantir indenização à vítima em caso de
condenação. Ordem denegada. (TJ-DF - HBC: 20150020158608 , Relator: MARIO
MACHADO, Data de Julgamento: 11/06/2015, 1ª Turma Criminal, Data de
Publicação: Publicado no DJE : 24/06/2015 . Pág.: 72)
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PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ROUBO
QUALIFICADO. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NÃO REALIZADA.
CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CONFIGURADO. AUSÊNCIA DE
FUNDAMENTAÇÃO DO DECRETO PREVENTIVO. INOCORRÊNCIA.
ORDEM DENEGADA. 1. Inexiste constrangimento ilegal pela não realização de
audiência de custódia, uma vez sendo o flagrante homologado e a prisão preventiva
decretada, a luz dos princípios constitucionais e do Código de Processo Penal. 2.
Não há que se falar em ausência de fundamentação da decisão que decreta a prisão
preventiva, quando esta se funda nos indícios da materialidade e autoria, a fim de
resguardar a garantia da ordem pública, tendo em vista a gravidade do delito
cometido. 3. Ordem conhecida e denegada.(TJ-MA - HC: 0230452015 MA
0003970-33.2015.8.10.0000, Relator: JOÃO SANTANA SOUSA, Data de
Julgamento: 14/07/2015, PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação:
21/07/2015)
Desse modo, ao menos nessa fase incipiente de implementação das audiências de
custódia, o Poder Judiciário não chancela os entendimentos que começam a ser expostos
doutrinariamente, no sentido da ilegalidade das prisões sem a realização das audiências de
custódia.
4.2 Os NECRIM’s - Núcleos Especiais Criminais
4.2.1 Aspectos históricos, fundamentos normativos e justificativas
Na década de 1990, no Estado do Mato Grosso do Sul, teve início uma experiência
conciliatória em âmbito criminal que passou quase desapercebida: os Juizados Especiais
Criminais, que diferentemente dos Juizados que hoje conhecemos (abordados no capítulo
anterior) eram regidos por legislação estadual, e tinham uma formatação específica.
Essa configuração permitia ao Delegado de Polícia encaminhar e pôr termo a conflitos
sociais de menor potencial ofensivo.
No entanto, essa pioneira experiência teve pouquíssima duração, pois com a
superveniência de legislação federal sobre os Juizados Especiais Criminais (Lei nº 9.099/95),
a legislação estadual que fundamentava juridicamente essas ações, foi suprimida.
Dissemos que essa primeira experiência passou ‘quase’ desapercebida porque
FLÁVIO GOMES (2013) a notara e, inclusive, rendeu-lhe homenagens, qualificando a
mesma como uma “Justiça avançada”:
Vejo os Necrims paulistas como empreendimentos paralelos aos juizados especiais
criminais de Mato Grosso do Sul, no princípio da década de 90, regidos por
legislação estadual. Na época eu disse que para conhecer uma Justiça avançada já
não era preciso cruzar o Atlântico, bastava transpor o rio Paraná.
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Essa sistemática ficou adormecida por algum tempo, até que no ano de 2003, ressurgiu
na cidade de Ribeirão Corrente, no Estado de São Paulo, já com a denominação que hoje é
utilizada: “NECRIM”: núcleos especiais criminais.
Conforme FLÁVIO GOMES (2013)
A primeira experiência do Necrim ocorreu na cidade de Ribeirão Corrente, na região
de Ribeirão Preto, por iniciativa do Delegado de Polícia Dr. Cloves Rodrigues da
Costa, em meados do ano de 2003. Ganhou força a partir de 2009/2010, sobretudo
na região de Bauru (SP).
No entanto, essa foi uma experiência informal, sem supedâneo legal específico. A
formalização da primeira portaria que criava e regulamentava um Núcleo Especial Criminal
no Brasil se deu no ano de 2009, com a edição da Portaria DEINTER-4 nº 06/2009.
Nesse sentido, CASARINI (2013), Delegado de Polícia e autor de monografia e
pesquisas pioneiras sobre o tema no Brasil:
No ano de 2009, a experiência positiva e os resultados obtidos inspiraram o então
Diretor do Departamento de Polícia Judiciária de São Paulo Interior – DEINTER 4,
sediado em Bauru, Dr. Licurgo Nunes Costa, que já elaborava projeto destinado à
instalação de órgãos insertos na política de Polícia Comunitária e que buscavam a
melhoria da qualidade do atendimento aos crimes de menor potencial ofensivo e a
consequente padronização dos atos de polícia judiciária nos Termos
Circunstanciados, culminando na edição da Portaria DEINTER-4 nº 06/2009”.
Ato contínuo, ainda segundo FERNANDO CASARINI (2013)...:
Em 09 de outubro de 2009, a Secretaria da Segurança Pública editou a
RESOLUÇÃO SSP No. 233/09, de sua parte assentada nos considerandos relativos
ao cumprimento aos princípios constitucionais da eficiência e da legalidade e que os
órgãos policiais devem desempenhar suas funções com estrita obediência às
atribuições rigidamente fixados pelo art. 144 da Constituição Federal.
Essa Resolução regulamentou a confecção do TC (Termo Circunstanciado), constante
no artigo 69 da Lei dos Juizados Especiais Criminais, dando competência exclusiva de sua
elaboração ao Delegado de Polícia.
A partir de então, o primeiro Núcleo Especial Criminal instalado teve sede na cidade
de Lins, também no Estado de São Paulo, em 11 de Março de 2010, sob a autoridade do
Delegado de Polícia Orildo Nogueira. (CASARINI, 2013).
Atualmente os NECRIM’s têm existência e operação em pelo menos quinze cidades
brasileiras, todas do interior do Estado de São Paulo, sendo elas: Araçatuba, Araraquara,
Assis, Barretos, Bebedouro, Bragança Paulista, Dracena, Jaú, Jundiaí, Lins, Marilia,
Ourinhos, Ribeirão Preto, Sertãozinho e Tupã.
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O fundamento normativo mais evidente dos NECRIM’s é a própria Lei nº 9.099/95 e
seus princípios informativos, amparada por Resoluções e Portarias baixadas no âmbito da
Polícia Civil do Estado de São Paulo.
A ‘ratioessendi’ ou a justificativa para a existência dos Núcleos Especiais Criminais é,
portanto, uma deficiência na Lei dos Juizados Especiais Criminais.
Conforme CHINELATTO (2013):
Nos dias de hoje a celeridade que deveria existir nos Juizados Especiais Criminais é
apenas doutrinária, demonstrando a falta de estrutura do poder público para suprir a
demanda e a dificuldade de tornar célere a prestação jurisdicional. O Núcleo
Especial Criminal (NECRIM), vem, dessa forma, auxiliar o poder judiciário,
servindo como um instrumento que além de solucionar pequenos conflitos, desafoga
o Poder Judiciário e as atividades de Polícia Judiciária, dando oportunidade para que
o Delegado de Polícia e suas equipes possam se dedicar mais aos Inquéritos
Policiais e à apuração de crimes de maior potencial ofensivo.
No mesmo sentido, discorre RODRIGUES DA COSTA (2009, p. 02):
O exercício da prática de Polícia Judiciária Comunitária, mediante conciliações
preliminares, promovidas pelo Delegado de Polícia entre as partes envolvidas nas
práticas de delitos de menor potencial ofensivo, formalizando o correspondente
termo, que será submetido a apreciação do Ministério Público e do Poder Judiciário,
trata-se de uma importante contribuição jurídico-social da Polícia Civil, para
amenizar a lacuna existente entre o ideal que norteou a elaboração da Lei
nº 9.099/95 e a realidade da sua aplicação no que tange aos princípios da celeridade
e economia processual.
Desse modo, as oposições doutrinárias acerca da legitimidade jurídica da existência
dos NECRIM’s, brandidas pelo Ministério Público do Estado de São Paulo e que serão
analisadas em tópico posterior, não parecem, à primeira vista, encontrarem respaldo teórico
suficiente para reconhecermos como ilegal essa prática.
4.2.2 Linhas gerais e objetivos
Os Núcleos Especiais Criminais têm basicamente duas diretrizes e, nas palavras de
CASARINI (2013) são:
a) as conciliações preliminares entres as partes envolvidas nos delitos de menor
potencial ofensivo, que dependam de queixa ou representação, formalizando o
correspondente Termo de Conciliação Preliminar;
b) Encaminhar ao Poder Judiciário a expressa manifestação de vontade dirigida à
instauração da ação penal, juntamente com o respectivo Termo Circunstanciado e
demais peças de Polícia Judiciária, observando o cumprimento dos princípios da
celeridade e economia processual consignados na Lei 9.099/95.
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Já quanto aos objetivos ou finalidades dos NECRIM’s, não se pode perder de vista
que existe uma finalidade mediata, qual seja, a de pacificação social; e uma finalidade
imediata, que é a resolver os conflitos sociais de forma mais célere.
Portanto, os Núcleos Especiais Criminais são um sistema que tem dupla finalidade.
4.2.3 Composição e procedimento
A composição dos Núcleos Especiais não guarda muita complexidade e demanda a
existência de três categorias de servidores públicos: Delegado de Polícia, Investigador de
Polícia e Escrivão.
No entanto, conforme BARROS FILHO (2012) devemos consignar que esses
profissionais...:
[...]deverão ter um perfil conciliador e afinidade com a filosofia de Polícia
Comunitária, para prestarem um atendimento especializado aos cidadãos e, para
tanto, poderão ser preparados através da freqüência em Cursos Complementares a
serem ministrados pela Academia de Polícia do Estado de São Paulo.
É de suma importância que os componentes dos Núcleos Especiais Criminais tenham
consciência e competência para o exercício do papel conciliador que devem desenvolver.
Isto é, devem os mesmos abandonar a mentalidade formal e burocrática que imperou
durante todos esses anos no Direito brasileiro, e por isso, temos como louvável a iniciativa da
Academia de Polícia do Estado de São Paulo em prepará-los para essa função através de
palestras e cursos preparatórios.
Em relação ao procedimento, este será iniciado diante de uma queixa apresentada no
plantão policial (apenas as que consubstanciem crimes de ação penal pública condicionada ou
de ação penal privada).
A partir da lavratura da ocorrência, será designada uma audiência de tentativa de
conciliação preliminar, cujo objetivo será, evidentemente, a composição amigável das partes
envolvidas no litígio.
Essa audiência será presidida pelo Delegado de Polícia responsável pelo NECRIM, e é
exigida sempre a presença de um advogado representante da Ordem dos Advogados do Brasil.
Em caso de insucesso da composição, segue-se o procedimento penal tradicional.
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No entanto, caso as partes cheguem a um acordo amigável, o Delegado de Polícia
ordenará a elaboração/formalização do Termo de Conciliação Preliminar, que será
encaminhado ao Poder Judiciário, instruído com o termo circunstanciado e demais peças do
inquérito.
ANGERAMI (2014) discorre sobre os elementos que deverão ser deduzidos no
Termo:
A peça deverá conter a qualificação completa das partes, descrição dos fatos e todos
os pontos do acordo e, ao final, deve conter assinatura das partes envolvidas no
conflito. Ao final, todos os envolvidos recebem cópia do termo.
Após receber os autos, “o juiz, competente para julgar o delito de menor potencial
ofensivo, homologa o termo de conciliação preliminar, após a manifestação do Ministério
Público.” (BARROS FILHO, 2010).
4.2.4 Efeitos da homologação judicial do acordo
Os efeitos da homologação judicial do acordo de composição amigável firmado no
âmbito do NECRIM são anunciados por RODRIGUES DA COSTA (2009, p. 04):
O acordo firmado pelas partes, conduzido pelo Delegado de Polícia, que é bacharel
em direito, quando homologado pelo magistrado, acarretará a renúncia ao direito de
queixa ou representação, constituindo-se, portanto, a composição de danos numa
forma de despenalização, por conduzir a extinção de punibilidade, consoante os
artigos 73, § único e 74, § único da Lei 9.099/95.
Não é demasia transcrever os dispositivos da Lei n. 9.099/95 mencionados pelo Autor:
Art. 73. A conciliação será conduzida pelo Juiz ou por conciliador sob sua
orientação.
Parágrafo único. Os conciliadores são auxiliares da Justiça, recrutados, na forma da
lei local, preferentemente entre bacharéis em Direito, excluídos os que exerçam
funções na administração da Justiça Criminal.
Art. 74. A composição dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo
Juiz mediante sentença irrecorrível, terá eficácia de título a ser executado no juízo
civil competente.
Parágrafo único. Tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal
pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao
direito de queixa ou representação.
42
Portanto, após a homologação judicial do acordo, as partes decaem do direito de
apresentar queixa ou representação em relação ao mesmo fato objeto do acordo, pois haverá a
despenalização da conduta.
4.2.5 Atribuições e competência
Nos termos do artigo 2º da Portaria Deinter 4 – n. 06/2009, é atribuição do Delegado
de Polícia responsável pelo Núcleo Especial Criminal:
I - dirigir e executar as atividades de Polícia Judiciária de atribuição do NECRIM;
II - exercer, pessoalmente, a fiscalização, quanto ao aspecto formal, mérito e técnica
empregada, sobre as atividades de Polícia Judiciária e de atendimento ao público de
seus respectivos subordinados;
III - promover, sempre na presença de um representante da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB), conciliações preliminares entres as partes envolvidas nos delitos
de menor potencial ofensivo, que dependam de queixa ou representação,
formalizando o correspondente Termo de Conciliação Preliminar, que será remetido,
juntamente com o respectivo Termo Circunstanciado e demais peças de Polícia
Judiciária ao Poder Judiciário, visando o cumprimento dos princípios da celeridade e
economia processual consignados na Lei nº 9.099/95.
Como podemos notar, a natureza das atribuições do Delegado de Polícia são
administrativas, de mediação e conciliação e de autoridade da Polícia Judiciária.
Esse grande leque de funções, com grande centralização, pode prejudicar a celeridade
e o bom desenvolvimento dos procedimentos.
Por isso, é de fundamental importância que exista a delegação de atribuições mais
burocráticas aos demais componentes dos Núcleos Especiais Criminais (Investigador de
Polícia e Escrivão de Polícia), sem que isso importe em qualquer nulidade.
Quanto à competência jurisdicional para a homologação do Termo de Conciliação
Preliminar, não há qualquer alteração em relação à competência, sendo competente a Vara
Judicial Criminal que julgaria eventual ação ou transação penal.
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4.2.6 A visão do Ministério Público
O Ministério Público do Estado de São Paulo manifestou-se contrariamente à
realização dos Termos de Conciliação Preliminar no âmbito dos Núcleos Especiais Criminais,
sob o fundamento da inexistência de amparo legal para tal prática.
Essa contrariedade do Ministério Público paulista ficou evidente nota publicada no
Diário Oficial do Estado, no dia 11 de junho de 2010, na Seção I, pelo Procurador-Geral de
Justiça do Estado:
O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições, por
solicitação da Subprocuradoria-Geral de Justiça e do Centro de Apoio Operacional
das Promotorias de Justiça Criminais, considerando que, no âmbito do Juizado
Especial Criminal, a conciliação dos danos civis só tem o efeito de extinguir a
punibilidade se, colhidas manifestações livres e conscientes do autor do fato e da
vítima, com supervisão do Ministério Público e subsequente análise judicial, for o
acordo homologado na forma do artigo 74, caput, da Lei nº 9.099/95, AVISA que se
encontra à disposição dos membros do Ministério Público, no Centro de Apoio
Operacional das Promotorias de Justiça Criminais, para as providências cabíveis,
parecer da Subprocuradoria-Geral de Justiça Jurídica demonstrando a ilegalidade
dos NÚCLEOS DE CONCILIAÇÃO DA POLÍCIA CIVIL - NECRIM
De fato, o argumento do Ministério Público do Estado de São Paulo para refutar
juridicamente os Núcleos Especiais Criminais é a não participação de membros dessa
instituição na formalização do Termo de Conciliação Preliminar.
Segundo o Parquet, portanto, essa ausência de seus membros no processo
conciliatório pode gerar a violação de direitos das partes que estejam envolvidas no litígio.
Contudo, discorda-se dessa posição.
O Termo de Conciliação Preliminar é tão-somente elaborado na Delegacia de Polícia
(e, ainda, com a presença de um representante da Ordem dos Advogados do Brasil), mas só
passa a produzir efeitos em âmbito judicial.
Isto é, no âmbito jurisdicional haverá a participação do Ministério Público, bem como,
a chancela homologatória do Poder Judiciário.
Sendo assim, existe a possibilidade de manifestação do Ministério Público sobre a
transação engendrada na órbita dos Núcleos Especiais Criminais. Caso discorde dos termos ou
da conveniência do Acordo, o Ministério Público terá tempo hábil para opinar pela sua
rejeição.
O que não se pode sustentar é que a ausência do Ministério Público (e certamente
existe uma impossibilidade de deslocamento de um Promotor de Justiça para cada Núcleo
Especial Criminal) impeça que o Poder Público, neste ato inicial representado pelo Delegado
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de Polícia e demais membros da Polícia Judiciária, tente o encaminhamento para a
conciliação das partes.
Em suma, as vantagens para as partes e para a própria administração da Justiça são
enormes, enquanto as desvantagens sequer parecem existir, pelo já mencionado motivo de que
o Ministério Público poderá formar e manifestar seu convencimento antes da homologação do
ato pelo Poder Judiciário.
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CONCLUSÃO
Diante do que foi exposto neste trabalho, a conclusão é que a Lei de Execuções
Penais, embora seja uma legislação com objetivos nobres, é um instrumento meramente
formal, completamente ineficaz e incapaz de atingir o seu objetivo final: a reinserção do preso
na Sociedade.
Isto é, as previsões contidas na lei simplesmente de Execuções Penais não se mostram
meramente decorativas na prática e não se materializam.
Diante disso, o cenário que se vê no sistema penitenciário brasileiro é catastrófico e,
em alguns lugares do país, chega a ser palco de barbáries como torturas e decapitações que
são notícia no mundo inteiro.
Nesse cenário, difícil imaginar a existência de condições mínimas de recuperação dos
apenados, e o que se vê é justamente o oposto do que se deseja. Assim, a conclusão a que se
chega é que é melhor evitar o encarceramento daqueles criminosos menos perigosos, para não
fomentar justamente a sua piora.
Nesse sentido, destacam-se dois novos institutos jurídicos que surtem esse efeito.
O primeiro deles é a audiência de custódia que, no fundo, providência de humanização
das decisões judiciais, pois coloca o acusado de prática delitiva sob os olhos do juiz, que
pode, dessa visão privilegiada, e não na frieza dos autos, perquirir qual providência é a melhor
medida a ser tomada no caso concreto.
É portanto, um modo de se potencializar o controle judicial sobre as prisões e se
mostra um procedimento de fundamental importância para segurança jurídica e para a
efetivação dos direitos humanos dos presos e deve ser louvada não apenas por toda a
comunidade jurídica, mas também por toda a sociedade.
Também é inequívoco que a falta de uma regulamentação central pode acarretar
descompassos entre a aplicação do instituto nas mais de duas dezenas de unidades federadas
no Brasil, mas isso não deve ser encarado como a negação do próprio instituto, e tende a ser
resolvido pelo Congresso Nacional, que também já se mobiliza para a alteração do Código de
Processo Penal e a positivação legal das audiências de custódia, o que nos mostra que
podemos esperar algo de bom no futuro, com todas as instituições caminhando na mesma
direção, embora com velocidades diferentes.
Portanto, as audiências de custódia podem ser a resposta para a superlotação do
sistema prisional no Brasil, e sua prática reiterada, tende e deve ser otimizada e aperfeiçoada.
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O segundo instrumento, é a iniciativa da Polícia Civil do Estado de São Paulo na
criação e implementação dos Núcleos Especializados Criminais, que sem qualquer dúvida
contam com amparo normativo, tendo em vista que se alinha com os ideais de Justiça mais
moderno, quais sejam, a celeridade, a efetividade e a resolução extra-judicial das
controvérsias.
Outro fato que corrobora o acerto e o bom tempo dos Núcleos Especiais Criminais é
que tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 5.117/2009, apresentado pelo
Deputado Federal Régis de Oliveira, que muda a redação de alguns dispositivos da lei dos
Juizados Especiais, conferindo expressamente aos Delegados de Polícia a prerrogativa e a
obrigação de realizar a mediação e tentar a conciliação dos delitos de menor potencial
ofensivo.
De outro lado, lamentável que o Ministério Público do Estado de São Paulo tenha se
manifestado contrariamente aos Núcleos Especiais Criminais, sob o fundamento de que a
ausência de Promotor de Justiça nas audiências preliminares poderia ocasionar a lesão a
direitos das partes envolvidas.
Trata-se de um argumento frágil, e esse posicionamento e justificativa são
inaceitáveis.
Primeiro, porque o Ministério Público não poderia designar membros para estar
presentes a todas audiências preliminares realizadas, tendo em vista que seus quadros seriam
insuficientes para isso.
Segundo, porque na audiência preliminar é necessária a presença de um representante
da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) que também tem ali a incumbência de zelar pela
legalidade do procedimento.
E, por fim, terceiro, e mais importante, porque o procedimento conciliatório apenas
tem início nas Delegacias de Polícia e, para que o Termo de Conciliação surta efeitos
jurídicos, demanda a homologação judicial, que não será dada antes da oitiva do Ministério
Público acerca da questão. Isto é, o Ministério Público não participa tão-somente da
audiência preliminar, mas participa da fase crucial do procedimento de conciliação: a fase de
homologação judicial.
Desse modo, os Núcleos Especiais Criminais encontram amparo normativo (sobretudo
principiológico) no Direito brasileiro; a não intervenção ministerial na audiência não importa
em sua ilegalidade e, os resultados apresentados, com altíssimos índices de conciliações falam
por si só em defesa de sua adequação e de que sua implementação deve ser estimulada para
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outras cidades do país, o que também ira resultar em ganhos para o sistema judiciário e
prisional.
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