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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO ISABEL CRISTINA CAETANO DESSOTTI A educação operária no final do século XIX e início do XX em Sorocaba sob o olhar da imprensa: o escrito e o silenciado Campinas 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

ISABEL CRISTINA CAETANO DESSOTTI

A educação operária no final do século XIX e início do

XX em Sorocaba sob o olhar da imprensa: o escrito e o

silenciado

Campinas 2017

ISABEL CRISTINA CAETANO DESSOTTI

A educação operária no final do XIX e início do XX em Sorocaba sob o

olhar da imprensa: o escrito e o silenciado

Tese de Doutorado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Educação

da Faculdade de Educação da Universidade

Estadual de Campinas para obtenção do

título de Doutora em Educação, na área de

concentração de Filosofia e História da

Educação.

Supervisor/Orientador: Prof. Dr. José Luis Sanfelice

O ARQUIVO DIGITAL CORRESPONDE À VERSÃO FINAL

DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA ISABEL CRISTINA

CAETANO DESSOTTI E ORIENTADA PELO PROF. DR.

JOSÉ LUIS SANFELICE

Campinas/SP

2017

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

A educação operária no final do século XIX e início do

XX em Sorocaba sob o olhar da imprensa: o escrito e o

silenciado

Autor: Isabel Cristina Caetano Dessotti

COMISSÃO JULGADORA:

Prof. Dr.José Luis Sanfelice

Profª Dra. Fabiana de Cássia Rodrigues

Prof. Dr. Paulo Gomes de Lima

Profª Dra. Sônia Aparecida Siquelli

Prof. Dra. Vânia Regina Boschetti

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

2017

DEDICATÓRIA

À minha mãe, que viveu muito do relatado nestas páginas, mas não viveu para ver a

conclusão deste trabalho.

AGRADECIMENTOS

Conclui a escrita deste trabalho em 31 de dezembro de 2016, com quase um ano de

atraso, já ouvindo o espocar de rojões anunciando o ano novo que se aproxima, por isso

agradeço a Deus por ter-me permitido conclui-lo.

No caminhar da construção deste trabalho, tenho muito a agradecer a inúmeras pessoas

que contribuíram de diferentes formas. Algumas, só com palavras de alento, mas tão bem-

vindas.

Agradeço aos amigos do doutorado, pela amizade e compartilhamento das angústias

acadêmicas.

Sou imensamente grata aos professores por todo o aprendizado que tive.

Agradeço aos funcionários da secretaria da UNICAMP Lígia, Tassiane que tanto me

ajudaram e orientaram em várias situações difíceis, especialmente Nadir, que tem a palavra

certa na hora certa.

Agradeço a atenção da bibliotecária da UNICAMP Rosemary.

Ao meu amigo Edemir Morais, que mais uma vez me ajudou, disponibilizando seu

material de pesquisa e seu conhecimento, o meu muito obrigada.

Agradeço aos funcionários do Gabinete de Leitura pela atenção a mim dispensada nas

muitas horas de pesquisa. Aos amigos antigos e novos do Gabinete de Leitura, agradeço pelas

sugestões, conversas e interesse pelo meu trabalho.

À amiga professora Renata, por dominar a Língua Portuguesa e por ter me socorrido

com a revisão do texto.

Aos amigos Virgínia e Rodrigo pela ajuda nas finalizações.

Aos professores da banca Paulo Lima, Fabiana Rodrigues e Sonia Siquelli pela gentileza

da leitura atenta do meu texto, pelas valiosas contribuições oferecidas para o mesmo. Em

especial à professora Vânia, por participar mais uma vez de uma etapa importante da minha

vida acadêmica.

Ao meu marido Onivaldo, meus filhos Vinícius, Elise, Lucas e Mariana, obrigada por

tudo.

A minha irmã Lúcia que despertou em mim o gosto pela leitura desde sempre.

Ao professor José Luis Sanfelice pela orientação, compreensão e por não ter desistido

de mim, meus sinceros agradecimentos sempre.

EPÍGRAFE

“Há homens que lutam um dia e são bons,

há outros que lutam um ano e são melhores,

há os que lutam muitos anos e são muito bons, mas

há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis”

(Bertolt Brecht)

RESUMO

O presente estudo buscou analisar de forma recorrente o papel ocupado pela educação dentro

da história do movimento operário em Sorocaba no final do século XIX e início do século XX

a partir do olhar da imprensa. Destacou-se a presença do imigrante europeu, que chegou

imbuído de esperanças de vida melhor e se deparou com uma vida de muito trabalho e

sofrimento, tanto na lavoura como nas fábricas. Em Sorocaba, os imigrantes, principalmente

italianos e espanhóis, foram aproveitados mais intensamente nas fábricas de tecidos,

consideradas por muitos como uma das que mais tem explorado o proletariado no mundo. Além

das esperanças, os imigrantes trouxeram, na bagagem, novas ideias, que foram as ideias

embrionárias da organização operária. Diante das condições de existência do operariado

brasileiro, sintetizaram sua luta numa certeza: “queremos, quando o povo estiver educado, a

revolução social”. Estudou-se a trajetória da educação em Sorocaba, desde a educação precária

e quase inexistente dos tempos do Império até a escola dos primeiros tempos da República. Na

primeira república, a Escola tinha a função regeneradora da nação e os Grupos Escolares

tiveram a incumbência de propagar a imagem do novo ensino, voltado para todos. O primeiro

grupo escolar público foi criado em Sorocaba, em 1896. Mas nem mesmo a criação dos demais

grupos escolares foi suficiente para atender a toda demanda. Assim, a escola pública atendeu,

principalmente, os filhos da elite, uma vez que os filhos dos operários trabalhavam nas fábricas

e quase não conseguiam estudar. Trata-se de pesquisa documental e bibliográfica, cujo quadro

de análise se assenta no materialismo histórico, tendo como fonte primária mais significativa a

imprensa, especialmente o jornal O Operario, incansável na luta pela educação do operariado

e outros. As principais referências teóricas de apoio foram baseadas nas reflexões formuladas

por Engels (2010), Thompson (1987), Ferreira (1978), Dean (s/d), Carone (1989), Rodrigues

(1969), Ferrer y Guardia (2014). A análise da documentação e da bibliografia disponíveis

permite considerar que a educação, esperança do operário, não foi compartilhada da mesma

forma nem pelo governo e nem pelos patrões. A escola republicana, incapaz de promover a

educação popular, tentou promover o silenciamento do operário, mas não pôde apagar o registro

de seu movimento. Palavras-chave: Trabalho – Educação – Movimento Operário – Imprensa – Imigrantes

ABSTRACT

The present study aimed to reconstruct the education role in the history of the worker movement

in Sorocaba in the end of the 19th century and the beginning of the 20th century from the press

view. It is highlighted the presence of the european immigrant, that came here full with hope of

a better life and found a life of hard word and suffering, in the farming as well the factories. In

Sorocaba, the immigrants were put upon more intensively in the textile factories, considered by

many as one of the most scrounge of the working class factory. Besides the hopes, the

immigrants brought, in their luggage, new ideias, the ones were the embryonic ideias of the

worker organization. Facing the conditions of the existence of the brazilian workers, they

summarized their fight into a certain: “We want, when the people are educated, the social

revolution.” It studied the trajectory of Sorocaba´s education, since the precarious and the

almost non-existed education in the empire times to the school from the first times of the

republic. In the first republic, the school had the regenerative nation role and the school groups

had to spread the image of the new teaching, to all. The first school group created in Sorocaba

in 1896 and the others weren´t enough for the demand and the public school turned out to attend

especially the elite children, since the workers children worken in the factories and couldn´t go

to school. It was used, for the purpose of this study, primary and secondary sources, such as:

the press, especially the “O Operario” paper, tireless in the fight for education of the workers

and others.

The main theoretical references were based in the reflexions of Engels (2010), Thompson

(1987), Ferreira (1978), Dean (s/d), Carone (1989), Rodrigues (1969), Ferrer y Guardia (2014).

The analysis of the documentation and the bibliography available allow to consider that the

education, the worker´s hope, wasn´t shared in the same way neither by the government nor by

the bosses. The republic school, incapable to promove the public education, promoved

competently the silencing of the worker but it couldn´t erase the register of the movement.

Key-words: Work – Education – Worker movement – Press - Immigrants

RESUMEN

Este estudio buscó recrear el papel que se ocupó la educación en la historia del movimiento

obrero en Sorocaba al final del siglo XIX y a partir del siglo XX por la mirada de la prensa. Se

destacó la presencia del inmigrante europeo, que llegaba acá lleno de esperanzas de una vida

mejor y se enfrentó a una vida de mucho trabajo e sufrimiento, tanto en la labranza cuanto en

las fábricas. Los inmigrantes en Sorocaba fueron aprovechados más intensamente en las

tejedurías, tenídas por muchos como una das fábricas que más ha explorado el proletariado en

el mundo. Además las esperanzas, los inmigrantes trajeron, en su equipaje, nuevas ideas, que

fueron las ideas embrión de la organización laboral. Delante de las condiciones de existencia

de la clase obrera brasileña, han sintetizado su lucha en una certeza: “deseamos, cuando el

pueblo quedarse educado, la revolución social”. Se estudió el camino de la educación en

Sorocaba, de la educación precario y casi ausente de los tiempos del imperio hasta la escuela

de los primeros días de la República. En la primer república, la Escuela tenía la función de

regenerar la nación y los Grupos Escolares tuvieron comisión de propagar la imagen del nuevo

enseño, enfocado en todos. El primer grupo escolar creado en Sorocaba, en 1896, y los demás

no consiguieron cumplir la demanda y la escuela público he satisfecho los hijos de la élite, ya

que los hijos de los trabajadores estaban en las fábricas y no podrían asistir las escuelas. Se

utilizó, para esta búsqueda, fuentes primarias y secundarios, tales como: la prensa,

especialmente el periódico O Operario, incansable en la lucha por la educación de los

trabajadores. Las referencias teóricas principales se basaban en las reflexiones de Engels

(2010), Thompson (1987), Ferreira (1978), Dean (s/d), Carone (1989), Rodrigues (1969), Ferrer

y Guardia (2014). La análisis de la documentación y de la bibliografía ha permitido creer que

la educación, esperanza de los trabajadores, no se fue considerado de la misma manera ni por

el gobierno y tampoco por los jefes. La escuela republicana, incapaz de desarrollar la educación

popular, promocionó hábilmente el silenciamiento de los trabajadores... no pude eliminar lo

registro de su movimento.

Palabras llave: Trabajo – Educación – Movimiento obrero – Prensa – Inmigrantes

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14

1 OS OPERÁRIOS ................................................................................................................ 27

1.1 Os operários: nova força de trabalho .................................................................................... 34

1.2 A paisagem e tudo o mais se transforma: surgem as fábricas ............................................. 35

1.3 A imigração ............................................................................................................................. 44

1.4 Os imigrantes no Brasil .......................................................................................................... 55

1.5 Colônia Cecília – Um sonho de liberdade ............................................................................ 59

1.6 Os imigrantes chegam a Sorocaba ..................................................................................... 63

1.7 O apito da fábrica controlando o tempo e a vida ................................................................ 65

1.8 Dentro da fábrica, o tear silencia a todos ............................................................................ 73

1.9 As histórias de vida se repetem nas vilas operárias ............................................................ 83

1.10 Os imigrantes se unem, os operários se organizam ........................................................... 87

2 A GRANDE IMPRENSA E A IMPRENSA OPERÁRIA EM SOROCABA ........... 106

2.1 A grande imprensa em Sorocaba ....................................................................................... 107

2.2 A imprensa operária .......................................................................................................... 121

2.2.1 O jornal O Operario de Sorocaba ................................................................................ 126

2.2.2 A presença da mulher nas colunas do jornal O Operário .......................................... 136

2.2.3 A ideologia do jornal O operário ................................................................................... 144

2.2.3.1 Ideias anarquistas em Sorocaba: os libertários ........................................................ 150

2.3 As primeiras tentativas de greve sob o olhar da imprensa ............................................ 154

2.4 O olhar da imprensa sobre a primeira greve operária bem-sucedida ............................ 158

2.5 Embates ideológicos entre os jornais Cruzeiro do Sul e O Operario .............................. 170

2.6 O fim do jornal O Operario ................................................................................................. 174

3. A EDUCAÇÃO E AS ESCOLAS PARA OPERÁRIOS .......................................... 179

3.1 A educação em Sorocaba nos tempos do Império ........................................................... 179

3.1.1 A Escola Popular ........................................................................................................... 190

3.2 A educação em Sorocaba após a República ..................................................................... 192

3.3 Uma escola para operários: escola da Loja Maçônica Perseverança III........................... 211

3.4 Uma escola para as moças operárias ............................................................................... 216

3.5 A instrução para o operário: o verdadeiro pão do espírito ........................................... 218

3.6 A educação operária sob as lentes dos jornais Cruzeiro do Sul e O Operário ............. 222

3.7 Escola Moderna ou Racionalista: educação para a emancipação .................................... 228

3.7.1. A pedagogia de Francisco Ferrer y Guardia .............................................................. 231

3.7.2 Escola Moderna em Sorocaba ...................................................................................... 234

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 252

MEMORIAL (APÊNDICE) ................................................................................................ 260

14

INTRODUÇÃO

“Se dividirmos os retratos existentes de cidades em dois grupos, conforme o lugar de

nascimento do autor, perceberemos que os escritos por autóctones são minoria. O

motivo superficial, o exótico, o pitoresco só atrai os de fora. Para o autóctone obter

a imagem de sua cidade, são necessárias motivações diferentes, mais profundas.

Motivações de quem, em vez de viajar para longe, viaja para o passado. Sempre o

retrato urbano do autóctone terá afinidade com o livro de memórias, não é à toa que

o escritor passou sua infância nesse lugar” (Walter Benjamin).

Tomo emprestadas as palavras de Walter Benjamin (1985) para justificar a escolha do

meu tema de pesquisa, a educação dentro do movimento operário sob o olhar da imprensa,

resultado de uma conjugação de elementos como a memória afetiva, as histórias de vida, os

lugares familiares e mais a minha própria formação em História.

Nasci numa vila operária e, desde muito pequena, caminhava de madrugada, até a

fábrica de tecidos Votorantim e permanecia na creche da fábrica enquanto minha mãe

trabalhava. Quando da realização da minha dissertação de mestrado, a simpatia por esse tema

falou mais alto e o resultado da pesquisa foi: “História da educação de Votorantim: do apito da

fábrica à sineta da escola”. Por se tratar de um mestrado em Educação, o estudo central foi a

escola, entretanto, no caso de Votorantim, cidade onde nasci, não havia como falar da escola

sem apresentar a fábrica de tecidos, uma vez que a cidade se formou a partir dessa fábrica, que

passou a exercer forte dominação, não só na vida das pessoas como em tudo o que acontecia no

lugar. Na busca de fontes, foi a imprensa da época que mais atendeu aos objetivos dessa

pesquisa.

O recorte definido nesse estudo foi a história da educação na vila operária de Votorantim

que, no período estudado – final do século XIX e início do XX – pertencia ao município de

Sorocaba. Entretanto, quanto mais pesquisamos, mais nos deparamos com espaços que

precisavam ser preenchidos para elucidar o passado.

Assim, pela necessidade de escolha de um tema para a tese de doutorado, decidi-me por

retomar a história da educação operária, uma vez que essa história não se esgotou,

principalmente no que diz respeito à imprensa enquanto fonte de pesquisa.

É bem verdade que a história de Sorocaba se viu enriquecida nas últimas décadas com

trabalhos acadêmicos e outras produções historiográficas, que a inseriram num campo

relativamente novo da historiografia, qual seja a História das Cidades. Apesar do avanço da

produção, determinados assuntos necessitavam de aprofundamentos a cada trabalho produzido,

tal qual uma colcha de retalhos, onde cada retalho tem uma estampa, um colorido, uma textura

e unidos, posteriormente, são costurados, formando a colcha. Assim se deu também com a

15

produção historiográfica: cada olhar do historiador correspondia a um retalho, que alinhavado

e costurado aos de outros, foi capaz de resgatar a história, dando-lhe sentido e significado e,

principalmente, dando a palavra aos esquecidos da história.

O resgate histórico tornou-se importante à medida que novas interpretações foram

surgindo, novos olhares e novas possibilidades foram dando voz aos esquecidos e silenciados

pela história. A história deve esclarecer a memória e ajudá-la a retificar os seus erros (LE GOFF,

1990). É um complemento para os tempos posteriores. Entretanto, o que se verifica é que

mesmo conhecendo os erros do passado, alguns acabam por se repetir no presente.

Este trabalho busca contribuir para a valorização de um período ainda pouco estudado

na história de Sorocaba, como mais um retalho a ser costurado no que já foi produzido sobre a

história de patrões e operários em suas relações de trabalho e de poder e qual o valor atribuído

por patrões e operários à educação.

Certamente, a crítica esbarrou nos conceitos de verdade e poder. Mas qual verdade? A

verdade estava com as classes dominantes, no caso os patrões, ou com os operários, os

explorados? Eis o combate histórico estabelecido, conforme alerta Michel Foucault (1979, p.

13):

Há um combate “pela verdade” ou, ao menos, “em torno da verdade” entendendo-se,

mais uma vez, que por verdade não quero dizer “o conjunto das coisas verdadeiras a

descobrir ou fazer aceitar”, mas o “conjunto das regras segundo as quais se distingue

o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder”;

entendendo-se também que não se trata de um combate “em favor” da verdade, mas

em torno do estatuto da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha

(FOUCAULT, 1979, p. 13).

As verdades estabelecidas pelas versões dominantes, especialmente aquelas ligadas ao

mundo capitalista, prendem-se a alguns aspectos e não identificam os diferentes grupos, ainda

mais se esses forem vistos como opositores. Valorizam-se apenas concepções desejadas

relacionadas ao progresso como obra de grandes homens empreendedores, desqualificando os

homens comuns, os trabalhadores em geral, suas culturas, seus saberes e sua presença em todo

o processo de industrialização. O homem comum nada tem de herói, talvez por isso

historiadores locais tenham se dedicado à história do bandeirantismo e do tropeirismo, pelas

suas qualidades incomuns. (PINTO JR, 2003, p.19)

Por muito tempo, os historiadores de Sorocaba se mantiveram alinhados ao pensamento

de Aluísio de Almeida, considerado o mais fidedigno pesquisador da História de Sorocaba, o

cronista da cidade, até os dias de hoje. Aluisio de Almeida foi o pseudônimo de Monsenhor

Castanho, nascido em Guareí no ano de 1904, que, depois de ordenado padre, em 1927, veio

16

para a Diocese de Sorocaba. Após algum tempo de sacerdócio, por volta de 1933, adoentado,

viu-se impedido de exercer suas atividades eclesiásticas e passou a se dedicar à pesquisa sobre

a história de Sorocaba. Assim o fez até bem próximo de sua morte, em 1981. Tendo livre

trânsito pelos arquivos municipais, do Estado e dos documentos pertencentes à Igreja, escreveu

livros e artigos para jornais sobre a história de Sorocaba, tornando-se uma referência para os

futuros historiadores que, por certo tempo, praticamente deram continuidade ao trabalho de

pesquisa e análise histórica iniciados por ele.

Os escritos de Aluísio de Almeida foram garimpados em fontes primárias tais como:

jornais publicados no período de 1842 a 1930, livros da paróquia de Nossa Senhora da Ponte,

a partir de 1679, atas da Câmara desde 1805, inventários no cartório do 1º ofício de 1800 a

1842, livros de notas de 1723 a 1734, papéis avulsos de 1720 a 1863 do Arquivo Público de

São Paulo entre outros, além das histórias de vida e da cidade contadas pelas pessoas do lugar.

Aluísio de Almeida dividiu a história de Sorocaba em três “ciclos econômicos”: o

bandeirantismo, o tropeirismo e a industrialização. Essa divisão por ciclos econômicos proposta

por ele influenciou autores e pesquisadores locais, como Adolfo Frioli (2005), Vera Ravagnani

Job (1983), Rogich Vieira (1988), Geraldo Bonadio (2004) e outros, tanto nas análises como

na ênfase dada ao estudo de determinados “ciclos”, como o bandeirantismo e o tropeirismo, que

chegam a atribuir ao tropeiro, legítimo representante de nossa gente, a promoção da unidade

nacional, por meio de suas viagens com as tropas por todos os cantos do país. Sorocaba sediava

um entreposto de mercadorias, os muares, que atraía para cidade não apenas brasileiros de todas

as regiões, mas também estrangeiros. Tais autores defendem a ideia de que o tropeiro forjou a

identidade histórica de Sorocaba e do sorocabanoOportuno dizer que as atuais pesquisas,

acadêmicas ou não, têm se distanciado do que já foi feito em termos de produção

historiográfica, trazendo novos olhares, novas abordagens, permitindo outras formas de se

contar e interpretar o passado. Elas propõem a reconstituição do passado, com outras

indagações do vivido, apresentando novos personagens, reconstituindo o passado ao dar voz

aos esquecidos. Há, atualmente, certo consenso entre pesquisadores de que a historiografia de

Sorocaba dá importância a um passado distante, dos tempos dos bandeirantes e tropeiros, e

pouco reflete sobre um passado mais recente, ou seja, o tempo da industrialização. Quais seriam

as motivações para esse desinteresse ou esquecimento?

Esta pesquisa ora apresentada se alinha a essa nova proposta de abordagem, buscando

as razões que levaram a esse esquecimento – ou seria silenciamento? Pretende, assim, abordar

a educação operária, desde a sua gênese na cidade de Sorocaba, no período que compreende as

17

últimas décadas do século XIX até as primeiras décadas do século XX, com o advento da

industrialização.

Nas últimas décadas do século XIX, mais especificamente a partir da década de 1880, a

concepção de cidade foi se modificando à medida que emergia a industrialização e redefinia-se

o espaço urbano. A cidade passou a representar o lugar da modernidade, com novas

configurações apoiadas numa sociedade industrial e no fortalecimento de uma cultura burguesa.

Nesse período de implantação da indústria, a cidade viveu expressivo aumento populacional

com a vinda de imigrantes estrangeiros e ex-escravos.

O crescimento populacional que a cidade conhece, intensifica-se, a partir de 1872,

com uma taxa anual em torno de 1,6% e ganha contornos de explosão demográfica

entre 1890 e 1920, com taxa em torno de 4,0% ao ano. Nesses mesmos períodos, a

cidade de São Paulo cresce em 4,1% e 5,1%, respectivamente. Tal crescimento está

intimamente relacionado à dinâmica urbana, que, já no início do século XX vai

ganhando feições de modernidade: a água e o esgoto surgem, em 1902; o cinema, em

1906; o telefone, em 1907; o bonde, em 1915; o calçamento, em 1921. Além desses

benefícios, a cidade já contava com jardins, teatros, hospital, fábricas, casas

comerciais, escolas, igrejas, palacetes, vilas operárias, cortiços, estalagens (MENON,

2000, p.35).

O período delimitado para o estudo, final do século XIX e início do XX, corresponde

ao período no qual o movimento operário em Sorocaba se iniciou, consolidou-se e, depois,

enfraqueceu e, paralelamente, é nesse tempo que a educação passou a ter relevância no cenário

nacional. Assim, este trabalho pretende valorizar tal período tão pleno de significações na

história do movimento operário em Sorocaba, procurando encontrar, nas dobras do local, o

universal.

A questão central desta pesquisa assenta-se na concepção de educação produzida pelo

movimento operário em Sorocaba, num cenário de interesses antagônicos entre a burguesia e o

proletariado, a partir do olhar da imprensa da época, tanto a chamada grande imprensa quanto

a imprensa operária.

A escolha da imprensa se deu a partir da experiência da elaboração da dissertação de

mestrado, momento em que o estudo das condições de vida dos operários, das relações

conflituosas entre patrões e operários se revelou como uma temática de investigação em

potencial, e os jornais configuravam um material rico nessa direção. A imprensa local

apresentava uma questão relevante e recorrente nos editoriais e notícias publicados: a educação.

Assim, revelou-se uma fonte profícua de conhecimento de uma época, no sentido que nos

apresenta Dermeval Saviani (2004): fontes como os lugares de onde brota o nosso

conhecimento da História, e a sua inesgotabilidade, pois sempre que a ela retornamos, tendemos

18

a descobrir novos elementos, novos significados, novas informações que nos tinham escapado

por ocasião das incursões anteriores. Esse tipo de fonte vem contribuindo sobremaneira para a

ampliação de pesquisas histórico-educacionais de caráter regional e local e os próprios

historiadores da educação, já há algum tempo, se deram conta desse processo de significativa

valorização da imprensa.

Para a historiadora Maria Helena Capelato (1988), a imprensa é um manancial dos mais

férteis para o conhecimento do passado, pois possibilita ao historiador acompanhar o percurso

dos homens através dos tempos. O período delimitado para este estudo – final do século XIX e

início do século XX – foi justamente o período em que a imprensa teve grande profusão, não

só em Sorocaba, mas em todo país, motivada por novas técnicas de impressão e edição, que

favoreceram o barateamento dos jornais e das revistas. Estas últimas, enquanto produto mais

refinado, ganharam a preferência da burguesia urbana. Em Sorocaba, no período de 1870 a

1920, foram editados mais de 150 periódicos, entre jornais e revistas (MENON, 2000, p.34). A

esse respeito, Michel de Certeau (1974, p.30) alerta que:

Em história, tudo começa com o gesto de selecionar, de reunir, de, dessa forma, transformar

em “documentos” determinados objetos distribuídos de outra forma. Essa nova repartição

cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo fato

de recopiar, transcrever ou fotografar esses objetos, mudando, ao mesmo tempo, seu lugar e seu

estatuto.

Portanto, ao se trabalhar com a imprensa, é preciso estar atento às intenções de quem

produziu os jornais, à sua posição na sociedade, a seus interesses e a pontos de vistas explícitos

ou implícitos em seus argumentos.

Identificado o tema e delimitado o período pretendido para o estudo, iniciou-se o

trabalho de busca das fontes, não sem dificuldades – diga-se de passagem –, que consistiu na

leitura e análise da produção sobre o processo de industrialização e sobre imigração a partir das

reflexões de Dean (s/d), Fausto (2003), Ianni (1972). Promoveu-se uma incursão na legislação

trabalhista em nível macro a fim de inserir, nesse universo, as contribuições de Sorocaba.

Também com essa intencionalidade, realizou-se o mesmo procedimento para investigar a

produção historiográfica educacional. Buscando estabelecer um diálogo entre o local e o

universal, efetuou-se levantamento da produção historiográfica local, não se atendo apenas aos

textos acadêmicos, privilegiando as produções mais recentes, com predominância das

dissertações de mestrado e teses de doutorado produzidas na UNISO e na UNICAMP. A etapa

mais demorada e trabalhosa consistiu na localização dos jornais, leitura, seleção e transcrição

das publicações mais relevantes, procurando estabelecer a interlocução entre os jornais a partir

de seus posicionamentos ideológicos e de seus interesses, quase sempre antagônicos.

19

Ao transcrever as notícias dos jornais da época, O Operario, Cruzeiro do Sul e outros,

optou-se por fazê-lo de acordo com o texto original, mantendo-se os nomes citados nas

publicações, sem a utilização de recursos para preservar a identidade da pessoa citada. Dessa

forma, optou-se por não fazer a omissão dos nomes, nem usar nomes fictícios ou apenas as

iniciais, mesmo sabendo que a verdade dos fatos nem sempre se encerrava nas notícias, escritas

a partir da visão e dos interesses de seus escritores e do lugar que ocupavam na sociedade.

Entende-se que se trata de um procedimento arriscado, considerando que descendentes das

pessoas citadas no decorrer do trabalho ainda vivem.

Para trabalhar com a imprensa local, mais uma vez, recorri ao Gabinete de Leitura

Sorocabano. Essa instituição, fundada em 1867, dispõe de um acervo riquíssimo que muito tem

colaborado com os pesquisadores locais. Por se tratar de instituição particular, apesar de ter

utilidade pública, sobrevive sem a ajuda do poder público, praticamente apenas das

mensalidades pagas por seus sócios e do aluguel de algumas salas de seu prédio, por isso parte

do acervo se encontra em estado lastimável de conservação, pela ação do tempo, fazendo-se

necessária a urgente digitalização dos exemplares. Alguns jornais já não são disponibilizados

para consulta, por apresentarem fragilidades como rasgos, falta de páginas e desgaste da tinta,

apesar dos cuidados exigidos, como o uso de luvas e máscaras para o manuseio do papel, que

muitas vezes pelo leve toque já se rompe.

O Gabinete de Leitura Sorocabano possui uma hemeroteca bem montada, além de

almanaques, livros, revistas, documentos como cartas de alforria, publicações diversas, livro de

visitas com registro de passagens do Imperador D. Pedro II, do Conde D’Eu, da Princesa Isabel

e de viajantes ilustres etc. Outro aspecto interessante do Gabinete de Leitura diz respeito ao seu

ambiente, que permite o contato com outros pesquisadores, rendendo boas conversas, troca de

material, indicações bibliográficas e, principalmente, a amizade que se faz. A digitalização

vem sendo feita, no entanto, de maneira lenta.

Atualmente, numa iniciativa particular, o jornal Cruzeiro do Sul, fundado em 1903, tem

todo o seu acervo digitalizado, como forma de concretizar, seu Projeto Memória.

Mergulhar nas páginas dos jornais antigos é como voltar para um tempo em que não se

viveu. A leitura diária e seguida de muitos jornais nos transporta para um tempo vivido que

parece ser o tempo em que aqueles fatos noticiados ocorreram. Por mais de uma vez me peguei

sentindo a morte de alguém cuja vida acompanhei pelas páginas de um jornal, tal é o vínculo

que o pesquisador estabelece com suas fontes.

20

O Museu Histórico Sorocabano também foi visitado diversas vezes, sendo que lá foram

encontrados os livros de registros e matrículas das escolas públicas e particulares de Sorocaba

e fotos referentes ao período estudado.

Elegeram-se alguns jornais que poderiam contribuir mais com a pesquisa, selecionando

aqueles que circularam por mais tempo e aqueles que mantiveram posicionamentos ideológicos

mais definidos e, muitas vezes, antagônicos entre si. Os principais jornais consultados foram:

O Sorocabano. Fundado em 13 de fevereiro de 1870. Vendido ao preço de “8$000 ao

anno na cidade e 9$000 fora”, tinha por princípio “pugnar pelo bem público, com especialidade

pelos interesses do município. Dar voz a todas as reclamações justas e comedidas. Reproduzir

os clamores da lavoura e do comércio. Abrir espaços a discussões de interesse geral” (O

SOROCABANO, 13 fev 1870, p.1). Em 01 de setembro de 1872, transformou-se em O

Sorocaba e teve Júlio Ribeiro como redator-chefe, combatendo a dominação da igreja católica

e defendendo com veemência a industrialização de Sorocaba. Esse jornal deixou de circular

em 1883.

Ypanema. Com assinatura no valor de “8$000 por anno em Sorocaba e 9$000 fora”, foi

editado pela primeira vez em 25 de abril de 1872. Publicado “6 vezez por mez”, o jornal se

propunha a defender os “interesses morais e materiais do município e do Sul da província”. E

procurava “dar na parte litterária alguns bons artigos e vulgarisar os melhores escriptos de

auctores nacionais” (YPANEMA, 25 abr 1872, p.1) Seu editor e proprietário foi Manoel

Januário de Vasconcellos, sorocabano de nascimento e coronel da guarda nacional. Em 1880,

passou a ser diário, alterando seu nome para Diário de Sorocaba, circulando até 1893.

O 15 de Novembro. João José da Silva editou pela primeira vez, em 22 de fevereiro de

1891, O Alfinete, o qual, a partir da proclamação da república, e em homenagem ao evento,

passou a chamar-se O 15 de Novembro. “Semanário político, noticioso, humorístico e

literário”, (O 15 DE NOVEMBRO, 15 nov 1892, p.1) transformou-se em bissemanário e,

depois, em 1895, passou a ser diário. Sua assinatura anual era de “8$000 para Sorocaba e

10$000 fora”. O jornal defendia o governo republicano e, principalmente, a escola pública,

fruto benéfico da república.

Cruzeiro do Sul. O primeiro número do Cruzeiro do Sul foi publicado em 12 de junho

de 1903, pelo maçon Joaquim Firmino de Camargo Pires. Foi bissemanário, trissemanário,

diário matutino, diário vespertino e, novamente, diário matutino. Favorável à escola pública,

esse jornal lançou-se em várias campanhas, não só pela criação de novas escolas e novos cursos,

mas também em benefício do professor. Esse jornal defendia a educação primária para

atendimento das classes populares, especialmente os operários das fábricas, reproduzindo o

21

pensamento de seu chefe político, Luis Pereira de Campos Vergueiro, que considerava a

educação primária e os cursos profissionalizantes suficientes para atender uma população

majoritariamente formada por operários.

O Operário. “Orgam de Defesa da Classe Operária” e com publicação quinzenal, O

Operário circulou pela primeira vez em 18 de julho de 1909. Antes mesmo do seu

aparecimento, já lhe atribuíam “origem mesquinha”, antevendo-se a sua atuação, que “visava

um desideratum muito legítimo qual o de conseguir a união ou a solidariedade da família

operária de Sorocaba”. O jornal, em sua apresentação, alertava que não pretendia ter nenhuma

ligação partidária no município. Seu maior intento era o “de lançar a público uma série de

verdades orientadoras de conduta do operariado”, em defesa da classe operária. Inicialmente, a

pesquisa no jornal O Operario foi feita nos exemplares originais pertencentes ao acervo do

Gabinete de Leitura Sorocabano, entretanto, após um tempo, devido ao estado precário de

alguns exemplares, o que dificultava a leitura, passou-se a utilizar a edição fac-similar

organizada por Rogério Lopes Pinheiro de Carvalho (2007).

O confronto ideológico maior se deu entre os jornais Cruzeiro do Sul e o O Operario, o

primeiro notadamente representante da burguesia local e o último declaradamente órgão de

defesa da classe operária, uma vez que no período de veiculação do jornal O Operário vários

outros já haviam cessado a circulação.

É importante salientar que a imprensa operária foi um dos recursos mais utilizados pelos

militantes anarquistas que atuavam no movimento operário. A utilização do jornal como veículo

de comunicação foi de grande proveito para a organização da classe trabalhadora brasileira.

Basta averiguar a intensa rede de jornais que surgiu com a fundação das ligas e uniões e a grande

tiragem que esses jornais atingiram nos períodos que antecederam aos movimentos grevistas

(FERREIRA, 1978). Essa afirmação torna-se verdadeira a partir da constatação de que, em

Sorocaba, a primeira greve dos operários das fábricas de tecidos bem-sucedida, em 1911,

ocorreu após intensa campanha feita pelo jornal O Operário para a redução da jornada de

trabalho. Com essa greve, os operários conseguiram reduzir a jornada para 10 horas diárias, o

que foi motivo de grande contentamento, tendo em vista que havia fábricas onde a jornada de

trabalho se estendia por 14 horas diárias, inclusive para as crianças. Da produção historiográfica

mais recente de autores sorocabanos, servimo-nos de trabalhos que buscam valorizar os sujeitos

que até então se mantinham silenciados pela História reconhecida como oficial. São eles:

Sorocaba no Império. Comércio de animais e desenvolvimento urbano (2002) de Cássia

Maria Baddini. Apesar de esse trabalho não tratar do meu objeto específico de pesquisa,

analisa, de forma minuciosa, todo o período anterior à industrialização em Sorocaba,

22

apresentando uma abordagem diferente sobre o desenvolvimento econômico de Sorocaba,

especialmente no tocante à feira de muares. A autora rompe com a ideia de que Sorocaba

dependia exclusivamente da feira de animais que ocorria anualmente.

Memória Operária (2009), de Carlos Carvalho Cavalheiro, trabalho não acadêmico que

procura contribuir com a história social e com a memória coletiva sorocabana. Enfatiza as

principais manifestações de emancipação, desde a luta pela liberdade dos escravos sorocabanos,

em 1884, até as lutas de classes e ideológicas, na década de 1930.

Sorocaba Operária (2005), de Adalberto Coutinho de Araujo Neto, aborda a questão

operária em Sorocaba, especialmente a sua gênese, sob o prisma político e ideológico,

motivação maior dos sujeitos que aderiram aos movimentos sociais.

Os autores Carlos Cavalheiro e Araujo Neto recorreram à imprensa para recuperar a

memória do movimento operário em Sorocaba e contextualizá-lo historicamente, procurando

dar-lhe significado.

Este estudo privilegia o papel desempenhado pela educação no seio do movimento

operário. O movimento operário incipiente, que buscava significação social diante dos abusos

dos patrões e de uma legislação de dificil classificação: inexistente ou omissa? Entre as

principais reivindicações dos operários estava o direito à instrução. Surgiram indagações. Como

era vista a educação para os operários? Somente a educação formal era suficiente para a

formação do operário? Que tipo de educação desejavam? Quais foram as propostas da política

local para a escola? A elite também compartilhava o desejo da instrução para os operários? A

educação teria contribuído para a supressão ou para a manutenção das desigualdades e injustiças

sociais? Afinal, a educação oferecida aprisionava ou emancipava o operário?

Os idealistas dos movimentos operários se viram diante de um impasse de difícil

resolução. Sem educação, os operários teriam condições de conquistar os direitos trabalhistas?

Mas como conscientizar um operário de seus direitos sem a devida instrução? A

industrialização em Sorocaba se estabeleceu em bases capitalistas, com elementos bem

marcantes: mão de obra abundante, especialmente formada por grande número de imigrantes,

trabalhadores locais disciplinados e, também, lavoura de algodão bem desenvolvida, capaz de

fornecer a matéria-prima necessária para as fábricas de tecido. Os operários das fábricas

sorocabanas, assim como os operários de outras fábricas de São Paulo e do Brasil, enfrentavam

longas jornadas de trabalho, exploração da mão de obra de mulheres e de crianças, cobrança de

multas por danos nos tecidos e por atrasos. Além disso, não tinham nenhum tipo de indenização

em casos de doença ou acidentes de trabalho, além de receberem tratamento desumano por parte

dos mestres e contra-mestres. Em suma, a questão operária pouco significava para o governo

23

brasileiro. E era justamente uma significação social que os operários buscavam. Sem uma

legislação que regulasse o trabalho nas fábricas, o operariado vivia a mercê dos mandos e

desmandos dos grandes capitalistas.

Compreenderam os operários que uma das formas de conseguir ocupar uma posição

digna na sociedade, com melhores condições de vida, seria através da educação. Mas ela não

poderia ficar restrita à educação oferecida pelas escolas públicas, pois necessitavam de uma

formação integral, que lhes desse entendimento suficiente para ler o mundo que os rodeava.

Apenas aprender a ler e escrever seria insuficiente. O operário necessitava ter visão de mundo

em sua totalidade. “Companheiros, deveis mandar os vossos filhos a escola para que eles vejam

a luz da verdade e da razão” (O OPERARIO, 13 maio de 1911, p.2)

Delimitado o período de estudo e identificado o tema de pesquisa, buscou-se

embasamento teórico em autores, listados nos parágrafos a seguir, que aprofundaram suas

reflexões sobre a questão operária, a ideologia subjacente aos movimentos operários e a

educação operária.

Warren Dean, em A industrialização de São Paulo (s/d), ocupa-se do estudo da

formação industrial de São Paulo, do surgimento do capitalismo, destacando as figuras mais

representativas dessa fase de desenvolvimento industrial, destacando, inclusive, industriais

importantes de Sorocaba. O estudo vai além de uma coleta de dados e informações do período,

uma vez que o autor faz uma análise acurada, levantando, muitas vezes, hipóteses explicativas

sobre os fatos ocorridos.

Edgar Rodrigues, em Socialismo e sindicalismo no Brasil (1969), ao apresentar os

objetivos do seu trabalho, elenca várias obras de diferentes autores que se debruçaram sobre

esse tema. Entretanto, para o autor, o conjunto fica aquém do desejado. A sua obra, segundo

ele próprio, pretendeu reunir o maior número possível de documentos, válidos e escritos por

militantes da época, salientando as greves, o teatro social operário, as escolas livres,

publicações, congressos, protestos, etc.

Maria Nazareth Ferreira, em A imprensa operária no Brasil (1978), resgata a

importância da imprensa operária, muitas vezes relegada a um segundo plano, como fonte de

pesquisa. Para a autora, os jornais oferecem generosas informações sobre a sociedade da época,

as condições de vida ou de sobrevivência da classe trabalhadora, permitindo a reconstrução da

dimensão política da história social.

Edgard Leuenroth, em Anarquismo, roteiro da libertação social (2007), reúne textos

variados de diferentes autores, tanto pensadores anarquistas do passado quanto mais atuais,

24

sobre aspectos ideológicos da doutrina anarquista, com a pretensão de emancipar o indivíduo

das “atrofiantes formas sociais”.

E. P. Thompson, em A formação da classe operária inglesa (2012, p. 18), afiança que

[...] a formação da classe operária é um fato tanto da história política e cultural quanto

da econômica. Ela não foi gerada espontaneamente pelo sistema fabril. Nem devemos

imaginar alguma força exterior – a “Revolução Industrial” – atuando sobre algum

material bruto, indiferenciado, e indefinível de humanidade, transformando-o em seu

outro extremo, uma “vigorosa raça de seres”. As mutáveis relações de produção e as

condições de trabalho mutável da Revolução Industrial não foram impostas sobre um

material bruto, mas sobre ingleses livres.

Friedrich Engels parece ter percorrido as fábricas e vilas operárias de Sorocaba para

escrever A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (2010), tamanha a semelhança entre

as condições de vida dos operários ingleses e sorocabanos. Nas palavras de Eric Hobsbawm

(1961, p. 8), esse livro é um marco na história do capitalismo e da moderna sociedade industrial.

“Simultaneamente erudito e apaixonado, articulando a denúncia e a análise, ele é, para dizer

numa só palavra, uma obra-prima”.

Francisco Ferrer y Guardia, em A Escola Moderna (2014) traça uma proposta

educacional abraçada com entusiasmo pelos operários anarquistas, que viam nessa concepção

de educação o contraponto da escola até então posta e que não lhes servia, ou seja, uma escola

que não formava, não educava, apenas moldava os estudantes segundo aquilo que um Estado

autoritário desejava para manter um sistema de exploração. Essa não era a educação pretendida

pelos operários. Eles pretendiam, sim, uma educação para a liberdade, para uma nova sociedade

construída por homens livres.

Outras fontes pesquisadas contribuíram para o avanço do trabalho, como a l/egislação

educacional pertinente ao período estudado que, nos diferentes níveis – fosse federal, estadual

ou municipal – contemplou, com maior ou menor ênfase, o entendimento da educação

abrangida neste estudo.

Também foram utilizadas as memórias de vários autores que atendiam ao tempo vivido

deste estudo e reforçaram o pensamento de que as histórias de vida se assemelham. Foi o caso

das memórias narradas por Zélia Gattai, em seus livros Anarquistas, graças a Deus (1994) e

Città di Roma (2000), por meio dos quais ela, filha de imigrantes, reviveu o cotidiano das

famílias imigrantes no início do século XX em São Paulo; de Jacob Penteado, em seu livro

Belènzinho, 1910 (retrato de uma época) (2003), em que narra o cotidiano difícil vivido por

seus pais em Sorocaba no início do século passado, enquanto operários da fábrica Santa Rosália

e moradores da vila pertencente a essa fábrica; e de Francisco Antonio Gaspar, nascido em

25

Sorocaba, filho de imigrantes portugueses, que narra, em Minhas Memórias (1967), o cotidiano

da cidade, nos seus tempos de menino.

Assim, para esmiuçar esse conjunto de fatores que permitem perceber a problemática

da educação operária e das condições de existência dos operários de então, este trabalho

estruturou-se em três capítulos.

O primeiro capítulo, Os Operários, aborda as origens de Sorocaba, desde sua formação,

por volta do século XVII, até o início da industrialização, nas décadas finais do século XIX.

Em quase todo esse tempo, a atividade econômica principal de Sorocaba fora a feira de muares,

que a tornou conhecida em muitas partes do país. No final do século XIX, a feira de muares,

dando sinais de decadência, cedeu lugar a novas atividades econômicas, especialmente a

industrialização, que marca o ingresso de Sorocaba na modernidade.

Esse capítulo apresenta um novo sujeito nas relações de trabalho em Sorocaba: o

operário da fábrica. Aborda as alterações verificadas na cidade a partir da instalação das

primeiras fábricas têxteis, com a chegada dos imigrantes europeus, que significavam mão de

obra abundante e barata para as fábricas. Trata das transformações do espaço urbano, onde o

cantar do carro de boi foi substituído pelo apito das fábricas, das relações de trabalho, da

dominação dos capitalistas. Enfim, refere-se ao período em que o apito da fábrica passou a

controlar o tempo e a vida das pessoas, consolidando as práticas capitalistas. Em decorrência

das péssimas condições de trabalho e de existência, os operários foram se unindo e se

organizando em Associações, Uniões e Ligas Operárias, assinalando a inegável contribuição

dos imigrantes na organização do movimento operário.

O segundo capítulo, A grande imprensa e a imprensa operária em Sorocaba, aborda a

imprensa enquanto objeto de estudo, e os principais jornais que circularam em Sorocaba no

período demilitado, destacando o posicionamento político de alguns jornais tanto em relação à

questão operária como à educação. Dá ênfase à imprensa operária, especialmente ao papel do

jornal O Operário, que circulou de 1909 a 1913 em Sorocaba, enquanto órgão de defesa da

classe operária, apresentando suas convicções e contradições ideológicas. Aborda a presença

da mulher escrevendo sobre a questão operária nas colunas desse jornal, fato revestido de

ineditismo para uma época cuja sociedade era marcadamente machista. Trata das ideologias

que permearam o jornal, notadamente as ideias anarquistas. Apresenta, ainda, as primeiras

tentativas de greve e a primeira greve bem-sucedida sob o olhar da imprensa e os embates

ideológicos advindos do posicionamento dos diferentes jornais, com confronto existente entre

o jornal Cruzeiro do Sul, representante dos capitalistas, e o jornal O Operario, defensor da

26

classe trabalhadora. Trata ainda dos motivos pelos quais este último jornal chegou ao fim em

1913.

O terceiro capítulo, A educação e as escolas para operários, ponto fulcral desta tese,

aborda a escolarização em Sorocaba apresentando as poucas iniciativas escolares ocorridas no

tempo do Império e a precariedade das escolas nesse tempo. Com o advento da República,

especialmente no estado de São Paulo, com as reformas do ensino e a criação dos grupos

escolares, a escola passou a ter uma missão salvacionista da nação, com a incumbência de

deixar para trás um passado de trevas e ignorância. Mas os grupos escolares não foram

suficientes para atender toda a demanda, pois no início só atendiam os moradores dos centros

urbanos e as crianças pobres que moravam afastadas dessas áreas e, como precisavam trabalhar,

ficavam excluídas da escola. Assim, a escola passou a ser usufruída apenas pelos membros já

pertencentes à elite. Apresenta, ainda, esparsas iniciativas públicas ou particulares para atender

aos operários, como as escolas noturnas, que atendiam somente operários do sexo masculino.

Esse capítulo destaca, ainda, o olhar da imprensa sobre a importância em educar-se o operário.

Como a população era predominantemente operária, o jornal Cruzeiro do Sul acreditava que

somente a educação primária e cursos profissionalizantes seriam suficientes para atender às

necessidades das fábricas e dos próprios trabalhadores. Já o jornal O Operario defendia uma

educação para os operários nos moldes das Escolas Modernas ou racionalistas, conforme a

concepção pedagógica do educador espanhol Francisco Ferrer y Guardia, ou seja, defendia a

educação para a liberdade e emancipação da pessoa. Apresenta, ainda, fragmentos sobre o

desenvolvimento de uma escola moderna em Sorocaba por volta de 1912.

Este trabalho não tem a pretensão de ser o arremate da história da educação operária em

Sorocaba, pois procurou fazer uma leitura do passado, portanto está aberto a outras indagações,

revisões, interpretações enfim novos olhares. Tem como pretensão dar voz a homens, mulheres

e crianças que foram silenciados pela história e talvez aí resida o seu mérito, através de um

outro olhar e de outras interpretações, que são decorrência das minhas possibilidades de

construção enquanto pesquisadora.

27

1 OS OPERÁRIOS

Este primeiro capítulo trata da formação de Sorocaba desde os primórdios, enfocando

os aspectos econômicos e sociais, até o início do processo de industrialização. Focaliza a

trajetória bandeirante, por volta do século XVII, o chamado tropeirismo, graças à localização

geográfica presente no caminho das tropas, que saíam do Sul em direção ao Centro-Oeste, em

busca de ouro.

Num ponto de descanso de tropas, foi nascendo um entreposto, transformado numa

grande feira de comércio de muares, que teve vida longa e permitiu o crescimento do lugar.

Com a decadência da feira de muares, em fins do século XIX, apareceu o plantio de algodão

com períodos de altos e baixos na plantação e, consequentemente, surgiram as fábricas de

tecidos, que absorviam essa matéria-prima. A sociedade se transformou com o surgimento de

novas relações de produção, de trabalho e novas classes sociais repesentadas pela classe

operária – formada em sua maioria por imigrantes estrangeiros, italianos e espanhóis – e a

burguesia – os donos dos meios de produção, ou seja, das fábricas.

A historiografia de Sorocaba registra seu início em 1654, quando da chegada de Baltazar

Fernandes, sua família numerosa e aproximadamente 500 índios escravizados, vindos da região

de Santana de Parnaíba, que se instalaram às margens do rio Sorocaba, próximo ao riacho

Lageado, com a intenção de formar um povoado. Esclarece Almeida (1969) que, naquele

tempo, não havia a denominação município ou cidade, mas sim o termo vila, já que, nas

capitanias, os donatários podiam somente criar vilas. Baltazar Fernandes construiu, numa parte

mais alta do local, uma igreja que dedicou a Nossa Senhora da Ponte. Em 1661, “a 21 de abril,

o capm Balthasar Fernandes fez doação da Igreja de N. S. da Ponte, hoje Mosteiro de São Bento,

aos frades Beneditinos, existentes na Villa de Parnahiba com terras e mais pertences

(ALMANACH ILLUSTRADO DE SOROCABA, 1914, p. 145).

O novo núcleo acabou por absorver parte de um povoado próximo, a chamada vila de

São Felipe, e prosperou. A população era composta, basicamente, por pessoas livres pobres e

escravos índios, que cultivavam gêneros de subsistência. As famílias mais ricas e poderosas,

geralmente aparentadas de Baltazar Fernandes, investiam nas expedições de caça ao gentio em

direção aos sertões do Centro-Sul do Brasil (BADDINI, 2002, p. 44).

Nem todos iam para o sertão à caça de índios, porém todos viviam sob o ciclo econômico

das bandeiras, porque sem os índios capturados e seus descendentes não havia fazendas e sítios

maiores que deram vida aos pequenos comerciantes e artesãos da cidade e agregados da roça,

28

nem entrava algum dinheiro amoedado para a circulação, pois, infelizmente, o escravo era

também vendido para fora. Custava vinte mil réis por cabeça (ALMEIDA, 1969, p. 46).

Segundo esse pesquisador, a intensificação do bandeirantismo sorocabano deu-se a

partir de 1680, quando diversas expedições foram organizadas exclusivamente em busca de

metais preciosos, animadas pela descoberta do primeiro ouro de Goiás, por alguns sertanistas

sorocabanos, como Paschoal Moreira Cabral, André de Zuñega, João Antunes Maciel e Braz

Mendes.

Toda as gente fora para Cuiabá em 1721. O próprio juiz ordinário não venceu o

impacto. Largou a vara a um canto. O governador Rodrigo Cesar escrevia à Câmara

ninguém respondia. Por fim Braz Mendes, antigo vereador assumiu a vara e

respondeu: não ia a palácio porque não montava à cavalo, estava obeso. Não estivesse,

teria ido à Cuiabá (ALMEIDA, 1969, p. 53).

A Coroa portuguesa sempre conviveu com as ameaças de penetração do território

brasileiro pela Espanha. Para garantir o domínio português, fazia-se necessário criar frentes de

ocupação. No entanto, as regiões de exploração de ouro, mais precisamente Mato Grosso e

Minas Gerais, careciam de tropas de muares. No Sul, elas existiam. Explica Cassia Maria

Baddini (2002) que, dadas as condições – clima ameno, relevo suave e vegetação de pastagem

– e a abundância de animais era relativamente fácil estabelecer uma fazenda de criação:

instalações modestas - cercos de campos, galpões, cochos – e pouca gente para tratar do gado.

A conjugação dos elementos: oferta de gado, necessidade da ocupação territorial e

demanda de gado e muares nas regiões mineradoras permitiram que Sorocaba passasse a ser

um ponto de descanso dos tropeiros que vinham do Sul em direção a região das minas, e que

gradativamente foi se transformando em ponto de comércio. A localização de Sorocaba

favoreceu principalmente a instalação de um Registro de Animais, em 1750, num ponto por

onde as tropas iam se afunilando para poder atravessar a ponte existente no rio Sorocaba. Essa

parada obrigatória dos tropeiros permitiu a realização de um comércio que, progressivamente,

foi se consolidando numa Feira de Muares. Sorocaba se tornou bem conhecida na província de

São Paulo por essa atividade e por ser centro arrecadador de impostos provinciais sobre o

trânsito de tropas. Essa feira teve vida longa mesmo após o esgotamento das minas de ouro e

delineou as mudanças urbanas em Sorocaba, bem como transformações da sociedade

sorocabana.

[...] os tropeiros e as tropas desempenharam, no Brasil e na América, um papel dos

mais relevantes, quer como realizadores do progresso econômico, quer como

incentivadores da unidade nacional. [...] Se, em meados do século XVIII, quando teve

início este significativo ciclo histórico, coube a nós sorocabanos o privilégio de servir

de entreposto de mercadoria altamente desejada e de local de encontro não só de

brasileiros de todas as regiões, como de estrangeiros, cabe-nos agora, a

29

responsabilidade de divulgar junto às novas gerações, a grandiosidade de sua obra, a

pujança de sua figura intimorata, para que todos juntos possamos reverenciar o

Tropeiro, o lídimo representante de nossa gente, o homem simples que de modo

efetivo, consolidou a tarefa do Bandeirante, refazendo a conquista e a posse da terra

em cada viagem, e promoveu, com o entrecruzar de mercadorias e notícias, a unidade

nacional” (JOB, 1983, p.5).

O pensamento da pesquisadora Vera Job sintetiza a visão dos historiadores que

comungam das ideias e interpretações propostas por Aluisio de Almeida quanto a identidade

cultural do sorocabano. Para Baddini (2002) a interpretação de Job (1983) ao conceito de

“tropeirismo” induz à identificação do “tropeiro” como categoria representativa de uma

condição econômica, política, cultural da sociedade paulista, evidenciando a contribuição de

Sorocaba no processo de consolidação da nação.

A produção historiográfica de Sorocaba procura atribuir ao sorocabano características

vindas desde há muito tempo, que foram se consolidando e formando a sua identidade, qual

seja, a bravura do bandeirante, que não se deixava abater pelo desconhecimento das terras e

agruras que por ventura pudesse vir a sofrer em suas incursões pelo sertão desconhecido

brasileiro, e o tropeiro intrépido, “que ligou e manteve vivo os núcleos urbanos isolados,

representando efetivamente o consolidador das fronteiras nacionais” (BADDINI, 2002).

Baddini (2002), num primoroso trabalho de pesquisa sobre o comércio de animais e o

desenvolvimento de Sorocaba no tempo do Império, apresenta, a partir do estudo da

documentação da época, uma nova interpretação do efetivo papel da feira de muares na

sociedade sorocabana, chegando mesmo a romper, de forma contundente, com a produção

historiográfica que até então depositava, na realização da feira de muares, todo o

desenvolvimento econômico, social e político da cidade de Sorocaba, ou seja, acreditava que

Sorocaba dependia exclusivamente da feira de muares. A autora reconhece, sim, a importância

da feira, porém ressalta que não era o único motor do desenvolvimento local. Afirma a autora

que, nos textos de época, a feira emergiu como um evento singular de Sorocaba, favorecido

pela afluência periódica de pessoas para o comércio de animais da região, mas não

condicionado exclusivamente a essa prática. Isso explica sua sobrevivência como evento

comercial importante da cidade, apesar da decadência da venda de tropas a partir de meados da

década de 1870. Diversas práticas urbanas continuaram a ser realizadas na cidade nos períodos

de menor comercialização na região e mesmo após a extinção do registro de Sorocaba em 1891

(BADDINI, 2002).

Entretanto, nesse tempo, para a pobre província de São Paulo, a feira de muares de

Sorocaba, além de propiciar o desenvolvimento das comunicações entre São Paulo e o sul do

30

país, também pôde ser entendida como um dos negócios mais rentáveis da província por conta

dos registros de animais. Havia a cobrança de impostos em dois registros, um localizado em

Curitiba (que pertencia a São Paulo) e outro em Sorocaba.

A cidade de Sorocaba sobrevivia além da feira de muares e, especialmente nos últimos

tempos de sua realização, havia uma crescente atividade agrícola.

A agricultura sorocabana era, em sua maior parte, dominada pela pequena lavoura,

tocada em escala familiar e visando à produção de gêneros de primeira necessidade.

O milho era, sem dúvida, o carro-chefe dessa agricultura, destinado ao autoconsumo

e à venda dentro dos limites do município, voltada para viajantes e tropeiros. [...] coisa

semelhante ocorria com a lavoura de algodão, por volta de 1800 cuja importância não

se devia à exportação do produto em rama, mas sim à confecção dos rústicos tecidos

que compunham a base do vestuário da maior parte da população (BACELAR, 2001

apud BONADIO, 2004, p. 96).

Ainda durante o tempo de realização das feiras de muares, cogitou-se a instalação de

uma indústria têxtil em Sorocaba, incentivada por Luiz Mateus Maylasky, por meio de uma

sociedade, conforme publicação do jornal O Araçoiaba

Consta-nos que os srs. tenente-coronel Francisco Gonçalves d’Oliveira e Luiz

Matheos Maylasky pretendem organizar nesta cidade por meio de acções uma

sociedade para fabrica de tecido de algodão, para cujo fim dezejão fazer uma reunião

dos habitantes desta cidade. Julgamos de utilidade a ideia, e fazemos votos para que

se leve isto a efeito (O ARÁÇOIABA, 17 fev 1867, p.4).

Essa tentativa de construção de uma fábrica de tecidos não vingou, pois, nesse momento,

prosperava o cultivo do algodão. Conta Almeida (1969) que, em 1866, a safra de algodão foi

de 27.291 arrobas. Entrava mais dinheiro que por meio das feiras, e elas foram se acabando.

Era melhor plantar algodão do que viajar e sofrer por esses mundos. Normalmente o capital

acumulado pelos negociantes de muares era reinvestido nessa mesma atividade, entretanto, a

partir da segunda metade do século XIX outras possibilidades de investimentos passaram a ser

consideradas por esses negociantes de tropas, que começam a aplicar seus dividendos também

na lavoura do algodão.

Um grande incentivador da cultura do algodão foi Luis Matheus Maylasky, estrangeiro

que chegou a Sorocaba por volta 1865, personagem de importância na história de Sorocaba, e

que tem causado polêmica entre os historiadores locais dada a sua origem nebulosa e rápida

prosperidade aqui conseguida. Foi negociante de tropas, plantador de algodão e idealizador da

construção da Estrada de Ferro Sorocabana, fundador de sociedades culturais, como o Clube

Germânia e o Gabinete de Leitura Sorocabano em atividade até os dias de hoje.

31

A pertinácia de Maylasky não foi em vão: entre os anos de 1861 a 1875, Sorocaba

tornou-se o mais importante centro de exportação de algodão da província de São Paulo. “Sua

atividade como município produtor de sementes foi mais duradoura que a dos demais, e seu

campo de influências nesse sentido fez-se sentir em outras províncias do Império ao raiar da

década dos 70 do século XIX” (CANABRAVA, 1984, p. 123). O aumento das exportações de

algodão ocorreu devido à Guerra da Secessão nos Estados Unidos (1861-1865), país que sempre

foi o principal fornecedor desse produto para a Inglaterra, o maior consumidor de algodão na

época. Com a interrupção das exportações norte-americanas, a Inglaterra necessitou de outros

exportadores, o Brasil entrou como fornecedor e a região de Sorocaba passou a ter destaque no

fornecimento do algodão. Essa situação ainda foi favorecida pelo fato de Sorocaba já realizar

o cultivo de algodão herbáceo de melhor qualidade para a indústria têxtil.

Em 1871, juntamente com um grupo de capitalistas sorocabanos, Maylasky aventou a

possibilidade de construção de uma estrada de ferro ligando Sorocaba a São Paulo, num

percurso de 111 km. Em julho de 1875, essa possibilidade tornou-se realidade: inaugurava-se

a Estrada de Ferro Sorocabana. Aberta ao tráfego, a Estrada de Ferro Sorocabana visava

principalmente o escoamento da produção de algodão, mas teve a funesta sorte de ficar pronta

num momento de queda dos preços do algodão e de sua produção e, já em seu primeiro ano,

estar bastante endividada com os gastos de sua construção (ARAUJO NETO, 2005). Com o

fim da guerra civil nos Estados Unidos, após algum tempo, esse país recuperou a produção

algodoeira, retomando o fornecimento desse material à Inglaterra. A própria Câmara de

Sorocaba reconheceu, em 1874, que “ [...] durante o anno de 1875 será a cultura de algodão

feita exclusivamente pelo braço escravo, pois que o baixo preço porque está sendo cotado na

praça é tão diminuto que mais vale ao agricultor abandonal-a para plantar cereaes para o

consummo da cidade” (CANABRAVA, 1984 p. 243).

A queda na produção de algodão afetou mais intensamente os pequenos produtores e

corria-se o risco de eles abandonarem o plantio de algodão. Entretanto, a cultura se manteve,

graças, sobretudo, à ampla perspectiva de negócios de Luiz Matheus Maylasky, um dos

fundadores da Estrada de Ferro Sorocabana. Esta, em construção, dependia basicamente do

transporte do algodão, o principal produto agrícola. Para impedir que os pequenos lavradores

abandonassem a cultura do algodoeiro, como estava acontecendo em outras partes da província,

incapazes de suportar a depreciação do produto, os mais importantes comerciantes de algodão

de Sorocaba, à frente dos quais estava Maylasky, mantiveram um sistema de adiantamento

àqueles plantadores e se esforçaram por pagar-lhes um preço satisfatório (CANABRAVA,

1984, p.243).

32

Se, pelas contingências do momento, a Estrada de Ferro Sorocabana não atendeu ao que

fora proposto de início, ou seja, o escoamento da produção algodoeira, ela contribuiu para a

chegada de pessoas, a entrada de produtos e a instalação de casas comerciais não ligadas à feira

de muares, como: confeitarias, charutarias, armazém de secos e molhados, gráficas entre

outros. Assim, as distâncias diminuíram e melhorou a comunicação entre as cidades da região

e a capital.

A Estrada de Ferro representava, pois, a modernidade, símbolo do progresso urbano,

porém convivia com a feira de muares, expressão do rústico e do rural. Sobre a ferrovia como

grande inovação do século XIX e suas dimensões assumidas mundialmente Eric Hobsbawm

(2010, p. 85) compara:

A estrada de ferro, arrastando sua enorme serpente emplumada de fumaça, à

velocidade do vento, através de países e continentes, com suas obras de engenharia,

estações e pontes formando um conjunto de construções que fazia as pirâmides do

Egito e os aquedutos romanos e até mesmo a Grande Muralha da China empalidecer

de provincianismo, era o próprio símbolo do triunfo do homem pela tecnologia.

No entanto, em Sorocaba, até 1870, o comércio de animais não era visto como atividade

decadente ou em vias de superação pelo progresso representado pela expansão do transporte

ferroviário.

Já no final do Império, ao mesmo tempo que diminuía o trânsito e decaía o comércio de

animais, questionava-se a validade da feira como condição de progresso urbano. Até então, ela

nunca havia sido pensada como fator de degradação da cidade. As melhorias implementadas na

cidade garantiam as áreas utilizadas pelos condutores para a passagem das tropas no centro

urbano. No entanto, algumas medidas de saneamento, como o cercamento dos terrenos

particulares, a conservação dos muros fronteiros às ruas e a confecção de “testadas” das

propriedades – calçada fronteira – eram incompatíveis com a sujeira e o mau cheiro dos pastos

de aluguel e das ruas usadas para a passagem de tropas (BADDINI, 2002, p. 213).

Em 1897, um fator externo alertou para as necessárias mudanças sanitárias que deveriam

ocorrer em Sorocaba: a febre amarela.

Sorocaba foi flagelada. Todos sofreram. Centenas de sorocabanos morreram. O

comércio fechou. A vida da cidade decaiu. [...] Era uma calamidade incomparável.

Médicos, farmacêuticos, eclesiásticos, enfermeiros e inúmeras pessoas do povo

ajudavam a socorrer os doentes atacados daquela infausta febre. Pelas ruas da cidade

de Sorocaba, os carretões andavam com seus homens [...] Muitas famílias fugiram de

Sorocaba para cidades vizinhas ou procuravam sítios nos arredores da cidade

flagelada (GASPAR, 1967, p. 13).

33

O aparecimento da doença fora atribuído a dois “camaradas de tropas” que a trouxeram

por ocasião da feira. Entretanto, a cidade sempre padecera com os problemas sanitários, como

é possível observar a partir de crítica presente no jornal Cruzeiro do Sul, em seu primeiro

número, num tempo posterior a ocorrência da epidemia de febre amarela.

Um visitante em Sorocaba, estando comnosco, censurou a Municipalidade em relação

á limpeza publica, salientando os montões de lixo que se encontram no largo da

Independencia, donde exhala mau cheiro, e tambem os pés de couve que se acham, ha

uma semana, em pleno largo do Rosario. [...] É de necessidade urgente que a Camara

colloque um mictorio no largo da Matriz, afim de acabar de vez, com o fètido que

exala das paredes lateraes da egreja (CRUZEIRO DO SUL, 12 jun 1903, p. 2).

Ao fim da epidemia de 1897, a cidade foi retomando suas atividades e retornaram

também aqueles que a tinham deixado. Como pairava o medo de uma nova epidemia, por

medida preventiva, o trânsito das tropas foi desviado da área urbana. Entretanto, essa medida

não foi suficiente para impedir novo surto da doença dois anos depois. Sorocaba adentrou o

século XX assolada, novamente, pela febre amarela.

É importante assinalar que o declínio das exportações de algodão e da feira de muares

gradativamente foi dando abertura para uma nova possibilidade de investimentos

aparentemente menos instável. Os donos de fortuna que, paralelamente ao comércio de tropas,

também investiam no algodão, conseguiram superar esses períodos de crise. Os grandes

investidores viam, na indústria, o caminho para a prosperidade, que seria fruto da reunião de

fatores significativos, ou seja, a oferta empresarial somada à produção da matéria-prima, o

algodão, tendo ainda uma mão de obra disponível, fosse ela formada por imigrantes ou até

mesmo por escravos. Esses elementos, aliados a uma tecnologia para a produção do tecido,

despontavam como promissores para o desenvolvimento da indústria têxtil. E essa indústria,

posteriormente, consolidou-se tão fortemente que Sorocaba, por muito tempo, ficou conhecida

como a Manchester Paulista, em alusão à cidade inglesa industrial de Manchester.

Para a consecução desse intento, o mesmo grupo de investidores que instalou a

Companhia Sorocabana, em 1870, no ano seguinte, criou uma sociedade anônima denominada

“Indústria Sorocabana”, com a pretensão de criar uma fábrica de tecidos. Essa iniciativa recebeu

o apoio da imprensa local, mas não conseguiu se estabelecer nessa época. Somente em 1882,

instalou-se a primeira grande fábrica têxtil de Sorocaba, a Nossa Senhora da Ponte, pertencente

a Manoel José da Fonseca, um dos homens mais ricos de Sorocaba na época, comerciante e

exportador de algodão.

34

1.1 Os operários: nova força de trabalho “Ah, homens de pensamento

Não sabereis nunca o quanto

Aquele humilde operário

Soube naquele momento!

Naquela casa vazia

Que ele mesmo levantara

Um mundo novo nascia

De que sequer suspeitava.

O operário emocionado

Olhou sua própria mão

Sua rude mão de operário

De operário em construção

E olhando bem para ela

Teve um segundo a impressão

De que não havia no mundo

Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão

Desse instante solitário

Que, tal sua construção

Cresceu também o operário.

Cresceu em alto e profundo

Em largo e no coração

E como tudo que cresce

Ele não cresceu em vão

Pois além do que sabia

- Exercer a profissão -

O operário adquiriu

Uma nova dimensão:

A dimensão da poesia.”

(Vinicius de Moraes)

O operário imigrante estrangeiro tornou-se o elemento novo não só na sociedade

sorocabana como de todo o país. Essa nova força de trabalho passou a compor o quadro social

brasileiro, desempenhando funções específicas e podendo ser dividida em categorias. Segundo

Ferreira (1978, p.49), houve o imigrante de origem urbana, que acumulava conhecimentos de

técnicas comerciais e funanceiras e trazia consigo algum pecúlio. Esse imigrante se instalou

nos centros urbanos e, inicialmente, dedicou-se a atividades de importação de produtos,

transformando-se, mais tarde, em industrial.

Outra categoria seria o colono típico, emigrado para trabalhar nas plantações de café,

pois em seu país de origem já trabalhava na lavoura e trazia consigo família numerosa, que

conseguiu firmar-se como colono e, mais tarde, como pequeno agricultor, possuidor de alguma

terra.

Houve uma outra categoria constituída de imigrantes de origem urbana, pobre, que aqui

vieram para trabalhar na lavoura de café, porém não se adaptaram a um regime de

semiescravidão. Abandonaram a terra e passaram a constituir um contingente de trabalhadores

35

de baixo nível ou desqualificados para o trabalho industrial, que, juntamente com os

trabalhadores brasileiros, nas mesmas condições, compuseram uma grande massa de

subempregados.

Outra categoria existente, porém não numerosa, era a formada pelos operários

qualificados, desejados pelos industriais brasileiros que os contratavam rapidamente. A

existência de uma categoria formada por operários qualificados reafirma o baixo nível de

qualificação da categoria anterior mencionada.

E uma última categoria era aquela formada pelos refugiados e deportados devido a

problemas políticos em sua terra de origem. Foram os imigrantes idealistas, cuja contribuição

ao processo de politização dos trabalhadores brasileiros foi fundamental.

1.2 A paisagem e tudo o mais se transforma: surgem as fábricas

Antes de adentrar ao período de industrialização de Sorocaba, cabe registrar uma

iniciativa de instalação de uma fiação em Sorocaba, anterior à Fábrica Nossa Senhora da Ponte.

Por volta de 1851, começou a ser montada, por Manoel Lopes de Oliveira, um dos pioneiros da

cultura do algodão, uma pequena fábrica com teares mecânicos, a primeira da província de São

Paulo, com a finalidade de descaroçar, cardar, fiar e tecer algodão. Destinava-se à fiação e à

tecelagem de algodão grosso, utilizado para confecção de roupas para escravos e pobres.

A matéria-prima utilizada era o algodão arbóreo, abundante em Sorocaba, porém de

qualidade inferior. A mão de obra utilizada nesse empreendimento foi a escrava: contava com

quatro escravos e, conforme Almeida (1969, p. 237) os “escravos fizeram emperrar a máquina”

por inabilidade técnica. Outros fatores concorreram para o insucesso dessa fábrica, como a

inexperiência do seu proprietário no ramo têxtil, a dificuldade na obtenção da matéria-prima

etc. Na década de 1860, essa fábrica estava com suas atividades praticamente paralisadas e não

resistiu por muito mais tempo. Segundo o depoimento do próprio Manoel Lopes d’Oliveira,

enviado ao Ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, em 1864, o seu

estabelecimento só havia fabricado fio de algodão, pois dava mais lucro do que se fosse tecido.

No tempo em que trabalhava, chegou a produzir 300 onças de fio por dia, (cerca de 8 quilos),

mas sua capacidade era de 800 onças. Referia-se à necessidade de “uma pessoa com a necessaria

practica” para dirigir o estabelecimento, mas no momento, com o preço alto do algodão, não se

encontrava, na verdade, interessado na fabricação de tecidos (CANABRAVA, 1984, p.280).

36

Em 1864, havia quatro fábricas no município: uma de chapéus, duas de velas de cera e

uma de tecidos. Em 1887, eram 18: três de cerveja, quatro de chapéus, duas de licores, duas de

redes, uma de tecidos, uma de velas de cera, quatro de vinho e uma de vinagre (BADDINI,

2002). Segundo a autora, nessa relação ainda faltam duas fábricas de massas, uma de café em

pó e uma de louças, organizadas entre 1885-87, e outras duas fábricas de vinho, que, como as

outras, utilizavam matéria-prima produzida na região. Somavam-se, assim, 24 estabelecimentos

industriais no final do Império. Mesmo podendo dispor de escravos, nem todas as fábricas de

pequeno e médio porte o faziam, pois pertenciam, em sua maioria, a estrangeiros

desacostumados com esse tipo de mão de obra.

Figura 1 - Operários da fábrica de chapéus de Raszl e Rogick – Século XIX.

Fonte: Museu Histórico Sorocabano.

Os estrangeiros traziam técnicas e experiência, o que faltava nos moradores da cidade,

além de capital disponível para novos empreendimentos. Nos jornais da época, multiplicam-se

os anúncios de estabelecimentos comerciais dominados por imigrantes estrangeiros,

notadamente os italianos.

A partir da década de 1880, a maior parte das manufaturas e fábricas organizadas em

Sorocaba pertenciam a imigrantes italianos, como a Fábrica de Calçados de Alfredo Malzone e

a Fábrica de Banha de Francisco Matarazzo, (1883), a Fábrica de Macarrão de Antonio Fazano

e a Fábrica de Café em pó de Mathias Baddini, (1885), a Fábrica de Cerveja e Licores, que

utilizava matéria-prima da região de Salvador Argento, e a Fábrica de Calçados de Giuseppi

Argento.

37

O empreendimento de maior projeção dessa década ocorreu em 1882, com a instalação

da Fábrica de Tecidos Nossa Senhora da Ponte, pertencente a Manoel José da Fonseca. Esse

industrial trilhou um caminho totalmente diferente daquele assumido por Manoel Lopes de

Oliveira. Suas máquinas foram compradas de fornecedores de Manchester na Inglaterra. O

diretor da fábrica era Alexandre Marchisio, inglês com experiência na indústria têxtil, a matéria-

prima passou a ser o algodão herbáceo, que favorecia a produção de um tecido menos rústico e

a mão de obra empregada era a assalariada e livre, constituída em sua maioria por mulheres e

crianças.

Sorocaba vae tambem possuir uma machina de fiar e tecer. Já foram compradas nas

acreditadas officinas dos srs. Curtis, Sons & C. de Manchester, o machinismo preciso

pelo sr. A. Marchisio, enviado expressamente para esse fim pelo sr. Manuel José da

Fonseca, a quem vamos dever esse melhoramento. O local escolhido para o

assentamento das machinas é a margem do Supiriry, em terreno da exma. sra. D. Maria

Prestes, onde foi feita a inauguração dos trabalhos da linha ferrea sorocabana. Breve

deve aqui chegar o machinismo (DIÁRIO DE SOROCABA, 28 dez 1880, p.2)

A instalação dessa fábrica trouxe um elemento novo, até então pouco visto na sociedade

sorocabana: a mão de obra de mulheres e crianças, já que o seu proprietário, declaradamente

abolicionista, recusava-se a empregar escravos em sua fábrica. O Almanach de 1884 referiu-se

a esse estabelecimento fabril da seguinte forma:

A importante fábrica de tecidos denominada – Nossa Senhora da Ponte, pertencente

ao sr. Manoel José da Fonseca; [que] tece exclusivamente riscados, conhecidos no

mercado como brins sorocabanos; trabalha com 44 teares e suas machinas

correspondentes, tendo tambem a sua tinturaria, occupando para esses misteres um

numero de cento e vinte pessoas, na sua maior parte mulheres e crianças (MOURA,

1884 apud BADDINI, 2002, p. 270).

Figura 2 - Fábrica Nossa Senhora da Ponte.

Fonte: Museu Histórico Sorocabano.

38

Esse estabelecimento fabril, seguindo a lógica capitalista, totalmente incompatível com

o trabalho escravo, introduziu o trabalho de mulheres e crianças, tornando-se frequente, nos

jornais, anúncios como o que segue: “Precisa-se contractar rapazes de 12 a 15 annos e mulheres

para o serviço da machina de tecidos do sr. M. J. da Fonseca. Para tractar na mesma machina

(sic) com o sr. Alexandre Marchisio” (DIÁRIO DE SOROCABA, 23 fev 1882, p.2).

Apesar de ter iniciado suas atividades no começo de 1882, foi no mês de maio que essa

fábrica fez a apresentação de seus produtos ao público e, ao fazê-lo, contou com a presença da

imprensa, que se referiu entusiasticamente sobre o evento, sem deixar de comentar

discretamente a falta de incentivo por parte do governo.

Vimos hontem primeira peça de tecidos de algodão, sahida dos teares d’aquella

fabrica, isto é, o primeiro vagido que dá tam importante industria no sul d’esta

provincia. Si bem que nos parecesse um trabalho perfeito, diz contudo o sr. Fonseca

que ainda produzirá superiores. [...] Deve estar satisfeito comsigo mesmo o sr.

Fonseca: provou que um estabelecimento de tal ordem n’esta cidade não era uma

phantasia de utopisticos sonhadores, e, o que é mais, fel-o por propria conta. (DIÁRIO

DE SOROCABA, 5 maio 1882, p.3).

A sociedade sorocabana, seguindo os padrões característicos de uma sociedade

conservadora e machista, secundarizava as funções da mulher, ou seja, acreditava que ela

somente deveria se dedicar às lidas do lar, aos cuidados à família e ao marido. O recato era a

exigência maior para uma mulher da classe mais alta nesse tempo. Quase sempre reclusas em

seus lares, não eram vistas em lugares públicos, com exceção da igreja. A Igreja, e como não

poderia deixar de ser a Católica, era o único lugar público em que os representantes de todas as

camadas sociais e cores se reuniam, eliminando-se aparentemente as distinções. De fato, no

entanto, havia sempre uma separação espacial entre uns e outros, respeitando-se a posição social

de cada um (COSTA, 1977).

Essa realidade vivida pela mulher e descrita por Emilia Viotti da Costa era muito bem

sentida também pela mulher sorocabana do final do século XIX. Das páginas dos jornais da

época é possível vislumbrar qual a posição que a mulher ocupava na sociedade, mostrando a

que se resumia a presença da mulher nessa sociedade.

O coreto do Largo de São Bento foi inaugurado em 10 de outubro de 1880. A banda

“7 DE SETEMBRO”, aos domingos, tocava escolhidas peças de seu vasto repertório

e, para ouvi-la, enchia-se o pátio de pessoas de todas as idades, cores e profissão. Na

inauguração as moças, que tinham um lugar reservado rente às portas da igreja,

geralmente trajavam vestidos brancos, enfeitados com laços de veludo preto, ou de

outra cor discreta, liso (o vestido), apertado nos quadris e com mangas justas (DIARIO

DE SOROCABA, 27 nov 1880, p.3).

39

Entretanto, a mulher que ingressava no trabalho da fábrica era a pobre, aquela sem

muitas pretensões na vida e que necessitava auxiliar a família na sobrevivência. Mas, para

Manoel José da Fonseca, essa nova forma de trabalho era, acima de tudo, uma tarefa

humanitária ao oferecer trabalho para mulheres e crianças pobres. Foi esse um dos argumentos

que usou para convencer dona Maria Joaquina do Nascimento Ferreira Prestes, viúva do capitão

José Ferreira Prestes, a vender-lhe o grande terreno em que projetava edificar a fábrica, situado

às margens do córrego Supiriri e dos trilhos da Sorocabana e que, por isso, duplamente lhe

interessava (BONADIO, 2004). O prédio ficou pronto em 1881, quando começaram as

primeiras contratações, sempre anunciadas nos jornais.

Contraditório ou não, é sabido que havia escravos alugados que trabalhavam na fábrica

do Fonseca, como ficou conhecida a Fábrica Nossa Senhora da Ponte. Segundo o pesquisador

Carlos Carvalho Cavalheiro (2009), Joaquim Bueno, escravo do Cap. Julio Lopes de Oliveira,

fora alugado por seu senhor para trabalhar como operário na Fábrica Nossa Senhora da Ponte.

Já constava o nome desse escravo na lista do fundo de emancipação e, por ser ele casado com

mulher liberta, tinha prioridade sobre os demais. Ocorreu que sua esposa veio a falecer e

Joaquim perdeu classificação na referida lista do fundo, ficando em último lugar. O senhor não

teve dúvidas: procurou vender o escravo, agora que pela sua classificação demoraria a obter a

liberdade e, por conseguinte, a sua venda alcançaria um melhor preço. Enquanto havia a

iminência da libertação do escravo, o Cap. Julio Lopes de Oliveira procurou explorar a mão de

obra dele, alugando-o para trabalhar na fábrica. Depois, resolveu vendê-lo (CAVALHEIRO,

2009).

Para a compra da sua alforria, tinha Joaquim Bueno a quantia de 200$, faltavam-lhe

500$. Esse restante fora obtido a partir de contribuições feitas pelos operários livres da fábrica,

igualmente pobres, que, revoltados com a situação do colega, conseguiram arrecadar a quantia

suficiente para a sua liberdade.

Se, por um lado, a feira de muares, nas últimas décadas do século XIX, entrava em

declínio, por outro lado, apareciam novas atividades comerciais e econômicas, transformando

Sorocaba, antiga localidade rural, em uma cidade fabril, processo que se intensificou após a

República.

A bem-sucedida instalação da Fábrica Nossa Senhora da Ponte, a boa quantidade de

matéria-prima, no caso o algodão herbáceo, somadas a incentivos econômicos oferecidos pelo

recém instalado regime republicano, deram ânimo à instalação de outras indústrias, fruto da

política financeira do novo regime, conhecida por Encilhamento. Essa política tentou solucionar

um problema econômico e financeiro que se arrastava desde os últimos tempos do Império.

40

Nesse tempo, constatava-se que o meio circulante no país era incompatível com as novas

realidades do trabalho assalariado e do ingresso em massa de imigrantes. Ao assumir o

Ministério da Fazenda do governo provisório, Rui Barbosa baixou vários decretos com o

objetivo de aumentar a oferta de moeda e facilitar a criação de sociedades anônimas. A medida

mais importante foi a que deu a alguns bancos a faculdade de emitir moeda (FAUSTO, 2003).

Apesar dos desacertos em sua política econômica é inegável a visão de

desenvolvimento capitalista de Rui Barbosa. Essas iniciativas concorreram para expandir o

crédito. Formaram-se muitas empresas, “algumas reais outras fantásticas” (FAUSTO, 2003

p.252). A especulação cresceu nas bolsas de valores e o custo de vida subiu fortemente. Essa

política, vista por muitos críticos pelos seus efeitos negativos, no caso de Sorocaba, favoreceu

a instalação de três grandes fábricas de tecidos: a Santa Rosália, a Votorantim e a Santa Maria.

A fábrica Santa Rosália nasceu da sociedade entre George Oeterer e Frank Speers,

ambos engenheiros da Estrada de Ferro Sorocabana. Em 1890, Oeterer, desligado da ferrovia e

associado a Speers – que conhecera na São Paulo Railway e se tornaria seu genro – criou a

Santa Rosália, com capitais fornecidos por Francisco de Paula Mayrink, que garantiu os

recursos necessários para o empreendimento (BONADIO, 2004).

Em 1896, a fábrica já estava funcionando no arrabalde da cidade. Contava com um ramal

da ferrovia e vila operária e a mão de obra empregada era predominantemente formada por

mulheres e crianças.

Este opulento e magestoso edificio, para cuja construcção foram observadas com rigor

absoluto as regras da moderna engenharia, no que diz respeito a solidez, tamanho,

distribuição de luz e ventilação, é de uma architectura bellissima e offerece, pelos

artisticos ornatos que o revestem, a mais agradavel impressão ao visitante. A area

occupada é de 16.000 metros quadrados, tendo o edificio 291 metros de frente e 150

de fundo. São seus atuais proprietarios os srs. Commendador George Oeterer e

Francisco José Speers. [...] A fabrica está situada no bairro de Santa Rosália, ao lado

esquerdo do rio Sorocaba; além das casas de commercio e do pessoal superior, se acha

a villa operaria com cerca de 80 casas para residencia dos operários (ALMANACH

ILLUSTRADO, 1903, p. 101).

41

Figura 3 – Fábrica de tecidos Santa Rosália.

Fonte: Museu Histórico Sorocabano. Pedro Neves dos Santos, 1924.

A fábrica Votorantim pertencia ao Banco União de São Paulo, estabelecimento de

crédito que recebera do governo provisório a faculdade de emitir papel-moeda – parte da

política do Encilhamento – e comprou, em 1890, a fazenda Cachoeira do Votorantim, com a

pretensão de ali instalar uma fábrica de chitas, um tipo de tecido de algodão mais delicado.

Figura 4 - Fábrica de tecidos Votorantim.

Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.

42

Nessa área isolada e distante, na época, da área urbana de Sorocaba, fora construída a

fábrica que viria a ser a maior de Sorocaba e a segunda do estado de São Paulo. Foram

construídas: estamparia, represa, ferrovia e uma grande vila operária. Entrou em

funcionamento, em 1895, como Fábrica de Chitas do Votorantim, onde estampava o algodão

cru proveniente da Inglaterra. Já em 1902, a diretoria do Banco considerou a conveniência de

produzir o tecido aqui, decidindo-se pela ampliação de suas instalações, para a montagem das

seções de fiação e tecelagem, inaugurando-as em 1904.

Este importante estabelecimento está situado no bairro que llhe dá o nome, a seis

kilometros da cidade, occupando uma area de 21.600 metros quadrados; [...] Esta

fabrica cuja producção actual é de sete milhões e duzentos mil metros esta passando

por reformas importantissimas. Ao lado da estamparia vae ser construido num grande

edificio destinado às novas secções de fiação e tecelagem. Depois de montadas taes

secções, a fabrica Votorantim ficarà sendo, na sua especie, o primeiro estabelecimento

industrial da America do Sul (ALMANACH ILLUSTRADO, 1903, p. 101).

Durante o período da crise inflacionária do Encilhamento, fora fundada pela firma

Marchisio, Loureiro, Silvério & Companhia, a fábrica de tecidos Santa Maria, iniciando suas

atividades em 1896. Da sua inauguração até 1904, essa fábrica funcionou em condições

precárias, num prédio pequeno e insalubre. A partir desse ano, com a mudança de donos, seguiu

novos rumos.

[...] Felizmente em abril de 1904 a fabrica Santa Maria passava á firma Campos,

Kenworty & Companhia. Começou então a phase aurea para a modesta usina, que

transformou-se rapidamente, assumindo aspecto completamente novo, vendo os seus

pavilhões remodelados radicalmente, as suas installações de maquinaria reformadas e

augmentadas, a sua tracção modernisada com a electricidade, o seu conjunto predial

enriquecido com as construcções fortes e estheticas, as suas secções paralysadas

restauradas vagarosamente, as condicções do seu operariado facilitadas, já pela

melhoria do salario, já pelos cuidados higyenicos (ALMANACH ILLUSTRADO,

1914, p. 58).

43

Figura 5 – Fábrica de tecidos Santa Maria.

Fonte: Biblioteca Infantil Municipal de Sorocaba.

Em 1909, pensando em trabalhar com os tecidos produzidos pela Santa Maria, fundou-

se a S.A. Estamparia, construída em São Paulo. Em 1913, Alberto Kenworty, acionista da

Estamparia, participou da fundação da Fábrica Santo Antonio, última grande fábrica desse

período (ARAÚJO NETO, 2005).

Na última década do século XIX, Sorocaba viveu um tempo de transformações. O

impacto da atividade fabril sobre a estruturação do espaço urbano e da vida social foi sentido

no cotidiano. A paisagem urbana foi se alterando com novas construções, aberturas de ruas e

melhoria das já existentes, com ações como calçamento e melhoramento da iluminação,

instalação de redes de esgotos etc.

Aquela vida tranquila e pacata foi cedendo lugar a uma movimentação de pessoas. O

carro de boi, que transitava livremente pela área central, fazendo a distribuição da água e toda

sorte de produtos, foi sendo desviado para o entorno nos lugares mais distantes. O “cantar” do

carro de boi pelas ruas da cidade foi substituído pelo apito das fábricas. Os ritmos da vida foram

se alterando. A poeira levantada pelas tropas e pelo carro de boi foi cedendo lugar à fumaça das

chaminés das fábricas e das locomotivas da estrada de ferro.

Novas relações sociais surgiram advindas do processo de industrialização, que não pode

ser entendido como a simples instalação de indústrias, mas sim como um processo mais intenso

de afirmação das relações entre capital e trabalho, que consolidou as classes sociais. Entraram

em cena novas classes sociais muito bem definidas: os capitalistas e o proletariado. Nessa

época, não só a cidade de Sorocaba, mas o Brasil em geral, foi engendrando a concepção da

44

modernidade capitalista que se consolidou com a industrialização, o crescimento populacional,

as novas oportunidades e as relações de trabalho.

A reunião de fatores como a intensificação do cultivo de algodão, o aumento de linhas

da Estrada de Ferro, bem como os sucessivos investimentos no setor industrial contribuíram

para a expansão urbana e populacional. As fábricas estavam instaladas na área central da cidade,

exceto as fábricas Santa Rosália e Votorantim, fora do perímetro urbano, e atraíam pessoas

tanto da região quanto de fora do país; as plantações de algodão também absorviam

considerável número de trabalhadores. A estrada de ferro encurtava as distâncias, trazia e levava

pessoas e produtos, tornando a cidade conhecida por seu potencial e atraindo cada vez mais

interessados. O aumento populacional favorecia novas atividades urbanas decorrentes das

novas necessidades sociais, próprias do cotidiano da cidade que, por sua vez, geravam também

novas ocupações.

O comércio se diversificava, a imprensa se difundia, criavam-se associações recreativas

voltadas às famílias e novas profissões surgiam. As relações sociais passaram por mudanças

significativas. A mulher pobre deixou o lar e foi trabalhar fora tornando-se mão de obra

importante para a fábrica. As crianças foram trabalhar. Já apareciam com frequência, nos

jornais, oferta de emprego para esse público, os homens começaram a ter menos empregos.

Apesar dessas mudanças, alguns aspectos permaneceram. O poder político continuou

nas mãos dos grandes proprietários de terra, imbuídos ainda do pensamento escravocrata e a

pobreza continuou grassando. Mudou-se o senhor, que passou a ser o industrial, mas

permaneceu a relação de subserviência, estampada na figura do operário, quase sempre um

imigrante.

A grande indústria têxtil representava o lado mais avançado das relações capitalistas de

produção no Brasil. Em Sorocaba, esse tipo de indústria prevaleceu. Esse setor apresentava os

maiores índices de concentração de capital, força de trabalho e força motriz por unidade de

produção, além de alcançar as maiores taxas de valor da produção, seja por fábrica, seja por

setor (FOOT; LEONARDI, 1982). Em suma, a indústria têxtil era uma das que mais explorava

o proletariado no mundo (RODRIGUES, 1969).

1.3 A imigração

45

Como já mencionado, em Sorocaba, como em tantas outras cidades do Brasil, havia

negros escravizados, que trabalhavam na lavoura, nos serviços domésticos das casas de famílias

abastadas, no comércio e em outras ocupações.

De acordo com Prado Jr. (1983), a partir de 1850, os efeitos da suspensão do tráfico

negreiro começam logo a se fazer sentir. Cessara bruscamente, e ainda no momento sem

nenhum substituto equivalente, a mais forte corrente de povoamento do país, representada

anualmente por algumas dezenas de milhares de indíviduos. A lavoura logo se ressentiu da falta

de braços e o problema agravava-se anualmente.

Mesmo a transferência dos escravos das províncias do Norte - desinteressadas na

manutenção do sistema escravista – para as províncias do Sul – necessitadas de mão de obra

para a lavoura do café – solucionou o problema de escassez de braços. Passou-se a considerar

a possibilidade de introduzir no país a mão de obra de imigrantes europeus. Essa corrente

imigratória se intensificou após 1850; e passaram a coexistir, nas lavouras de café,

trabalhadores escravos e europeus livres, principalmente alemães e portugueses.

Esse novo tipo de colonização tinha, como características principais, a fixação dos

colonos nas próprias fazendas e grandes lavouras, trabalhando como subordinados e num

regime de parceria. A iniciativa pioneira desse tipo de colonização deu-se na fazenda de Ibicaba,

propriedade do senador Nicolau de Campos Vergueiro. Esse fazendeiro de café atraiu e

acomodou, em sua fazenda na cidade de Limeira, estado de São Paulo, entre 1847 a 1857, 177

famílias de alemães, suíços, portugueses e belgas. De início, o sistema de parceria apresentou-

se promissor, sendo, inclusive, adotado por outros fazendeiros.

No entanto, essa estranha combinação de trabalhadores livres e escravos não surtira

efeito e logo se verificou sua impraticabilidade, terminando em fracasso essa tentativa de

preencher os vácuos deixados pela carência de escravos com colonos europeus. Os

proprietários, habituados a lidar exclusivamente com escravos, continuavam a conservar muitos

deles trabalhando ao lado dos colonos e não tinham para com estes a consideração devida à sua

qualidade de trabalhadores livres (PRADO Jr, 1983).

O suíço Thomaz Davatz chegou ao Brasil em 1855 na condição de colono contratado

para trabalhar na Fazenda de Ibicaba, do senador Vergueiro. Era um homem com certa

instrução, que exerceu as funções de mestre-escola em sua terra natal. Partiu de uma Suiça

liberal em busca de uma vida melhor e pretendia economizar, aqui, o suficiente para poder

adquirir um pedaço de terra, mas não conseguiu se adaptar às condições de trabalho da fazenda

paulista, onde persistia o trabalho escravo. Logo percebeu que as condições oferecidas aos

46

colonos estrangeiros eram análogas à escravidão existente e as possibilidades de melhora eram

mínimas.

Os desentendimentos entre Davatz e o dono da fazenda, senador Vergueiro, foram

inevitáveis, culminando com uma revolta entre os colonos, liderados por Davatz. Dominada a

revolta pela polícia, Davatz obteve licença para retornar à Suiça. Lá chegando, em 1858,

escreveu um livro narrando tudo o que ele e outros colonos vivenciaram, procurando livrar os

conterrâneos das condições deploráveis em que aqui viviam.

Lindas descrições, relatos atraentes dos países que a imaginação entreviu; quadros

pintados de modo parcial e inexato, em que a realidade é por vezes deliberadamente

falseada, cartas ou informes sedutores e fascinantes de amigos, de parentes; a eficácia

de tantos prospectos de propaganda e também, sobretudo, a atividade infatigável dos

agentes de emigração mais empenhados em rechear os próprios bolsos do que em

suavizar a existência do pobre... – tudo isso e mais alguma coisa contribuiu para que

a questão da emigração atingisse um grau verdadeiramente doentio, tornando-se uma

legítima febre de emigração que já contaminou muita gente (DAVATZ, 1980, p. 47).

Corrobora essa situação o relato da escritora Zélia Gattai, nascida no Brasil, filha de

imigrantes italianos, em seu livro “Anarquistas, Graças a Deus”, sobre um episódio ocorrido

com seu avô materno quando ele, imigrante italiano, trabalhava numa fazenda de café em São

Paulo por volta de 1894, num tempo em que a escravidão no Brasil já havia sido extinta.

Notificados, certa vez, de que deviam reunir-se, à hora do almoço, para não perder

tempo de trabalho, junto a uma frondosa árvore, ao chegar ao local marcado para o

encontro, os colonos se depararam com um quadro deprimente: um trabalhador negro

amarrado à árvore. A princípio Eugenio Da Col não entendeu nada do que estava

acontecendo, nem do que ia acontecer, até divisar o capataz que vinha se chegando,

chicote na mão.[...] De repente, o capataz levantou o braço, a larga tira de couro no

ar, pronta para o castigo [...] revoltado, cego de indignação, o jovem colono [...] com

um rápido salto, atirou-se sobre o carrasco, arrebatando-lhe o látego das mãos. [...]

Nessa mesma tarde a família Da Col foi posta na estrada, porteira trancada para “esses

rebeldes imundos (GATTAI, 1994, p. 162).

Outra circunstância que, nessa mesma época, acentuou e precisou os caracteres

negativos da escravidão foi o início da indústria manufatureira no país. Nela não se empregaram

traballhadores servis, a não ser para tarefas secundárias e acessórias; a sua ineficiência para os

serviços mais delicados e complexos de manufaturas logo seria percebida; sem contar a

vantagem financeira maior que representava, para a indústria, o pagamento de salário em vez

do preço do escravo (PRADO JR, 1983).

O autor salienta que o escravo brasileiro era, em regra, o africano boçal recrutado entre

as nações de mais baixo nível cultural do continente negro. Os povos negros mais cultos eram

os do Sudão, isto é, de regiões situadas ao norte do Equador, onde o tráfico fora proibido desde

47

1815. Essa constatação pode corroborar o ocorrido em Sorocaba, em 1852, quando fora

montada a fábrica de tecidos com teares mecânicos por Manoel Lopes de Oliveira, que não

obteve êxito. Entre várias justificativas para o insucesso estava a falta de habilidade e de

inteligência dos escravos para lidar com as máquinas.

Por volta da década de 1870, a escassez de braços tornou-se aguda novamente, em

virtude do considerável incremento da lavoura cafeeira, principalmente no estado de São Paulo.

A campanha abolicionista recrudescia e a permanência da escravidão era uma questão de tempo.

É importante assinalar que, segundo Fausto (2003), quando as classes empoderadas

libertavam escravos por um ato de generosidade do senhor isso levava os beneficiados ao

reconhecimento e à obediência. Abrir caminho à liberdade por força da lei gerava, nos escravos,

a ideia de um direito, o que conduziria o país à guerra entre as raças. Por isso, afirma, Dean

(s/d, p. 42):

A escravidão representava mais do que um mero desafio técnico ou financeiro, era a

base social, no Brasil, de trezentos anos de exploração agrícola. Sem embargo disso,

em contraste com as elites de outros sistemas de plantações, os paulistas acabaram

compreendendo que precisavam fomentar ativamente a conversão num sistema de

mão-de-obra livre se quisessem que a economia de exportação continuasse a crescer.

Em 1871, a assembléia provincial votou um subsídio para as companhias formadas

com a finalidade de transportar camponeses italianos. Percebeu-se também a

necessidade de abolir rapidamente a escravidão, a fim de estimular o fluxo de

trabalhadores livres.

A própria construção das ferrovias inovou as relações de trabalho no país já em meados

do século XIX, pois em sua construção foram utilizados, quase exclusivamente, operários

livres. A política para a implantação das estradas de ferro de 1852 proibia a utilização do braço

escravo nos trabalhos da estrada.

A companhia se obrigará a não possuir escravos, a não empregar no serviço de

construção e custeio do caminho de ferro senão pessoas livres que, sendo nacionais,

poderão gozar da isenção do recrutamento, bem como do serviço ativo da Guarda

Nacional, e sendo estrangeiro, participarão de todas as vantagens que por lei forem

concedidas aos colonos úteis e industriosos (LEI 641, 26 jun, 1852).

Todavia, seria ingenuidade pensar que não houve a mão de obra de escravos na

construção e mesmo na manutenção das estradas de ferro no Brasil, que tiveram grande impulso

a partir de década de 1870, data de início da construção de Estrada de Ferro Sorocabana. Por

ocasião da aprovação da lei, houve um abrandamento da restrição: a empresa não poderia

possuir escravos, mas poderia alugá-los (LAMOUNIER, 2008, p. 240).

48

Muitos autores têm enfatizado a legislação sobre o assunto para mostrar as

características capitalistas das empresas ferroviárias, assumindo que, por proibir o emprego de

escravos, a lei obrigava as companhias a empregar “trabalho assalariado” (a lei dizia apenas

que a companhia devia empregar “pessoas livres”). Escravos, imigrantes e trabalhadores

brasileiros livres e pobres constituíram a grande maioria dos trabalhadores nas obras de

construção das estradas de ferro no Brasil (Idem, 2008, p. 243).

A reunião desses fatores constituiu forte estímulo para medidas de incentivo à

imigração. Coincidentemente, nesse tempo, iniciou-se, nos Estados Unidos, uma política de

restrições à imigração; e o Brasil abria-se para o movimento migratório com promessa de

avanço econômico e entrava em cena um novo país de grande emigração, a Itália, como

resultado das perturbações políticas e sociais que atravessava. E o italiano, tanto pela questão

de clima, como de afinidade maior com as condições do Brasil, adaptou-se melhor e mais

facilmente que o alemão e outras populações do norte da Europa. O italiano era um trabalhador

mais rústico e menos exigente e aceitara de boa vontade as duras tarefas da lavoura brasileira

(PRADO JR., 1983).

No entender de Prado Jr., o progresso do trabalho livre foi, em grande parte,

condicionado pela decadência do regime servil. Entretanto, a presença do trabalhador livre,

através do exemplo e da palavra, conspira permanentemente contra a disciplina e a submissão

do escravo. “Se dantes a servidão corrompia o homem livre, agora é a liberdade que corrompe

o escravo” (Idem, 1983 p. 191).

Em 1875, iniciou-se a emigração italiana para o Brasil, de maneira tímida. No ano

seguinte, 1876, o país recebeu por volta de 7 mil italianos. Entretanto, os estrangeiros vieram

para o Brasil não mais na condição de colonos, visto que o sistema de parceria fora abandonado.

Naquele momento, os trabalhadores instalaram-se nas fazendas como homens livres e

assalariados.

Nas imigrações passadas, os trabalhadores vinham do exterior com contrato de trabalho

já assinado, o que era arriscado para o contratante, pois muitas vezes os imigrantes eram velhos

e sem forças para o trabalho, trazendo prejuízos para os empregadores no Brasil. Nessa nova

fase, o governo brasileiro incumbiu-se de fazer propaganda nos países emigratórios e

subvencionar o transporte dos imigrantes, que se dispusessem a vir trabalhar na lavoura. Esse

tipo de recrutamento foi denominado imigração subvencionada e atendeu, de imediato, as

necessidades dos grandes proprietários das fazendas de café de São Paulo. Entretanto, vários

críticos desse tipo de imigração consideravam a “colonização” a longo prazo mais vantajosa

para o país. Seus partidários argumentavam que o principal era incrementar o povoamento do

49

país e a questão de braços para a grande lavoura iria resolver-se naturalmente, no futuro, como

consequência de tal incremento: dos núcleos coloniais sairiam logo os trabalhadores

necessários. E havia a vantagem de tornar a imigração para o Brasil muito mais atraente,

oferecendo aos candidatos, desde logo, a possibilidade de se tornarem proprietários. Sem contar

as vantagens de ordem social, pois formavam-se, assim, verdadeiros povoadores, fixados na

terra e com ela identificados, em vez de populações flutuantes e desenraizadas de mercenários

(PRADO JR, 1983).

Essa argumentação, no entanto, não fora considerada pela urgência dos fazendeiros de

café, que mantinham o mesmo pensamento que prevaleceu no Brasil durante todo o tempo da

escravidão: a preferência em comprar escravos adultos, para suprir suas necessidades com um

novo carregamento de escravos. Com raras exceções, não houve tentativas de se ampliar o

crescimento da população escrava já instalada no Brasil. A fertilidade das mulheres escravas

era baixa. Além disso, criar uma criança por doze ou catorze anos era considerado um

investimento de risco, tendo-se em conta as altas taxas de mortalidade, decorrentes das próprias

condições de existência (FAUSTO, 2003).

Os grandes proprietários, ao introduzirem o trabalhador livre em suas lavouras,

depararam-se com uma situação desconhecida nos tempos da escravidão, a instabilidade da mão

de obra. Ao contrário do escravo, que estava preso a seu empregador, o trabalhador livre

poderia, a qualquer momento, abandonar a lavoura e seguir em busca de possibilidades

melhores de trabalho e de vida ou, ainda, retornar a sua terra natal, o que representava o desejo

da maioria deles. Para conter, em parte, essa instabilidade, forçando o trabalhador a permanecer

na lavoura, a saída encontrada foi reter o trabalhador por dívidas. Pagando-lhe salários

reduzidos e vendendo-lhe, ao mesmo tempo, por preços elevados, os gêneros necessários para

o seu sustento, o empregador conseguiria, com relativa facilidade, manter seus trabalhadores

sempre endividados e, portanto, impossibilitados de partir (PRADO JR, 1983).

O Brasil, ao lado dos Estados Unidos, Argentina e Canadá, foi um dos países que

recebeu milhões de europeus e asiáticos, que vieram para as Américas com a esperança de

encontrar trabalho e melhorar de vida. De acordo com Boris Fausto (2003), cerca de 3,8 milhões

de estrangeiros entraram no Brasil entre 1887 e 1930. Muitos, senão todos, vinham atraídos

pela propaganda enganosa que se fazia na Europa sobre o Brasil, com promessas – de lotes de

terra, sementes, ferramentas, plantas, casa etc – que nunca se concretizaram. O período de 1887

– 1914 concentrou o maior número, com a cifra aproximada de 2,74 milhões, cerca de 72% do

total. A Primeira Guerra Mundial reduziu muito o fluxo, mas após o conflito (1918)

constatamos uma nova corrente imigratória, que se prolongou até 1930. Apesar do afluxo de

50

imigrantes ser grande no Brasil, houve anos em que o número de saídas era igual ou superior

ao número de entradas. Em 1900, entraram, pelo porto de Santos, 21.038 imigrantes e saíram,

pelo mesmo porto, 21.917.

A tabela abaixo representa a imigração líquida no Brasil no período de 1881 – 1930 (em

milhares)

Tabela 1 – A imigração líquida no Brasil

Período Chegada Portugueses Italianos Espanhóis Alemães Japoneses

1881-1885 133,4 32 47 8 8 -

1886-1890 391,6 19 59 8 3 -

1891-1895 659,7 20 57 14 1 -

1896-1900 470,3 15 64 13 1 -

1901-1905 279,7 26 48 16 1 -

1906-1910 391,6 37 21 22 4 1

1911-1915 611,4 40 17 21 3 2

1916-1920 186,4 42 15 22 3 7

1921-1925 386,6 32 16 12 13 5

1926-1930 453,6 36 9 7 6 13

FONTE: BETHELL, L. The Cambridge History of Latin America, vol. IV, p. 131 apud FAUSTO, 2003, p. 275

Os italianos foram a principal etnia que forneceu mão de obra para a lavoura de café.

Entre 1887 e 1900, 73% dos imigrantes que entraram no estado de São Paulo eram italianos,

embora nem todos tenham se fixado na agricultura. A pobreza dessa gente se revela, entre

outros dados, pelo fato de que os subsídios oferecidos pelo governo paulista representaram uma

forte atração (FAUSTO, 2003).

Em seu livro Città di Roma, Zélia Gattai, ao relatar os motivos que trouxeram seus avós

italianos, tanto maternos como paternos, para o Brasil, acaba por corroborar a questão da quase

expulsão dos italianos da Itália. Apesar de terem motivos diferentes para a vinda, os objetivos

eram os mesmos, ou seja, a esperança de vida melhor. Coincidentemente, e isto foi descoberto

muitos anos depois, as duas famílias embarcaram em Gênova no navio Città di Roma, em 1890,

rumo ao Brasil: “tinham histórias iguais, porém diferentes”. Sobre essa afirmação, seu avô

materno explicou-lhe:

51

Somos, nós e eles italianos, não somos? Só que eles são toscanos e nós, vênetos. Muito

diferentes, não é? Eles eram anarquistas e nós católicos. Mais diferentes, impossível.

A viagem deles teve uma finalidade política. Queriam reformar o mundo. A nossa

econômica. Queríamos ganhar dinheiro. Nem eles reformaram o mundo nem nós

ganhamos dinheiro. Viajamos no mesmo navio, o Città di Roma. Tinhamos cinco

filhos, eles também tinham cinco filhos [...] essa viagem nos roubou uma filha, roubou

uma deles, também: Hiena e Carolina (GATTAI, 2000, p.22).

As “histórias iguais, porém diferentes”, por mais contraditórias que possam parecer,

demonstram quão forte era a atração para outro lugar em busca de melhores condições de vida.

Só se decide partir da terra natal quando ela nega a seus filhos uma vida digna. Por isso, nos

grupos de imigrantes, havia jovens, velhos, crianças, religiosos ou pessoas totalmente avessas

a qualquer tipo de doutrinação religiosa, idealistas etc. A vinda de famílias inteiras reforçava

que elas estavam sendo expulsas de suas terras. Tinham, portanto, a intenção de construir vida

nova numa terra nova e, para isso, enfrentavam longas viagens em condições precárias, muitas

vezes nos porões dos navios e nem sempre as crianças pequenas resistiam à longa travessia do

oceano.

Segundo Holanda (1980, p.19),

A primeira ideia que um mundo novo oferece a um emigrante é frequentemente a de

uma esfera de possibilidades infinitas e onde a capacidade de ação não encontra

estorvos. A aptidão para emigrar envolve, sem dúvida, tal capacidade, [...] mas

envolve também uma capacidade de idealizar em excesso a terra procurada, “terra

prometida”, criando imagens falsas ilusórias.

A história da vinda dos pais de Elvira Boni Lacerda, filha de italianos, nascida em São

Paulo, contada para Angela de Castro Gomes não se distancia da história de Zélia Gattai e tantos

outros.

Meu pai se chamava Ângelo Boni, e minha mãe, Tersila Aciratti Boni. Eles eram

italianos, de Cremona, e chegaram aqui como imigrantes no fim do século passado.

[...] a vida lá era difícil. Então eles vieram, imaginando que aqui seriam recebidos com

mais felicidade do que lá. Levaram de Gênova a Santos 24 dias de navio [...] ficaram

em Santos só poucos dias, e depois foram transferidos para a capital, para São Paulo.

Não consigo esquecer mamãe contando que fez a viagem de Santos a São Paulo com

as crianças, meu pai e outros imigrantes num carro cheio de animais: burros, cavalos...

[...] Nessa época, ela já tinha três filhos pequenos, todos os três homens. Dois

conseguiram envelhecer, e o terceiro morreu com 15 meses, pouco depois de terem

chegado (BONI, apud GOMES, 1988, p. 20).

Muitos emigrantes acalentavam o sonho de ter a mesma sorte de Francisco Matarazzo,

que deixara a cidade de Castellabate, na Itália, para vir ao Brasil e tornou-se um dos maiores

industriais desta terra. Durante o período de 1901-1930, a proveniência étnica dos imigrantes

52

de São Paulo tornou-se mais equilibrada. A proporção de italianos caiu para 26%, seguidos

pelos portugueses (23%) e pelos espanhóis (22%).

A emigração fora um expediente utilizado pelo governo itlaliano para resolver seus

problemas econômicos, sociais e políticos. Constantino Ianni, em seu livro “Homens sem paz –

Os conflitos e os bastidores da emigração italiana”, publicado em 1963, aborda a questão da

emigração italiana, compreendendo o período de 1860, data da unificação da Itália, até 1960,

época de seu estudo. Nessa pesquisa meticulosa, afirma o autor que as migrações não costumam

ser estudadas do ponto de vista dos interesses humanos e sociais das milhares ou milhões de

pessoas que dela participam direta ou indiretamente e que a posição especial da emigração no

quadro geral da vida italiana não pode ser compreendida sem que se tenham em conta os

variados interesses que a envolvem.

“Mandamos para o lado de lá dos mares a única mercadoria de que temos abundância:

o homem; e ao longo dos mares nos tem vindo, em troca, e nos vem, uma larga faixa

de ouro” – referia-se às remessas de economias dos emigrantes – “que não ignoramos,

não, de que lágrimas e de que sangue seja feita...” (GIUSTINO FORTUNATO, 1909

apud IANNI, 1972, p. 18).

As vicissitudes pelas quais passavam os emigrantes italianos começavam na própria

terra natal. O governo italiano anunciava-se pobre: “A Itália é pobre” – mas não para todos. E

via, na emigração dos seus filhos, uma solução para a situação crítica na qual vivia o país.

A emigração italiana, provocada pelas péssimas condições econômicas, e financeiras

da Italia, ainda convalescente das lutas pela sua unificação, era a única saída para o

seu governo, que se via às voltas com o desemprego ou superpovoamento. Assim

mesmo, essa medida provocou sérias críticas, na península. Escritores e jornalistas

combatiam esse êxodo em massa, sem qualquer providência que amparasse os pobres

imigrantes, que davam um salto no escuro, sem conhecer o país para onde iam, nem

suas condições de trabalho (PENTEADO, 2003, p.32).

Foram os pobres, principalmente do Sul, que emigraram maciçamente, enriquecendo

cada vez mais as Companhias de Navegação italianas. Houve um tempo em que o país que

pretendesse receber trabalhadores italianos, antes mesmo de tratar com as autoridades

governamentais, poderia fazê-lo com as sociedades de navegação, “tratando com elas da

importação de um dado número de imigrantes, contra o pagamento da importância da viagem”,

como fazia o estado de São Paulo para atender a procura por “braços para a lavoura” pelos

fazendeiros. (IANNI, 1972, p. 21)

Os representantes das companhias de navegação percorriam os povoados, as vilas da

península, “à caça dos que se dispunham a abandonar o seu país, animados pela oferta de

53

viagem grátis acompanhada das mais mirabolantes promessas”, no caso de emigrarem para o

Brasil. Os representantes das promessas “ganhavam de cinco a dez liras por cada emigrante que

aliciavam e mandavam ao porto de embarque para ser transportado para Santos”. Muitas

cidadezinhas italianas ficaram esvaziadas de seus filhos. Para receber a subvenção, na forma de

pagamento da passagem pelo governo paulista, os emigrantes deveriam ser camponeses,

entretanto, vinha todo tipo de gente. Em decorrência desses fatos, em 1902 a emigração

subvencionada foi proibida pelo governo italiano através do Decreto Prinetti, ministro das

Relações Exteriores da Itália (IANNI, 1972). Esse decreto tinha a intenção de acabar com os

aliciadores, porém acabou por penalizar os pobres imigrantes.

Para Boris Fausto (2003), foram as más condições de recepção dos recém-chegados ao

Brasil que contribuíram para que o governo italiano tomasse medidas contra o recrutamento de

imigrantes. O chamado Decreto Prinetti proibiu a imigração subsidiada para o Brasil. Quem

quisesse emigrar para o Brasil poderia continuar a fazê-lo livremente, sem obter passagens e

outras pequenas facilidades. Mais um ônus para sobrecarregar os pobres emigrantes pobres.

Logo após o Decreto Prinetti, em 1903 entraram 16.553 imigrantes e saíram 36.410. O ano

seguinte registrou também saldo negativo.

Sobre o Decreto Prinetti, Ianni (1972, p. 183) fez uma correção sobre a impropriedade

do termo, pois se tratava de um ato administrativo do então ministro do exterior e seus reais

objetivos.

Todas as “teorias” e circunstâncias nos autorizam a admitir que os verdadeiros

objetivos do famoso “decreto Prinetti” que em 1902 proibiu a emigração

subvencionada (pelo Brasil) de trabalhadores agrícolas italianos, não eram

emigratórios, mas alfandegários e comerciais, embora na prática a proibição tenha

contribuído para deslocar para os Estados Unidos (mercado mais rendoso pelas

remessas) parte do fluxo emigratório.

Ainda sobre o Decreto Prinetti, a pesquisadora Ostuni (1990) afirma que, na realidade,

nunca existiu esse decreto, mas somente um decreto Bodio, promulgado em 26 de março de

1902, em referência ao comissário-geral da emigração. Esclarece a autora que, na Itália, até

1901, o traslado de trabalhadores italianos dependia unicamente das normas de segurança

pública, por isso não havia impedimento às gestões de agências estrangeiras de emigração e de

companhias nacionais de navegação por realizarem transporte gratuito de camponeses italianos

para alguns estados do Brasil. Depois de uma série de relatórios – enviados do Rio de Janeiro

– do inspetor da emigração e do representante diplomático italiano alertando sobre as condições

de vida desumana que esperavam os incautos emigrantes nas fazendas brasileiras, o ministro

54

Prinetti, depois de consultas a Bodio, declarou-se favorável também à suspensão da emigração

para o Brasil.

Com isso, a questão limitou-se, justamente com o decreto Bodio, a revogar o direito

concedido a companhias de emigração, de recrutar emigrantes aliciando-os com a

perspectiva do transporte gratuito; mas nunca chegou a ser proibida a emigração para

o Brasil por parte dos que a empreendiam por conta própria (OSTUNI, 1990, 74).

Também os bancos, cujos interesses frequentemente entrelaçavam-se aos das

companhias de navegação, ganhavam de maneira exorbitante a partir das remessas enviadas

pelos expatriados. Assim, para o “Estado italiano, a expatriação de um trabalhador é mais

rendosa do que sua ocupação no interior, pois custa menos e as remessas são igualmente um

componente da renda nacional” (IANNI, 1972, p. 26). Esse mesmo autor prossegue citando a

declaração do subsecretário de tesouro italiano, quando afirmou que “Tudo o que se fez na Itália

de 1890 a 1910 foi devido à emigração”. Até mesmo as festividades alusivas ao primeiro

cinquentenário da unificação não teriam sido possíveis sem “a coleta, cuidadosamente

preparada, das rendas da emigração”. (IDEM, p. 18)

As remessas para a Itália, através da filial do Banco de Nápoles, perfaziam em média

um milhão de dólares anuais na primeira década do século XX (DEAN, s/d). Se, por um lado,

a emigração era vantajosa para o governo italiano, não o era menos para o governo brasileiro.

Ora, a abundância de mão de obra garantida pelos subsídios à imigração impedia a formação

de um movimento operário forte.

[...] o governo brasileiro tem uma necessidade contínua de braços para o mercado de

trabalho industrial e rural. Com essa abundância eles pretendem manter salários de

fome, jornadas de campos de trabalho forçado e minar a organização da classe

(DAMIANI, 1920, p.47).

Apesar de a emigração ser interessante para o governo italiano, nem todos podiam

emigrar. De acordo com o relatório do Comissariado-Geral da Emigração, estavam excluídas

da emigração as moças tecelãs e fiandeiras italianas por vários motivos: elas poderiam encontrar

emprego com mais facilidade na própria Itália e também porque, para o governo italiano, “não

convém depauperar as nossas reservas em benefício de indústrias concorrentes estrangeiras”.

Esse relatório oficial, no entanto, segundo Ianni (1972), não deixa claro se o comissariado deu

emprego às operárias impedidas de emigrar que, “de qualquer modo ficaram para engrossar as

reservas de mão-de-obra da indústria têxtil, evitando que os salários subissem” (IANNI, 1972,

p.182).

55

Indubitavelmente, a única mercadoria de que a Itália dispunha em abundância no final

do século XIX e início do século XX era o homem. Essa mercadoria que pensa, sente e sofre,

acabou por se transformar na verdadeira “indústria italiana” e, consequentemente, permitiu que

as companhias de navegação, os bancos italianos e o próprio governo italiano obtivessem tantos

lucros, oriundos de um verdadeiro tráfico de seres humanos.

Para a realização de sua pesquisa, Constantino Ianni (1972, p.30) morou por mais de

quinze meses na Itália e retornou a esse país outras tantas vezes. Apesar de ter conversado com

pessoas do campo e da cidade, com funcionários do governo e da emigração e de essas pessoas

saberem que ele era procedente de São Paulo, declara o seguinte: “não ouvi de ninguém

perguntas que indicassem simples curiosidade, por exemplo, sobre a grande coletividade

italiana em São Paulo”.

Conclui o autor (IANNI, 1972, p. 101) que os emigrantes eram “homens sem paz” em

sua pátria, que viviam a miséria e a falta de emprego. Todos partiam pensando em retornar um

dia. A certeza do retorno encorajava a partida. Mas, no fundo, bem sabiam que a partida era a

separação para sempre. Para partir era preciso coragem.

O retorno representava uma necessidade de afirmação pessoal. Entretanto, para

regressar pobre ou talvez até mais pobre, era preciso mais coragem ainda. Nem todos

conseguiram voltar. E menos ainda foram aqueles que conseguiram voltar em melhor situação

daquela em que saíram. Voltar pobre, como antes, era a sentença do fracasso.

Até mesmo para quem regressava em boas condições econômicas não era fácil. Os

longos períodos de ausência são notados pela mudança. As cidades mudam, as pessoas, os

interesses. E a própria pessoa que retorna também já está mudada. Tem outro olhar para a vida.

Nada mais será como antes para aquele que retorna, pois sente-se estrangeiro na sua terra natal

1.4 Os imigrantes no Brasil

“L’acqua di quel gran mare è l’acqua dell’oblio...”

“A água daquele grande mar é a água do esquecimento”

(Canção italiana)

A viagem para o Brasil, demorada e em condições precárias, era o prenúncio do que

lhes aguardava na nova terra. Novamente, Zélia Gattai, em seu livro Anarquistas, graças a Deus

(1994, p. 56), descreve como fora a travessia do oceano por seus avós paternos para o Brasil

56

em 1890. Saídos de Gênova nessa data, embarcaram pai, mãe e cinco filhos, sendo a mais nova

ainda bebê. Acreditou sua avó que o leite materno sustentaria a menina durante a viagem.

Uma luz artificial, fraca era tudo o que havia para iluminar o porão, nem a mais leve

brisa do mar chegava até ali para atenuar o calor sufocante. No segundo dia de viagem

já não havia onde pisar. Poças de vômitos espalhavam-se por todo lado. O navio

jogava demais [...] Argía Gattai estava sempre entre os que mais sofriam. Não

conseguia alimentar-se, vomitava o que já não trazia no estômago [...] Com o correr

dos dias a situação dos Gattai foi se agravando: grudada aos peitos da mãe – ora num,

ora noutro -, Hiena só os largava, para reclamar chorando desesperadamente. Um

médico do grupo chegou-se, aproximou-se e sem examinar a criança diagnosticou:

fome.

Gattai (1994) prossegue dizendo que o estado de saúde da menina não melhorou. O leite

materno secou. Deram-lhe, então, leite de vaca e, como o médico do navio prevenira, veio

violenta diarréia. Sem forças, a criança faleceu logo ao aportar no Brasil.

Os relatos dos imigrantes sobre as viagens para o Brasil não são muito diferentes.

Normalmente, falavam de navios lotados, alimentação ruim, instalação desconfortável e até em

condições insalubres nos porões do navio, já que a maioria viajava na terceira classe.

Aponta Ianni (1972) que, de acordo com o Relatório Oficial do Comissariado, no

período de 1910 a 1915, registraram-se, a bordo desses navios, cinco suicídios nas viagens de

ida e dezesseis na de volta. De 1903 a 1923, os casos de doenças em geral foram 4.053 nas

viagens de ida e 10.327 nas de volta (apesar do menor número dos que retornavam em relação

aos que partiam). De 1910 a 1916, dos 581 casos de viagem de retorno, 171 foram devido à

tuberculose. Mas esses números estão aquém da realidade, pois somente foram registrados, na

estatística oficial, os casos levados ao conhecimento do médico de bordo.

Ainda sobre os dramas de emigração, o Comissariado-Geral da Emigração, extinto em

1927, apresentava que, no período de 1902 a 1925, os repatriados considerados indigentes,

provenientes de todos os países, somaram quase 125 mil pessoas, das quais 53 mil dos Estados

Unidos e cerca de 30 mil do Brasil. Além desses 125 mil, deve-se acrescentar cerca de 38 mil

emigrantes que, no mesmo período, foram rejeitados nos portos de desembarque por vários

motivos. Outra situação dolorosa diz respeito à necessidade de repatriar emigrantes por

alienação mental, causada, segundo pesquisadores, pela nostalgia. Esse mal também acometia

os africanos que, quando arrancados de sua terra natal, eram trazidos como escravos para o

Brasil ou outros lugares que praticavam a escravização desse povo.

No Brasil e particularmente em São Paulo, os imigrantes que tiveram melhores

condições de vida – e alguns fizeram fortuna – quase sempre foram aqueles que permaneceram

nos centros urbanos, desenvolvendo atividades comerciais. Uma razão para essa tendência pode

57

ser devido à ausência quase completa de um quadro de paulistas nativos com um estilo urbano

de vida. A população da capital da província, em 1872, antes que se formassem as companhias

de imigração, não passava de 23.000 habitantes. Por volta de 1920, quase dois terços dos seus

580.000 habitantes eram forasteiros ou descendentes de forasteiros (DEAN, s/d).

Os dados biográficos da maioria dos imigrantes que fez fortuna aqui no Brasil tinham

algumas características em comum: em suas pátrias, viviam em cidades, vinham de famílias de

classe média e possuíam certa expriência no comércio ou manufatura. Com pouquíssimas

exceções de empresários imigrantes que iniciaram suas atividades no Brasil como operários ou

vendedores, a maior parte deles aqui chegou trazendo pequeno capital, muitas vezes fruto de

economias feitas na Europa, ou ainda um estoque de determinada mercadoria que lhes

possibilitava recursos para investir em alguma atividade, diferentemente dos imigrantes mais

pobres, que só tinham a força de trabalho e a esperança de melhorar de vida. Um dos exemplos

mais marcantes foi Francisco Matarazzo, que se tornou um dos maiores empresários do Brasil.

Em entrevista dada em 1922, Matarazzo conta sobre a sua chegada ao Brasil:

Igual a todos os começos. Em oitenta e um deixei a minha terra, a minha casa em

Salerno e embarquei para a América. Trazia a bênção de mamãe – já havia perdido

meu pai -, bons conselhos e um milhar de liras. Devia seguir-me uma certa quantidade

de toucinho, porque [...] estava decidido a votar-me ao comércio. Eu cheguei, mas

naufragou a embarcação que carregava o meu pequeno capital e fiquei com as mãos

vazias. Não abandonei a ideia. Com a ajuda de um patrício detive-me a estudar o

problema das gorduras que vinham dos Estados Unidos e eram de preços

salgadíssimos, enquanto no Brasil pululavam os suínos. Fiz aquilo que faziam os

norte-americanos. Apresentei em lata o que eles ofereciam em barril e, servindo-me

da produção do lugar, consegui em breve tempo criar uma indústria paesana próspera

então, mais próspera depois... (MATARAZZO, apud MARTINS, 1976, p. 62).

Nesse relato, Matarazzo quer adequar sua imagem à figura do industrialista self-made-

man, ao dizer que o seu começo foi “igual a todos os começos”. Mas não foi tão igual assim.

Só foi igual por precisar emigrar, mas, enquanto a maioria dos imigrantes não trazia nenhum

capital, ele trazia “um milhar de liras”. Ao perder a carga de toucinho, ficou “de mãos vazias”,

mas antes estava com elas cheias, o que não acontecia com a maioria dos imigrantes. Outro

ponto de diferença foi que, graças a ajuda de um amigo (sem detalhar em que sentido foi essa

ajuda), ele deteve-se “a estudar o problema”, ou seja, tinha condições de inteligência suficiente

para entender a situação.

Via de regra, os estrangeiros dedicavam-se às atividades de importação de produtos,

tendo em vista, principalmente, atender aos demais imigrantes que haviam se instalado aqui.

Ora, ninguém melhor que um europeu para conhecer as predileções de vestuário, alimentação

etc. de um outro europeu, por já estarem familiarizados com os gostos e hábitos desse

58

contingente. As massas imigrantes eram valiosas para os empresários imigrantes de outras

maneiras, talvez menos cruciais, mas, ainda assim, significativas. Os colonos proporcionavam

vultosa contribuição ao capital disponível para empreendimentos industriais, através das

economias que acumulavam. Tais economias eram depositadas em agências locais de bancos

que operavam em seus países de origem. Tais agências eram prerrogativas dos empresários

imigrantes (DEAN, s/d). Persistia uma prática de ajuda recíproca de confiança entre os

imigrantes. Os próprios empresários imigrantes tendiam a contratar ou ajudar pessoas oriundas

de seus países, que, por sua vez, mantinham-se fiéis a eles aqui no Brasil.

Uma característica comum entre os emigrantes, principalmente italianos, fossem eles

pobres ou mais abonados, era o “ascetismo da poupança”, levados pelas próprias contingências

da vida, ou seja, estavam acostumados a passar toda sorte de privação para poder economizar.

O ato de economizar beirava uma obsessão e foi apropriado pelo capitalismo na forma da

ideologia do trabalho. Num outro depoimento, Matarazzo deixa bem evidente a importância do

trabalho.

“Cheguei ao Brasil já há quarenta e cinco anos”, disse. “Vinha com mulher e dois

filhos. Da minha terra, no sul da Itália, trazia um pouco de dinheiro, mas pouco. Aqui

desembarcado, com a bolsa cheia de vontade de trabalhar, dirigi-me à Sorocaba, onde

dei início à minha carreira, ajudado por um meu conterrâneo, o qual reunia as funções

de sapateiro e a de conselheiro municipal. (sic) Foi ele um bom e precioso amigo,

talvez o meu melhor amigo. Conservo da sua memória uma rara veneração, e é sempre

com infinita saudade que o recordo. [...] Aquele meu conterrâneo era de valor pela sua

capacidade de trabalho e pela sua virtude doméstica, e não pelos seus títulos e

pergaminhos. Estabelecido em Sorocaba abri um botequim, ou venda como se diz

aqui no Brasil. Eu lhe faço notar que não tive jamais, nem procurarei ter, o que se

chama patrão. A luta me seduzia confiando unicamente na minha energia e na minha

força. Algum tempo depois, havendo superado as primeiras dificuldades naturais, e já

não apenas conhecedor do ambiente, mas senhor de mim mesmo, com maior alento e

também mais resoluto, instalei em Sorocaba uma fábrica de banha” (MATARAZZO

apud MARTINS, 1976, p.63).

Neste outro momento, o que importava era reforçar que todo o sucesso foi fruto de muito

trabalho, pois “trazia um pouco de dinheiro, mas pouco” e também não citou que trazia

mercadoria, com a intenção de comercializá-la, mas “a bolsa cheia de vontade de trabalhar”. O

seu único capital seria a vontade de trabalhar. Independente de todo o seu esforço, foi

fundamental a ajuda de um conterrâneo amigo, que, apesar de não nomeado, era trabalhador e

muito considerado por sua honestidade na cidade.

O exemplo de Francisco Matarazzo enquanto formador de fortuna sempre foi

sobejamente utilizado pela burguesia para convencer o proletariado de que somente através do

trabalho é possível melhorar de vida. Trabalho e obediência combinavam ainda mais.

59

A elite rural brasileira não via com bons olhos o enriquecimento e aumento da presença

dos imigrantes na economia do país, pois sentia-se ameaçada em perder prestígio social para

imigrantes de terceira classe. Temiam que os imigrantes, sentindo-se vítimas de uma

discriminação, poderiam lançar mão do poder econômico para conquistar posição social,

hostilizando ainda mais a elite fazendeira e intensificando o conflito econômico.

Entretanto, segundo Warren Dean (s/d) essa situação de mútua hostilidade não se

consolidou, ao contrário, o que se notabilizou foi o grau de casamentos registrados entre as

famílias de imigrantes e fazendeiros. Explica o autor que, nas primeiras gerações de imigrantes,

esse fenômeno foi mais raro, visto que alguns imigrantes já chegavam casados ou estavam

noivos. Entretanto, Siciliano e Nochese, ambos chegados em tenra idade, e os Simonsens,

nascidos no Brasil, desposaram mulheres brasileiras. Todos os filhos de John Kenworthy,

Guilherme Giorgi e Pedro Morganti se casaram com brasileiras. A filha de Rodolfo Crespi

consorciou-se com um Silva Prado, e os Weiszflog, Siciliano, Matarazzo (sic), Byngton, Pereira

Ignácio, Scarpa, Oeterer e outros se ligaram pelo casamento, da mesma maneira à elite

fazendeira. Dos nomes mencionados, Francisco Matarazzo, chegou ao Brasil em 1881, com sua

mulher e dois filhos, tornou-se dono de grande fortuna, construindo verdadeiro império

industrial. Começou sua atividade no Brasil com uma fábrica de banha em Sorocaba. Também

os Kenworthy, Oeterer e Pereira Ignácio, entre várias atividades exercidas, foram grandes

industriais do ramo têxtil em Sorocaba.

1.5 Colônia Cecília – Um sonho de liberdade

“Liberdade – essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém

que explique e ninguém que não entenda!”

(Cecília Meirelles)

Os imigrantes estrangeiros que chegavam ao Brasil traziam, muitas vezes, em suas

malas, apenas esperanças de uma vida melhor. Cada um com seu propósito. Uns queriam uma

vida melhor daquela oferecida em sua terra natal e queriam ser felizes por aqui. Outros queriam

ganhar dinheiro, “fazer a América” e retornar para sua terra. Os desejos eram de melhora para

si e para a sua família. Mas também houve aqueles que trouxeram, em suas malas, ideias. Ideias

para mudar o mundo, para oferecer uma sociedade melhor para todos. Queriam um lugar de

igualdade e felicidade para todos, pretendiam construir um mundo melhor, onde as pessoas não

60

fossem obrigadas a abandonar a sua terra e sua família em busca de vida digna. Esse era o

desejo dos anarquistas.

E os anarquistas não ficaram apenas no plano das ideias. Difundir seu ideário era muito

importante, entretanto era preciso sair da abstração e passar para a concretude das palavras.

Aqui no Brasil, houve algumas experiências anarquistas e a maior parte delas estão relegadas

ao esquecimento, por passageiras que foram, porém não sem a devida relevância. Tem-se

notícia de existência de uma colônia experimental anarquista por volta de 1888, em Guararema,

no estado de São Paulo, que teve como iniciador o mestre escultor italiano Arthuro

Campagnolli: a colônia Varpa, em Santa Catarina. Mas a experiência mais marcante foi a

colônia Cecília, no Paraná, ocorrida na última década do século XIX.

A história de homens ousados, que pretendiam realizar uma mudança radical da

sociedade, foi escrita em 1942, por Afonso Schmidt, que a eternizou em seu livro “Colônia

Cecília – romance de experiência anarquista”. O romancista Schmidt revela que, ao se

debruçar sobre esse assunto, tinha por intento apenas traduzir o pequeno trabalho escrito por

Giovanni Rossi: “Un episodio d’amore libero nella colonia Cecilia” (Um episódio de amor

livre na colônia Cecilia). Entretanto, a riqueza dessa experiência despertou no autor o seu lado

político de idealista que era e, assim, produziu um “romance-relato-poema cuja musa foi uma

ideia. Reunindo os ingredientes do fervor humanista, dos apontamentos do jornalista, do

entusiasmo do militante, Schmidt compôs hino em louvor ao Homem, ao Amor, à Liberdade”.

(DONATO, 1980, p. 4)

Giovani Rossi, engenheiro agrônomo na Itália e também músico, alimentava o sonho de

viver numa sociedade igualitária, onde as pessoas pudessem ser livres felizes. Pela música,

conhecera, na Itália, o famoso músico brasileiro Carlos Gomes. Esse brasileiro se transfigurava

quando falava da grandeza e da beleza de sua terra e até mesmo do seu rei, pessoa bondosa,

amigo dos inventores, dos músicos e dos poetas.

Diante do entusiasmo de Carlos Gomes, animado com o pensamento de construir uma

sociedade de homens livres, Giovani Rossi escreveu uma carta ao imperador D. Pedro II,

expondo seu plano de fundar uma colônia experimental anarquista. Para isso pedia uma porção

de terras no Brasil. Passado algum tempo, praticamente esquecido da carta, recebeu uma

resposta do imperador do Brasil, concedendo-lhe terras no Paraná para poder viver na prática

seus ideais.

No entanto, sobre o oferecimento das terras por D. Pedro II pairam indagações. Como

um monarca, no poder há mais de 40 anos, concede terras para a formação de uma sociedade

que não lhe reconheceria a autoridade? Ou a concessão das terras para tal experiência foi por

61

ser ele “um homem excepcional, habituado a falar a linguagem da inteligência

incompreendida”? (SCHMIDT, 1980, p.27) Ou ainda: sabia o imperador que seu reinado não

duraria muito mais tempo, então ele não seria responsável pelo que viesse a acontecer nessa

colônia?

Em 20 de fevereiro de 1890, partiu, do porto de Gênova, o navio Città di Roma rumo

ao Brasil. Vinham imigrantes de várias regiões da Itália com diferentes propósitos e, dentre

eles, estavam homens idealistas, afinados com o anarquismo, alguns sós, outros trazendo suas

famílias, esposas e filhos, como os Gattai, já mencionados em outros trechos deste trabalho.

Aqueles que vinham com a intenção de fundar a colônia tinham tomado conhecimento do local

a partir da leitura de um folheto de propaganda elaborado e distribuído por Giovanni Rossi.

Tais imigrantes, apesar de estarem vindo para a mesma colônia, não se conheciam intimamente

e se diferenciavam bastante em aspectos profissionais e sociais. Havia aqueles com escolaridade

superior, com profissões estabelecidas – como médicos, professores, jornalistas, engenheiros –

e também aqueles pobres e analfabetos que, sem saber ao certo o que lhes aguardava, traziam

consigo o sonho e a esperança de uma vida nova.

A infausta viagem de navio, longa, sofrida, marcada por doenças e até mortes,

antecipava que a empreitada seria para os fortes.

Chegando às terras prometidas e tão distantes, encontraram mata fechada e nada mais.

Receberam somente a terra, tudo o mais dependia deles. Começaram a derrubada da mata, a

construção de casebres, a plantação, enfim era só trabalho. Tão logo chegaram, fora colocada,

no alto da árvore mais alta, uma bandeira preta e vermelha, símbolo da colônia Cecília, talvez

com a intenção de mantê-los sempre animados a despeito de tudo que pudesse acontecer. A

escritora Zélia Gattai (1994, p. 157) conta como foi a chegada de seus avós paternos na Colônia

Cecília:

Num carroção de quatro rodas, com suas trouxas de roupas e alguns pertences, passou

a família Gattai por Santa Bárbara: marido, mulher e quatro filhos. [...] Ao alto de

uma colina, por entre os pinheirais divisava-se, hasteada ao alto de uma palmeira,

enorme bandeira vermelha e preta. Era a bandeira da “Colônia Cecília”, saudando a

chegada dos novos pioneiros. Ao divisar a bandeira da “Colônia” nono Gattai olhou

mais abaixo e exclamou: “Lá estão eles!” Ali estava o acampamento: um grande

barracão erguido junto a um córrego, pequenas barracas em construção, homens

movimentando-se para cima e para baixo, um pedaço de terra já limpa para o cultivo

ao lado de um pequeno bosque. Avistando a carroça da família Gattai, os homens do

acampamento partiram ao seu encontro.

No lugar não havia chefes, regulamentos, nem leis, apenas o respeito pela liberdade do

outro e a consciência do papel que cada um deveria desempenhar para o bem de todos.

62

As dificuldades de imediato foram se avizinhando da comunidade. Muitos dos que ali

estavam não tinham a mínima competência para trabalhos pesados. Outros, interpretando

equivocadamente os princípios anarquistas, recusavam-se a trabalhar, pois consideravam-se no

direito de fazer apenas o que queriam, já que eram homens livres. Eram muitas bocas a serem

alimentadas e os alimentos escassos. Muito trabalho e pouca comida. Os jovens, com a enxada

na mão, diziam: “D’un pó di polenta e d’um pó d’ideale si vive...” (Vive-se de um pouco de

fubá de milho e de um pouco de ideal) (SCHMIDT, 1980, p. 50)

Atraídos pelos princípios elevados da experiência, o número de pessoas que chegavam

à colônia aumentava sempre, chegando a ter mais de trezentas pessoas. Na colônia não havia

domingo nem feriado, mas ninguém era obrigado a trabalhar ou a fazer coisa nenhuma. Até os

contatos com a cidade e a vida capitalista não eram amiudados. Os que chegavam iam

instalando-se, sem nenhuma restrição. Todos eram acolhidos, mas não era só gente de bem que

havia desembarcado por aquelas terras. Muitos não se adaptaram àquela vida de privações e a

abandonaram.

Até que, passados uns três anos do fim da monarquia, o governo republicano passou a

cobrar os impostos devidos, caso contrário os colonos seriam expulsos. Acabou-se a monarquia,

e a terra lhes havia sido doada por D. Pedro II, que não ocupava mais o trono.

Contrariando os seus princípios, mas diante da ameaça de expulsão, toda a comunidade,

que já contava com aproximadamente trezentas pessoas, entre adultos, jovens e crianças,

mobilizou-se para plantar milho e, com a venda da colheita, seriam quitados os débitos com o

governo. E assim foi, todos trabalharam arduamente. O milho crescia e embelezava o lugar.

Iniciou-se a colheita, que se mostrava promissora e, de fato, foi. (SCHMIDT, 1980)

Os contatos de venda do milho com a cidade de Palmeira eram feitos por um único

camarada que cuidava de toda negociação. Com o milho colhido e já colocado nas carroças,

esse companheiro ficou encarregado de fazer o transporte e a venda do milho. Levava uma

carroça até a cidade e regressava para enchê-la novamente e assim foi feito em várias viagens.

Até que na última viagem, quando ele deveria retornar com o dinheiro da venda, não regressou.

Esperaram-no por muito tempo. Os princípios da comunidade não permitiam que duvidassem

do companheiro. Passado um tempo, entenderam o que ocorrera. Era o fim.

O governo retornou para cobrar o que lhe era devido. Muitos partiram carregando apenas

uma pequena trouxa de roupas. Cada um foi buscar meios de ganhar a vida e foram se

integrando na vida das cidades próximas, passando a vender sua força de trabalho por um

salário.

63

Por volta de 1894, a colônia se desfez, restando apenas, no alto da árvore, um farrapo

preto e vermelho que um dia simbolizou todo um sonho de liberdade. Com o coração

dilacerado, Giovanni Rossi foi um dos últimos a deixar a colônia e viu-se na contingência de

pedir emprego na cidade. Conseguiu tornar-se professor, foi também agronômo e passou a

ajudar os camponeses com seus conhecimentos em agronomia e, mais uma vez, tornou-se uma

pessoa admirada e respeitada. Depois de quinze anos vivendo no Brasil, voltou para a Itália,

com a mulher que compartilhou com ele a vida na colônia e duas filhas.

Por mais doloroso que fosse, admitiu que “não se faz uma sociedade nova com homens

emprestados de uma sociedade velha” (SCHMIDT, 1980, p.105).

1.6 Os imigrantes chegam a Sorocaba

Nas últimas décadas do século XIX, assim como a província de São Paulo e outras

regiões do Brasil, Sorocaba também vivia as mudanças próprias desse período.

As transformações de sua base econômica, nesse caso com a decadência da feira de

muares, favoreceram novas atividades. A atividade fabril foi despontando lentamente, dada ao

temor dos investidores em não encontrar mão de obra suficiente, tendo em vista o crescente

movimento abolicionista na cidade. Uma medida adotada no campo político, para contornar

essa situação, foram as leis que procuravam estimular a vinda de imigrantes em número

suficiente a fim de suprir a escassez de mão de obra, decorrente do fim do tráfico negreiro.

Assim, o deputado de Sorocaba, Dr. A. J. Ferreira Braga, apresentava projetos de lei e emendas

ao orçamento com o intuito de facilitar a entrada de imigrantes europeus, especialmente na

Província de São Paulo (CAVALHEIRO, 2009).

A imigração de europeus passou a ser um negócio lucrativo para o país, para os

fazendeiros e para uma nova classe que se consolidava, os industriais. Somente para a maioria

dos imigrantes é que não se mostrava alvissareira. Toda a propaganda sobre as vantagens de vir

para o Brasil foi se dissipando. O que o Brasil lhes reservava era somente trabalho, e trabalho

duro.

Em um artigo publicado no jornal Diário de Sorocaba, em 1890, sobre a imigração no

Brasil, percebe-se que a mentalidade em relação aos imigrantes não era muito diferente daquela

que embasava o tratamento dispensado aos escravos nos tempos da escravidão. No referido

64

artigo, é assinalada a questão da imigração direta, ou seja, a vinda de todo tipo de gente para

cá, qualificada para o trabalho ou não.

Nesta lucta entre o Brazil e a Republica da Argentina de chamarem a si a immigração

italiana, há muito já estabelecida na America do Sul regosijamo-nos todas as vezes

que uma leva desses immigrantes abandonam as regiões platinas em demanda deste

paiz. Entretanto deveria ser precisamente o contrario. A immigração directa tem a

grande vantagem de trazer-nos de tudo; quer quanto a edade, quer quanto as virtudes

e vicios. Este porem que nos chega com escala pelas republicas do Prata póde-se dizer

que é o refugo da corrente immigratoria pois o que havia de bom em qualquer sentido

o pais visinho havia de saber conservar (DIARIO DE SOROCABA, 14 dez 1890, p.2).

Sobre a imigração, afirma Leôncio Basbaum (1976, p.142) que o Brasil foi dos menos

aquinhoados, pois durante muitos anos os imigrantes evitavam o nosso país, não apenas por

causa do clima ou pela febre amarela, como também por causa da escravidão. A Argentina, ao

contrário, país sem escravidão, atraiu colossais levas de imigrantes de todas as nacionalidades,

principalmente italianos, criando melhores condições de produtividade e progresso.

Em janeiro de 1887, o jornal Diário de Sorocaba publicou a seguinte notícia: “chegaram

hontem a côrte, 760 immigrantes, com destino a esta provincia, sendo dinamarquezes e os

outros madeirenses”. O movimento imigratório no Brasil e na província de São Paulo

intensificou-se.

Em 1890, o Banco União iniciou a construção da Fábrica de Chitas nas terras que

anteriormente pertenciam à Fazenda Cachoeira do Votorantim e a imprensa noticiava:

“Votorantim tem atrahido uma grande corrente de immigrantes” (DIÁRIO DE SOROCABA, 8

jan 1891, p. 2).

Esse mesmo jornal publicou, em setembro desse ano, que o governo do estado pretendia

construir hospedarias de imigrantes em várias cidades, inclusive em Sorocaba. Assim, tão logo

desembarcassem no porto de Santos ou do Rio de Janeiro, os imigrantes seriam encaminhados

para essas hospedarias. Nelas, teriam hospedagem por conta do Estado, por oito dias, até terem

condições de seguirem para seus destinos de trabalho e moradia. Entre 1880 e 1898, entraram

820 mil italianos no Brasil. 88% dos imigrantes instalaram-se no estado de São Paulo (FOOT;

LEONARDI, 1982, p.72).

A partir de então, a chegada de imigrantes a Sorocaba foi tornando-se frequente, pois

eles eram atraídos pela oferta de emprego e de moradia nas diversas fábricas, especialmente as

têxteis, que iam sendo instaladas na região. A pioneira foi a Fábrica Nossa Senhora da Ponte,

conhecida por fábrica Fonseca, em 1882. Em 1895, entrou em atividade a Fábrica de Chitas do

Votorantim, ampliada, em 1904, com as secções fiação e tecelagem. Em seguida, em 1896,

65

entraram em funcionamento as Fábricas Santa Rosália e Santa Maria. Ainda foram instaladas a

Fábrica São Paulo (Estamparia), em 1909, e a Fábrica Santo Antonio, em 1913.

1.7 O apito da fábrica controlando o tempo e a vida

“O trabalho enobrece o homem, mas sendo demasiado, o entorpece”

(O OPERÁRIO, 18 jul 1911)

As grandes fábricas, que poderiam ser avistadas de qualquer ponto da cidade, e suas

vilas operárias passaram a compor a paisagem de Sorocaba e não deixaram de ser um chamariz

para a vinda de operários, especialmente os imigrantes que, sem possuir nada aqui no Brasil,

viam no emprego e na concessão da moradia mediante um aluguel reduzido verdadeira dádiva.

O Almanaque Ilustrado, de 1903, ao retratar a “Sorocaba Industrial”, informava sobre as vilas

operárias, contava que a Fábrica Nossa Senhora da Ponte não possuía vila operária, pois

localizava-se numa área central e empregava cerca de 250 operários. A Fábrica Santa Rosália,

localizada mais distante do centro urbano, contava com uma vila operária “além das casas de

comércio e do pessoal superior, se acha a villa operaria com cerca de 80 casas para residencia

dos operários”.

Em 1914, a vila operária Santa Rosália contava com 270 casas, escolas públicas,

consultório médico, armazém, casa de diversões, iluminação elétrica e encanamento de água.

O número de operários dessa fabrica tem oscilado, pois em muitas epochas a

companhia recorre ao trabalho noctuno, empregando então duas turmas; o numero

regular, porém, desses operarios, e de 600, de ambos os sexos, todos seguros contra

accidentes na sociedade “Cruzeiro do Sul”, da capital federal (ALMANACH

ILLUSTRADO DE SOROCABA, 1914, p. 56).

Nascido em 1900, na vila operária de Santa Rosália, em Sorocaba, quando esta iniciava

suas atividades, Jacob Penteado, em suas memórias, apresenta uma vila bem diferente da

referida pelo Almanaque Ilustrado de 1914

Na encosta da colina, havia várias ruelas de casas rústicas, com telhas vãs, onde, à

noite, o vento executava a sua lúgubre sinfonia. Nada de instalações sanitárias ou

iluminação. Esta era à base de velas ou de lampiões a querosene. Água, só de poço ou

do rio próximo. Os moradores, para suas necessidades recorriam aos urinóis ou, então,

iam defecar no mato que cercava as casinholas (PENTEADO, 2003, p.16).

66

A Fábrica de Chitas Votorantim, quando iniciou suas atividades, em 1895, empregava

aproximadamente 200 operários, em sua maioria imigrantes, que ocupavam as casas

construídas para moradia operária. Nessa vila, fora fundada, pelos operários, uma sociedade

beneficente para fornecimento de víveres e uma sociedade cooperativa. Após as ampliações

feitas na fábrica, com a instalação das seções de fiação e tecelagem, ocorridas em 1904, o

número de operários saltou para mais de 1500 e a vila operária também cresceu. Inicialmente,

essa vila constituía-se de dois núcleos de residências, a Chave, onde estavam localizadas as

casas mais simples destinadas aos operários, e a Barra Funda que, além de casas simples para

operários, contava com casas maiores e mais bem construídas destinadas aos postos de chefia.

Entre esses dois núcleos de casas, localizava-se a fábrica, ocupando uma posição central.

Em 1914, a vila operária do Votorantim configurava-se da seguinte forma:

Casas para operarios em numero de 420, servidas por agua encanada e exgottos, 4

predios nos quaes funcionam as escolas publicas mixtas; um theatro, pequeno e

elegante edificio, de gosto moderno; um coreto; casa de residencia do gerente (...) dois

grandes armazens particulares, destinados ao abastecimento da população operária,

agencia do correio; posto policial, matadouro; estação da via ferrea, etc.

(ALMANACH ILLUSTRADO, 1914, p.48).

Figura 6 – Vila Operária de Votorantim – Chave.

Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.

67

Em Sorocaba, a vila operária do Votorantim era tida como a melhor em termos de

construções e comodidade oferecidas aos seus empregados. Nos dois núcleos residenciais,

Chave e Barra Funda, as casas de operários eram modestas e variavam de tamanho. Essas casas

eram geminadas, com piso de tijolo, compostas quase sempre por sala, um quarto e cozinha.

Eram chamadas de casas varadas, pois para chegar à cozinha era necessário passar pelo quarto,

que não possuía porta, nem uma parede divisória. A porta da sala abria-se diretamente na rua.

Como as famílias eram numerosas, não raro as salas das casas se transformavam em dormitórios

também. O banheiro, construído nos fundos das residências, era, muitas vezes, compartilhado

entre várias famílias, bem como o tanque de lavar roupas. Apesar de ter luz elétrica, nem todos

os cômodos da casa usufruíam desse benefício. A fábrica autorizava a instalação de bicos de

luz sempre em número inferior ao dos cômodos da casa. Assim, uma casa de três cômodos só

poderia contar com bicos de luz em dois deles, a escolha do proprietário. Eram frequentes as

visitas de funcionários da fábrica, percorrendo as casas e cortando a luz dos cômodos não

autorizados, quando os moradores faziam uso de ligações clandestinas para mais um cômodo.

Em algumas casas assobradadas, a escada que levava ao pavimento superior, onde normalmente

situavam-se os quartos, ficava na parte externa, servindo a duas casas, ou seja, era necessário

sair para a rua para chegar aos quartos. A privacidade das pessoas era inexistente nesses

ambientes.

A Fábrica Santa Maria também contava com vila operária seguindo as mesmas

características das demais: diferenciação entre casas para os operários e para chefes mais

graduados, bem como outros benefícios para os segundos.

Os chefes eram mais privilegiados. Ganhavam abono de natal (não chegava a ser um

salário) prêmios e moravam nas melhores casas da fábrica. Os operários moravam nas

casinhas da Vila, construídas nas ruas Manoel Lopes e Campos Salles. Já os mais

graduados [...] mestres de oficina e outros moravam em casas melhores na rua Santa

Maria. Todos pagavam aluguel (GAZETA DO ALÉM PONTE, 14 abr 1992 apud

ARAUJO NETO, 2005, p. 38).

A vida do operário nas vilas era totalmente controlada pelo patrão. Esse controle

estendia-se à vida privada dos operários. O apito ia além do controle dos horários de entrada e

saída do trabalho, uma vez que várias vilas chegavam a ter um toque de recolher, que

geralmente não passava das 21 horas. No caso da fábrica Votorantim, a residência do gerente

localizava-se dentro da fábrica, num ponto mais elevado do terreno, a fim de favorecer uma

visão panorâmica, muito assemelhado ao Panóptico, figura arquitetural de Bentham, cujo efeito

mais importante, conforme explicita Michel Foucault (1987, p.166), “é induzir no detento, um

68

estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do

poder”.

Até mesmo a leitura dos empregados passava pelo crivo da gerência, pois, durante a

circulação do jornal O Operário, repetidas vezes os redatores do jornal solicitavam que os

exemplares chegassem às mãos dos operários assinantes.

RECLAMAÇÃO – Pedimos aos senhores do escriptorio da “Fabrica Votorantim”

com urgência, para que fassam a entrega de nossa folha com mais regularidade, pois

tem nos chegado aos ouvidos a má distribuição d’Operario naquela Fabrica. Fazemos

este pedido dentro da rasão esperando ser-mos atendidos (O OPERARIO, 1 maio

1912, p.2)

Os operários tinham a consciência de que eram vigiados o tempo todo. Até mesmo as

situações triviais chegavam ao conhecimento do gerente. Por exemplo, quando as crianças,

durante as brincadeiras, brigavam entre si, os pais dos beligerantes eram notificados pelo

próprio gerente sobre o comportamento inadequado de seus filhos. Também era o gerente que

decidia quando os filhos dos operários deveriam ingressar no trabalho da fábrica.

Na Votorantim, situada a alguns quilômetros de Sorocaba, os gerentes impediam as

uniões livres e obrigavam os operários a casar-se, sob pena de despedida. Eram

frequentes os casos de revista por guardas armados ou o controle das pessoas que iam

visitar os operários (FAUSTO, 1976, p. 117).

Os empregados da fábrica tinham consciência de que o poder da fábrica adentrava seus

lares, sem pedir licença. A privacidade dos operários não era respeitada. Eram rotineiras visitas

de policiais ou funcionários da fábrica em revistas às casas, em busca de tecidos roubados.

Ante-hontem o sub-delegado deste districto sr. José Coelho, com o delegado

substituto dahi acompanhados por 3 praças, deram buscas em diversos domicílios de

operários na “Chave” com o fim de encontrar fazendas roubadas da fábrica. Foram,

porém, infructiferas as buscas (CRUZEIRO DO SUL, 3 jan 1917, p.2).

Os moradores da vila operária do Votorantim frequentemente organizavam festas e

bailes como uma forma de aliviar-se do trabalho penoso do dia a dia. No entanto, os bailes só

poderiam ser realizados com a devida permissão do gerente da fábrica e também era ele quem

determinava os horários de circulação dos trens para que o pessoal de Sorocaba pudesse

participar da festa. As festas nunca se prolongavam muito para não comprometer o dia seguinte

de trabalho.

Essas vilas contavam com serviços essenciais, como escola, farmácia e um armazém

fornecedor de gêneros alimentícios e outros produtos necessários a sobrevivência do

69

trabalhador. No armazém, os preços dos produtos eram estabelecidos pelos próprios patrões,

que, por seu turno, acabavam por controlar aquilo que seria consumido pelos seus operários.

Em 1909, a partir de uma queixa dos operários da Fábrica Votorantim, o jornal O

Operário denunciou a prática utilizada por essa fábrica, onde os operários recebiam um cartão

colorido contendo um determinado valor para efetuarem suas compras de alimentos e outros

produtos somente no armazém local. Indignava-se o jornal pelo fato de que vencido o mês, caso

o trabalhador não tivesse gastado todo o valor do vale, esse saldo não poderia ser utilizado no

mês subsequente, já que outro cartão de cor diferente seria emitido. Questionava, ainda, o jornal

o fato de o operário da fábrica Votorantim não ter opções de compra em outros estabelecimentos

comerciais, além daquele pertencente à fábrica, o que caracterizava prática de monopólio.

Essa prática teve desdobramentos na imprensa local. Enquanto o jornal O Operário

denunciava essa situação, o Cruzeiro do Sul defendia esse procedimento, alegando que ele tinha

a aprovação do operariado, comprovada mediante publicação de uma extensa lista de nomes de

operários favoráveis à prática. No entanto, O Operário afirmava que os trabalhadores citados

haviam sido coagidos pela gerência da fábrica para demonstrarem apoio à causa.

Sobre esse caso, a leitura desses dois jornais não nos permite aquilatar a real dimensão

dos fatos, tendo em vista a defesa ferrenha que ambos fizeram da sua visão e entendimento

sobre o caso. Entretanto, o conhecimento da dominação da fábrica em todos os aspectos da vida

de seus operários e do posicionamento do jornal Cruzeiro do Sul em não se indispor com os

industriais nos autoriza a crer que o apresentado pelo O Operário seria mais condizente com a

realidade.

Já a Fábrica Santa Rosália, localizada na periferia de Sorocaba, dava liberdade de

escolha para seus empregados, que podiam comprar em outros armazéns, apesar de haver na

vila operária um armazém pertencente à fábrica. Entretanto, após feitas as compras, os

mantimentos eram transportados por carroças que, depois, eram impedidas de adentrar a vila.

A partir do portão de entrada, sempre guardado por um porteiro, o empregado deveria fazer o

carregamento de sua compra. Essa prática não escapou das denúncias do jornal O Operario (12

set 1909, p. 1), como comprova o fragmento reproduzido a seguir:

Não existem lá os afamados cartões, mais engenhoso é o processo! Só existe o

armazem da fabrica e tem os empregados a faculdade de poderem, aqui na cidade,

comprar o que quizerem; mas existindo nas proximidades da fabrica um portão e o

respectivo porteiro, os que para lá se dirigem conduzindo generos, têm forçosamente

de se entender com o snr. Porteiro que de accordo com às instrucção recebidas, nega

entrada às carroças que levam ás mercadorias, consentindo sómente na das pessôas

que a essas acompanham.

70

A indústria, desse modo, passou a exercer uma influência decisiva sobre a estrutura

urbana e a vida particular das pessoas. Em alguns casos, a cidade chegou a ser determinada

principalmente pelo crescimento industrial.

A casa para morar, praticamente de graça, permitia à fábrica fazer as constantes

ameaças de despejo quando o operário se mostrava desobediente. Assim como a

facilidade de comprar no armazém da fábrica alimentos, vestuário, miudezas; de ter

adiantado o ingresso do cinema e do clube de futebol com posterior desconto no

ordenado, que muitas vezes reduzia o salário a zero. Essas práticas permitiam que a

fábrica impusesse o seu preço, pois tinha o monopólio da venda. Ademais, assegurava

a ela o domínio sobre o consumo dos operários, pois a fábrica determinava de quais

produtos deveria ser abastecido o armazém.[...] A estratégica localização da vila na

periferia da cidade garantia o isolamento dos operários, pois a ligação com a cidade

somente podia ser feita pela estrada de ferro pertencente à fábrica, que estabelecia o

preço das passagens e os dias e horários dos bondes. A expressão maior da dominação

da fábrica residia no oferecimento de emprego para toda a família, com míseros

salários, selando um vínculo de extrema dependência e submissão (DESSOTTI, 2009,

p.242).

Warren Dean (s/d, p. 166) afirma que os empresários paulistas suplementavam a

pequena remuneração dos operários com vários benefícios, como era o caso de algumas fábricas

de Sorocaba.

Há testemunhos da existência de creches e jardins da infância, armazéns, igrejas e

restaurantes da companhia, casas fornecidas pelos empregadores e assistência médica.

Os visitantes da fábrica Votorantim, por exemplo, referiram a presença de todos esses

serviços e mais alguns: cinema, piscina, quadras de tênis, campo de futebol, esgotos,

água encanada e eletricidade.

Para esse autor, a fábrica Votorantim pode ser considerada um caso à parte, por ser

muito grande e distante alguns quilômetros de Sorocaba, o que tornava necessária a oferta de

determinados serviços para seus operários. No entanto, os benefícios apregoados pela fábrica

serviam, acima de tudo, para confundir o trabalhador, que acabava colocando na mesma balança

a baixa remuneração, de um lado, e os benefícios que, aparentemente, a compensavam, de outro,

obliterando a realidade da sua situação. Pereira Ignácio, dono da fábrica, era considerado por

seus operários um verdadeiro “pai dos pobres”, maneira pela qual espontaneamente ficou

conhecido. No entanto, salienta o autor Warren Dean que “não transparece desses relatos,

todavia, que a administração dirigisse tais serviços com prejuizo. A folha de pagamento da

fábrica parece ter sido consideravelmente inferior à da média da indústria de tecidos no Estado”

(DEAN, s/d, p. 166).

Há de se imaginar que, apesar da existência de piscinas e quadras de tenis, certamente

esse tipo de passatempo não fazia parte do cotidiano e usufruto dos operários. Essa

benemerência, sem prejuízo para a empresa, explica-se pelo fato de a maioria desses serviços

71

ser deduzida do salário do operário. Esse autor ainda demonstra que quase nada do oferecido

ao operário era fruto da bondade do patrão. A habitação custava de nove a doze mil-réis

mensais, descontados de um salário médio de oitenta e oito mil-réis mensais; a eletricidade,

mais dois mil-réis por lâmpada; e os serviços médicos se deduziram à razão de 2% do salário

mensal. Os professores da escola eram pagos pelo Estado – a fábrica só fornecia o prédio – e o

armazém da companhia era arrendado.

A comprovação dessa situação é possível através de uma denúncia publicada pelo jornal

O Operário sobre os descontos havidos no salário de um pequeno operário. Indignava-se o

jornal de como um menor poderia ter tantos descontos de coisas ilícitas. De que adiantava

trabalhar tanto e receber quase nada?

Acha-se em nossa redacção um talão de conta de um menor de 10 a 12 annos mais ou

menos que trabalhava na fábrica S. Maria, com os seguintes dizeres, 29 dias e tres

quartos:

Salário 17$850

Descontos Footboll 1$000 Multa 1$000

Botequim 9$800

P. Votorantim 1$000

Total 12$800

A receber 5$050

(O OPERÁRIO, 19 dez 1909, p.1)

Decca (1987), ao tratar do cotidiano operário nas vilas operárias em São Paulo e a

dominação do patrão implícita nele, refere-se à vila operária da fábrica Votorantim como um

exemplo de vila operária de propriedade de indústrias, que ofereciam “vantagens” maiores aos

operários ali residentes. A autora vale-se da publicação Lloyd´s Greater Britain Publishing Co.

Ltd., de 1913, denominada “Impressões do Brasil no século XX – Sua História, Seu Povo,

Comércio, Indústria e Recursos”. A menção feita nessa publicação teve a intenção de enaltecer

as ótimas condições de vida oferecida ao operário e corroborou o apresentado por Warren Dean

e outros quanto aos benefícios e deduções feitos nos salários dos operários, porém não com a

mesma crítica realizada por ele.

A fábrica está situada em uma vila industrial com população de cerca de 6.000 almas

e cerca de 500 casas operárias de propriedade da fábrica, além de 200 casas mais de

propriedades de particulares [...] tem água encanada, esgoto, luz elétrica, cinema,

clube, igreja (em construção) campo de esportes, futebol, lawn-tennis, enfim, todos os

atrativos e passatempos necessários para amenizar a vida dos operários... A vida dos

operários é muito facilitada com a redução das despesas de aluguéis de casa, que a

fábrica facilita às famílias operárias de 9$000, 10$000 e 12$000 por mês e por família,

casas estas que na capital custariam 45$000 a 60$000. Os gêneros alimentícios

também ... nunca excedem os preços dos da capital e de Sorocaba, ao mesmo tempo

72

que os salários são mais elevados que em qualquer outro lugar do estado

(DECCA,1987, p. 58, grifo do autor).

Outra fonte lucrativa para essa fábrica era a estrada de ferro, pois os empregados que

precisassem ir à Sorocaba o fariam de trem, desembolsando 1 mil-réis por passagem simples.

É sabido, pelos balanços e relatórios publicados nos jornais, que a companhia não tinha prejuízo

na exploração dessa atividade. O preço da passagem não era baixo e é possível que a companhia

estipulasse valores mais elevados a fim de desencorajar o contato com o exterior da vila. Ainda

sobre todos os benefícios oferecidos aos empregados da fábrica Votorantim, Dean (1971, p.

167) arremata:

Dificilmente se imaginarão os emaciados habitantes dos barracões de tecelagem

frequentando as quadras de tênis ou o trampolim da piscina depois de um turno de dez

horas diante de máquinas implacáveis; tanto as primeiras quanto a segunda eram,

evidentemente, prerrogativas dos funcionários mais graduados.

Provavelmente, devido ao isolamento e ao tamanho alcançado pela fábrica Votorantim,

ela era frequentemente visitada e considerada como padrão aceitável de atendimento ao

operário. O industrial paulistano Jorge Street, conhecido por ter uma consciência social ao

oferecer benefícios a seus operários, visitou, em agosto de 1911, a fábrica Votorantim, “cuja

organisação desejava conhecer por ter em construcção em S. Paulo, no Belemzinho,

estabelecimento industrial de natureza idêntica” (CRUZEIRO DO SUL, 13 ago 1911, p.3).

Em sua fábrica Maria Zélia, em São Paulo, Jorge Street que, como já dito, gozava da

fama de patrão preocupado com o bem-estar de seus operários, oferecia vários benefícios aos

seus empregados, como creche, jardim da infância, casas de moradia, clube, restaurante etc. No

restaurante da fábrica, as refeições eram a preço de custo e feitas sob a supervisão nutricional

de um médico especialista em regimes alimentares dos trabalhadores, inclusive, durante as

refeições, havia um aparelho de rádio que transmitia músicas para o deleite dos operários.

Figura contraditória, o próprio Jorge Street declarou a uma delegação inglesa que

visitava sua propriedade que não fazia caridade, apenas oferecia os benefícios em lugar de

salários mais elevados “que seriam torrados em coisas inúteis”.

Insistia também em que todos os trabalhadores, em sua moderna aldeia, observassem

o toque de recolher às nove horas e se abstivessem de ingerir bebidas fortes. No jardim

da infância as crianças aprendiam hábitos de asseio e a tecer modelos; as operárias

não eram multadas pelo tempo em que deixavam de trabalhar amamentando os filhos

(DEAN s/d, p. 168).

73

Na fábrica Votorantim, esse “paternalismo” ficou mais acentuado a partir de 1917,

quando o estabelecimento deixou de pertencer ao Banco União e passou a ser propriedade do

imigrante português Antonio Pereira Ignácio. O pseudo paternalismo é uma estratégia de

manipulação eficaz em que o empregado não tem consciência dessa dependência ou é

compelido a aceitá-la pelas vicissitudes da vida. Nem sempre o controle e a dominação

precisam ser necessariamente explícitos ou pela força, as algemas podem ser de lã.

O proletariado é desprovido de tudo, [...] porque a burguesia se arrogou o monopólio

de todos os meios de subsistência. Aquilo que o proletariado necessita, só pode obtê-

lo dessa burguesia cujo monopólio é protegido pela força do Estado. Ela lhe oferece

os meios de subsistência, mas em troca de um “equivalente” – seu trabalho (ENGELS,

2010, p.118).

Os baixos salários e as condições adversas de trabalho garantiam a mais-valia1,

entretanto, os patrões precisaram fazer algumas concessões para fixar o operário no trabalho,

haja vista que não há opressão que não tenha fim.

Nesse quesito, a formação das vilas operárias atendia plenamente a esses objetivos. Por

outro lado, os operários, quase sempre com família numerosa, sem qualificações, e muitos deles

imigrantes que desconheciam o país, viam-se obrigados a aceitar esse estado de coisas, já que

não lhes restavam alternativas melhores para mudar de vida.

1.8 Dentro da fábrica, o tear silencia a todos

“Em cada fabrica de tecidos vive a ingrata tuberculose,

o verdadeiro premio que os industraes dão aos seus empregados”.

(O Operario, 18 jul 1911)

As condições de trabalho nas fábricas de Sorocaba não eram muito diferentes das de

São Paulo ou de outras cidades do país e nem mesmo daquelas apresentadas por Friedrich

Engels em sua obra A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de 1845.

Os salários eram aviltantes e a média salarial girava em torno de quatro mil-réis, o

equivalente a sessenta centavos de dólar. Conforme já mencionado neste trabalho, foi tornando-

1 Para Marx, o capitalismo baseia-se na relação entre trabalho assalariado e capital, mais especificamente na

produção do capital por meio da expropriação do valor do trabalho do proletário pelos donos dos meios de

produção. A esse fenômeno Marx deu o nome de mais-valia.

74

se cada vez mais comum o emprego da mão de obra de mulheres e de crianças. As mulheres

representavam cerca de um terço da força de trabalho, e havia muitas crianças. É possível que

a metade de todos os funcionários fosse menor de dezoito anos e quase 8% eram menores de

catorze (DEAN, s/d).

A mão de obra feminina e infantil foi largamente utilizada, principalmente nas fábricas

têxteis, a partir da introdução das máquinas, e, consequentemente, entre vários efeitos, acarretou

um afastamento dos homens adultos das fábricas. A mulher operária se transformou em um

temível concorrente do operário.

De acordo com a análise de Engels (2010), tanto na fiação como na tecelagem, a partir

da introdução das máquinas, o trabalho humano consistia, principalmente, na reparação dos fios

que se rompiam, já que as máquinas faziam todo o resto. Esse trabalho não exigia força física,

apenas dedos ágeis.

Então, não só os homens são dispensáveis, como, por outra parte, o maior

desenvolvimento dos músculos e da ossatura das mãos tornam-os menos aptos para

esse trabalho que as mulheres e as crianças – por isso, estão quase todos excluídos

desse tipo de trabalho. Quanto mais a atividade dos braços e dos esforços musculares

vêm sendo substituídos, mediante a introdução ds máquinas, da força hidráulica ou do

vapor, tanto menos se necessita de homens, deslocados por mulheres e crianças que,

além de serem mais hábeis que os homens, recebem salários menores (ENGELS,

2010, p. 179).

Outra consequência do trabalho da mulher na fábrica foi a desagregação da família. Ora,

a mulher trabalhando por 10, 12 ou até 14 horas diárias, não tinha condições de cuidar dos filhos

e nem mesmo do lar. Após o nascimento dos filhos, em questão de dias, a operária já deveria

retornar ao trabalho, sendo obrigada a transferir a criação dos filhos para seus outros filhos mais

velhos ou para algum vizinho, uma vez que não havia nenhuma instituição com a incumbência

de cuidar das crianças enquanto os pais estavam trabalhando nas fábricas. Essa situação de

abandono involuntário dos filhos pelas mulheres operárias também foi verificada por Engels.

A mãe que não tem tempo de ocupar-se do filho, que em seus primeiros anos não pode

dedicar-lhe os cuidados mais elementares, que mal pode vê-lo, não pode ser para ele

uma verdadeira mãe; torna-se-lhe indiferente, trata-o sem amor e solicitude, como a

uma criança estranha. Por seu turno, as crianças que nascem nessas condições mais

tarde serão incapazes de vida familiar, [...] porque conheceram apenas uma vida

solitária – e acabarão contribuindo para a destruição da família, fenômeno já comum

entre os operários ingleses (Idem, p. 182).

A primeira escola maternal do estado de São Paulo foi a da fábrica Santa Rosália, em

Sorocaba, criada em março de 1924. Em janeiro de 1926, foi criada a escola maternal da fábrica

75

Votorantim. A criação de creches e escolas maternais foi, antes de tudo, uma iniciativa

econômica e não uma preocupação pedagógica.

O ambiente dentro das fábricas era insalubre: pouca ventilação e pouca luminosidade,

muito calor, excesso de barulho e poeira constante, que pairava no ar. As construções seguiam

os modelos arquitetônicos ingleses, com as janelas sempre posicionadas no alto, impedindo a

visão do exterior a fim de concentrar a atenção apenas no trabalho. A saúde dos pobres operários

consumia-se a cada dia de trabalho. Mais uma vez, pelo relato de Jacob Penteado, é possível

perceber como era o cotidiano dos operários em Sorocaba, já que seus pais trabalharam na

fábrica Santa Rosália. Por uma triste coincidência, seu pai faleceu em 1903, no mesmo dia em

que sua mãe dava à luz a seu irmão. Jacob Penteado tinha então 3 anos de idade.

Pobre papai! Morreu moço. Organismo não muito resistente, trabalhando sem cessar,

sucumbiu ao desumano regime imperante na indústria. [...] Vieram, então dias de

grande dor e trabalho, pois mamãe, ainda não refeita do profundo golpe que sofrera

nem tampouco da recente maternidade precisou ir trabalhar na “Santa Rosália”, a fim

de sustentar-se e às duas criancinhas que lhe ficaram na desolada viuvez. [...] Vejo-a

ainda, quando, em plena madrugada, eu também acordava, ao apito da fábrica, cujo

som ecoava, no silêncio da colina, como um doloroso chamado. Meio insone, pois

passava as noites cuidando do pequeno Antoninho, levantava-se, preparava às pressas

seu magro café, vestia-se, beijava-nos e seguia para o seu calvário. [...] Poucos meses

durou o meu irmãozinho (PENTEADO, 2003, p.18).

A industrialização de Sorocaba não difere da de outros centros, como São Paulo ou Rio

de Janeiro, marcadamente definidas com a presença do elemento imigrante, enquanto força de

trabalho. A medida que foram se instalando as fábricas, novas relações sociais foram surgindo.

Estabeleceram-se as relações que marcaram o sistema capitalista de produção. O capitalista,

dono dos meios de produção, representado na figura do industrial, o dono da fábrica e dos

maquinismos, formando uma classe social, a burguesia. Desprovido de uma propriedade e dos

meios de produção, ou qualquer outra coisa que o valha, está o empregado, que só pode dispor

de sua força de trabalho, vendendo-a ao capitalista. Nessa convivência diária é que se

estabelecem algumas das mais importantes relações sociais, ou seja, as relações de trabalho.

No artesanato e na manufatura, o trabalhador se servia de sua ferramenta, enquanto, na

fábrica, ele passava a servir a máquina. Se o trabalhador tinha, antes, o controle sobre o processo

e as condições de trabalho, com a mecanização da produção, no sistema de fábrica, esse controle

escapou de suas mãos. Na verdade, o trabalhador foi submetido e dominado por suas condições

de trabalho (DECCA, 1991, p. 8).

76

Figura 7 - Fábrica de tecidos Votorantim.

Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.

Nos primeiros tempos da industrialização, final do século XIX e início do XX, não havia

uma legislação trabalhista, nem tampouco uma organização operária. No ambiente de trabalho,

dentro da fábrica, reinava todo tipo de manobras que permitiam o aumento da mais-valia por

parte dos patrões, que já haviam introjetado a essência do sistema capitalista.

Assim, os salários pagos pelos capitalistas estavam de acordo com o apresentado por

Karl Marx, em seu Manifesto do Partido Comunista, de 1848: o “que operário assalariado

obtém por sua atividade é o estritamente necessário para garantir-lhe a sobrevivência” (MARX;

ENGELS, 2001, p.49).

Não obstante os baixos salários, o trabalho extenuante dentro das fábricas sugava as

forças dos trabalhadores. Alguns expedientes adotados pelos patrões eram os mesmos dos

tempos da revolução industrial, denunciados por Engels. Os patrões pagavam conforme suas

conveniências, pois não havia uma data certa no mês para efetuarem os pagamentos. O operário

recebia de acordo com os dias trabalhados, descontavam-se os domingos e faltas, além das

multas recebidas. Multava-se o operário por atrasos na entrada do serviço, por danos na

máquina, perda de material, ou danos na peça tecida ou por qualquer outro motivo a bel prazer

dos encarregados. Há notícias de que tais multas atingiam um terço do salário do operário e de

que também eram aplicadas às crianças (SIMÃO, 1966). Essa situação era noticiada pela

imprensa operária:

77

[...] todos os operários d’aquella fabrica que digam com franqueza com que estado

trabalham com o material... pentes estragados, rôllos com falta de fios, orellas

totalmente estragadas, é uma vergonha, em uma fabrica como a “Votorantim” [...]

não podemos trabalhar o mez inteiro com o material em pessimo estado, não podemos

pagar os 4 mil réis de multa em cada peça (O OPERÁRIO, 14 abr 1912, p.2).

Alvo de constantes queixas por parte dos operários, um procedimento bastante usual em

todas as fábricas e que perdurou por muito tempo foi a utilização de operários eventuais, ou

seja, que compareciam diariamente à fábrica nos horários de entrada, porém, só trabalhavam se

alguém tivesse faltado. Com essa prática, não se configurava o vínculo empregatício e a falta

de um empregado não era sentida, já que se dispunha de um exército de reserva. Para o operário

eventual era cruel essa situação, já que nunca sabia ao certo quanto iria receber no final do mês

e nem por quanto tempo poderia ficar na condição de quase empregado. Sem contar que ele

precisava levantar de madrugada, gastar com a passagem do bonde, correndo o risco de não ter

trabalho naquele dia.

Em 1939, ainda persistia nas fábricas esse procedimento e foi o que ocorreu com

Salvadora Lopes, uma operária de Sorocaba que teve papel de destaque na luta operária

posteriormente. Salvadora, residente Sorocaba, trabalhava na fábrica Votorantim na condição

de operária eventual. Decidida a mudar esse quadro, reuniu outras operárias na mesma situação

e foi falar com o gerente da fábrica, Angelo Vial.

- Com licença, sr. Angelo. Estamos aqui para fazer uma proposta ao senhor. Estamos

cansadas de acordar cedo e nos dirigirmos até aqui para no fim não conseguirmos

ganhar o nosso dia. A proposta que fazemos é a seguinte: o senhor nos deixa ficar na

fábrica realizando serviços gerais, limpando máquinas, varrendo chão, lavando os

banheiros... Qualquer serviço, desde que não precisemos voltar para nossas casas sem

ganhar o dia de serviço (CAVALHEIRO, 2001, p. 102).

A proposta feita por Salvadora Lopes, futura líder operária, dava mostras do grau de

sujeição a que os operários estavam obrigados para garantir o salário e fora aceita pelo gerente

da fábrica, Angelo Vial, cujas origens foram no operariado e que serão tratadas com mais

detalhes mais adiante.

Não havia uma idade mínima para ingressar no trabalho, como também não havia uma

idade máxima para deixá-lo. Apesar de as pessoas não viverem muito, era possível encontrar

operários com setenta anos ou mais trabalhando. Viam-se na contingência de trabalhar até os

estertores de suas forças, pois não havia uma previdência que lhes garantisse uma

aposentadoria. Na imprensa operária, não raro, apareciam acidentes ocorridos com pessoas de

mais idade.

78

Outra dura realidade que prevalecia em todas as fábricas era o trabalho das crianças de

ambos os sexos, conforme comprovam os anúncios feitos na época, como o reproduzido a

seguir: “Fabrica N. S. da Ponte – Nesta fabrica precisa-se de meninos de 8 a 12 annos de edade.

Paga-se ordenado desde a entrada” (A VOZ DO POVO, 24 fev 1895, p. 2).

Interessante notar a observação feita no anúncio de que se pagava desde a entrada. Ora,

isso era o mínimo que se podia esperar, entretanto, deveria ser usual o não pagamento desde o

início do trabalho, visto que, no referido anúncio, isso transparece como uma vantagem da

fábrica do Fonseca.

Se as condições de vida dos operários homens, nos primeiros tempos de

industrialização, eram difíceis, muito mais duras eram as condições das mulheres e das crianças.

A mão de obra infantil foi muito utilizada nas fábricas, principalmente as têxteis, não só em

Sorocaba, como em São Paulo, enfim, em todos os lugares em que havia operários. As crianças

eram vistas como um adulto em miniatura, sendo assim, a infância lhes era negada. Sempre

descalças, sem agasalho nos tempos de inverno, sem estudo, desde muito cedo, meninos e

meninas conheciam a luta para ganhar o pão de cada dia.

Vários fatores concorriam para a utilização dessa mão de obra. Os salários eram

baixíssimos. As crianças trabalhavam nas mesmas condições dos adultos, cumprindo a mesma

longa jornada. Eram obrigadas a começar o trabalho de madrugada e trabalhar doze, ou até

quinze horas por dia. O trabalho infantil era visto como uma exploração dos proprietários das

fábricas, porém era dificil combater essa prática, uma vez que os pais necessitavam do salário,

por menor que fosse ele.

Ora, trabalhar das 5 e meia da manhã ás 7 ou 8 da noite nessas fábricas escuras, anti-

hygienicas, perniciosissimas, principalmente as crianças, esses entes fracos, onde vão

crescendo na mais completa obscuridade, desprovidas dos mais comesinhos

conhecimentos uteis, desprovidas, finalmente da luz mais radiosa e necessaria a

humanidade toda – a luz da instrucção! – não é viver, é padecer (O OPERARIO, 2 out

1910, p.2).

A questão do trabalho infantil foi provocada pela própria burguesia, pois se os salários

pagos aos pais não fossem tão aviltantes, não lhes permitindo obter o mínimo para a

subsistência, eles não seriam compelidos a mandar seus filhos ao trabalho tão precocemente.

No entanto, a burguesia ainda tomava para si, nessas circunstâncias, o papel de benfeitora. A

burguesia, primeiro, colocava os filhos dos operários numa situação insustentável e, depois,

explorava essa situação em seu proveito (ENGELS, 2010).

A exploração da classe trabalhadora pela burguesia não era vista como tal, pelo

contrário, era entendida como salvadora, principalmente para as mulheres e as crianças. Uma

79

prova desse pensamento pode ser extraída de uma notícia do jornal A Voz do Povo, publicada

em 1894, que informava sobre a ida de Alexandre Marchisio para a Inglaterra a fim de adquirir

máquinas para a fábrica Santa Maria. Esse inglês foi o responsável pela instalação da primeira

fábrica de tecidos de Sorocaba, a Fábrica Nossa Senhora da Ponte, e depois veio a compor a

sociedade que instalou a fábrica Santa Maria.

Alexandre Marchisio – Este cidadão que allia em si vastissimos conhecimentos

industriaes a uma modestia sem par; que symbolisa, para Sorocaba, a éra do seu

progresso, o pão para centenas de mulheres e creanças que viviam a míngua de

trabalho compativel ás suas fracas forças; que foi o mestre - «a alma» da grande

fabrica de tecidos «Nossa Senhora da Ponte de Sorocaba», propriedade do grande

industrial sr. Manoel José da Fonseca, que hoje ostenta-se orgulhosa de seus

productos, que não dão nem para satisfazer grande parte dos pedidos, deixa-nos por

algum tempo. (A VOZ DO POVO, 17 out 1894, p.2).

A hipocrisia do patrão residia num discurso de bondade ao permitir que as crianças

pudessem trabalhar, pois, além de contribuir com o orçamento da família, também se mostrava

salutar para a formação moral delas próprias, evitando desvios de caráter e atividades de

vadiagem, conforme comprova o relato da visita à fábrica Santa Rosália pelos repórteres do

jornal O 15 de Novembro, em 1899.

Visitamos demoradamente as diversas secções onde as referidas operações se fazem

[...]. – O compartimento do fabrico do fio é sobremodo digno de visitar-se. Antes de

tudo, funccionam quatro machinas, cada uma das quaes com 125 fusos; seguem-se

outras sete machinas, com 150 fusos cada uma; e finalmente, duas machinas

trabalhando em cada uma 350 fusos. Aqui manusêa-se o fio para morim, desde o

numero 20 até o 28. Nestas ultimas machinas só operam crianças, meninos ageis, que

é uma viva satisfação ver para alli occupados, aproveitando santamente o tempo que

outras malbaratam na ociosidade, na precocidade do vicio. [...] Cada operario toma

conta de quatro teares – [...] – Os operarios que presentemente trabalham no

estabelecimento, montam a 120, homens e mulheres. Os meninos, de ambos os sexos,

são em numero de 90. De novo, santa escola do trabalho! Vimol-os alli entretidos,

diligentes, numa faina suave, que de maneira alguma lhes pode prejudicar as

organisações debeis, em vista do diminuto dispendio de forças que demanda. (O 15

DE NOVEMBRO, 3 set 1899, p. 2).

Considerando que o desenvolvimento fabril de Sorocaba se deu com maior ênfase a

partir da última década do século XIX, num tempo bem posterior à revolução industrial da

Inglaterra, percebe-se que a situação vivida pelo operariado de Sorocaba era muito semelhante

àquela vivida pelos operários ingleses do final do século XVIII e início do século XIX. Até

mesmos os argumentos e justificativas utilizados pela burguesia inglesa eram repetidos aqui.

Engels apresenta também as impressões de Andrew Ure sobre o trabalho infantil ao visitar

fábricas têxteis na Inglaterra.

80

Visitei várias fábricas em Manchester e em seus arredores e jamais vi crianças

maltratadas, submetidas a castigos corporais ou mesmo que estivessem de mau humor.

Pareciam todas alegres (cheerfull) e espertas, tendo prazer (taking pleasure) em

empregar seus músculos sem fadiga e dando livre vazão à vivacidade própria da

infância. [...] Era delicioso (delightful) a agilidade com que reuniam os fios rompidos

em cada recuo do carreto da mule e vê-las, depois de segundos de atividades com seus

dedinhos delicados, divertirem-se muito a descansar nas posições que mais lhe davam

prazer, até que a atividade recomeçasse. [...] Nenhum sinal de cansaço: a saída da

fábrica imediatamente se punham a brincar num espaço livre vizinho com o mesmo

ardor de crianças que saem da escola (URE, apud ENGELS, 2010, p. 204) (grifos do

autor).

Apesar de o autor reforçar que o trabalho na fábrica era feito pelas crianças com alegria,

o que não parece verossímel, acaba por reconhecer que aqueles pequenos trabalhadores não

tinham a oportunidade de frequentar a escola. Parece-nos bem pouco provável que, após uma

longa e estafante jornada de trabalho, as crianças ainda tivessem disposição para brincar,

sabendo que no dia seguinte tudo iria se repetir.

Muito diferente desse relato foi o publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, de 5 de

setembro de 1917, sobre o trabalho noturno das crianças operárias de uma fábrica de tecidos de

São Paulo.

[...] assistimos ontem à entrada de cerca de 60 pequenos às 19 horas, na sua fábrica

da Mooca. Essas crianças, entrando àquela hora, saem às 6 horas. Trabalham, pois, 11

horas a fio, em serviço noturno, apenas com um descanso de 20 minutos à meia-noite!

O pior é que elas se queixam de que são espancadas pelo mestre de fiação. Muitos nos

mostraram equimoses nos braços e nas costas. Alguns apresentaram mesmo

ferimentos produzidos com uma manivela. Uma há com as orelhas feridas por

continuados e violentos puxões. Trata-se de crianças de 12, 13 e 14 anos (O ESTADO

DE S. PAULO, 5 set 1917 apud DECCA, 1991, p. 38).

O trabalho duro nas fábricas afetava a saúde das crianças, que ficavam impedidas de

estudar, brincar, viver com mais dignidade, comprometendo o desenvolvimento físico e a saúde

no futuro, quando conseguiam chegar à idade adulta, uma vez que números significativos

registravam a mortalidade entre os pequenos operários. Pelo cansaço excessivo, muitas crianças

adormeciam sobre os teares e eram acordadas pelos safanões dos encarregados. Quando

cometiam alguma falta, as crianças eram castigadas fisicamente pelos encarregados. Os

acidentes de trabalho com as crianças eram constantes, como o ocorrido com um menino na

fábrica Votorantim:

[...] Seriam 9 e meia horas da manhã o menino José Pinho, de 12 annos, filho de Maria

Pinho, hespanhol, trabalhando na repartição de morins foi apanhado por uma machina

ficando completamente esmagado e com o corpo todo envolto no panno trabalhado

pela dita machina; dando-se o fallecimento horas depois [...] Hontem as onze horas da

manhã realisou-se o enterro da mallograda creança. O enterro foi imponentissimo

comparecendo, alem de muita gente desta cidade o digno pessoal operario e a banda

81

musical daquella Fabrica. A’ beira da sepultura, oraram manifestando os sentimentos

dos circumstantes, o nosso chefe dr. J. Marques Ferreira Braga e o director A. A.

Covello (A CIDADE DE SOROCABA, 13 jun 1909, p. 2).

A imprensa sorocabana noticiou o acidente com o pequeno operário. O jornal A cidade

de Sorocaba nomeou o ocorrido como um “pungente acontecimento” e o jornal Cruzeiro do

Sul como “desastre lamentável”. Entretanto, os dois jornais são enfáticos ao comentar que, no

momento do acidente, o gerente da fábrica interrompeu o trabalho em sinal de pesar e

imediatamente chamou o socorro médico, “prestando todos os cuidados que urgiam no caso

occurrente”, conforme A cidade de Sorocaba. Já o Cruzeiro do Sul fez a seguinte manifestação:

“O sr. Eugenio Mariz suspendeu immediatamente os trabalhos, tomando todo o interesse

possivel sobre o lamentavel incidente, motivo pelo qual os operarios daquelle estabelecimento

agradecem-lhe penhoradissimos por nosso intermedio” (CRUZEIRO DO SUL, 12 jun 1909,

p.2).

A atitude do gerente é descrita por ambos os jornais como um ato magnânimo, de

extrema bondade. É interessante assinalar a presença da imprensa, inclusive com

pronunciamentos dos dirigentes do jornal no sepultamento do pequeno operário, e ainda a

presença de operários e da banda musical da fábrica Votorantim. A morte do menino acabou

tornando-se um grande evento “imponentíssimo”. Sobre a morte do menino, que poderia ter

sido evitada, caso ele não trabalhasse na fábrica sabe-se lá por quantas horas diárias e há quanto

tempo, a imprensa silenciou.

Sobre o trabalho dentro das fábricas, Jacob Penteado (2003, p. 50), que acompanhava a

mãe operária no início do século XX, descreve-o sem a mesma alegria contida no relato dos

visitantes já apresentados:

Nos primeiros dias, aquilo, para mim, foi uma festa, uma novidade. Olhava para

aquelas centenas de teares, cujos braços batiam incessantemente, de um lado para

outro, num tric-trac infernal. Passava por entre eles, com muita cautela, receando ser

atingido. Para não permanecer inativo, davam-me restos de espulas para cortar.

Sentava-me atrás dos teares e, com um pedaço de vidro bem cortante, ia retirando os

poucos fios que ainda ficavam enrolados na espula, quando esta não mais servia para

a lançadeira. Esta peça, então, era uma constante ameaça para as tecelãs, pois, de

quando em quando, escapava do tear e ia projetar-se com incrível velocidade, para os

lados. Como possuía uma ponta de ferro bastante aguda, em forma de pião, constituía

realmente, um perigo. Um dia, mamãe foi atingida por uma, junto à têmpora, e por

pouco não teve um olho vazado. [...] Após algumas horas na fábrica, eu ficava inquieto

e começava a perambular pelas várias secções [...] de cinco em cinco minutos,

consultava o relógio, numa ânsia de ver-me livre daquela prisão.

Geraldo Bonadio (2004), em sua pesquisa sobre a industrialização de Sorocaba,

vasculhou antigos arquivos da fábrica Votorantim em busca de reunir dados obtidos a partir de

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67 fichas de registros de operários, feitas em 1937, por exigência da lei. No entanto, o ingresso

desses operários fora bem anterior, por volta da década de 10 e 20. Nessas fichas, o pesquisador

encontrou registros de crianças de até seis anos de idade como trabalhadores da empresa.

[...] Apenas dois trabalhadores do sexo masculino foram admitidos na empresa com

menos de 10 anos – 8 anos, em ambos os casos – enquanto no grupo das mulheres,

bem menor encontramos 5 em tal condição (27,7% do total). Uma massaroqueira (sic)

nascida em Badajoz, Espanha, foi admitida aos seis anos (BONADIO, 2004, p. 2011)

A imprensa sorocabana, muitas vezes talvez até de maneira involuntária, em

determinadas notícias, pelos comentários que tecia, corroborava a dura realidade vivida pelos

operários. Em 1903, o jornal O 15 de Novembro, sob a epígrafe Uma lição, relatou o ato

“magnânimo” dos operários da Fábrica Santa Maria, que, por ocasião do falecimento de seu

chefe Herman Burchard, num costume da época, mandaram entregar à Santa Casa de

Misericórdia a quantia de 120 mil réis. Esclarecia o jornal que essa não era a primeira vez que

os operários procediam dessa maneira. Num tom exacerbado, referiu-se aos operários como

Martyres do trabalho, martyres porque muitas vezes succumbem no seu posto

victimados pelas energias dispendidas em trabalhos excessivos, os operarios

verdadeiros desherdados da sorte, apezar dos minguados salarios, não se esquecem

daquelles que soffrem no leito da dôr e por isso as poucas moedas que ganham vão

repartir com seus irmãos de infortunio. É bemdito, é divino esse sentimento que se

abriga no peito dos operários e que vem provar que a nobreza d’alma não é privilegio

de classe alguma (O 15 DE NOVEMBRO, 26 mar 1903, p.1).

Dentro das fábricas, havia uma figura odiada por todos, o contramestre. Esse

profissional, quase sempre escolhido pelo patrão dentre os operários, tinha por função precípua

a vigilância dos operários. Ganhava mais e, com certas regalias, atuava como agente

disciplinador. Essa função representava o papel clássico de vigilância, especialmente

importante da indústria têxtil, onde as relações com as operárias eram particularmente ruins,

pois elas protestavam contra as intimidades e exigências sexuais dos contramestres. Por outro

lado, o contramestre tinha uma função técnica crescente: ele devia vigiar e, muitas vezes,

regular as máquinas, e, com isso, insinuava-se pessoalmente no processo de produção de um

modo que escapava à percepção dos trabalhadores. O contramestre era capaz de interferir no

trabalho dos operários, impingindo-lhes dificuldades relacionadas a problemas com o

maquinário, regulando, assim, o ritmo de trabalho em conformidade pela máquina.

83

1.9 As histórias de vida se repetem nas vilas operárias

As histórias de vida nas vilas operárias eram muito parecidas, quase se repetiam. Sempre

a mesma origem, as mesmas dificuldades e os mesmos sonhos. Como a história dos meus avós

maternos, vindos da Itália, que se instalaram na vila operária da Fábrica Votorantim no início

da década de 30.

Ferdinando Lencioni, juntamente com sua família, chegou à estação de trem na vila

operária de Votorantim. O lugar era bonito e movimentado. Da estação, avistou uma grande

construção, reconhecida com facilidade: sem dúvida tratava-se da fábrica de tecidos de que lhe

falara o amigo Giovani Bortolotto, quando lhe garantiu que conseguiria emprego para todos da

família, além de uma casa para morar. Tão logo desceu do bonde, perguntou a uma pessoa que

passava para que lado ficava a vila da Chave. Não teve dificuldade em entender a resposta, pois

perguntara em italiano e obteve a resposta na mesma língua. Seguiu então, com seus seis filhos

– Daria, Daura, Iolanda, Rosa, Ademar e Alfredo – e a segunda esposa – Amélia – para a casa

do amigo.

Após passar um pontilhão, avistou um casario. As casas, grudadas umas nas outras,

tinham um aspecto bonito. As ruas tinham calçadas, mas eram de terra. As construções ficavam

entre os morros e o rio, que seguia tranquilo o seu curso. Ao final do casario, aparecia uma

cachoeira de águas cristalinas e espumantes. Crianças brincavam nas ruas e os adultos

conversavam animadamente nas calçadas, pois era domingo. Seguiram até o final da rua e

encontraram a casa do amigo Giovani, que os acolheu com satisfação. Ferdinando passou a

relatar para o amigo a sua história, que não era muito diferente da vivenciada pela maioria dos

moradores daquela vila.

Era a segunda vez que vinha ao Brasil. Na primeira, tentou estabelecer-se, mas não teve

muitas oportunidades e retornou à Itália na esperança de que a terra natal o acolhesse e

oferecesse uma vida melhor daquela de quando a deixou. Mas não foi o que aconteceu. No final

do século XIX, a Itália nem de longe sinalizava em oferecer uma vida melhor para seus filhos.

A esperança estava dando lugar ao desespero e os italianos continuavam procurando novas

terras. Como não foi possível seguir para os Estados Unidos da América, restava tentar o Brasil

novamente.

Embarcou no porto de Gênova com destino a São Paulo. Na ocasião dessa viagem, era

casado com sua primeira esposa, Alaide, e tinha apenas uma filhinha de dois anos de vida.

Chegando a São Paulo, seguiu para o interior, onde instalou-se na cidade de Itapira, passando

84

a trabalhar como sapateiro, seu ofício na Itália. A familia foi crescendo e as dificuldades

aumentando a cada dia, pois o trabalho na sapataria rendia pouco, para tantas bocas a serem

alimentadas. Alaide, ao dar à luz o sétimo filho, teve complicações no parto e, sem assistência

médica, veio a falecer juntamente com a criança. Ferdinando, viúvo e com seis filhos para criar

foi tocando a vida, do jeito que a vida queria.

Mantinha-se como sapateiro e comprava os materiais necessários, como couro, cola,

pregos etc., numa loja num pequeno distrito de Itapira, chamado Eleotério. Nas idas e vindas

até a loja, tornou-se amigo do dono, e conheceu sua sobrinha Amélia, que não era muito moça

e nem tão bonita, mas talvez pudesse aceitar a sua proposta. Pediu-a em casamento e, para sua

surpresa, ela aceitou. Era uma moça solteira, sem muitas alternativas, com quase trinta anos,

sem pai, sem mãe, sem casa, sem trabalho e que morava com os tios. O tio, quase sempre

bêbado, transformava-se num bruto e a tratava com muita violência. Pensando em mudar de

vida e, talvez, quem sabe, até melhorar de vida, aceitou o pedido e, em quarenta dias, estavam

casados. No dia seguinte ao casamento, ela se deparou com os seis filhos do marido.

Diante das dificuldades financeiras, sem vislumbrar possibilidades de melhoras,

Ferdinando resolveu arriscar tudo e seguiu para Sorocaba, cidade industrial, onde, conforme

informações dadas pelo amigo Giovani, não faltaria emprego nas fábricas de tecidos. Na maior

delas, a Fábrica Votorantim, ele e a família poderiam conseguir uma casa para morar. Mesmo

na incerteza, mas com muitas esperanças, juntaram a pequena tralha e partiram.

No dia seguinte ao da chegada à vila de Votorantim, Ferdinando, a esposa e os filhos

foram até o portão da fábrica pedir emprego. A conversa não avançava a portaria, pois era o

porteiro que examinava os candidatos e determinava se podiam ao não começar a trabalhar. O

porteiro perguntou a idade do casal, e achou-os já passados. Depois, dirigindo-se às moças, quis

saber as idades. Dezoito, dezesseis, quatorze e doze anos. E o menino dez. Fez minuciosa

vistoria nos mesmos a fim de detectar sinais aparentes de alguma doença que os impossibilitasse

para o trabalho. Todos pareciam saudáveis. Apenas o pai foi barrado, fora denunciado pelas

feridas que trazia nas pernas: a sífilis.

Após o exame, o porteiro concluiu que tinham condições de trabalhar, a madrasta, as

quatro meninas e o menino. O pai fora rejeitado. Todos poderiam começar no dia seguinte e,

lá dentro, o mestre determinaria a função de cada um. Os empregos tinham sido arranjados,

faltava agora a casa. Estavam com sorte, pois naquele tempo encontravam-se vazias várias casas

na vila da Chave e, como a família era grande, o guarda ponderou e deu as chaves de um

sobrado. Avisou que o aluguel viria descontado no salário.

85

A alegria aumentou quando viram que o sobrado era vizinho ao do amigo Giovani, que

os acolhera. A fábrica fez uma caiação na casa e a família fez uma grande faxina, lavando tudo

para acabar com a infestação de percevejos. O sobrado tinha dois quartos no andar superior.

Terminada a escada, já havia um quarto aberto e, para chegar ao outro quarto, era preciso passar

pelo primeiro. No andar debaixo, havia uma sala e uma varanda, que corresponderia a uma sala

de jantar e a cozinha, que abrigava apenas o fogão de lenha. O piso era de tijolo maciço. No

quintal, ficava o banheiro, onde a privada era construída no chão e não havia pia, chuveiro e

luz elétrica. No restante da casa, havia luz elétrica, mas não em todos os cômodos. A fábrica

mantinha sempre um número menor de lâmpadas que o de cômodos da casa.

Nos quartos havia apenas algumas camas patente onde dormiam dois irmãos por cama.

A mobília era escassa. Um grande baú fazia as vezes de cômoda e as roupas ficavam

dependuradas em pregos espalhados pelos quartos. Nem era tanta roupa assim, pois cada um

tinha praticamente uma troca de roupa. Somente muitos anos depois de entrarem na casa é que

conseguiram comprar um guarda-roupas.

Como não fora possível arranjar emprego na fábrica, Ferdinando transformou a sala da

casa em sapataria e foi fazendo o que sabia. Por sorte, não havia outros sapateiros na vila e,

dessa forma, foi formando a sua freguesia, principalmente consertando as chuteiras dos

jogadores do time de futebol Savóia, bastante afamado na época.

Os primeiros tempos e os seguintes foram tempos duros. O dinheiro era escasso, muito

pouco podiam comprar. A alimentação se resumia a feijão, cebola e tomate temperados com

azeite, uma espécie de salada, polenta, linguiça e outros poucos alimentos baratos. Mas Amélia

era uma ótima cozinheira e conseguia fazer deliciosas pastas para a família de vez em quando.

Até poderia ficar sem trabalhar, pois o serviço da casa era muito para atender às necessidades

da família. Mas Ferdinando não permitiu e a fez trabalhar na fábrica.

O trabalho na fábrica não era fácil. Longas jornadas de trabalho. Às quatro horas da

manhã, soava o primeiro apito. Amélia acordava e já ia acordando os filhos para se prepararem

para mais um dia de trabalho esfalfante na fábrica. Em intervalos cada vez mais curtos, os apitos

iam se repetindo, controlando o tempo de cada um. Quando alguém não acordava e poderia

“rodar” para o serviço, o vizinho batia na parede para acordá-lo.

Todos saíam juntos, caminhavam rapidamente para a fábrica. As portas das casas iam

se abrindo: homens, mulheres e crianças iam saindo e se juntando aos demais, seguindo todos

para a mesma direção, acompanhados pelo som da batida dos tamancos de madeira das

mulheres. Antes das cinco horas, estavam na portaria da fábrica para mais um turno de trabalho.

Ninguém podia chegar atrasado, aquele que o fizesse tinha desconto no salário. A comida era

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levada de casa. Chegando na seção, os operários já acomodavam suas marmitas nos teares para

que fossem se aquecendo até a hora do almoço. Depois da parada de quarenta e cinco minutos

para o almoço, retornavam à labuta. O trabalho na fábrica era duro. Sugava todas as forças da

pessoa. O ambiente era totalmente insalubre: barulho, falta de ventilação, falta de luminosidade

dependendo da secção, calor excessivo e poeira pairando no ar o tempo todo. O dia todo em pé,

não dava para sentar nem sequer um instante.

Depois de instalados na vila operária, vieram mais filhos. Primeiro, Amélia engravidou,

mas a criança não vingou. Passado algum tempo, engravidou novamente e a criança faleceu

com poucos dias de vida, quase sem assistência. Amélia dava sinais de cansaço, estava

enfraquecendo. A vida continuava, sem grandes melhoras, somente trabalho para todos.

Mais uma vez Amélia engravidou e desta vez conseguiu dar à luz Marina. Ferdinando

foi se tornando um homem arredio, embrutecido pela vida. Foi pobre e analfabeto na Itália.

Continuou pobre e analfabeto no Brasil. Para ter notícias da Itália distante, recebia aos

domingos um conterrâneo que lhe fazia a leitura do jornal A Fanfulla. Espancava os filhos com

frequência, mesmo depois de adultos. Também não era delicado com a esposa. A vida tão difícil

se complicava ainda mais com o pai que não permitia gastos, nem mesmo com comida. Pensava

apenas em guardar dinheiro, para quê? Talvez guardasse consigo a vontade de retornar à Itália.

Ninguém nunca soube dizer. Resquício do ascetismo da poupança, característica bem própria

de muitos imigrantes italianos.

Amélia sabia conduzir o marido e sempre pensava nos filhos procurando ajudar a todos,

até mesmo quando se metiam em encrencas, que não eram poucas. Mas nunca deixou faltar

comida e como cozinhava bem! Era madrasta, mas tratava a todos como filhos e era considerada

como mãe por todos. Os filhos foram crescendo, os mais velhos já estavam casando, até que

Amélia, como tantas outras pessoas do lugar, devido às condições precárias de vida e do

trabalho árduo, contraiu tuberculose. A fábrica, como sempre fazia com os operários que

contraiam essa doença, ofertou-lhe cortes de flanela para confecção de pijamas, para realizar o

tratamento em sanatório de Campos do Jordão. Mas não deu tempo, nada adiantou. Ela foi

definhando, perdendo as forças a cada dia.

Num primeiro de janeiro, dia muito quente, faltava-lhe o ar, Marina, a filha mais nova,

na beira da cama, com um pedaço de papelão, abanava desesperadamente a mãe, para que ela

pudesse respirar, mas todo o seu esforço foi em vão. Amélia foi embora, deixando os seis

enteados, que sempre a consideraram como uma mãe, e a sua única filha, Marina, com dez anos

de idade.

87

Com a morte da esposa, mais endurecido ficou o coração de Ferdinando. Obrigou

Marina a usar as roupas e sapatos da mãe, o tamanho não importava, – haveria de servir um

dia! – e a fez trabalhar na fábrica, repetindo a mesma vida da mãe e dos irmãos. Trabalhar na

fábrica, cuidar da casa, cuidar do pai e cuidar da quitanda. A vida se resumia a trabalhar,

trabalhar e entregar o ordenado fechado para o pai. Marina, como suas irmãs, somente

conseguia comprar um vestido e um par de sapatos quando fazia serão.

Ferdinando morreu pobre, na vila da Chave, sem nunca ter conseguido retornar à Itália.

Os filhos casaram-se todos, com operários da fábrica, e continuaram morando na vila operária.

Os filhos dos filhos também trabalharam na fábrica. Quase ninguém foi feliz. Nasceram pobres,

viveram pobres e morreram pobres. Só restava Marina.

Figura 8 - Marina aos 7 anos - foto tirada há 80 anos.

Fonte: Acervo Pessoal - 1936.

1.10 Os imigrantes se unem, os operários se organizam

Ainda no século XIX, começou a aparecer, em Sorocaba, não propriamente uma

organização operária, mas sociedades de ajuda mútua, como em outros lugares, onde havia

concentração de imigrantes e trabalhadores. Esses recém-chegados, em sua maioria italianos,

diante da realidade que se lhes apresentava, logo perceberam que precisariam se unir para poder

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viver nesta terra. Era preciso irmanarem-se para poderem resistir e suportar a saudade da terra

natal e das famílias, que ficaram tão distantes. Para muitos, a esperança de melhorar de vida foi

escapando pouco a pouco. Apesar de ser significativa a presença de imigrantes, especialmente

italianos, na cidade, eles eram segregados em termos de participação, ou seja, sempre eram

referidos como a colônia italiana. Era o mesmo que estar na sociedade, mas não fazer parte dela

plenamente. Nas notícias do jornal, tal qual se fazia com os negros, mesmo depois de finda a

escravidão, a nacionalidade, a cor da pele, apareciam substantivadas: o preto fulano de tal, o

italiano fulano de tal etc., nem sempre de maneira elogiosa. Claro que essa segregação não se

aplicava aos imigrantes que estavam mais bem colocados na sociedade, àqueles que já tinham

algum comércio ou começavam a se destacar em termos financeiros.

A questão social foi introduzida no Brasil juntamente com o trabalho escravo, no

princípio da colonização. E, desde essa época, encontram-se vestígios da luta desenvolvida

pelos trabalhadores para ter acesso a uma vida digna. Se, no primeiro momento, as lutas se

caracterizavam pela fundação de “irmandades” e “juntas de alforrias” para defender o

trabalhador escravo, mais tarde elas se transformaram em outras formas de organização, como

as “sociedades mutuárias”, as “ligas operárias”, as “uniões operárias” e, finalmente, em

sindicatos (FERREIRA, 1978).

A organização do operariado sorocabano também se efetuou de maneira semelhante à

de outros centros industriais do país, iniciando com sociedades de ajuda mútua, seguindo o

modelo europeu trazido pelos imigrantes. Segundo Ferreira (1978), as condições históricas em

que se desenvolveu o período mutualista não permitiram que os movimentos desencadeados

pelos trabalhadores produzissem frutos além das necessidades imediatas da classe. Somente a

partir da concentração maior de operários nos centros urbanos, e a consequente formação de

uma identidade da classe trabalhadora, é que as associações proletárias passaram a exercer

influência no destino dos trabalhadores. Essa segunda fase do movimento operário ficou

conhecida como fase da resistência às classes dominantes. As Sociedades de Resistências eram

as associações operárias destinadas à defesa dos interesses dos trabalhadores contra a

exploração capitalista (CARONE, 1984).

Em 1900, 92% dos operários industriais do estado de São Paulo eram estrangeiros e

81% eram italianos (BRASIL, Diretoria Geral de Estatística, Relatório, 1908, p.190 apud

HALL; PINHEIRO, 1990, p. 48).

Em Sorocaba, foi fundada, em 1885, por um grupo de italianos, a Societá Operaia

Italiana Umberto I. Apesar de se dizer uma sociedade operária, a maior parte de seus

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associados, principalmente os membros da diretoria, estava envolvida em outras atividades,

como o comércio, principalmente. O jornal Diário de Sorocaba noticiou o evento:

Eleição da directoria : Presidente: João Cozzetti; Vice-Presidente: Antonio Catalano;

1.º Secretario: Francisco Matarazzo; 2.º dito, José Valio; 1.º Thesoureiro: Angelo

Rizzo; 2.º dito: Francisco Cozzetti; Conselheiros: Dr. Grilli, A. Guidone, C. Astore,

G. Pedreschi, R. Brocchini, A. Ronzi. Foram unanimemente acclamados presidente

honorario S.M. Umberto I e o dr. G. Eboli, vice-presidente honorario, o sr. ministro

commendador Martuchelli. Sim senhores; para não dizer que a sympathica colonia

italiana é completamente digna dos maiores encomios, notamos uma cousa: que vem

fazer Umberto I em uma associação completamente democratica, erguida do povo e

para o povo? (DIÁRIO DE SOROCABA, 31 out 1885, p. 2).

O jornal Diário de Sorocaba publicou a notícia de maneira elogiosa pela iniciativa,

entretanto, não deixou de fazer uma provocação ao questionar o nome da associação que se

declarava democrática, mas tinha um monarca como presidente honorário.

Esse comentário do jornal não ficou sem resposta. Imediatamente, os italianos membros

responderam, na Secção Livre da edição seguinte desse jornal, que, apesar da distância, eles se

mantinham zelosos com as instituições de seu país e se orgulhavam por ter como chefe da nação

um rei, “exemplo de abnegação em prol de seus súditos” (DIÁRIO DE SOROCABA, 1 nov

1885, p.2). Aproveitaram a oportunidade e teceram críticas desaprovando a maneira como os

brasileiros tratavam o seu imperador.

Nós, italianos, acclamamol-o, como si na patria estivessemos, Presidente honorario

da nossa associação. Convença-se, sr. redactor, de que nosso Rei, acclamado

legitimamente, por nossa vontade, acceitará o posto honorifico com eguaes

sentimentos como acceitou no Capitolio a Coroa Real. O filho do Rei Galantorum é

rei da Italia por vontade dos Italianos, cujo amor e dedicação tambem chega a ser

veneração. Nunca approvamos as mofas e sarcasmos que diariamente n’este paiz se

dispensam ao seu imperador. De V.S. Ven. e Am. “Os Italianos”. Sorocaba – 31-10-

1885 (DIÁRIO DE SOROCABA, 1 nov 1885, p.2).

A resposta dada pelos italianos denota o que se instalara em suas vidas. Bem sabiam que

retornar à Itália seria difícil e sabiam ainda que essa distância traria o esquecimento tanto dos

que lá ficaram, como o dos que deixaram a terra natal. Nascida do povo e para o povo, essa

sociedade mostrava a fragilidade dos italianos daqui, que não demonstravam preocupação com

a incoerência ideológica, pois a figura do monarca, numa associação democrática, configurava

simplesmente o vínculo com a terra. Para seguir um posicionamento ideológico coerente, teriam

que romper com aquilo que lhes era mais caro, a terra natal. Por mais contraditório que pudesse

parecer, era uma maneira de manter os vínculos com a pátria distante. Essa associação,

conforme anunciado em sua fundação (DIÁRIO DE SOROCABA, 1 nov 1885, p.2), tinha por

90

“fim o melhoramento moral e material de todos os italianos, residentes n’esta cidade e auxiliar

os desvallidos de nossa cara patria”.

O dinheiro da Sociedade ha de servir só para beneficiar e soccorrer aos socios e suas

familias em casos de grande e real necessidade. Um incendio, uma morte, uma

inundação, uma casa que cahe, póde reduzir um socio a miseria, póde elle morrer e

deixar mulher e filhos sem meios de vida, a Sociedade obriga-se a emprestar dinheiro

gratuitamente ao socio, até elle recomeçar o seu trabalho, ou reabrir o seu negocio

destruido por qualquer desgraça; obriga-se a soccorrer a sua familia, si elle morrer, á

empregal-a, si quizer, á pagar-lhe passagem até o seu lar natal, até á Europa, si a

Sociedade julgar indispensavel, a pedido da familia (DIÁRIO DE SOROCABA, 1

nov 1885, p.2).

Os membros da associação esclareciam, ainda, que a Sociedade tinha nome de Italiana,

por ter sido iniciada por italianos e por serem eles maioria; mas estava aberta a pessoas de

qualquer nacionalidade e também estava aberta a todas as categorias de trabalhadores.

Contudo, apesar de ter propósitos tão louváveis, não se tem notícias de que essa

associação conseguiu cumprir integralmente seu intento humanitário. Após a sua instalação,

eram recorrentes, nos jornais, quase sempre escritos em italiano e agendando assembleias, o

pedido de comparecimento de todos os membros, para discussões de assuntos pertinentes e para

efetuarem o pagamento das mensalidades.

O primeiro secretário da “Societá Operaia” foi Francisco Matarazzo, na época um

pequeno comerciante de banha de porco em Sorocaba. Esse produto deu início ao império

industrial denominado Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo (IRFM), que o tornou o

imigrante italiano mais bem-sucedido no Brasil.

Em 1887, foi fundada a Societá Italiana de Beneficenza e Mutuo Socorso, que ainda

mantinha membros em sua diretoria da Societá Operaia Italiana Humberto I e também

enfrentou os mesmos problemas de ausência dos associados nas reuniões, inadimplência com

as mensalidades etc.

A Sociedade Italiana de Beneficencia e Mutuos Soccorros faz amanhã o seu beneficio

no Circo Oceano. Não são desconhecidos do publico os fins principaes d’esta

importante associação, que, para conseguir realisar um dia o seu supremo

desideratum, tem arrostado innumeras difficuldades, contratempos terriveis, bem

como o indiferentismo de muitos associados, que, em uma febre de momento,

deixaram extinguir todo o enthusiasmo, todo o patriotismo com que contava para a

sua manutenção. Prestar hoje um auxilio a essa associação, é pôr um dinheiro a

premio, que amanhã será págo triplicadamente. Invocamos a philantropia dos nossos

conterrâneos (DIÁRIO DE SOROCABA, 14 set 1888, p.2).

As primeiras sociedades de auxílio mútuo criadas aqui no Brasil sempre tiveram a

participação do elemento estrangeiro. Segundo Azis Simão (1966), elas contribuíram para a

91

emergência do movimento operário, de um modo geral, mas não deram origem ao sindicalismo

que apareceu quase na mesma época.

Com finalidades semelhantes às das sociedades de socorro mútuo, estabeleceram-se as

chamadas Caixas Beneficentes, cujo diferencial residia em serem organizadas dentro das

grandes empresas, nem sempre constituídas somente pelos operários, mas também pelos

empregadores, que geralmente descontavam uma importância do salário de cada trabalhador.

Os ferroviários de Sorocaba criaram, em 1904, a Sociedade Beneficente dos Empregados da

Sorocabana.

Os operários da fábrica Votorantim formaram, logo no início das atividades da fábrica,

na última década do século XIX, a Sociedade Beneficente dos Empregados da Fábrica

Votorantim, que teve vida longa. Em setembro de 1914, os sócios foram convocados pelo

presidente Benedicto Poppes para uma reunião com membros da diretoria da fábrica, que àquele

tempo pertencia ao Banco União. O presidente propôs aos 97 sócios presentes a incorporação

da sociedade à Caixa Médica que seria organizada pela administração da fábrica. O diretor da

fábrica na época, Antonio Pereira Ignácio, apresentou aos presentes as vantagens e

conveniências da Caixa Médica, sob a exclusiva responsabilidade da administração da fábrica.

A caixa médica criará um “crèche” azilo este onde se recolherão as crianças menores

de dois anos cujas mães estejam a trabalhar na fabrica, manterá um medico, um

farmacêutico residente aqui, uma pharmacia onde por módicos preços os associados

encontram tudo que precisem, uma parteira e um dentista; organisarà um fundo

especial destinado à hygiene publica (CRUZEIRO DO SUL, 20 set 1914, p.2).

Apesar da promessa, nem tudo foi cumprido de imediato. Nessa época, os operários da

fábrica Votorantim eram reconhecidos pela sua organização e força nas reivindicações,

entretanto, estranhamente, os operários decidiram por dissolver a sociedade e passar a integrar

a caixa médica proposta pela empresa e administrada por ela. A estranheza dessa atitude se dá

pelo fato de que, alguns meses antes dessa reunião, os operários haviam se declarado em greve

por tempo indeterminado, exigindo a saída do diretor gerente Antonio Pereira Ignácio e do

mestre Piatti, pela maneira truculenta com que tratavam os empregados.

Essa greve, iniciada em 2 de dezembro de 1913, está envolta em situações nebulosas.

Todo o noticiário da greve foi feito pelo jornal Cruzeiro do Sul, que, por mais de uma vez, teve

de se defender, alegando não estar incitando os operários à greve e nem representar os interesses

políticos de seu chefe Luiz Pereira de Campos Vergueiro.

92

Figura 9 – Notícia sobre a Greve no Votorantim

Fonte: Jornal Cruzeiro do Sul, 3 dez 1913.

No transcorrer da greve, segundo o jornal Cruzeiro do Sul, correram boatos de que, por

ordem do diretor-gerente, a farmácia pertencente à Sociedade Beneficente dos Empregados da

Fábrica seria fechada, demissões seriam feitas, famílias seriam despejadas de suas casas e até

mesmo a água potável seria cortada. Entretanto, nada disso ocorreu. Dirigiram-se para

Votorantim repórteres do Jornal dos Italianos, da capital, para cobrir os fatos. O deputado Luiz

Pereira Campos Vergueiro, chefe situacionista, deu uma entrevista a esse jornal e defendeu-se

das acusações feitas por Pereira Ignácio e pelos civilistas de Sorocaba, de que ele instigava os

operários à paralisação. Vergueiro afirmou sua total isenção nos fatos, porém mencionou que

“já é sabido que nas ultimas eleições o sr. Pereira Ignacio forçou aquelles sessenta operários,

mais ou menos, que são eleitores a votarem contra o meu partido” (CRUZEIRO DO SUL, 17

dez 1913, p.3). Tudo leva a crer que, entre os principais motivos da greve, estava a falta de

apoio político de Antonio Pereira Ignácio a Vergueiro. A presença marcante de Luiz Pereira de

Campos Vergueiro em Sorocaba será tratada mais adiante neste trabalho.

Mais estranho ainda foi o desfecho da greve. Simplesmente, o jornal informou a retirada

da força policial que havia se dirigido para Votorantim e lá permaneceu durante os dias de

greve, sem mencionar o resultado do impasse. Mas é sabido que o diretor-gerente Antonio

Pereira Ignácio permaneceu no cargo.

Com a maior penetração das ideias libertárias na organização operária, os anarquistas

questionavam a validade das Caixas Beneficentes e mesmo das sociedades de auxílio mútuo

para a vida do operário, tendo em vista que os seus fins estavam propostos sob regime capitalista

93

e, por isso, não deveriam concentrar a ação do operariado em face das condições de vida que

lhe impõe o poder econômico. “Elas participam das técnicas sociais de conformação dos

trabalhadores à sociedade de classes, criando neles a falsa expectativa de poderem melhorar

suas condições de vida, sem afetar as relações e o custo da produção. Os anarquistas

condenavam as caixas beneficentes de empresas da mesma forma que se opunham à inclusão

do mutualismo entre as finalidades do sindicato” (SIMÃO, 1966).

Em 3 de outubro de 1890, tomou posse a diretoria provisória da União Operária, que

previamente já havia escolhido alguns membros. No dia da posse, compareceram 15 pessoas,

número aquém do esperado daqueles já aclamados. Procedendo-se a votação dos cargos, foram

eleitos: Francisco Cozzetti (presidente); Fillippe de P. Bawer (vice-presidente); Benedicto

Estevam Cordeiro (1º secretário), Francisco Henrique (2º secretário) e João Carlos Grohman

(Tesoureiro). Também tomaram posse outras pessoas que iriam fazer parte do Diretório. Foram

elas: Adolpho Osser, Antonio Joaquim Lisboa e Castro, Cesar José de Mattos, João Siegle, José

Francisco Patrima, José Maria de Oliveira, José Valio, Manuel Fontão e Olegario de

Vasconcellos. Após lavrada e assinada a ata de posse do Diretório, o presidente convidou a

todos para uma nova reunião, que seria realizada na semana seguinte a fim de tratar da

elaboração do estatuto da União. (DIÁRIO DE SOROCABA, 3 out 1890)

A União Operária representou os primeiros passos na luta operária, podendo ser

entendida como a fase embrionária do movimento operário. Ainda sobre a Societá, percebe-se,

pelos nomes das pessoas que formavam a diretoria, que havia vários estrangeiros, o que reforça

a tese de vários pesquisadores de que as iniciativas de organização operária sempre tiveram à

frente elementos estrangeiros, visto que as novas ideias vieram nas malas desses imigrantes.

Com a mão de obra estrangeira, vinham os conhecimentos profissionais e as ideias libertárias.

Quando se pedia mão de obra, não se exigia atestado de ideologia (RODRIGUES, 1969).

A disposição para a organização pelos imigrantes estrangeiros decorre de dois fatores

relevantes, a saber: as ideias revolucionárias de organização que traziam consigo e o fato de

alimentarem o sonho de melhorar de vida, então seria preciso lutar para conseguir o que

almejavam.

De forma acanhada, os operários de Sorocaba foram esboçando uma organização. Pelos

anúncios feitos pela imprensa, essas sociedades tinham como objetivo principal reunir os

italianos, em maior número, e outros estrangeiros, considerando que todos enfrentavam a

mesma situação: a distância dos parentes que ficaram nas terras longínquas, mais o sentimento

de decepção por não terem encontrado nesta terra tudo o que lhes fora prometido e terem se

ajeitado aqui como puderam. Apesar de haver, nas fábricas, emprego para todos da família,

94

inclusive as crianças, o ganho era muito pouco e não se vislumbravam muitas chances de

melhora. A reunião das pessoas era uma forma de compartilhar a saudade, as esperanças, as

alegrias e as tristezas.

Para os italianos, fazia parte de sua tradição cultural o interesse pelo teatro, pela música,

especialmente a ópera. Procurando manter essa tradição, em dezembro de 1886, membros da

colônia italiana em Sorocaba, que na época já contava com mais de 200 pessoas, fundaram a

Sociedade Italiana de Beneficencia e Divertimentos

Nova associação – Por iniciativa de um grupo de italianos aqui residentes, deve hoje

se installar uma nova Sociedade Italiana de Beneficencia e Divertimentos. Posto a

denominação – Italiana – será uma associação verdadeiramente internacional onde

individuos de todas as nações tem ingresso como socio, desde que se sujeitem ao

regimen estatuido. Com tam bons elementos de vida, não é crivel que deixe de existir

a associação dos dignos obreiros, que vão do trabalho á recreação fortalecer o espirito

para as lutas incessantes (DIÁRIO DE SOROCABA, 5 dez 1886, p.2).

Em março de 1893, também pelos italianos, foi organizada a Sociedade Musical

Italiana. Seria uma forma de manter, através da música, os laços com a terra natal. Tinham

como finalidade fundar uma banda de música para atuar nos eventos festivos da cidade.

Hontem, á tarde, na casa da rua da Ponte, n. 36, presente grande numero de membros

da distincta colonia italiana desta cidade, installou-se uma sociedade com intuito de

fundar-se uma banda de musica, a qual compor-se-á unicamente de cidadãos italianos.

A primeira directoria eleita consta dos seguintes senhores: Afonso Aiello – Presidente;

Antonio Catalano – Vice-Presidente; Gustavo Fazano – Secretario; Bononi Battista –

Thesoureiro (O 15 DE NOVEMBRO, 19 mar 1893, p.3).

Essas sociedades promoviam a sociabilidade entre os estrangeiros e os nacionais.

Algumas comemorações tinham a intenção de integração por parte dos imigrantes que

procuravam valorizar os eventos importantes para os brasileiros. Foi o caso de uma festa

programada pelos operários da fábrica Votorantim em comemoração ao aniversário da

proclamação da república, mas que teve o engenheiro da fábrica Votorantim dirigindo os

festejos, inclusive determinando os horários dos bondes que circulariam. Durante o dia,

aconteceram provas esportivas e recreativas e, à noite, houve um grande baile nas dependências

da fábrica.

Festejos no Votorantim – Explendorosos tambem os festejos que se realisaram, a 15

do corrente, no Votorantim. Outro genero, mas nem por isso menos attractivos.

Vistosos e elegantes pavilhões de murta e flores por toda a parte. – Musica excellente:

la estava a Banda italiana, dirigida pelo maestro Antonio Valeriani. – A alegria em

95

todos os semblantes e, como aqui, a maior ordem, nenhuma rixa, nenhum disturbio,

nenhuma prisão. – O grande baile, para o qual tivemos um amavel convite, realisou-

se em um vastissimo salão da grande fabrica de tecidos alli em construcção. Durou

até as 5 horas da manhã sempre com a maior animação, no meio do maior

contentamento geral. – A belleza da ornamentação do salão, rivalisava com a

amabilidade e gentileza da digna commissão dos festejos, que era incansavel para que

nada faltasse aos seus innumeros convidados. – Explendido tudo! – Transitaram na

linha de bonds do Banco União nada menos de 2.500 passageiros no dia dos festejos

(O 15 DE NOVEMBRO, 18 nov 1894, p.2).

O baile é o ponto alto da sociabilidade. O baile tem múltiplas funções: reagrupamento

das comunidades étnicas, profissionais e de bairros. Mas o baile é, sobretudo, um local de

aculturação à cidade e de encontro entre os sexos. Parece que os migrantes chegados à cidade

tinham um prazer extraordinário em dançar (PERROT, 1992).

As sociedades funcionavam mediante contribuições de seus sócios e, em contrapartida,

ofereciam divertimentos como bailes, apresentações teatrais, conferências, palestras etc.

Também socorriam seus associados nas situações de desemprego e quando precisavam de

serviço médico. Comumente mantinham um fundo financeiro do qual podiam dispor nessas

situações, o que foi muito empregado posteriormente nas situações de greves.

O imigrante, aquele que não fazia parte da terra, era visto somente como mão de obra

necessária para tocar a agricultura e, no caso de Sorocaba, as indústrias que se instalavam.

Desde logo, entenderam que precisavam se organizar para poderem ocupar um papel na

sociedade.

A organização dos operários imigrantes foi fruto das condições materiais de existência,

uma vez que muito precisava ser conquistado. Entretanto, a sobrevivência era a preocupação

maior. Por isso, as Sociedades de Ajuda Mútua eram um organismo que, como próprio nome

dizia, prestava ajuda àqueles que mais necessitavam, fortalecia os laços de união, sem perder

de vista a própria identidade. A reunião das pessoas nessas sociedades significava uma

aproximação com tudo o que fora deixado na terra distante e também uma forma de dar forças

para que suportassem a situação vivida aqui. Compartilhavam a saudade e as recordações. As

sociedades se fortaleceram, pois não restavam muitas alternativas para os imigrantes,

considerando a remota possibilidade de retorno.

Como ainda não havia uma consciência coletiva em relação às formas de trabalho, essas

sociedades funcionavam como elemento agregador e promoviam palestras sobre diferentes

assuntos. Mantinham, assim, vivos os vínculos com a terra distante, procurando sempre

comemorar as datas importantes, como a da Unificação da Itália ou a do descobrimento da

América, o aniversário do seu rei e outras.

96

20 de Setembro – A colonia italiana d’esta cidade festejou com enthusiasmo esta

memoravel data da sua historia politica. As associações aqui existente UMBERTO I

e SOCIEDADE ITALIANA DE BENEFICENCIA E MUTUOS SOCCORROS,

tomaram parte no regosijo, celebrando esta ultima uma sessão commemorativa,

proferindo n’essa occasião um bem delineado discurso, o sr. Presidente da mesma, sr.

João Cozzetti, seguindo-se sinceras saudações ás trez nacionalidades alli

representadas – Portugueza, Italiana e Brazileira. Oxalá esses regosijos sirvam de

ensejo para a consolidação da união, que é o único agente da força (DIÁRIO DE

SOROCABA, 22 set 1888, p.3).

Realizar conferências sobre assuntos relevantes era uma das características dos

imigrantes. Era uma forma de instruí-los, inculcando-lhes determinados pensamentos

ideológicos. Estava implícito o entendimento que, somente pelo conhecimento, eles se

consolidariam aqui no Brasil. Era o gérmen da educação enquanto prioridade para seus filhos

no futuro.

Em abril de 1902, foi fundada a Liga de Resistência, destinada a defender os interesses

dos chapeleiros. Nesse mesmo ano, o anarquista Benjamin Motta proferiu uma palestra na sede

social do Circolo Socialista Enrico Ferri. No ano seguinte, compareceu o também famoso

socialista Alceste de Ambrys, que fez uma conferência para os membros da classe operária.

[...] tomando a palavra discorreu larga e criteriosamente sobre o socialismo e

historiou, com todas as minuciosidades, o facto da Comuna de Paris, que tornou

memorável na historia franceza a data de 18 de março de 1871. (...) O orador foi

interrompido, por diversas vezes, com prolongadas palmas e ocupou as atenções do

audictorio durante hora e meia (O 15 DE NOVEMBRO, 26 mar 1903, p.2).

É inegável a constatação de que os primeiros a iniciar a luta pela criação de uma

organização política operária foram os “socialistas brasileiros, representantes da

intelectualidade pequeno-burguesa revolucionária” (KOVAL, 1982, p. 88). Os primeiros

Círculos Socialistas foram despontando logo após a proclamação da República, ainda no século

XIX.

A Societá Operaia Italiana di Beneficenza e Mutuo Socorso também montou uma escola

italiana para ensinar os filhos de seus associados, cujo professor era o secretario da Sociedade,

Alfredo Gonevino, que lecionava diversas matérias a cerca de trinta alunos. A escola

funcionava a rua do Hospital, nº. 7 (O 15 DE NOVEMBRO, 8 out 1893, p. 3). Ela também

mantinha a escola particular Schuola Italiana Umberto I, cuja professora era Eugenia Cotti, e

funcionava a rua Monsenhor João Soares, nº. 3 (ALMANACH DE SOROCABA 1903).

É certo que a maioria dos imigrantes que vieram para cá eram pobres em seus países de

origem, entretanto, mesmo aqueles que eram analfabetos traziam um esclarecimento sobre as

97

condições de vida. Assim, as novas ideias trazidas por eles foram lentamente introjetando nos

brasileiros um sentimento de mudança.

A formação de uma mentalidade coletiva ganhou sentido quando os imigrantes

passaram a se sentir inseridos enquanto classe social no conjunto da sociedade. Em termos

legais, os estrangeiros não eram merecedores dos direitos sociais aqui no Brasil.

Com a proclamação da República, ocorreu um fato que deu outro viés para a presença

dos estrangeiros no Brasil: o governo provisório decretou a Grande Naturalização, pela qual

seriam considerados brasileiros todos os estrangeiros que, em 15 de Novembro de 1889

residissem no Brasil, salvo declaração em contrário, feita dentro de seis meses. Os elementos

das colônias estrangeiras de Sorocaba lançaram, então, o seguinte manifesto:

Os abaixo-assinados, membros das colônias estrangeiras, convidam todos os novos

cidadãos da República Federativa para se reunir, hoje (19 de dezembro) às sete horas,

no Largo da Matriz para incorporados irem manifestar às autoridades desta cidade a

plena adesão ao governo da confederação em regozijo, pelo Magnânimo e generoso

Decreto que nos encerra num amplexo fraternal. Viva a Repúbica Federativa

Brasileira! Francisco de Souza Pereira, Manuel José da Fonseca, Francisco

Matarazzo, Francisco Cozetti, Theodoro Kaysel, Alexandre Marchisio, Domingos

Gardini, Benoit Gourdon (ALEIXO IRMÃO, 1969, p. 63).

Mesmo para aqueles que enxergavam mais longe e entendiam a necessidade de uma

união maior para uma efetiva significação social, a formação da mentalidade coletiva era algo

muito delicado em dois aspectos. Tornava-se extremamente difícil buscar significação social,

no caso dos operários, em um país de tradições profundamente elitistas e que valorizava apenas

a agricultura e, ainda, promover o convencimento dos compatriotas e operários brasileiros

acerca da necessidade de mudar as condições de vida, de trabalho e da sociedade em geral.

Mas esse convencimento esbarrava nas condições de existência, ou seja, o temor de se

perder o pouco que se tinha. Os operários temiam que essas sociedades pudessem causar a

indisposição deles com seus patrões. De início, o número de sócios era muito reduzido. Outro

fator dificultador para as Sociedades Operárias, que impedia seus avanços, era a constante

inadimplência de seus associados.

Assim, tendo o tempo como aliado, as sociedades mútuas foram cedendo espaço para

outro tipo de reunião de operários e foram nascendo as Uniões Operárias, com um fundo mais

ideológico, procurando formar a consciência de classe. Se, por um lado, as chamadas classes

dominadas buscavam a construção de um discurso combativo e que alterasse significativamente

aquela situação, por outro, a classe dominante apoiava-se num discurso que tornava a

desigualdade algo natural, contra a qual só restava a conformação.

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A imprensa gradativamente foi opinando sobre o assunto, numa tentativa de convencer

as pessoas sobre os riscos da penetração de ideias de igualdade e conquista de direitos no seio

da sociedade sorocabana, como ficou demonstrado num editorial do jornal O 15 DE

NOVEMBRO de 1893.

O rico a quem a natureza favoreceu com seus thesouros, saberá fazer feliz applicação

do excesso de suas rendas, a fim de que o dia de amanhâ continue a vida do presente;

e o que é pobre actirar-se-a corajosamente ao trabalho, procurando encontrar na força

de seu braço o preciso pão de cada dia. A pobreza ensinar-lhe-a os preceitos da

economia, contar-lhe-a como se cortam as despezas superfluas, de maneira que em

pouco tempo elle saiba conduzir-se por entre as escabrosidades do presente, e preparar

o advento de um futuro feliz e tranquilo. O rico saberá não comprometter o seu futuro,

e o pobre saberá preparal-o (O 15 DE NOVEMBRO, 12 fev 1893, p. 2).

É interessante notar que, mesmo sem a ocorrência de uma única greve nas fábricas de

Sorocaba ou sequer menção a isso nas notícias locais, no final do século XIX, na imprensa, já

apareciam considerações sobre as greves e sobre as correntes ideológicas que despontavam,

deixando claro que, nesse tipo de movimento, o maior prejudicado, sem dúvida, seria o

operário, ou seja, numa visão desestimuladora para tal, como é possível notar na publicação do

jornal “Diário de Sorocaba”, de 1890:

As proprias gréves pódem ser muito mais prejudiciaes aos operarios do que aos

emprehendedores. Para comprehender esta verdade, basta dizer que quem possue o

capital pode passar muito tempo sem trabalhar, mas quem não o possue tem a vida

dependente do trabalho diario (DIÁRIO DE SOROCABA, 10 ago 1890, p. 1).

Esse mesmo jornal, em 1892, noticiou a prisão do Dr. Antonio Danobio, um italiano

anarquista, que estava disfarçado em trajes de operário e com o qual foram encontrados

documentos “comprometedores”. Dentre esses documentos, fora encontrado um manifesto

anarquista dirigido aos operários portugueses que o referido jornal publicou fazendo severas

críticas. Dizia o manifesto da necessidade de os operários unirem-se num movimento social e

não ficarem mais de braços cruzados. Finaliza a notícia com a opinião do jornal:

Felizmente desta vez ainda escapamos das insensatas pretensões dos inimigos da

sociedade, graças a policia; mas acreditamos que superior a acção policial a sensatez

reconhecida dos nossos operarios, sua dedicação á ordem e ao trabalho repellirão esses

conselhos perfidos e afastarão do Brazil a praga do anarchismo (DIÁRIO DE

SOROCABA, 29 nov 1892, p.2)

A iniciativa de se organizarem sociedades operárias ou próximas disso já vinha de algum

tempo antes da República, porém, antes da década de 1890, em muitos casos, o caráter

realmente classista era tênue. Por um lado, pela própria classe operária, que ainda estava em

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formação, tendo muitas vezes as entidades um caráter muito mais de união de nacionalidade do

que de classe. E, por outro, pela ausência de uma ideologia proletária norteadora (ARAUJO

NETO, 2005).

Em 1890, funcionava plenamente a Fábrica de Tecidos Nossa Senhora da Ponte,

conhecida por Fábrica do Fonseca, em referência ao seu proprietário, porém outras fábricas se

encontravam em construção e iriam absorver número maior de operários. A chegada de

imigrantes continuava e, com eles, chegavam ideias inovadoras e norteadoras, inclusive com a

intenção de se formar um Partido Operário.

O jornal Diário de Sorocaba, em editorial, comentou que a ideia de formação de um

partido operário lançada na capital repercutiu por todo o estado e encontrou terreno fértil

também em Sorocaba. Entretanto, para o jornal, por puro desconhecimento, muitos operários

mostravam-se resistentes em aderir ao novo partido:

[...] elle não hastea bandeira de guerra contra alguem, apenas aos operarios com

concordia e união: traz o nobre e elevado fim de proteger e amparar nos limites do

justo e do honesto ao operario, que ate hoje nada mais tem sido que simples machina

de trabalho dos que exploram a sua actividade: quer eleval-o a altura que lhe compete,

esmagando os prejuizos que o tem abatido e obscurecido até hoje (DIÁRIO DE

SOROCABA, 17 ago 1890, p. 1).

O aparecimento desse Partido Operário está bem distante do ideal de organização dos

operários, talvez aí resida o empenho do jornal pela sua formação. Tratava-se de um pequeno

partido presente no Distrito Federal, em 1890-91, e tinha como líder o oficial da Armada José

Augusto Vinhaes, eleito deputado à primeira constituinte republicana (BEIGUELMAN, 1977).

Em São Paulo, foram candidatos a deputados o alferes Henrique Augusto Gonçalves Ferreira,

mecânico; Alypio Juvêncio Leite, tipógrafo; José Gregório Rodrigues Borba, chapeleiro; e

Alfredo de Freitas Gonçalves, telegrafista; todos residentes na capital.

O jornal Echo Popular (1984, p. 155) esclarecia que grande número de operários, por

“inexperiência e pouca prática dos enredos políticos”, filiou-se ao grupo do tenente Vinhaes,

entretanto, na visão dos operários, isso foi um erro, pois o próprio Vinhaes criava embaraços

para uma efetiva criação do Partido Operário.

[...] Realmente, dizemos nós, não podemos compreender como é que o cidadão

Vinhaes quer dirigir o partido operário sem nele falar nos seus artigos, ladeando a

questão, enchendo colunas inteiras do Paiz com citações de vultos que viveram há três

séculos e cujas opiniões nada têm que ver com a atualidade operária (ECHO

POPULAR, 10 abr 1890 apud CARONE, 1984, p. 155).

100

O programa do partido previa que somente operários poderiam se candidatar aos cargos

eletivos e que deveriam defender os interesses dos operários e promover medidas de interesse

da classe. Entretanto, o Partido pregava que as questões trabalhistas deveriam ser resolvidas

apenas pela diretoria do Partido, que evitaria greves e “desordens” (CAVALHEIRO, 2009,

p.25). Por esse programa do Partido, ficava nítida a pouca participação dos operários na

conquista de seus direitos. Para Edgard Carone (1984) não é o partido, mas o sindicato que

representa o órgão de aglutinação e a ponta-de-lança de luta do operariado. A razão é a

fragilidade dos partidos, que nascem e morrem.

Sobre o Partido Operário, não foi dessa vez que ele se constituiu, porém a ideia

começava a germinar entre os operários de Sorocaba. Outros setores da sociedade também

começaram a se interessar por esse tema, conforme publicação do jornal Diário de Sorocaba,

em 26 de agosto de 1890, da proposta de formação de um Partido Católico em Sorocaba pelos

padres Antonio Augusto Lessa, Joaquim Gonçalves Pacheco e Jeronymo da Silva Bellas, que

convidavam todos os católicos da paróquia para uma reunião a ser realizada na Igreja Matriz

com a intenção de se instalar o Partido Católico. O Diário de Sorocaba (2 set 1890, p. 1) não

deixou de ressaltar esse fato em suas páginas, como se constata no seguinte trecho: “Festa ...

politica - A festividade que annualmente realisa a Irmandade do Coração de Jesus, serviu este

anno em Sorocaba, simplesmente de pretexto de propaganda da igreja contra o inclyto governo

provisório da Republica.”

A igreja católica, cuja atuação era preponderante na sociedade, via escapar, lentamente,

a partir da República, sua influência, já que o novo regime defendia a ideia de estado laico.

Entretanto, não foram encontrados indícios de formação de um Partido Católico nessa época

em Sorocaba.

A presença dos operários aumentava na sociedade sorocabana e alguns termos, até então

pouco utilizados ou mesmo desconhecidos – como burguesia, capital e proletariado – foram

surgindo e passaram a ser incorporados na vida das pessoas. A busca de significação social

continuava e se intensificar entre os operários, contra os abusos dos patrões. A relação capital

e trabalho foi consolidando-se, as classes sociais foram afirmando-se e contrapondo-se, como

se constata na seguinte notícia: “Alguns operários sorocabanos, conscios da força da união,

convocam para o domingo proximo uma reunião com o fim de se organisar uma liga no

operariado desta cidade. Conseguido esse ideal só o bem advirá disso (CRUZEIRO DO SUL,

25 nov 1903, p.1).

Fora nomeada uma diretoria provisoria nesse dia. Em 10 de janeiro de 1904, foi eleita a

diretoria definitiva da Sociedade Beneficente Operária, ficando assim constituída: Presidente:

101

Pedro de Mello Pacheco, Vice-Presidente: Antonio Amancio; 1º Secretário: José Pedro de

Araujo Torres; 2º. Secretário: Benedicto Padilha; Tesoureiro: Alfredo Pinheiro; Procurador:

Benedicto Antunes; Visitadores: Antonio de Oliveira Jr., João Antonio da Silva e José Porphirio

(CRUZEIRO DO SUL, 13 jan 1904). É interessante notar que, nessa diretoria apresentada, não

se vê a presença predominante de estrangeiros. /

Enquanto se anunciava a formação da Sociedade Beneficiente Operária e logo após a

sua constituição, o jornal “Cruzeiro de Sul” abriu espaço para missivistas, que quase sempre

utilizavam pseudônimos ou apenas se nomeavam como “Um Operário”. Nesse espaço, teciam

comentários sobre o papel do operário na sociedade e sobre a importância das sociedades

operárias.

Numa longa carta, como de costume, o autor salientava as vantagens da “união operária”

e descartava o temor de muitos operários que “tem medo de unirem-se, dizendo que os patrões

os olharão como inimigos”. Afirmava que a sociedade iniciada tinha como finalidades a

beneficência e a instrução e que nada poderia fazer contra os patrões, mas lançava críticas

ferozes às ideias socialistas, como se vê no trecho reproduzido a seguir:

Nesta epocha em que o deleterio socialismo, vae solapando o operariado, sugando aos

poucos sua lealdade no serviço, vemos repudiadas todas as ideias de união. O operario

teme as consequencias de um socialismo mal entendido, de um anarchismo filho da

dynamite e do assassinato. É preciso que os dois mil e tantos operarios de Sorocaba

comprehendam para que devem se unir. É preciso que a associação repudie o

anarchismo e o socialismo (CRUZEIRO DO SUL, 27 fev 1904, p.1).

O autor prosseguiu afirmando que a união dos operários não se conseguiria do dia para

a noite, pois tratava-se de um trabalho árduo e demorado. Para isso, esse tema deveria ser

divulgado pela imprensa, os filhos deveriam ser instruídos sobre ele, conferências deveriam ser

feitas para tocar mais de perto os interesses da classe: “o caracter, o dever, a perseverança, o

poder da vontade”.

Em outro artigo, intitulado Pelos operarios, o autor chamava atenção para o fato de que

o entusiasmo dos operários pelas “Uniões Operárias” estava se arrefecendo e propunha que os

seus sócios deveriam pensar no futuro, ou seja, cuidar mais de seus filhos que de si próprios.

Entendia a necessidade de se abrir uma escola onde se ensinasse aos filhos dos trabalhadores o

caminho do labor e do dever. Apontava que essa escola já fora aberta, não pela Sociedade

Operária, mas pela Loja Maçônica Perseverança III. Recomendava, então, que fosse aberta, na

cidade, uma escola que cuidasse da educação da mulher, das filhas dos operários, onde elas

pudessem aprender “desde as minudências dos temperos culinários até as etiquetas de um

banquete”. Para “fazer da menina de hoje a alegria do lar do trabalhador”. Concluía dizendo:

102

“cuidemos da educação dos nossos filhos, de nossas filhas, de nós próprios e seremos felizes –

o nome OPERARIO ser-no-á uma honra ” (CRUZEIRO DO SUL, 16 jul 1904, p.1).

Num outro artigo, publicado pelo mesmo jornal, e assinado por “Um operário”, o autor

discorre sobre os efeitos do Anarquismo para o operariado. Com certa dose de exagero, afirma

que o operário anarquista quer lançar uma bomba na fábrica onde trabalha, porém, com essa

atitude, lança na miséria muitas familias, aniquilando a força da indústria, fazendo com que os

industriais mais se armem contra as classes trabalhadoras. Então, aconselha os operários,

desprezando a capacidade de discernimento deles, como se vê a seguir:

Torna-se necessário que o operário o homem do trabalho seja o mais fiel executor das

ordens superiores, seja o amigo e não o inimigo do industrial, que o operario torne-se

o confidente do patrão. [...] A industria crescendo, enriquece ao proprietário que por

sua vez paga melhor e pontualmente seus empregados. Si, ao contrario, a mão do

operario anarchista arruina a fabrica, anniquila-se tudo – o prejuízo soffrido pelo

proprietário reflecte-se na falta de pão para os filhos dos pobres que na fabrica

trabalhavam (CRUZEIRO DO SUL, 2 nov 1904, p.1).

A leitura desses artigos pode levar a crer que foram escritos pela mesma pessoa,

provavelmente nem fosse um operário que labutava nas fábricas, pois o discurso mostrava-se

doutrinador, reforçando a necessária obediência do empregado e ressaltando os riscos que ele

corria ao tentar indispor-se com seu patrão.

O jornal Cruzeiro do Sul, por sua vez, mantinha uma posição democrática, abrindo

espaço para todas as “classes” e figurando como defensor da causa operária, já que lhes dava

voz e também não entrava em atritos com os industriais, pois nenhuma linha contrária ou

desrespeitosa para com os donos das fábricas fora escrita por esse jornal.

Por ocasião do primeiro aniversário de fundação da Sociedade Beneficente Operária,

foi idealizada, por seus membros, a realização de uma grande festa no dia 1º de janeiro de 1905.

O que, de fato, foi feito.

Às 4 horas da manhã, a Banda Musical Sete de Setembro União Operária percorreu as

ruas principais da cidade. Ao meio dia, saiu da sede social uma comissão de sócios com essa

mesma banda de música e juntaram-se à Banda Santa Rosália. Às 13 horas:

O estandarte da sociedade foi levado procissionalmente até a matriz, por um grupo de

meninas, onde foi benzido. [...] A noite organizou uma marche aux flambeaux, indo a

sociedade cumprimentar as auctoridades, imprensa, pessoas gradas e maçonaria. [...]

A sociedade que começou com poucos socios já tem em seu gremio mais de 200

operarios e há uma corrente de sympathia que tende a attrahir muitos mais

(CRUZEIRO DO SUL, 4 jan 1905, p.2).

103

Com um programa extenso, os membros da Sociedade Beneficente União Operária de

Sorocaba tiveram visibilidade, mostraram-se simpáticos a todos os setores da sociedade,

promoveram a diversão para os sócios e o conhecimento da população ao percorrem as ruas

com as bandas de música e estandarte. Valorizaram a Igreja e ainda consideraram outros

segmentos da sociedade: imprensa, autoridades, maçonaria etc. Nenhum segmento fora

esquecido. Era uma forma de cair no agrado de todos.

Entretanto, no decorrer do ano de 1905, a Sociedade Operária foi apresentando

problemas de esvaziamento. As assembleias marcadas deixam de ser realizadas por falta de

sócios e as finanças ficaram abaladas, consequência da falta de pagamentos das mensalidades.

Nos jornais, apareceram convocações para assembleias que não se realizaram.

Em fevereiro desse ano, somente numa 3ª convocação é que fora realizada a assembleia

para preenchimento dos cargos vagos. É provável que o esfriamento por parte dos operários em

participar das Uniões Operárias tenha ocorrido pois, em 1905, as fábricas de grande porte

estavam aumentando sua produção e exigindo maior número de operários, consolidando o

sistema capitalista com o máximo de produção, diminuição de custos e, consequente, aumento

da exploração. Nesse aspecto, os salários sofriam, cada vez mais, um achatamento e,

exatamente por essa situação de exploração, foi tornando-se cada vez mais frequente a greve

como forma de conquistar direitos. Agora a União Operária precisava lutar pelo operário, não

era mais possível oferecer somente recreação e ajuda mútua. É a consciência de classe para si.

A decisão pela greve não era fácil, pois muitos aspectos precisavam ser considerados

pelos operários. Com famílias quase sempre numerosas, o operário pesava a oportunidade de

poder melhorar de salário e proporcionar uma vida melhor para os seus e o risco de perder o

pouco que tinha numa greve mal-sucedida. Os operários passaram a pressionar o governo no

sentido de estabelecer uma legislação trabalhista consistente favorável à classe operária, como

se observa na seguinte publicação:

Uma numerosa commissão da federação Operaria do Brazil procurou o sr. Ministro

do Interior e solicitou o seu apoio para ser reduzido a 8 horas do trabalho do

operariado. O sr. Ministro respondeu que a causa era sympathica ao governo e que o

congresso vae, naturalmente tomal-a em consideração (CRUZEIRO DO SUL, 7 jun

1905, p. 2).

Essas ligas e associações operárias foram proliferando-se, algumas com vida efêmera,

outras mais longevas. Assim, no início da primeira década do século XX, entre sociedades

beneficentes, recreativas e de cunho político voltadas para o operariado, atuavam em Sorocaba

as seguintes:

104

Votorantim Athletic Club; Liga de Resistencia; Societá Operaria Italiana de

Beneficenza e Mutuo Soccorso; Real Sociedade Beneficente Portugueza Vasco da

Gama; Sociedade Beneficente Protectora dos Chapeleiros; Sociedade Beneficente do

Votorantim; Sociedade Beneficente dos Operarios Sorocabanos; Circolo Socialista

Enrico Ferri (ALMANACH DE SOROCABA, 1904, p.124).

Em outubro de 1911, após uma greve iniciada pelos operários da fábrica Nossa Senhora

da Ponte e posterior adesão de outras fábricas, pela redução da jornada de trabalho para 10 horas

diárias e da qual saíram vitoriosos, os operários animaram-se e criaram a Liga Operária

Sorocabana, sob a bandeira de união e solidariedade.

Apesar de ter sido criada pelos tecelões, a referida liga estava aberta a todas as

categorias, como pedreiros, marceneiros, chapeleiros e outros. De início, estavam filiados à

Liga Operária os empregados das fábricas Votorantim, Santa Rosália, Santa Maria, Nossa

Senhora da Ponte e outras menores.

Domingo último, em presença do festejado tribuno, Dr. Passos Cunha e de mais de

700 pessoas foram lidos a approvados os estatutos da mesma por entre aclamações

dos operários, ficando assim fundada a Liga Operaria de Sorocaba. Foram aclamados

para reger a mesma os nossos companheiros: P.S. Oliveira Mesquita e Antonio

Marques, sendo o primeiro para o cargo de secretário e o segundo de thesoureiro.

Ficou deliberado que cada fabrica fosse representada por trez pessoas sendo as de

tecidos e chapelaria onde tambem trabalham mulheres representadas por dois

operarios e uma operaria representando as suas companheiras (O OPERARIO, 24 set

1911, p.2).

Há de se salientar que esse fato se reveste de um ineditismo ao incluir a presença

feminina entre os representantes da classe operária. Considerando-se a época, início do século

XX, foi um grande avanço. Nem sempre a fundação de uma associação anulava outra: elas

coexistiam num regime de relativa cooperação. Suas atividades tendiam mais às ações de

beneficência e mutualismo, bem próprias daquele tempo.

A união dos operários era entendida por eles como a defesa de seus interesses contra a

exploração dos capitalistas. Os baixos salários, a longa jornada de trabalho, o emprego da mão

de obra de mulheres e crianças, além do tratamento desumano que prevalecia nas fábricas em

geral, permitiu aos operários a compreensão de que os seus interesses eram antagônicos aos

interesses da burguesia. Assim, na tese sustentada por Karl Marx,

[...] as condições econômicas transformaram inicialmente a massa da população em

operários. O domínio do capital criou para essa massa uma situação idêntica e

interesses comuns. Desta forma, essa massa já é classe em relação ao capital, mas

ainda não o é para si própria. Na luta... essa massa se une se constitui como classe

para si. Os interesses por ela defendidos tornam-se interesses de classe (MARX;

ENGELS, T.4 apud KOVAL, 1982, p.137)

105

O fortalecimento da organização operária assentou-se em três instrumentos

fundamentais: as diferentes formas associativas, que levaram à consolidação dos sindicatos, a

imprensa operária, enquanto órgão disseminador, e as escolas, responsáveis pela valorização

do homem.

Isso é revelado, em primeiro lugar, no crescimento da consciência de classe: a

consciência de uma identidade de interesses entre todos esses diversos grupos de

trabalhadores contra os interesses de outras classes e em segundo lugar, no

crescimento das formas correspondentes de organização política e industrial [...]

sindicatos, sociedades de auxílio mútuo, movimentos religiosos e educativos,

organizações políticas – periódicos – além das tradições intelectuais, dos padrões

comunitários e da estrutura da sensibilidade da classe operária (THOMPSON, 2012,

p. 17).

Dessa forma, o movimento operário foi assumindo novos contornos, e os trabalhadores

das fábricas foram se assumindo enquanto classe operária.

106

2 A GRANDE IMPRENSA E A IMPRENSA OPERÁRIA EM SOROCABA

O povo sem – imprensa – é o corpo sem vida, a razão

sem palavra e acção sem liberdade”.(O ARAÇOIABA, 16 set 1866)

Este capítulo tratará da imprensa, entendendo-a como um veículo de informação

importante de uma época, porém de manipulação de interesses diversos. A imprensa, ao retratar

uma época, seja por qual lentes for, não fica alheia à realidade histórica na qual está inserida.

Tendo o movimento operário como ponto central, serão discutidos o papel exercido e a visão

da imprensa empresarial, chamada grande imprensa, quase sempre representativa dos interesses

patronais, e a atuação da imprensa operária, como um dos elementos fundamentais para a

consolidação do movimento operário. O jornal permite ler a cidade.

Mais recentemente, estabeleceu-se um consenso entre os historiadores e pesquisadores

sobre a relevante contribuição da imprensa enquanto fonte documental para compreensão da

história local e da própria história da educação brasileira. Fernando de Azevedo chegou a

reconhecê-la adjetivando-a como “recurso formidável” para a divulgação e disseminação das

novas ideias educacionais em 1932, como se constata no excerto reproduzido abaixo:

A consciência do verdadeiro papel da escola na sociedade impõe o dever de concentrar

a ofensiva educacional sobre os núcleos sociais, como a família, os agrupamentos

profissionais e a imprensa, para que o esforço da escola se possa realizar em

convergência, numa obra solidária, com as outras instituições da comunidade. Mas,

além de atrair para a obra comum as instituições que são destinadas, no sistema social

geral, a fortificar-se mutuamente, a escola deve utilizar, em seu proveito, com a maior

amplitude possível, todos os recursos formidáveis, como a imprensa, o disco, o

cinema e o rádio, com que a ciência, multiplicando-lhe a eficácia, acudiu à obra de

educação e cultura e que assumem, em face das condições geográficas e da extensão

territorial do país, uma importância capital (MANIFESTO DOS PIONEIROS DA

EDUCAÇAO NOVA, 1932).

De acordo com Capelatto (1988), a imprensa tornou-se um manancial dos mais férteis

para conhecimento do passado, pois possibilita ao historiador acompanhar o percurso dos

homens através dos tempos. O jornal, ainda que sob suspeição, considerando suas limitações e

verdades pessoais de quem escreve, contribui para o preenchimento de lacunas na história, pois

registra o cotidiano de uma sociedade, atua como um arquivo do cotidiano. Sua importância

pode ser encontrada também por contribuir com os estudos da sociedade, como um valioso

instrumento de orientação coletiva.

O Jornal é um modo de conhecer a cidade e seus habitantes. Segundo Campos (2012),

trabalhar no “rastro de velhos jornais” pode ser promissor para garimpar aspectos da vida

107

cotidiana de um determinado período. Enfim, o jornal permite ler a cidade e atribuir-lhe um

significado histórico num dado tempo, resgatando os seus sujeitos sociais. Num período da

história em que os meios de comunicação eram praticamente inexistentes, a imprensa

desempenhou papel de fundamental importância na constituição de comunidades de leitores

(BARREIRA, 2002). Essa preocupação foi observada na sociedade de Sorocaba conforme

procedimento adotado pelo Gabinete de Leitura nessa direção.

No intuito louvavel de derramar a instrucção por todas as camadas sociaes, o gabinete

de leitura Sorocabano acaba de dar um passo que muito o honra aos seus

mantenedores. Franqueou áquelles que, por falta de meios não pódem comprar livros

ou ser assignantes, a sua selecta e importante bibliotheca, a qual está aberta das 4 as 6

horas da tarde, em todos os dias (YPANEMA, 25 abr 1872, p.3).

O aumento de uma comunidade letrada representava o ingresso à modernidade, daí a

fundação do Gabinete de Leitura e o surgimento de tipografias e jornais em Sorocaba,

procurando estender a instrução para todas as camadas da sociedade.

2.1 A grande imprensa em Sorocaba

No final do século XIX, Sorocaba se inseriu num novo ciclo econômico, que nada

lembrava o vivido até então. Sob a égide da indústria e do avanço tecnológico, a feira de muares

não tinha mais espaço numa sociedade que se inscrevia num modelo moderno de viver. Na

mesma esteira das fábricas de tecidos vieram tantas outras fábricas, como as que produziam

sabão, cerveja, chapéus, velas etc. O comércio aumentou e se diversificou para atender aos

novos grupos sociais que se formavam.

O crescimento populacional era defendido pelos grupos liberais como propulsor de um

progresso que não cessaria tão rapidamente. Os dados estatísticos atestam esse aumento

populacional. Pelo censo de 1870, a população de Sorocaba era composta de 13.999 habitantes.

Em 1890, a população cresceu para 17.068 habitantes. Em 1920, são contados 39.586” (PINTO

JR. 2003).

Assim, grande parte dos jornais sorocabanos publicados nas duas primeiras décadas do

século XX (re) produziram a imagem da Manchester Paulista. Defendendo as concepções das

classes dominantes brasileiras, amalgamadas, muitas vezes, a outras vozes, grande parte da

imprensa local, nos seus discursos, não poupava elogios aos capitalistas e administradores

108

públicos, apontados como os responsáveis pelo progresso material, técnico e social de Sorocaba

(IDEM, 2003).

A imprensa sorocabana intensificou a propaganda sobre o potencial da cidade para

futuros empreendimentos industriais, a exemplo do publicado no Almanaque Ilustrado de 1914.

Apresentava as melhores qualidades da cidade e, principalmente, evidenciava a mão de obra

abundante e habilitada para qualquer tipo de atividade, silenciando-se com relação ao preço que

o operário pagava para se ver empregado.

Sorocaba, sendo hoje uma cidade perfeitamente saneada, com admirável rêde de agua

e exgottos, optima iluminação electrica, possuindo magnifica linha de telefones e de

telegrapho nacional, com linha de automóveis, fazendo-se aproximar deste modo dos

municípios que lhe são adjacentes, gozando de um clima magnifico, distando apenas

três e meia horas da Capital, e muito chegada ao Ipanema, - onde se encontra talvez a

mais rica mina de ferro do mundo. Sorocaba offerece por tudo isso, aos srs.

capitalistas que desejam bem empregar os seus recursos monetarios em novas e

desconhecidas industrias, campo vasto de exploração, pela facilidade que há em obter-

se força motriz e ainda por que aqui se encontram operários habilitados para qualquer

ramo de indústria (ALMANACH ILLUSTRADO DE SOROCABA, 1914, p. 238).

Anterior a essa época, a imprensa já se fazia presente em Sorocaba, com períodos de

maior intensidade e outros nem tanto. Segundo o Almanaque de Sorocaba 1903 (p. 81) “a esta

cidade cabe a gloria de ter sido a primeira do estado de S. Paulo, com excepção da capital, onde

rebentaram os primeiros raios de luz do invento de Guttemberg”. O primeiro jornal publicado

no interior de São Paulo foi O Paulista, em 1842, jornal oficial do governo revolucionário do

Brigadeiro Rafael Tobias (revolução liberal). No ano seguinte, 1843, saiu o Ypanema, que

balizava sua conduta jornalística pela máxima do marquês de Maricá: “O homem mais sabio hé

necessariamente o mais religioso”.

Tanto O Paulista como Ypanema tiveram vida curta, ficando uma lacuna por quase nove

anos. Somente em 8 de fevereiro de 1852, apareceu o primeiro número do jornal O Cometa que,

em seu cabeçalho, já explicitava seu posicionamento apoiado pelo “art. 179 §IV da Constituição

do Império (1824)”:

Todos podem communicar os seus pensamentos por palavras, escriptos e publical-os

pela imprensa, sem dependência de censura com tanto que hajão de responder pelos

abusos que commetterem no exercicio deste direito, nos casos e pela forma que a Lei

determinar.

Nesse mesmo ano, foi criado O Defensor, em oposição ao O Cometa, impresso pela

Typographia Constitucional e cujo primeiro número fora publicado em 27 de agosto, com sua

divisa explicitada em francês “La defense et le plus sacrê des droits, et elle deviant quelque fois

109

le plus saint des devoirs, ou de L´homme envers lui mème ou l´home envers la societè – (Garnier

Pagés).” Esses dois jornais tiveram vida curta.

Em 1856, criou-se O Monitor, impresso na tipografia de Joaquim Leme de Oliveira

Cesar e que também circulou por pouco tempo.

Após dez anos de ausência de jornal circulando em Sorocaba, em setembro de 1866,

passou a ser publicado O Araçoyaba, impresso pela Typographia Constitucional e que teve

circulação até março de 1867, num total de 24 edições, publicado semanalmente, sempre aos

domingos. Estranhamente, não apresentava o nome de nenhum editor responsável, mas é sabido

que pertencia a Luis Matheus Maylasky. Em sua primeira edição, o jornal declarou que sua

pretensão era “estudar as necessidades” do município, e “propugnar pela satisfação delas”.

Tinha consciência de que a sua missão seria árdua, posto que dizer a verdade seria a conduta

adotada, porém a “verdade cria desafetos”. Apresentava-se como “um auxiliar ao comercio e a

agricultura, sem envolver-se nas lutas de partido” (O ARÁÇOIABA, 16 set 1866, p.1). Esse

posicionamento de aparente isenção política é explicável devido à necessidade do jornal de ter

bons relacionamentos com todos os segmentos da sociedade, entenda-se os mais ricos.

Das páginas desse jornal é possível delinear aspectos da sociedade sorocabana de então

e acontecimentos importantes da vida do país, como a Guerra do Paraguai. Sobre o conflito,

foram dispensadas várias edições, onde teciam duras críticas à condução da guerra pelos

generais brasileiros, como se observa no trecho reproduzido a seguir:

Há dous annos que nossos chefes estão reduzindo nosso exercito como se fosse

verdadeiros emissarios de Lopez, há dous annos que os thesouros do Brazil, estão

s’exhaurindo, há dous annos finalmente que estão dando provas de imbecilidade ou

trahição, e ainda são conservados em seus postos?!... A nação brazileira é atrahiçoada

e entregue á Lopez ou por seu governo, ou por sua côrte (O ARAÇOIABA, 21 out

1866, p. 3).

Era recorrente a reprovação do jornal quanto à forma violenta como era feito o

recrutamento de soldados e bastante estimulado o alistamento voluntário para a guerra.

RECRUTAS MARTYRISADOS – No dia 13 de Dezembro forão recolhidos á cadêa

á ordem da autoridade policial 8 recrutas vindos de Itapetininga: estes desgraçados,

pois é o nome que melhor lhes cabe, sahirão de sua cidade encorrentados e algemados

e assim forão recolhidos à cadêa tendo já as mãos em deploravel estado de

entumecimento, tiritando por causa da grande chuva que tomarão em caminho (O

ARAÇOIABA, 6 jan 1867, p. 2).

Esse periódico mostrava-se grande incentivador da cotonicultura na cidade, destacando

sempre as vantagens desse cultivo para o crescimento de Sorocaba. Segundo Geraldo Bonadio

110

(2004), o importante desse primeiro jornal de Maylasky é que ele centrava suas preocupações

com a modernização do setor agrícola na cotonicultura: condenava as queimadas e insistia nas

vantagens de arar e adubar a terra, destacava os ganhos que os plantadores obteriam se, ao invés

de comercializar o produto antes de ser manufaturado, fizessem-no após a sua industrialização,

e procurava incentivá-los a se unirem num esforço cooperativo com aquele fim.

As notas contidas na seção denominada “Noticiário” retratavam a vida de Sorocaba e

seus costumes. Denunciavam a falta de conservação das ruas; a poluição das águas do rio

Sorocaba, utilizado para dar de beber aos animais, pelas lavadeiras de roupas ou preparadores

de couro, o que comprometia a qualidade da água do rio; faziam críticas, ainda, a alguns

comerciantes que deixavam carnes e outros alimentos à mercê das moscas e outras sujeiras

expostas nas portas dos estabelecimentos. Uma dessas notas dizia o seguinte:

Cumpre que a autoridade competente proceda com todo o rigor da lei contra os

individuos que, na margem do rio Sorocaba, costumão mandar, por escravos ou

pessoas de sua casa lançar materias excrementicias. Semelhante abuso é pernicioso á

salubridade publica (O ARAÇOIABA, 18 nov 1866, p.3).

A escravidão negra, uma realidade da sociedade sorocabana de então, figurava nas

páginas d’O Araçoiaba apenas na forma de anúncios de venda de escravos, de fugas e de delitos

cometidos por escravos. Não se depreendia nenhum posicionamento ideológico pela

manutenção ou pela abolição da escravidão. Entretanto, as notícias e anúncios sobre a

escravidão esbarram na visão da historiografia local de Sorocaba, que procura dar uma

conotação mais amena para a escravidão na cidade.

Foi aberta e encerrada no dia 10 do corrente a 2ª. Sessão do jury deste termo, tendo

entrado em julgamento o processo em que é reo, o preto Jeronimo, escravo do capitão

Manoel Ribeiro d’Arruda, pronunciado no art. 193 do codigo penal, por ter

assassinado á um seu parceiro de nome Francisco. O reo foi condenado, por

substituição de penna, á soffer cem açoites e a trazer ferro no pescoço por espaço de

seis mezes (O ARAÇOIABA, 16 dez 1866, p. 1).

Nas 24 edições d’O Araçoiaba é possível constatar que foram publicados oito anúncios

que se repetiram em várias edições sobre fuga de escravos, além daqueles de venda de escravos,

o que demonstra que não havia uma relação pacífica entre senhores e escravos, como quer fazer

crer a história de Sorocaba.

Sobre esse assunto, reserva-se aqui o direito a uma digressão. A historiografia de

Sorocaba apresenta com exagerado orgulho e sinônimo de avanço o fato de a escravidão negra

ter sido extinta em Sorocaba antes mesmo da Lei Áurea. O autor sorocabano Porfirio Rogich

Vieira (1988), em seu livro Sorocaba não esperou o 13 de maio, relata o fim da escravidão em

111

Sorocaba antes da Lei Áurea, de maio de 1888. Esclarece esse autor que, pela lei de 1885, em

vigor a partir de 30 de março de 1886, os senhores de escravos eram obrigados a fazer a

matrícula de seus escravos, sob pena de serem libertados aqueles não apresentados às

autoridades. Foram matriculados 940 escravos.

Por iniciativa da Loja Maçônica Perseverança III, constituiu-se a Comissão

Emancipadora, que tinha por objetivo convencer os donos de escravos a libertar seus escravos.

Convocados pela Comissão Emancipadora para uma reunião, em 25 de dezembro de 1887, os

senhores de escravos de Sorocaba resolveram dar a liberdade a todos os escravos, com a

condição de servirem seus senhores por mais um ano. Em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea

concedeu a liberdade imediata (SOROCABA 350 anos, 4 jul 2004). A antecipação fora de

apenas 4 meses e ainda condicionada a um ano de trabalho.

Bem antes da Lei Áurea, com frequência, os jornais de Sorocaba publicavam alforrias

concedidas por “bondosos” senhores de escravos. Levando-se em conta que naquele tempo a

escravidão era algo absolutamente normal, não deixava de ser um ato de bondade as

manumissões, mesmo com determinadas condições. Tal prática pode ser exemplificada com o

seguinte trecho, publicado em 1881: “Em data de 2 do corrente a sra. D. Maria Antunes de Jesus

Soares deu carta de liberdade para gosal-a depois de sua morte, a seu escravo Bernardino, vulgo

Bernardo, de 16 annos filho de Catarina” (DIÁRIO DE SOROCABA, 11 fev 1881, p. 2).

Prosseguindo na trajetória da imprensa em Sorocaba, surgiu, em fevereiro de 1870, o

jornal O Sorocabano, que mais tarde, em 1º de setembro de 1872, seria substituído pelo O

Sorocaba, e circulou até final de 1873, tendo como redator Julio Ribeiro, que posteriormente

teve notoriedade por ter escrito o romance A carne. Reconhecidamente um homem muito a

frente de seu tempo, esse redator, além de grande incentivador da indústria em Sorocaba,

mostrava-se preocupado com questões sociais e foi um dos precursores em defender o direito

dos protestantes de serem sepultados nos cemitérios católicos.

Nesse mesmo tempo, passou a ser publicado O Americano, redigido por Francisco de

Paula Oliveira Abreu, cujo primeiro número foi publicado em 12 de julho de 1871 e prosseguiu

até o ano de 1873. Também em 1872, iniciou-se a circulação de O Ypanema, segundo jornal

com o mesmo nome, que teve uma existência mais longa em relação aos demais: circulou por

oito anos. Inicialmente, esse jornal teve como redator principal Antonio José Ferreira Braga e,

após agosto de 1876, passou a exercer essa função Manoel Januário de Vasconcelos.

Registrou-se, no dia 7 de outubro de 1874, o aparecimento da Gazeta Commercial, num

formato maior e cujo redator era, novamente, Julio Ribeiro. Essa folha, que de início era

publicada duas vezes por semana, a partir de junho de 1875, teve seu tamanho reduzido e passou

112

a ser diária, mas não teve longa duração. Abordava temas interessantes, polêmicos e até temidos

para a época, numa demonstração de novos tempos e mudança da sociedade, tempos de ruptura.

Dentre esses temas estava o espiritismo. O redator chegou a mencionar a publicação do Livro

dos Mediuns, de Allan Kardec, afirmando que, nessa obra, a “teoria do espiritismo foi alçada à

categoria de ciência”, porém alertava:

Não aconselhamos, porem, o estudo desta philosophia aos caracteres facilmente

impressionaveis: não seria para admirar que a leitura dos livros de Allan Kardec,

começando no aconchego do gabinete de estudo fosse acabar em uma sala do Hospicio

de Pedro II (GAZETA COMMERCIAL, 25 jul 1875, p.2).

Em 1875, iniciou-se a publicação de A Voz do Povo que, em 10 de junho do ano seguinte,

alterou sua denominação para Colombo e perdurou até 1878. Era publicado duas vezes por

semana, seu editor era Domingos Costa e Silva e anunciava-se da seguinte forma:

Não é totalmente um novo gladiador que se apresenta na arena do jornalismo, é um

substituto ao jornal A Voz do Povo, que publicava-se nesta cidade. [...]. Alheio

completamente á politica, jámais se envolverá em questões dessa ordem, entretanto

não entenda-se por isso que o Colombo decline do direito [...] de sensurar com energia

qualquer funccionario publico, mesmo da mais elevada hierarquia, que afastar-se do

caminho do dever e da letra da lei, seja elle liberal, conservador ou republicano. [...].

O edictor responsavel desta folha e único proprietario da empresa é Domingos da

Costa e Silva (COLOMBO, 10 jun 1876, p.1).

Em agosto de 1877, apareceu o Votorantim, com a intenção de registrar o cotidiano da

vila operária de mesmo nome. Seu redator era Fidelis de Oliveira. Em fevereiro do ano seguinte,

surgiu a Gazeta de Sorocaba, que teve como redator principal Gaspar da Silva. Entretanto, não

há dados precisos sobre a duração dessas duas folhas.

Somente a partir de 1880, a imprensa sorocabana começou a prosperar, passou a ter

presença mais marcante no cotidiano da cidade e os jornais começaram a circular com mais

regularidade. A imprensa representava o ingresso à modernidade e, de acordo com Heloisa de

Faria Cruz (2000, p. 81), fazer imprensa nessa época virou moda, tendo em vista que

a agilidade da imprensa, seu caráter mais aberto e democrático a transformaram em

um campo muito mais propício à renovação da cultura letrada do que da produção

ficcional. No espaço da imprensa, com a intromissão de “escritas” e olhares de setores

e grupos sociais anteriormente alheios aos seus códigos, a cultura letrada tradicional

teve que enfrentar inúmeros desafios, colocando-se como um campo privilegiado da

disputa cultural no período. Nesse espaço, os caminhos e embates do processo de

disputa que configuram a metrópole ganham maior visibilidade. Ampliando

socialmente seus circuitos de difusão, renovando sua linguagem e seu estilo, a

imprensa ganha a cidade.

113

Em novembro de 1880, surgiu o Diário de Sorocaba, cujo proprietário e redator era

Manuel Januário de Vasconcelos. Circulou até abril de 1893. Esse jornal se mostrava reticente

com determinados assuntos próprios da modernidade, como o espiritismo. Para essa folha, o

espiritismo se configurava via de regra como uma prática fraudulenta e que levava seus adeptos

a atos de insanidade (CARVALHO, 2007).

Na última década do século XIX, no mês de novembro de 1892, apareceu o jornal O 15

de Novembro, na qualidade de apoiador da administração municipal, ou seja, situacionista. No

mês seguinte, também passou a circular o jornal A Voz do Povo, que figuraria como opositor ao

primeiro.

O 15 de Novembro anunciava que o seu programa seria:

lutar á medida dos nossos meios e recursos pelas idéas democraticas, censurando

aquillo que nos parecer digno de censura, não regateando encomios aos que julgamos

merecedores de nossos applausos. Procurar acclarar os espiritos em meio a confusão

que ora reina, empregando todas as forças possíveis para destruir as accusaçãos que

se fazem sem fundamento ao governo actual, accusação acoimando-o de culpado da

crise penosa que atravessamos, tal será o nosso fim, por isso que o titulo d’O 15 de

Novembro, já define claramente o seu programma (O 15 DE NOVEMBRO, 15 nov

1892, p.1).

Como proprietário e redator do jornal O 15 de Novembro, João José da Silva sempre

esteve muito próximo das elites republicanas da cidade, que controlavam os poderes públicos.

Assim, seu jornal foi pautado, desde sua constituição, por uma parcialidade política, cultivando

boas relações com os administradores públicos (PINTO Jr., 2003). Nessas condições, o jornal

O 15 de Novembro foi publicado entre 1892 e 1908. Sobre os temas mais polêmicos, como o

espiritismo, esse jornal assumiu uma postura mais de vanguarda, ou talvez até de tolerância

para a época.

Em 6 de dezembro de 1892, surgiu o jornal A Voz do Povo, que também se declarava

republicano e órgão “sincero dos reclames do município”.

Somos bons republicanos, mas republicanos moderados, conservadores, e opporemos

o espirito de opportunismo ao radicalismo; de republicanismo contra o jacobismo, de

politica relativa contra os principios absolutos de uma politica theorica, para que se

possa alcançar a vitoria moral e real que amanhã alegrará todos os amigos da grande

nação brasileira (A VOZ DO POVO, 6 dez 1892, p. 1).

No Almanaque Ilustrado de Sorocaba de 1914, Francisco de Camargo César, ao tratar

da imprensa sorocabana, desde o seu surgimento, assevera que o jornal A Voz do Povo, desde

o seu primeiro número, “mostrara disposições especiaes para um combate terrivel contra

pessoas distinctas da sociedade sorocabana”. Prossegue afirmando que o primeiro diretor desse

114

jornal, Bernardino Alvares, “diante da rota que tomara a Voz do Povo, cheia de

responsabilidades”, deixou o cargo que passou a ser ocupado por João Junker, que também não

resistiu por muito tempo. A direção do “mais enérgico periódico paulista cahiu então em poder

do destemido jornalista sr. Manoel Fernandes de Oliveira”. Mas, pelo seu “programa de

combate, tornara-se odiada a ponto de ser empastelada sua oficina” (ALMANACH

ILLUSTRADO DE SOROCABA, 1914, p.170). Esse jornal circulou até fevereiro de 1897,

quando foi compelido a transferir-se para a cidade de Tatuí, após seu redator ter criado polêmica

entre a oposição e o governo da cidade, a propósito do contrato de prestação de serviços de

limpeza pública que a câmara firmara (BONADIO, 2004).

Em 27 de janeiro de 1897, numa proposta bem diferente da que havia até então, apareceu

o jornal A Conquista do Bem. Tratava-se de um órgão do Partido Democrata-Socialista, dirigido

por Dario Garcia de Oliveira. Na primeira página, no espaço denominado Expediente, esclarecia

“ser o periódico de propriedade exclusiva do Sr. Dario de Oliveira que se acha à testa de tudo

quanto for referente à parte econômica do mesmo”. Anunciava-se a seguinte mensagem:

Na arena do jornalismo brasileiro, apparece hoje mais um campeão denodado que vae

caminhar na vanguarda d’esse exercito poderoso e digno que se chama operariado.

Desenrola sobranceiro pendão do socialismo e alista-se nas fileiras mais avançadas

d’esse partido de opprimidos, que, um dia hão fazer os cadafalsos tingir-se com o

sangue azul dos grandes senhores. Sem luctas titanicas, sem guerras fratricidas, o

socialismo ha-de apparecer em breve, há-de fazer acabar de ves com os tempos de

João VI, de Phylippe, a encarnação do mal, de Catharina e Carlos IX, [...] tempos

esses que são os mesmos em que vivemos, porque o fanatismo tem feito dos pobres,

escravos, e os aristocratas, dos trabalhadores, uns grilhetas! [...] O nosso lemma, o

lemma do verdadeiro socialista é: Um por todos e todos por um! (A CONQUISTA

DO BEM, 27 jan 1897, p.1).

Já no primeiro número, o redator fez um convite aos operários para uma reunião a ser

realizada no dia 7 de fevereiro, no salão do Grêmio dos Atiradores, a fim de eleger-se o diretório

do partido Democrata Socialista da cidade de Sorocaba. Tendo em vista o considerável número

de operários em Sorocaba, que representava uma nova classe social, o terreno mostrava-se

profícuo para a divulgação das ideias socialistas e posterior formação de um partido político,

como já vinha ocorrendo nos centros maiores, como São Paulo e Rio de Janeiro. Araujo Neto

(2005) assinalou que uma característica presente nos socialistas brasileiros do início dos anos

de 1890 era um certo oportunismo eleitoral, fazendo com que se criassem partidos operários

e/ou socialistas meses antes das eleições, sem ter uma base real estabelecida.

Entretanto, essa reunião não chegou a ser realizada a pedido do próprio Dario de

Oliveira que, pelas colunas do jornal A Voz do Povo, solicitou que o operariado não se reunisse,

como estava marcado, no Grêmio dos Atiradores, pois “se houvesse a reunião, haveria

115

desordem, em virtude de boatos que correm”. É difícil presumir o que realmente possa ter

acontecido nesse tempo, sobre o que seriam tais boatos. Pela imprensa, não há grandes

referências, principalmente porque alguns jornais, como o O 15 de Novembro, haviam

interrompido sua circulação, provavelmente devido ao surto de febre amarela que fustigava a

cidade de Sorocaba. O próprio operariado ainda não tinha reunido forças e maturidade para uma

organização mais efetiva que pudesse formar um partido político. É sabido, no entanto, que

Dario de Oliveira também estava envolvido no ocorrido entre Manuel Fernandes de Oliveira,

diretor do jornal A Voz do Povo, e a administração municipal sobre o contrato de prestação de

serviços de limpeza. Enfim, tudo indica que o jornal A Conquista do Bem não passou do

primeiro número e a tentativa de criação de um partido político democrata socialista não se

efetivou nessa data.

Figura 10 - Jornal A Conquista do Bem.

Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.

No estertor do século XIX, ainda em 1897, apareceu a Revista Fim do século, uma

publicação política, redigida por Arthur Silva, pseudônimo de Isaltino G. Costa e cujo subtítulo

anunciava-se “em favor do Socialismo, Cosmopolitismo e Espiritismo”.

Desenrolamos a nossa bandeira, e fazemos com o desejo ardente de trabalhar pela

conquista inteira de todas as reformas que visam fins benéficos salutares a todo o

genero humano. As ideias modernas que tem revolucionado os povos no turbilhão

deste findar de século, serão tratadas e defendidas nestas colunas. Combateremos a

favor das ideias político-sociais, que buscam a solução do problema social dispensado

ao operário, liberdade e direitos. A bem do Cristianismo sob a teoria de Kardec

116

também nos propomos a pugnar. Guerrearemos os preconceitos do nativismo, como

prejudiciais à Pátria e a Humanidade. Batalharemos pela completa queda da influência

dos jesuítas, como nociva à sociedade e à família (REVISTA FIM DO SÉCULO,

1897).

Apesar de apresentar uma variedade de pensamentos, desde publicações socialistas,

textos de anarquistas, como os de Kropotkin, e publicações religiosas kardecistas, a maior

importância dessa revista, conforme esclarece Araujo Neto (2005) era fazer propaganda de

ideias novas e progressistas, numa sociedade conservadora envolvida em calorosas lutas

políticas burguesas, abrindo espaço para uma atuação política que seguiria essas tentativas

pioneiras. Esse mesmo autor esclarece que Isaltino Costa continuou escrevendo, porém voltado

para artigos sobre administração de empresas e de relações comerciais, no entanto, na chamada

Credenciais de Isaltino Costa, coletânea de trabalhos e artigos organizados pelo próprio editor

não aparece qualquer participação na militância operária e socialista.

Já no século XX, em 12 de junho de 1903, apareceu, fruto de uma dissidência do Partido

Republicano Paulista, o jornal Cruzeiro do Sul que, de início, era publicado duas vezes por

semana. Em 1907, passou a circular três vezes por semana e, no ano seguinte, passou a ser

diário. Esse jornal mantém-se até os dias de hoje.

Em 1903, as lideranças políticas de Sorocaba, que controlavam a Câmara Municipal,

lideradas por Luiz Nogueira Martins, tinham o apoio do jornal O 15 de Novembro. Os embates

políticos entre situação e dissidentes do Partido Republicano Paulista local promoveram a

constituição do jornal Cruzeiro do Sul. Esse jornal, editado pela Typographia e Papelaria

Cruzeiro do Sul e controlado pela família Pires, era dirigido por Joaquim Firmiano de Camargo.

Figura 11 - Primeiro exemplar do jornal Cruzeiro do Sul.

Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.

117

Em sua primeira edição, o jornal esclarecia que não era um órgão partidário, apenas uma

folha republicana formada por uma associação de pessoas que não visavam a interesses

financeiros e nem aspiravam a posições políticas, o que não se configurou verdadeiro.

Até onde lhe fôr possivel, defenderá com independencia os direitos do povo,

garantidos pela Lei, e pugnará em pról das classes opprimidas. Não irá provocar

discussões de caracter privado, nem a ellas dará abrigo. Quando no desempenho de

nossa missão, tivermos de entrar na critica e na apreciação dos actos publicos, o

faremos na região serena dos principios, sem rancor e sem paixão. O «Cruzeiro do

Sul», ao tomar humilde posição nas fileiras da imprensa, sauda cordealmente aos seus

confrades e ao publico benevolo de quem espera favoravel acolhimento (CRUZEIRO

DO SUL, 12 jun 1903, p.1).

Esse jornal nasceu para combater os grupos situacionistas, que dominavam o poder

público de Sorocaba. Era a “trincheira” dos dissidentes do Partido Republicano Paulista (PRP)

naquele momento. Com a publicação do Cruzeiro do Sul, os leitores da cidade puderam

acompanhar um debate acirrado desses grupos antagônicos, através de seus respectivos órgãos

de imprensa. Não economizando questionamentos aos homens que governavam Sorocaba, o

jornal dos dissidentes, por duas vezes, sofreu tentativas de empastelamento de suas oficinas

(PINTO JR. 2003, p.90).

Entre 1903 e 1906, os jornais Cruzeiro do Sul e O 15 de Novembro digladiavam-se

constantemente, com acusações recíprocas tanto políticas quanto pessoais entre seus redatores,

que se desqualificavam abertamente. Ocorreu, em 1906, o congraçamento político do PRP no

estado e, imediatamente, dissiparam-se as divergências políticas também em Sorocaba. Dessa

forma, os jornais rivais passaram imediatamente à condição de situacionistas, ou seja, as

críticas, acusações e denúncias dissiparam-se. Por dois anos, os jornais O 15 de Novembro e o

Cruzeiro do Sul conviveram apoiando a administração municipal.

As duras críticas pessoais, as denúncias de abuso de poder, os supostos descasos com o

dinheiro da municipalidade foram substituídos por elogios, apoios e compromissos de

participação na administração do “bem comum”, quando a família de João José da Silva,

proprietária do jornal O 15 de Novembro, deixou de publicar seu órgão de imprensa, abrindo

espaço para que o Cruzeiro do Sul passasse a ser um jornal diário (PINTO JR, 2003, p.89).

A partir de 1906, Luiz Pereira de Campos Vergueiro foi tornando-se liderança política

em Sorocaba. Com o apoio irrestrito do jornal Cruzeiro do Sul, Vergueiro foi afirmando-se no

cenário político. Oriundo de família tradicional da história do Brasil, era neto do Senador

Vergueiro, já mencionado neste trabalho, o introdutor da mão de obra assalariada e imigrantes

118

nas fazendas. Em 1905, após exatos 15 dias de sua formatura de bacharel em Direito, foi

nomeado promotor público em Sorocaba.

Por decreto de 17 do corrente foi nomeado promotor publico desta comarca o dr. Luiz

Pereira de Campos Vergueiro. Esta nomeação não podia ser mais acertada, tanto que

veio trazer um geral contentamento ao publico sorocabano que tem visto do dr.

Vergueiro, em todo tempo que ocupou interinamente aquele cargo, um modelo de

justiça e em seus actos o exemplo de uma boa magistratura (CRUZEIRO DO SUL,

18 jul 1905, p.2).

De 1910 a 1925, atuou como deputado estadual e, em 1925, atuou como senador. Foi

prefeito de Sorocaba, de janeiro de 1926 a janeiro de 1928. Além das atribuições políticas,

sempre presente da sociedade sorocabana, Vergueiro pertencia à Maçonaria, Perseverança III,

foi diretor do Gabinete de Leitura Sorocabano e participava das sociedades filantrópicas, enfim,

participava de uma série de atividades que lhe proporcionavam visibilidade. Sempre com o

apoio do jornal Cruzeiro do Sul, Vergueiro era constantemente acusado de recorrer à fraude,

como denunciavam seus opositores. Era também acusado de recorrer à violência física contra

seus adversários (BONADIO, 2004).

Apesar de não ser consenso, entre os historiadores locais, pesa contra Campos Vergueiro

a sua posição contrária à instalação de Escolas Secundárias e Normal em Sorocaba. Atribui-se

a ele o pensamento de que, para Sorocaba, uma cidade predominantemente operária, escolas

profissionalizantes seriam mais adequadas às suas necessidades. A imprensa sorocabana,

principalmente o jornal Cruzeiro do Sul, registrou sua participação na implantação do segundo

e terceiro grupos escolares.

Por motivos não muito claros, Vergueiro passou a perseguir Luis do Amaral Wagner,

professor da escola mantida pela Maçonaria, até que ele fosse removido de seu cargo de

professor para outra cidade. Essa atitude provocou reprovação entre os maçons e culminou no

afastamento de Vergueiro da loja Maçônica Perseverança III, em 1920. Posteriormente, quando

prefeito municipal, Vergueiro questionava a subvenção destinada à Escola Noturna, mantida

pela Maçonaria, atitude que desgastou a sua imagem.

Com a ascensão de Julio Prestes de Albuquerque, antes aliado de Vergueiro, ao governo

paulista, desencadeou-se profunda mudança no comando político da cidade. As razões

determinantes da ruptura entre o governador e Luis Pereira de Campos Vergueiro, que seguia

dando as cartas no jogo político, nunca foram analisadas criticamente (CRUZEIRO DO SUL,

30.000 Edições, fascículo 5).

119

No tocante à educação em Sorocaba, tanto a educação secundária acadêmica quanto a

profissional somente surgiram após a derrubada do grupo político de Luis Pereira de Campos

Vergueiro (IDEM, p. 56).

A medida que jornais, revistas, almanaques e outros períodicos iam surgindo e afinando-

se com novos movimentos ideológicos bem próprios da modernidade, começaram a ser

discutidas as ideias do espiritismo, do darwinismo, do evolucionismo, do positivismo, do

racionalismo e, nas fileiras delas, encontravam-se as ideias socialistas, que tiveram maior ênfase

na imprensa operária, com destaque ao jornal O Operário, fundado em 1909.

As revistas e almanaques que começavam a circular de forma relativamente intensa

apresentam as sutis transformações vividas pela sociedade nos seus modos de vida e

comportamentos. Através dessas folhas e revistas podemos perceber melhor as transformações

dos modos de vida informais que constituíam a metrópole em formação (CRUZ, 2000).

Em 1903, foi lançado o Almanach de Sorocaba 1903, pela Typographia 15 de

Novembro, com o objetivo de “ [...] apresentar ao leitor um pallido reflexo de nosso alto grau

de desenvolvimento comercial e industrial”. A publicação continha, ainda, “calendarios,

anecdotas, charadas e variedades proprias ás publicações desta espécie”, além de uma parte

indicadora sobre a cidade e de notícias históricas sobre Sorocaba, sua imprensa, seus principais

edificios e instituições e anúncios de propagandas.

O objetivo dos editores do Almanaque era publicá-lo em série. No ano seguinte, foi

publicado o Almanach de Sorocaba 1904 nos mesmos moldes da publicação do ano anterior,

porém com conteúdo mais enxuto. Nos anos que se seguiram, entretanto, não houve nenhuma

outra publicação de almanaques.

Somente em 1914 foi publicado o Almanach Illustrado de Sorocaba, organizado por

Braulio Werneck e impresso pela Typographia Werneck. Apresentava-se como “repositório

histórico, literário e recreativo com ilustrações. Para conseguir realizar seu intento, o

organizador declarou que foram “enormes, enormíssimos mesmo, é força confessal-o, foram os

obstáculos que encontrei para a confecção desta obra, obstáculos creados mais pela má vontade

de alguns e pelo exagerado pessimismo de outros” (ALMANACH ILLUSTRADO DE

SOROCABA, 1914, p. 6).

O Almanaque Ilustrado de 1914 apresentava qualidade técnica superior à de seus

antecessores. Conforme cita Pinto Jr. (2003, p. 120), a publicação contava com

[...] profusão de imagens iconográficas, entremeando os textos escritos, não deixa

dúvidas da intenção do editor: apresentar publicações modernas, ilustradas, atraentes,

tanto para os leitores alfabetizados como para os não alfabetizados. Imigrantes que

120

não conheciam a língua portuguesa, homens, mulheres e crianças não alfabetizadas

poderiam ao menos ler os inúmeros clichés publicados nas produções do sr. Werneck.

Ainda segundo esse autor, a referida publicação estava em sintonia com o avanço da

modernidade capitalista que se impunha na cidade e, por esse motivo, Braulio Werneck realizou

projetos editoriais voltados para as elites e classes médias, pois nesses grupos estava a maior

parte dos leitores com capacidade de adquirir seus produtos culturais.

Nessa esteira de empreendimentos editoriais, também foi lançada, em abril de 1914, a

Revista A B C. Eram redatores da A B C Braulio Werneck, Francisco Camargo Cesar e os

professores Luiz Fleury, Luiz do Amaral Wagner e Renato Fleury. Essa revista mensal

anunciava-se de “sciencia, arte, literatura e humorismo” e

Segundo os abnegados literatos sorocabanos, o objetivo maior do projeto era fomentar

a cultura da cidade, já que raríssimas pessoas de Sorocaba cultivavam as letras e

poucos eram os que poderiam aproveitar seu tempo com o feitio artístico e civilizador

da publicação. A produção da revista literária A B C... foi cercada de cuidados

técnicos, sendo uma publicação que acompanhava os padrões de boas revistas

publicadas no Rio de Janeiro e São Paulo (PINTO JR. 2003, p. 123).

Contudo, apesar de ter uma apresentação gráfica apurada, que podia ser comparada aos

padrões gráficos de revistas editadas em São Paulo ou Rio de Janeiro, a Revista ABC não passou

do 5º número publicado.

Figura 12 - Revista A B C.

Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.

121

Figura13 - Revista A B C.

Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.

2.2 A imprensa operária

“Não nos esqueçamos que o exemplo é a melhor das propagandas e que não se

pode pretender dos demais aquilo que nós mesmos não fazemos”.

(Errico Malatesta)

A imprensa operária parece ser a mais importante documentação primária para a história

das classes trabalhadoras no Brasil (FERREIRA, 1978). Essa constatação tem sido aceita por

um número cada vez maior de historiadores e pesquisadores, mesmo com as devidas limitações

122

que essa fonte apresenta. Em Sorocaba, a principal fonte de pesquisa sobre a classe trabalhadora

tem sido o jornal O Operário.

A imprensa foi um dos recursos utilizados pelo proletariado brasileiro, assim como

ocorreu em outros países, para se tornar visível na sociedade. Buscavam, antes de tudo,

significação social diante de um governo que se recusava a admitir o surgimento de novas

relações de trabalho e mantinha-se atrelado ao pensamento de que o Brasil era “um país

essencialmente agrícola” e, portanto, a indústria e seus desdobramentos, como a emergência de

uma legislação trabalhista, eram secundários. Ora, se não havia suficiente incentivo por parte

do governo à indústria nascente, também os industriais não eram importunados quanto aos

encargos tributários ou a qualquer tipo de regulamentação, o que lhes permitia estabelecer suas

regras dentro das fábricas e nas próprias relações de trabalho.

A conveniência da disseminação da imprensa operária foi objeto de discussão no II

Congresso Operário Brasileiro, realizado no Rio de Janeiro, em dias de setembro de 1913. Para

os militantes, se, por um lado, a imprensa constituía o meio mais eficaz para orientar as massas

populares, por outro, era por meio dela que a classe capitalista induzia a opinião pública em

favor de seus interesses, além de influenciar poderosamente o ânimo das classes operárias,

“arrastando-as a todas as desviações contrárias a sua emancipação, a todas as torpes artimanhas

e mistificações habilmente alinhavadas por profissionais da pena, que dela fazem comércio”

(PINHEIRO; HALL, 1979, p. 196). Assim, considerando esses fatores, o II Congresso Operário

Brasileiro aconselhou

Todas as sociedades e sindicatos operários e aos trabalhadores em geral a criarem em

todas as cidades, vilas ou lugarejos, jornais de propaganda integralmente

emancipadora e a auxiliarem os já existentes e os que venham a existir, realizando a

grande obra sintetizada no espírito desta moção, no intuito de que, na possível

brevidade os trabalhadores se encontrem completamente livres (PINHEIRO; HALL,

1979, p. 197).

O papel da imprensa operária ia muito além das denúncias dos mandos e desmandos dos

patrões ou das condições precárias de trabalho. Era também um veículo de conscientização,

politização e instrução do operariado, uma forma de difundir suas mensagens. Segundo Edgar

Rodrigues (2007, p. iii), esses jornais operários refletiam uma forte convicção de que a Pátria

era invenção do capitalismo explorador e dos políticos. Destacavam, ainda, que a Igreja

Católica não era nacionalista! A sua religião era/é universal, não tinha Pátria!!!

A presença de uma imprensa reivindicatória em língua estrangeira foi marcada pela

fundação do jornal La Giustizia, em 1879, em São Paulo, obra do imigrante italiano Luigi

123

Schirone, que se servia dessa publicação para denunciar os problemas que o imigrante

enfrentava em sua nova pátria (FERREIRA, 1978).

A mensagem que pretendiam difundir necessitava de suportes para ser veiculada, razão

pela qual implantaram uma espantosa rede de jornais operários, o que contribuiu sobremaneira

para a organização da classe trabalhadora brasileira.

A mesma autora explica que a maior parte dos imigrantes chegados ao Brasil ia

diretamente para as lavouras de café. Entretanto, os mais pobres não reuniam condições de se

fixar no campo, não conseguiam a posse da terra e nem o capital para poder desenvolver o

trabalho agrícola. Isso tudo os impedia de se fixarem por muito tempo nessas ocupações e,

quase sempre, rumavam para as cidades na esperança de melhorar de vida. As cidades, em

franco desenvolvimento e crescimento, acabaram por impor um novo estilo de vida tanto para

os daqui como para os recém-chegados.

Grande parte das sucessivas levas de colonos chegados para a cafeicultura não se fixou

na zona rural. Com ou sem pecúlio formado nos serviços agrícolas os imigrantes

geralmente demandavam às cidades e povoados. O mercado de trabalho rural foi

apenas sua larga via de acesso a outras oportunidades de ação econômica,

principalmente nos núcleos urbanos que se criavam, ou cresciam, com sua expressiva

participaçao (SIMÃO, 1966, p.28).

Segundo Simão (1966), essa mobilidade dos colonos obrigava o governo a manter um

serviço de imigração subsidiada com o fim de, pelo menos, preencher as vagas deixadas pelos

colonos que seguiam principalmente para as cidades. Mas havia uma triste constatação: o nível

cultural do brasileiro era muito baixo, especialmente quando se tratava do elemento vindo do

meio rural. O próprio Monteiro Lobato em seu conto “Urupês”, publicado em 1914, no jornal

O Estado de São Paulo, fez uma afirmação controversa e trouxe à tona a situação degradante

em que se encontrava o sertanejo brasileiro “este funesto parasita da terra [...] seminômade,

inadaptável à civilização” (DIWAN, 2007, p. 101).

A conscientização, nesse ambiente de atraso cultural, deveria, antes de ser feita de modo

escrito, ser realizada de modo oral.

Dada a situação da classe trabalhadora no Brasil, o trabalho de doutrinação

desenvolvido pelos operários imigrantes, assessorados pelos intelectuais, foi dos mais

difíceis. Operários oriundos do campo e ex-escravos quase que totalmente

analfabetos, com forte tradição servil e religiosa, sem a vivência de um processo de

industrialização, inicialmente só poderiam ser conscientizados através da palavra

falada (RODRIGUES, 1969 p. 79).

124

No processo de organização operária, não se pode deixar de mencionar o papel

desempenhado pelos intelectuais. Os inúmeros jornais que surgiram por iniciativa dos

intelectuais foram armas importantes, que levaram a discussão das ideias, criaram o hábito da

leitura e prepararam o terreno para o surgimento da imprensa operária na virada do século que,

com a participação dos operários imigrantes, em outra conjuntura, iriam produzir os primeiros

frutos da luta social (FERREIRA, 1978).

Os jornais operários transformaram-se na maneira mais eficaz a propagação de ideias,

de reivindicações, de denúncias e de instrução. Apesar de ser elevado o número de analfabetos

nas cidades, tanto estrangeiros como brasileiros, o acesso ao conteúdo desses jornais estendia-

se a partir da sua leitura em voz alta para os analfabetos, aumentando, assim, o seu alcance. A

imprensa e a cidade, principalmente a partir da última década do século XIX, assumiram um

caráter plurilinguístico. Expressando a importância dos movimentos imigratórios e da ocupação

da cidade por populações estrangeiras, desenvolveu-se uma vigorosa imprensa chamada étnica

ou das colônias (CRUZ, 2000).

No ano de 1893, passou a circular, na cidade de São Paulo, o jornal Fanfulla,

inicialmente aos domingos e depois diariamente. Esse jornal impôs-se como veículo de

imprensa e teve penetração tanto nos ambientes da elite de imigrantes como no universo de

trabalhadores, não só na capital como também no interior do estado.

Sempre estiveram, à frente desses jornais, imigrantes estrangeiros que tinham mais de

militantes que de jornalistas. Interessante assinalar que, mesmo voltado para o operariado quase

sempre analfabeto, a linguagem utilizada era rebuscada, recheada de poemas acadêmicos. A

missão do jornalismo não se limitava, entretanto, a difundir ideias, a educar politicamente e a

atrair aliados políticos. O jornal não era somente um agente coletivo de propaganda, mas

também um organizador social (FERREIRA, 1978).

Num primeiro momento expressando o mutualismo das organizações da classe, mas

logo assumindo as cores anarquistas e anarcossindicalistas que predominariam no

movimento, essa imprensa articula-se em torno de formações políticas diversas,

características do movimento operário no período, tais como sociedades de auxílio

mútuo, os centros socialistas, as ligas de resistência, os sindicatos de ofício e as

federações e confederações de sindicatos (CRUZ, 2000, p. 124).

A imprensa operária no Brasil não conseguiu ter regularidade. Os jornais apareciam e

desapareciam em pouco tempo. Podia ocorrer, também, o reaparecimento de um jornal, mas

com outro título. O fator financeiro sempre pesou, pois, como praticamente não havia

publicidade, não entrava dinheiro para a sobrevivência do empreendimento. Além disso, ainda

125

há de se considerar o baixo poder aquisitivo dos leitores e que, certamente, entre suas

prioridades, não figurava a aquisição do jornal.

Outro aspecto de relevância diz respeito às perseguições sofridas por esses jornais e seus

redatores à medida que o movimento operário foi intensificando-se e fortalecendo-se. São

inúmeras as situações de destruição das oficinas, com as máquinas desses jornais danificadas

pela polícia.

Algumas características diferenciavam os jornais operários dos outros jornais

empresariais. O número de páginas podia variar, muitas vezes triplicando em ocasiões de

notícias importantes, quase sempre quando ocorriam as greves e o tamanho usualmente era o

tablóide.

Mesmo em se tratando de uma publicação periódica, o tratamento da notícia tem

carater processual, recuperando e analisando os fatos. Grande parte do espaço era

ocupado por textos e conferências, isto é, não se dava somente uma notícia sobre um

bom texto ou conferência, mas se reproduzia na íntegra o seu conteúdo. Nota-se desse

modo, do ponto de vista da diagramação, uma nítida preocupação em ocupar todo o

espaço (FERREIRA, 1978, p. 105).

À medida que o operariado foi organizando-se com as Ligas Operárias ou Uniões

Operárias, todos os movimentos e iniciativas operárias de organização praticamente contavam

com um jornal, cuja finalidade residia em politizar e informar seus membros e, sobretudo, em

organizar os trabalhadores brasileiros.

Ferreira (1978) apresenta um levantamento sobre a circulação de jornais operários,

compreendendo os últimos 25 anos do século XIX até as duas primeiras décadas do século XX,

onde apareceram aproximadamente 343 títulos de jornais espalhados pelo território brasileiro.

Desse total, 149 títulos encontravam-se no estado de São Paulo, dos quais 22 eram publicados

fora da capital; 100 títulos eram publicados na cidade do Rio de Janeiro e 7 no interior do

estado; e 94 títulos espalhavam-se pelos outros estados brasileiros. Entretanto, nesse

levantamento, não consta o jornal O Operário, de Sorocaba, que circulou de 1909 a 1913.

Conforme a referida autora, dos 343 jornais que apareceram nesse período, 60 deles

eram editados em idioma estrangeiro: 1 em alemão, 4 em espanhol e 55 em italiano. Dos jornais

editados em língua estrangeira, 53 eram publicados em São Paulo. Esses dados evidenciam o

quanto foi marcante a presença do elemento imigrante em São Paulo, especialmente na última

década do século XIX.

A imprensa operária conservava algumas características comuns como: pouca ou

nenhuma propaganda, períodos instáveis de circulação e o fato de não contar com repórteres.

126

Quase sempre as pessoas se dirigiam às redações dos jornais a fim de registrar o que ocorria

dentro das fábricas. É interessante notar que, em várias cidades, surgiram primeiro os jornais e

depois vieram as greves. Sorocaba pode ser inserida nesse dado.

Com o intuito de instruir e conscientizar os operários, esses jornais faziam amplas

divulgações sobre a realização de palestras e conferências voltadas ao interesse desse público

e, posteriormente, publicavam resumos das palestras dadas ou mesmo a íntegra delas. Havia

uma preocupação com a formação das classes trabalhadoras e o melhoramento da pessoa.

Alguns temas eram recorrentes, como: o alcoolismo, a imigração, o tratamento à infância, a

necessidade da instrução etc.

Na imprensa operária, esse novo sujeito social em emergência – o trabalhador urbano –

transformou a cultura letrada e impressa num vigoroso instrumento de organização e resistência

contra a dominação capitalista (CRUZ, 2000).

2.2.1 O jornal O Operario de Sorocaba

Vimos pregar e trabalhar para conseguir a união, a

solidariedade, o mutualismo entre os nossos operarios.

(O Operario, 18 jul 1909)

Em 1909, Sorocaba já podia ser considerada plenamente uma cidade industrial e já era

conhecida por Manchester Paulista, numa referência à cidade industrial inglesa de Manchester.

Esse epíteto foi a construção simbólica por excelência da burguesia local.

Sua economia dependia em grande parte da indústria. As fábricas têxteis Nossa Senhora

da Ponte, a Santa Rosália, a Santa Maria e a Votorantim reuniam milhares de operários, além

de dezenas de outras fábricas menores em diversificados ramos de atividades. Como exemplo,

pode-se citar a fabricação dos seguintes produtos: chapéus, cerveja, artigos de montaria,

calçados, gelo, óleos, azeite, sabão, velas, macarrão, serrarias, móveis etc., somando-se ainda

as fábricas de torrefações de café, moinhos de fubá, refino de açúcar etc.

Os donos das fábricas, especialmente das maiores, já haviam incorporado a figura de

capitalistas e esmeravam-se nas práticas capitalistas. Com mão de obra abundante, os salários

poderiam ser reduzidos, bem como as condições de trabalho poderiam ser ajustadas para o

aumento da mais-valia. A abundante oferta de trabalho não representava um fator positivo para

os operários no sentido de poderem escolher a melhor oferta, uma vez que as fábricas

127

mantinham práticas de trabalho e salários muito semelhantes, ou seja, todas procuravam

explorar ao máximo o trabalhador. Exceção feita à fábrica Votorantim, que pagava um pouco

mais que as demais, porém isso não significava que os salários pagos eram bons. Aquele cenário

não vislumbrava possibilidades de mudança, pelo contrário. Com ao passar do tempo, a

precarização do trabalho recrudescia e os capitalistas se fortaleciam, uma vez que podiam dispor

de exército industrial de reserva.

A organização dos operários, visando a mudança desse quadro, tornava-se uma

necessidade premente, principalmente num país onde a legislação de amparo ao trabalhador da

indústria era inexistente, o que fortalecia a exploração exercida pelos capitalistas. O aumento

da classe proletária em Sorocaba, o reconhecimento de sua importância pelos operários e pelos

próprios capitalistas - pois sem operário não haveria produção e, consequentemente, lucro para

os industriais – e, principalmente, as condições vividas por essa classe foram decisivos para o

aparecimento de um jornal para defender a classe operária. Eis a situação do proletariado em

1909 em Sorocaba:

Sorocaba, a Manchester do Estado de S. Paulo, conta com um numero elevadíssimo

de operários que são obrigados pelos seus patrões a trabalharem 13 e 14 horas diárias

para não morrerem de fome! Mal tratados pelos prepotentes gerentes e seus auxiliares

que são os mestres e contra-mestres bajuladores que não trepidam somente em

maltratar os seus companheiros, roubando-lhes o suor, em proveito de seus patrões,

impondo-lhes multas exageradas e, reduzindo a classe ao estado a que se acha: sem

horas para se instruir, sem horário para o seu descanço e sem liberdade de pensamento

(O OPERARIO, 31 out 1909, p.1).

Esse jornal operário, denominado O Operario, como tantos outros de diferentes cidades

dessa época, apesar de ter tido mais de três anos de circulação - o que não representa uma vida

curta, considerando-se as adversidades encontradas pelos periódicos desse tempo - não aparece

em estudos feitos por historiadores interessados na imprensa operária, por motivos que

desconhecemos e conforme já foi apontado neste trabalho.

Segundo o pesquisador Luis Carlos Barreira, nem mesmo nos levantamentos da

imprensa operária de Edgard Carone, que abrange o período de 1887 a 1944, e de Maria

Nazareth Ferreira, que abarca o período de 1847 a 1923, figura o jornal O Operario de

Sorocaba. Para esse autor, o jornal O Operario e outras folhas operárias estão à espera de

qualquer historiador interessado em libertá-los das malhas do silêncio e do esquecimento que

os aprisionam (BARREIRA, 2002).

A hemeroteca do Gabinete de Leitura Sorocabano dispõe de quase todos os exemplares

desse jornal, que estão deteriorando-se, pela ação do tempo, não por falta de cuidados.

Recentemente, em 2007, o professor da Universidade de Sorocaba - UNISO e pesquisador

128

Rogério Lopes Pinheiro de Carvalho organizou uma edição fac-similar desse jornal a partir da

coleção existente no Gabinete de Leitura Sorocabano. Devido à falta de alguns exemplares na

coleção do Gabinete de Leitura, o pesquisador recorreu ao Arquivo Edgar Leuenroth

(UNICAMP), Centro de Documentação e Memória da UNESP (CEDEM), Instituto de Estudos

Brasileiros e Biblioteca Nacional, vindo a encontrá-los somente no acervo na Biblioteca

Nacional. Porém, para a edição fac-similada, não foi possível recuperar as edições de número

12, 15 e 170 do jornal (CARVALHO, 2007, p.i).

Figura 14- Primeiro exemplar de O Operario – 18 julho de 1909.

Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.

Em 18 de julho de 1909, foi veiculado o primeiro número do jornal O Operario,

impresso na Typographia Clarim da Luz, inicialmente de publicação quinzenal, porém a partir

do sexto número passou a circular todos os domingos. As assinaturas seriam de $200 réis

mensais. Anunciava-se como “Orgam de uma Associação Operaria para a defesa da Classe”,

uma vez que a chamada grande imprensa da época, particularmente o jornal Cruzeiro do Sul,

não ouvia o clamor da classe trabalhadora.

Na Tipografia Clarim da Luz publicava-se também um jornal de orientação espírita de

mesmo nome. Ela era dirigida por José de Castro Lima, que passou a dirigir também O

Operario. Essas duas publicações mantinham alguns pontos de estreitamento ideológico, que

certamente extrapolavam o simples fato de dividirem a mesma tipografia. Alguns dos criadores

do Clarim da Luz também participaram da criação do O Operário.

129

Figura 15 - Tipografia Clarim da Luz.

Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.

Afirmavam, ainda, que a redação não se responsabilizaria pelas ideias de seus

colaboradores. Declaravam que “[...] as columnas do O Operario são francas à todos os

opprimidos. Visa um desideratum muito legitimo qual o de conseguir a união ou solidariedade

da família operaria sorocabana” (O OPERARIO, 18 jul 1909, p.1). Cientes do inevitável embate

que se instalaria na sociedade sorocabana com os industriais e outros órgãos da imprensa,

alertavam que não pretendiam qualquer envolvimento partidário no munícipio. Apesar de

apregoarem uma neutralidade política, no decorrer de sua trajetória, ela não se manteve e nem

seria possível tal procedimento. Em diversas situações, o jornal se distanciou de seus propósitos,

fazendo elogios à República, ou envolvendo-se em manifestações partidárias, conforme será

tratado mais adiante de maneira pormenorizada.

Semelhante a outras folhas operárias publicadas no estado de São Paulo e no país, O

Operário procurou adequar-se às características plurinacionais presente em Sorocaba, trazendo

artigos escritos em italiano. No primeiro número, foram publicados dois artigos em italiano. O

primeiro, dividido em duas partes, intituladas Augurio e Come divenni socialista, era assinado

por N. Coli, que felicitava a iniciativa e desejava muito êxito na luta operária. E o segundo, La

ragione... per nui, era assinado por Misko Fota.

Esse jornal apresentava uma característica incomum aos jornais operários: contava com

anúncios de propaganda das empresas locais. Quase sempre a última página se destinava à

130

publicidade. Uma parte desses anunciantes, que se mantém firme na sustentação do jornal em

toda sua trajetória, era constituída de membros da loja Maçônica Perseverança III e muitos deles

eram simplesmente empresários que discordavam da sistemática exploração a que eram

submetidos os trabalhadores da indústria (BONADIO, 2004).

Quanto à Maçonaria estar envolvida de certa forma com o jornal O Operario, é preciso

ficar bem claro que tanto espíritas, como anarquistas e mesmo protestantes compuseram (ou

compõem) os quadros dos membros de lojas maçônicas. Kardec disse:

“Tudo o que direi é que o Espiritismo encontrará no seio das lojas maçônicas

numerosa falange compacta de crentes, não crentes efêmeros, mas sérios, resolutos e

inabaláveis em sua fé [...] o Espiritismo realiza todas as aspirações generosas e

caridosas da Franco-Maçonaria [...]” (COLOMBO, 1998 p.xi)

O jornal O Operario sempre se mostrou agradecido, através de suas colunas à

Maçonaria, pela iniciativa desta em manter uma escola noturna para os operários.

Esse jornal, desde o seu início, não se omitiu à causa operária, entretanto o fez de

maneira cautelosa, pode-se dizer que manteve uma posição moderada nos primeiros tempos de

vida. Mesmo com uma conduta editorial semelhante à de outos jornais operários, o O Operario

de Sorocaba impôs-se numa sociedade marcadamente conservadora, provinciana e machista. É

inegável o fato de que esse jornal alterou padrões de comportamento da sociedade sorocabana.

As manifestações pelas ruas por diferentes motivos, panfletagens, algumas comemorações,

como o dia 1º de maio, eram desconhecidas da sociedade sorocabana e a possibilidade de greves

sequer seria aventada. Até então as pessoas saíam às ruas quase unicamente nas procissões

religiosas ou nos acompanhamentos dos mortos. Alteraram-se os costumes, movidos por novas

leituras, que começam a incomodar os setores dominantes. Os jornais da imprensa operária

romperam com o monopólio dos setores dominantes sobre a palavra impressa, trazendo, para o

interior da cultura letrada, as contradições de classe da cidade em desenvolvimento, do ponto

de vista dos dominados (CRUZ, 2000).

Não há dados precisos quanto ao número de assinantes que esse jornal contabilizou

durante a sua circulação. Objeto de questionamento por parte dos redatores desse jornal era a

postura dos assinantes que não efetuavam regularmente seus pagamentos. É certo que, para se

manter em circulação, esse jornal enfrentava muitas dificuldades. Em 1910, pelo fato de a

maioria dos assinantes não efetuar seus pagamentos, a direção do jornal resolveu diminuir o

formato da publicação, a fim de também reduzir o valor da assinatura. Ao justificar essa

redução, num verdadeiro desabafo, depreende-se que o jornal tinha mais de 1000 assinantes.

Esse número demonstra significativa abrangência e o alcance do jornal poderia extrapolar esse

131

número, considerando-se a prática de se fazer a leitura em voz alta, tanto para os analfabetos

quanto para aqueles que não tinham condições de comprar o jornal.

Nós trabalhamos por amor da Classe; não pensem que trabalhamos com algum

interesse não. Que lucro tem um jornal de dimensão como o nosso chegando no

pagamento das assignaturas (80) assinantes sómente que nos auxilia? Este dinheiro

não chega nem para o papel, quanto mais para a tinta etc, etc, [...] Até parece incrível!

De 1000 assignantes que temos, não entrar por mez 30$000 réis (O OPERARIO, 20

fev 1910, p.2).

Independente do pagamento irregular das assinaturas, acredita-se que o jornal gozava

de boa receptividade entre os operários. Com a diminuição do formato do jornal, foram

suprimidos os anúncios. Em 10 de abril de 1910, com menos de dois meses de redução, o jornal

retornava ao seu formato original. A despeito de todas as adversidades encontradas por esse

jornal, foram bem poucas as vezes que ele deixou de circular. Quando ocorria algum atraso,

eram dadas as devidas explicações aos leitores, numa demonstração de consideração ao seu

público.

O jornal manteve, desde a edição nº 1 até a de nº 162, a publicação do folhetim: O

Jesuita. O Papa Negro, romance histórico de Mezzabotta. Considerado como o livro proibido

pela igreja, esse romance narra a história da Maçonaria e da instalação da ordem da Companhia

de Jesus, cujo Papa vivia uma vida de muitos privilégios e fora expulso pelo exército de

Napoleão Bonaparte. A publicação dessa história acentuava a postura anti-clerical assumida

pelo jornal.

Em seu segundo número, tocava numa questão vital para os operários, a excessiva

jornada de trabalho. Nesse tempo, em algumas fábricas, a jornada de trabalho alcançava 14

horas diárias de trabalho ou mais. O jornal aborda essa questão crucial para a causa operária,

mas o faz com muita sutileza, certamente procurando evitar de imediato uma indisposição com

os patrões.

[...] E’deste modo que queremos o operariado de Sorocaba. Unido, forte, tendo uma

idéa, batendo-se por um direito. Queremol-o, porem, respeitador da ordem e parte

integrante do nosso progresso. O operario deve obediencia ao seu patrão, deve

cumprir os seus deveres, desempenhar na medida das suas forças o emprego que lhe

foi confiado; mas essa obediencia deve ser altiva porque o operario é um cidadão livre.

Uni-vos operarios e procurai rehaver os seus direitos. Fazei, porem dentro da ordem

(O OPERARIO, 2 ago 1909, p. 1).

Depreende-se da leitura desse jornal a tentativa de conscientização que, como toda

conscientização, é um trabalho árduo. Na verdade, o jornal, antes de reivindicar direitos

trabalhistas, precisava despertar no operário o entendimento de que ele era merecedor de uma

132

vida razoável. Essa mentalidade era ainda fruto de uma cultura de subserviência do pobre

brasileiro. É necessário persuadir o operariado sem, no entanto, entrar em atrito com os patrões.

O Operário, como tantos outros jornais e organizações operárias da época, defendia

com veemência a jornada de trabalho de 8 horas diárias, para que o operário pudesse dispender

de tempo para usufruir de outras atividades. A divisão mais acertada seria oito horas de trabalho,

oito horas de sono e oito horas de descanso, para que pudessem dedicar-se ao cultivo afetivo

do lar e do espírito, afinal, “Obrigado a trabalhar dez, doze, quatorze e mais horas por dia, o

operario quase sempre, não dispõe de tempo de viver a vida familiar no que ella tem de mais

doce e mais reconfortador”(O OPERARIO, 2 ago 1909, p.1).

Não demorou muito para que o jornal passasse a denunciar mais abertamente as

condições vividas pelos operários dentro e fora das fábricas. As denúncias feitas pelo O

Operario passavam a questionar qual seria o preço pago pelo operariado para que esse

progresso se efetivasse. Contrapunham-se, portanto, ao discurso da imprensa oficial de que,

pela industrialização, Sorocaba estava embalada para o progresso.

O jornal denunciava a prática adotada pelo “prepotente” gerente da fábrica Nossa

Senhora da Ponte, Julio Cugnasca, que obrigava os operários a contribuir com a Santa Casa de

Misericórdia, mesmo a contragosto. Mas a prática de benemerência constituía uma

característica da sociedade burguesa. Muitos membros da elite, ao comemorarem datas

significativas, como aniversário de casamento, formaturas, aniversário de morte de um ente da

família, ofereciam jantares para os poucos presos da cadeia ou para os mendigos ou, ainda,

efetuavam doações em dinheiro para as instituições de caridade, como a Santa Casa de

Misericórdia, o Leprosário etc. Para os capitalistas, se o operário podia fazer doações em

dinheiro, configurava-se uma prova cabal de que não ganhavam tão pouco como a imprensa

operária alardeava.

Todos sabem que ha familias inteiras ali, como nas outras fábricas, que trabalham;

ganhando as mulheres e as creanças minguados tostões diariamente. Dàhi o absurdo

dessa generosidade do snr. C. de fazer donativos com o dinheiro alheio, sem

auctorisação dos respectivos donos (O OPERARIO, 26 set 1909, p.1).

Na fábrica Santa Maria, os operários sofriam toda sorte de constrangimentos e

humilhações por parte dos mestres, mesmo em assuntos que não diziam respeito à produção,

como se vê no excerto reproduzido a seguir:

Tendo de realisar-se um espectaculo no novo theatro Stª Maria, o snr. Joaquim de

Camargo obrigou uma tecelã a ficar com um bilhete para o mesmo espectaculo,

alegando que “era preciso ajudar o patrão”. Não podendo fugir a coacção a operaria

133

ficou com o bilhete de entrada mas, immediatamente, rompeu-o a vista do snr. C., que

não podendo conformar-se com esse acto desrespeitoso a sua pessôa, resolveu como

uma vingança baixa, pequenina e que não é propria de homens, furar com um ferro o

panno do tear para apresentar queixa contra a sua victima e dai como auctora do

danno, produzido, ficando ella obrigada ao pagamento do mesmo panno (O

OPERARIO, 21 nov 1909, p. 2).

Reiteradas vezes fora denunciado pelo jornal o tratamento dispensado aos menores nas

fábricas. Além da extenuante jornada de trabalho, já que as crianças cumpriam o mesmo horário

dos adultos, enfrentavam trabalhos perigosos, correndo risco da própria vida, além de sofrerem

agressões físicas e até espancamentos, conforme constata-se na seguinte notícia:

[...] Na semana finda, este menor agredido dentro da fabrica pelo dito mestre, pelo

facto de um outro menor ter-lhe atirado uma canilha de fio, o que sendo visto pelo sr.

Eloy (este antes de reprehendel-o com bons modos) atirou-lhe as mãos à garganta que

o deixou quase asphyxiado, atirando-o depois de encontro a parede, indo mesmo bater

nella (e não poderão desmintir, visto o menor não poder ainda fallar muito claro e ter

a garganta inchada). Não satisfeito ainda com tudo isto o dito mestre suspende-lhe o

serviço por diversos dias (O OPERARIO, 12 dez 1909, p.3).

Outra manifestação importante feita pelo jornal dizia respeito ao trabalho noturno de

crianças, que passou a ser normal em quase todas as fábricas. Denunciava-se que, na Fábrica

Nossa Senhora da Ponte, a justificativa dada ao trabalho noturno é que ele fora implantado

devido à deficiência de máquinas apropriadas ao trabalho de fiação e que, por serem em número

insuficiente para suprir a produção somente no turno diurno, necessitavam funcionar também

no período noturno.

Temos encontrado, pelo amanhecer, de volta do trabalho de toda noite algumas

creanças que tontas de cansaço caminham titubiantes em demanda de suas casas, onde

vão repousar um pouco das longas fadigas de uma noite de insomnia, em que o perigo

de uma fractura é quase inevitavel. Homens robustos, de uma saude de ferro,

anniquilam-se com o tempo num trabalho desta natureza quanto mais creanças que

não tem ainda o seu physico completamente desenvolvido (O OPERARIO, 19 fev

1911, p.2).

As mulheres constituíam outra parte vulnerável do trabalho nas fábricas. A mulher

operária sofria os preconceitos de uma sociedade que se mantinha extremamente machista.

Numa sociedade em que a mulher deveria preservar-se na santidade do lar, numa vida de

cuidados do marido, dos filhos e da própria casa, aquela que se aventurava a sair não era vista

com bons olhos. Mesmo cumprindo jornada de trabalho igual a dos homens e exercendo as

mesmas funções que eles, as mulheres tinham salários inferiores e nenhuma regalia por conta

disso. Além disso, nem todas as mulheres podiam trabalhar nas fábricas: o desejado é que ela

tivesse uma postura irrepreensível, conforme solicitava o anúncio da fábrica Nossa Senhora da

134

Ponte: “Fabrica de Tecidos N. S. da Ponte - Ha nesta fabrica vagas para meninos e moças de

bom comportamento; quem pretender dirija-se ao escriptorio da mesma fabrica” (O 15 DE

NOVEMBRO, 15 nov 1892, p.2).

Na classe operária, todos sofriam com as condições indignas de trabalho, mas as

mulheres sofriam uma dupla exploração. A exploração do trabalho desigual e a exploração

sexual. É importante mencionar que as operárias sofriam abusos sexuais não apenas dos

encarregados, mas dos próprios operários, que nem sempre mantinham o devido respeito, como

se observa na notícia reproduzida a seguir:

Tambem as infelizes companheiras já são maltratadas pelas horas elevadas de trabalho

perdendo sua saúde pelos mízeros tostões, ainda há grandes typos que tudo quer, tudo

póde e manda, tentando sobre o que existe de mais sagrado no bello sexo (O

OPERARIO, 31 out 1909, p.1).

Dentro das fábricas, as mulheres eram espiadas pelos contramestres quando faziam uso

do banheiro e o tempo de permanência no recinto também era controlado.

Esse snr. dizem as reclamantes, não nos póde ver por espaço de cinco minutos

consecutivos nas privadas da fábrica onde sò vamos por necessidade, avança tal qual

uma féra às portas, dando murros ameaçando rombal-as, afim de tirar a pessoa que

estiver dentro. Ora seu Camargo! Essa inersia é digna de pessoa muito baixa!... (O

OPERARIO, 27 fev 1910, p. 3).

Conforme já destacado em outra parte deste trabalho, a figura do contramestre dentro

das fábricas sempre foi abominada pelos operários, particularmente pelas operárias. Escolhido

pelo patrão dentre os próprios operários, estratégia utilizada pelos patrões para instalar a

discórdia e intriga entre os operários, essa figura parecia esquecer-se dos demais após galgar

uma posição mais elevada dentro da fábrica. O oprimido passava a ocupar o lugar de opressor.

Daí ser alvo de constantes críticas por parte dos jornais operários, que recriminavam sua postura

dentro das fábricas. O jornal O Operário, com sua habitual ironia, denunciou o que ocorria na

fábrica Votorantim:

O contramestre geral Germano de Almeida, outro homem honesto, distincto, digno

dos melhores conceitos da elite social. Até aqui só tem seduzido senhoras casadas e

deflorado uma pobre moça quando trabalhou na fábrica de S. Rosalia. [...] Apenas

esse miserável passou a contramestre geral, procedeu como procedem as espias mais

infames que o sol cobre [...] e começou uma delação surda contra todos os operários

afilhados na União (O OPERARIO, 5 jan 1913, p.1).

Há relatos sobre muitos contramestres que se fechavam com operária no quarto (maneira

utilizada para se referir às salas do mestre ou contramestre que ficavam dentro das seções de

135

trabalho), em troca de carícias e, para aquelas que se recusavam a fazê-lo, eram-lhes imputadas

multas com descontos no pagamento já tão minguado ou até mesmo demissão.

Pessoas de nossa intima confiança traz-nos a noticia seguinte: Paulino Evaristo

célebre contra-mestre, da Sta Maria, tinha entre as numerosas victimas de sua má

educação, uma moça filha do Srn. Bento Brandão, a quem de há muito vinha

maltratando com a sua linguagem de homem mal e inimigo dos bons costumes e da

boa educação. Não satisfeito com os excessos que ja havia praticado, planejara e

executara, na convicção da impunidade, em que ficaram crimes anteriores, o nefando

e reprovável acto de espancar uma pobre moça, a quem a fragilidade do sexo impedia

de reagir energicamente de modo a repellir a offensa na proporção da agressão. É

preciso por um paradeiro a esses systema que esta se implantando nas nossas fábricas.

Tomem os nossos gerentes de fábricas as providências necessárias ou a polícia quando

tiver um pouco de folga nos seus grandes e affanosos trabalhos (O OPERARIO, 02

jan. 1910, p. 2).

As denúncias dos mandos e desmandos das fábricas foram aumentando cada vez mais.

O tom cauteloso e prudente inicial da circulação do jornal foi cedendo espaço a denúncias mais

explícitas, com a citação dos nomes dos autores dos delitos. Apesar de falar sobre as condições

vividas pelos operários nas fábricas de maneira mais declarada, dificilmente aparecia o nome

do denunciante. Normalmente, os artigos eram assinados por pseudônimos ou como Um

operário ou Um Revolucionário ou mesmo com iniciais. Alguns assinavam escrevendo seus

nomes de trás para a frente como Acesnof para Fonseca. Desperta-se uma dúvida quanto à

fidedignidade desses escritos, pois poderiam ser os próprios redatores que escreviam, fazendo-

se passar por um outro operário, apesar de eles também serem operários das fábricas.

Talvez esse expediente fosse utilizado no sentido de encorajar os operários a

denunciarem o que era imoral, tendo em vista a tarefa árdua de conscientização dos operários

quanto ao seu poder em alterar aquela situação ou ainda por pairar o medo do enfrentamento

com os patrões. Pelas denúncias feitas de toda ordem, depreende-se que os patrões foram

fortalecendo-se cada vez mais e especializando-se em variadas formas de exploração, muitas

vezes mancomunados com a própria imprensa, que reforçava o papel subserviente do operário.

Era o poder da ideologia das classes dominantes. Mas a organização e consequente

fortalecimento do proletariado não passavam mais despercebidos nem para os patrões, nem para

o governo.

Diante dessa situação crítica vivida pelo operariado, somente a palavra, tanto escrita

quanto falada, não resolveria. Algo mais contundente precisava ser feito, ou seja, a greve. O

conhecimento de que em outras partes os operários, quando optavam pela greve, estavam tendo

conquistas os animava e os embalava a tomar essa atitude.

136

Supõe-se que a opção pela greve não fosse fácil para o operário, pois ele estava

aprisionado ao patrão. Antes de defender as ideias, é preciso defender a sobrevivência. Como

o operário poderia se indispor com o seu patrão se dependia dele para tudo, especialmente nas

fábricas Santa Rosália, Santa Maria e Votorantim, onde o operário e toda sua família moravam

na casa que pertencia ao patrão? Como se indispor, se toda a família trabalhava na fábrica?

Uma situação de dispensa não configurava apenas a perda do emprego, era a perda da casa e da

renda de todos os membros da família. Por outro lado, seria a única alternativa de mudança

possível.

Entretanto, assegura Thompson (2012, p. 13), a tecelagem é vista tanto como agente de

uma revolução industrial quanto também social, produzindo não apenas maior quantidade de

mercadorias, mas o próprio “Movimento Trabalhista”.

2.2.2 A presença da mulher nas colunas do jornal O Operário

A história da mulher na sociedade tem sido contada por homens e é preciso que seja

escrita por elas. No final do século XIX, o mundo do trabalho apresenta uma nova condição

feminina. Com o trabalho na fábrica, a mulher deixou o privado e passou a ocupar um espaço

público ocupado pelo masculino. O chamamento das fábricas obrigou as mulheres a deixarem

os afazeres domésticos e a se entregarem às longas jornadas de trabalho. Passaram, então, a

compor uma dupla jornada: nas fábricas, principalmente nas têxteis, que preferiam a mão de

obra feminina, e no lar. A mulher, fragilizada tanto em termos econômicos como sociais,

ingressou no trabalho fora de casa movida pelas vissicitudes da vida, na tentativa de mitigar a

miséria em que vivia. Dadas essas condições, as mulheres se submetiam mais facilmente à

dominação, ao controle e à constante vigilância masculina. “Onde a disciplina era mais urgente,

descobriu-se que era mais conveniente empregar as dóceis (e mais baratas) mulheres”

(HOBSBAWM, 1977, p.18). Apesar da aparente docilidade, as mulheres participaram da luta

por melhores condições de trabalho, participando ativamente das mobilizações. Deve-se levar

em conta que, principalmente nas fábricas têxteis, o número de mulheres trabalhadoras sempre

foi superior ao de homens empregados.

Estabelece-se então uma relação pedagógica, paternalista, de subordinação da mulher

frente ao homem, exatamente como no interior do espaço doméstico. O pai, o marido,

o líder devem ser obedecidos e respeitados pelas mulheres, incapazes de assumirem a

137

direção de suas vidas individuais ou enquanto grupo social oprimido (RAGO, 1985,

p. 99).

A presença da mulher em espaços públicos, exercendo atividades remuneradas e que

normalmente eram ocupadas por homens, passa a ser aceita pela sociedade por conta das

necessidades econômicas. Porém, para a mulher burguesa a participação dar-se-ia apenas no

lar. Esse pensamento fica patente numa notícia do jornal Diário de Sorocaba, quando este

informa sobre uma estudante da Faculdade de Medicina de Bruxelas, que acabava de ser

nomeada para trabalhar num hospital da capital belga. Sobre esse fato, posicionava-se o jornal:

Não somos apologistas dos pretendidos direitos da mulher, isto é, da participação das

senhoras em todos os trabalhos profissionais do homem, em concurrencia com este, e

com prejuízo dos modestos e importantes trabalhos de donas-de-casa e primeira

educadora – a missão ordinaria e elevadíssima das mulheres. [...] Em summa, só

excepcionalmente deverá a mulher, a meiga companheira do homem sacrificar os seus

deveres domésticos, de amor, de concordia de virtude e de bem, em prol do estudo e

de trabalhos artísticos e literários, que a tornem profissional, isto é, emula do homem,

em vez de sua melhor metade (DIÁRIO DE SOROCABA, 3 out 1890, p.2).

Diante da situação vivida pela mulher operária, o jornal O Operário não se restringia

apenas a fazer a sua defesa em virtude das agruras vividas por ela. Numa atitude bastante

progressista, ofertava suas colunas para que mulheres operárias pudessem expressar o seu

pensamento.

Entretanto, também com relação à mulher, o jornal apresentava contradições quanto ao

tratamento à mulher. Ao mesmo tempo que valorizava e lutava por melhores condições de

trabalho para a mulher, também reafirmava a imagem da mulher enquanto sexo frágil, bastante

presente na sociedade de então. Por diversas vezes o jornal publicou as suas representações da

mulher a exemplo da que segue:

A mulher comparada aos bons petiscos

A morena – vatapá. A loura – pão de lot. A negra – iça torrado. A magra – bacalhau

assado. A gorda – perú recheiado. A regular – galinha ensopada. A bonita –

moqueca á bahiana. A feia – carne cosida. A sympatica – canja quente. A casada –

ovos estalados. A solteira – manteiga derretida. A viúva – feijoada completa. A

comprometida – salada de pepino. A rica – naco de presunto. A pobre – carne seca.

A remediada – cúscùs de milho. A carola – pão amanhecido. A enjoada – peixe de

escabeche. A hereje – salada de pimentão. A sogra – ostra crúa. A madrasta –

pamonha azeda (O OPERARIO, 1 jan 1911, p.2).

Não há nenhuma referência sobre a razão dessa publicação, apenas no final do texto

aparece a inscrição “ext.” para indicar que havia sido, provavelmente, extraída de algum outro

jornal, com a intenção de divertir. Numa leitura além do entretenimento, percebe-se que o texto

138

está eivado de imagens preconceituosas sobre a mulher. Seja pela aparência física, pelo estado

civil, ou pela classe social e até por suas crenças. Determinados perfis são valorizados, outros

ridicularizados. Puro deboche. A associação feita entre a mulher e os quitutes não deixa margem

a dúvidas: a mulher é uma iguaria a ser saboreada. Mulher-objeto, mulher-mercadoria. Um ser

desprovido de cérebro, pois nenhuma menção às suas faculdades mentais era feita. Imagens que

refletem, de certa forma, o pensar de pelo menos parte da sociedade sorocabana sobre a mulher

daquela época (BARREIRA, 2004).

Os artigos publicados foram escritos por mulheres operárias, jornalistas e outras que

poderiam ser consideradas feministas, apesar do pouco conhecimento do termo na época, que

discorriam sobre diversos temas concernentes à vida da mulher, mas nada que lembrasse as

futilidades e fragilidades do belo sexo. Pelo contrário, as escritas femininas tocavam em

questões delicadas como: divórcio, sexualidade, condições de trabalho, instrução delas próprias

e dos filhos, religião, anarquismo etc. Dentre as mulheres que escreveram no jornal O Operario

estão: Ernestina Lesina, Nelly Roussel, Joana Dubois, Leonina, A. Zulmira, Fausta e Uma

Operaria. Não encontramos meios de saber se os nomes dessas mulheres eram verdadeiros ou

fictícios. Vários artigos vão assinados apenas por “Uma Operária”.

Aluísio de Almeida afirma que pode ser considerada a primeira jornalista de Sorocaba

a senhora Andresa Eufrosina de Barros que, em 1880, apareceu escrevendo no jornal Diário de

Sorocaba. Ela sabia francês e teve educação aprimorada (DIÁRIO DE SOROCABA, 29 mar

1966).

A escrita feminina no jornal O Operario foi inaugurada pela italiana Ernestina Lesina,

uma das poucas mulheres que não ficou circunscrita ao anonimato. Foi militante anarquista na

Itália e deportada. Aqui no Brasil, fundou a revista de caráter doutrinário Anima e Vita, em

1905. Sempre lutou pela mulher proletária e buscava arregimentá-la para a militância. Sobre

essa militante incansável, Zuleika Alvin, ao pesquisar exemplares da revista Anima e Vita,

afirma:

As tentativas de chamar a mulher à militância eram feitas, podemos dizer de forma

totalmente indireta; isto é, por artigos que falam da participação feminina em

movimentos europeus, principalmente no movimento italiano. Contudo esse esforço

já era imenso num país como o nosso, onde o elemento feminino vivia quase que

recluso à casa e à Igreja. Fazer uma revista com artigos anti-clericais, com referências

ao papel que a mulher livre deveria desempenhar dentro da família e na educação dos

filhos, bem como relatar atividades de mulheres já engajadas em longos anos de luta

pela liberdade na Europa, foi um mérito digno de todo o nosso respeito (ALVIN, [s/d],

p. 16).

139

Ernestina Lesina certamente fora reconhecida no seu tempo, conforme é possível

depreender do relato de Elvira Boni de Lacerda, ao ser indagada sobre o nome de suas irmãs:

Anunciata, Carolina e Ernestina. Ernestina tem esse nome porque na época papai já

andava com a propaganda do socialismo, de anarquismo. Conheceu uns repórteres de

São Paulo, Antonio Piccarollo e Ernestina Lesina e mamãe em homenagem a essa

moça, deu o nome de Ernestina à minha irmã (GOMES, 1988, p. 21).

A presença de Ernestina Lesina no jornal O Operario foi através do artigo A caminho

do fim?, publicado em 12 de dezembro de 1909. Discorria sobre a questão crucial para o

operariado oprimido, a sua emancipação:

Para nós, a palavra “emancipação” tem um sentido diverso muito mais vasto e bem

mais moral que o significado estreito e immoral que de má fé os nossos adversários

lhe querem dar. Para nós – emancipação significa: - Reivindicação dos direitos

abusivamente sonegados e contestados a maioria das criaturas humanas, através de

todo um passado não glorioso, por parte da classe que sempre viveu do labor alheio,

do sacrifício estranho, feito na oficina, no campo de trabalho ou no campo de batalha

(O OPERARIO, 12 dez 1909, p. 3).

Na edição seguinte, esse jornal publicou o artigo Amor fecundo e amor estéril, da ativista

francesa Nelly Roussel (1878- 1922), em que a autora questionava as duas únicas possibilidades

que a mulher tinha na vida amorosa: a castidade ou a fecundidade sem limites. Exigia a

independência das mulheres fundada em novas relações entre os sexos. A autora proferiu

palestras pela França, “disseminando as ideias do neomalthusianismo, proposta que

preconizava a utilização de meios anticontraceptivos, exaltando a maternidade consciente dos

corpos e menos ridicularização do sexismo”. (VALENTE, 2014, p.90)

Em janeiro de 1910, foi publicado um artigo em duas partes intitulado Greve dos

ventres, assinado por Joana Dubois. A autora defendia a ideia de que, entre os meios de

desenvolver as “forças fisiológicas e intelectuais”, visando a emancipação, estava o aumento

de salário e a redução das horas de trabalho manual e também a “greve dos ventres”, entendida

como “tanto ter poucos filhos como não ter nenhum. Isso porque os excessivos encargos

familiares impedem que muitos explorados se façam revolucionários”. A autora escreveu as

seguintes palavras:

Não me limito a reivindicar a livre maternidade; considero a fecundidade natural como

um dos perigos sociais, e não à maneira de Malthus como o perigo social. Em qualquer

epoca, quer se trate da escravatura passada e presente ou da liberdade futura, quer se

trate das relações dos homens entre si e com as outras forças da natureza, as condições

da procriação e as condições de trabalho parecem-me ser da mesma importancia (O

OPERARIO, 6 fev 1910, p. 3).

140

Contrariando a postura anticlerical do jornal, adotada por muito tempo, desde a edição 21

até a 90, Leonina, estranhamente, publicou vários artigos intitulados Para nossos filhos por uma

amiga da infância. Aos educadores, no qual, direcionando-se às mães e aos educadores,

enfatizava a tremenda responsabilidade que pesava sobre os ombros deles ao educar santamente a

infância, a adolescência e a juventude. Seus escritos, publicados em forma de diário ao longo de

aproximadamente 100 edições do jornal O operário, foram divididos nessas partes. O teor desses

textos era sempre no sentido de educar sobre os princípios religiosos católicos.

Depois do pensamento e da palavra de Deus, nada é mais bello e mais nobre que a

missão do verdadeiro educador da infância. [...] Como a principal mira da educação é

inspirar sentimentos virtuosos nas creanças, penso fazer um pequeno beneficio às

mães e aos educadores escrevendo este modesto diário onde encontrarão um bom

pensamento, um conto edificante ou uma pratica piedosa, os quaes lidos e

comentados, podem resultar salutares fructos ao juvenil auditório (O OPERARIO, 30

jan 1910, p. 3).

Entre as escritoras do jornal O Operario, apareceu, em uma única edição do jornal, o

nome de A. Zulmira, no artigo O que é a mulher?, que se desmanchava em elogios à natureza

doce das mulheres e do papel exercido por elas na sociedade. No entanto, a compreensão desse

artigo ficou comprometida devido ao desgaste físico do papel, promovido pela ação do tempo.

Não há muita nitidez em seu título, mas parece ser um artigo dedicado à Zulmira, assinado por

Pedro Sales de Oliveira Mesquita, um dos redatores do jornal. O teor do artigo aproxima-se

muito mais da ideia masculina da época sobre o papel da mulher do que dos assuntos até então

apresentados pelas escritoras.

O amor de mãe, a dedicação de uma esposa, a ternura de uma irmã tudo me faz e

enleva diante de um anjo que mais vivendo do coração do que pela inteligência; fazem

consistir toda a sua felicidade na terra procurando a dos outros. Eis o meu pensar sobre

a mulher (O OPERARIO, 10 jul 1910, p.2).

Em 31 de dezembro de 1911, endereçado às pobres mães operárias, foi publicado um

chamamento assinado por “Uma operaria”, que dedicava às pobres mães operárias uma

“mesquinha e obscura collaboração”. A autora expunha a difícil situação das mães operárias

obrigadas a deixar seus filhos sob os cuidados de filhos maiores ou de estranhos para trabalhar

nas fábricas “a fim de poderdes ajudar os vossos seus esposos na dura luta quotidiana”.

Denunciava, ainda, a diferença da vida da mulher rica, que nem sabia o que fazer com o seu

dinheiro, e a da mulher operária, que vivia uma vida de martírios. Para a autora, era imperioso,

para mudar esse quadro de injustiças, que os filhos dos operários tivessem acesso à instrução.

141

Em quanto as mães ricas viram-se descuidosamente no seu leito macio, pensando,

muitas vezes, no que melhor empregar o seu ouro, nós, os operários, lutamos desde

cedo até á noite com o trabalho; enquanto os seus filhos freqüentam collegios, boas

escollas, os nossos pobres vêem-se obrigados passar o dia todo no fundo dessas

fábricas sem tempo quase para aprenderem alguma couza a noite (O OPERARIO, 31

dez 1911, p.1).

Sem entender o porquê de tanto orgulho e indiferença por parte dos ricos, revoltava-se

indagando se as pobres mães operárias não teriam o mesmo direito de desfrutar uma vida

melhor. Finalizava apontando a única saída possível para essa situação de injustiça.

Ensinae, pois, mães, os vossos filhinhos, mandae-os para escola, afastae-os desses

terriveis sangue-sugas que se chamam industriaes, para que mais tarde possais ver em

nossos filhos um cidadão activo, instruído. Vamos minhas bôas Amigas, deixeis de

muita crença, que tudo que nos contam não é mais do que illusão. Unamo-nos

operarias, instruímos nossos filhos, para que elles mais tarde sejam homens, cidadões

livres, fortes, defensores de nossa classe. Uma operaria. (IDEM 31 dez. 1911, p. 1).

Outra voz feminina eloquente presente nas páginas do O Operario foi Fausta. Num

pequeno texto, Fausta indagava: O que é a vida? Para a autora, a vida vivida pelos operários

não podia ser chamada de vida. Trabalhar como besta de carga, sob vigilância, ganhando uma

miséria, produzindo para os ricos usufruírem o fruto do seu trabalho, isso era indigno.

Não é vida para um ser racional levar uma existência cheia de tormentos [...] e

violências, não é tampouco vida, trabalhar como besta de carga noite e dia sob o olhar

severo e grave de um verdugo; como não é também vida alimentar-se mal e cahir na

mais esquálida miséria, [...] como também não pode ser vida ter por casa uma infecta

pocilga sem luz e sem ar onde se engenha todo o mal e corrupção; e nunca poderá ser

vida cobrir o corpo de andrajos e caminhar descalço enquanto os ricos sem produzir

cousa alguma ostentam um luxo sem limites (O OPERARIO, 10 maio 1912, p.2).

A voz feminina de maior veemência verbal, por ser contundente e incisiva no jornal, foi

de Elvira. Sobre a vida dessa mulher, é sabido que não ela não era sorocabana, pois uma

referência nesse sentido apareceu num artigo onde ela afirmou “A pesar de pouco tempo residir

nesta cidade...” (O OPERARIO, 29 set 1912, p. 2).

Sua temática girava em torno da condição feminina tão subjugada naquele tempo. A

autora transitava por temas variados, por meio dos quais demonstrava conhecimento de

diferentes autores, ideologias, ciência e não se isentava de comentar sobre os assuntos locais, o

que geralmente fazia de maneira elogiosa ao trabalho do prefeito municipal, o médico Dr.

Alvaro Soares. Defendia com veemência a emancipação da mulher, mostrava-se anticlerical e

dizia-se revolucionária.

Escreveu, em 30 de junho de 1912, sobre A nossa futura família, onde predizia que, na

futura sociedade comunista, a manutenção dos filhos e dos velhos ficaria a cargo da sociedade

142

e as pessoas, marido e mulher, uniriam-se apenas pelo amor e tratariam os filhos que viessem

com carinho e amor e não com os costumeiros espancamentos.

Em outro artigo intitulado A prefeitura e os spleens pelo progresso, Elvira teceu elogios

à administração do prefeito municipal, reconhecendo que ele tinha como preocupação o bem-

estar da população, pois a cidade, a cada dia, recebia melhoramentos na área da higiene, o que

certamente eliminaria o risco de novas epidemias.

A pesar de pouco tempo residir nesta cidade [...] porem observado com atenção o

desenvolvimento administrativo do prefeito, e creio que não tenha passado

desapercebido ao mais ignorante dos habitantes, o papel que esse distincto medico vae

desempenhando em beneficio desta população. E isto graças a sua exacta

compreensão do elevado cargo que ocupa; e de um certo tempo para cá tem

conquistado pela sua acção pratica, uma larga e inabalável influencia e sympathia até

de nós revolucionários (O OPERARIO, 29 set 1912, p.2).

No artigo denominado Com a Câmara Municipal, de 13 de outubro de 1912, Elvira

alerta para a necessária construção de um mercado municipal que pudesse atender

principalmente à classe trabalhadora, mas que houvesse uma eficiente fiscalização proibindo

qualquer negociante de comprar gêneros de primeira necessidade e vendê-los para fora do

município, sem tê-los exposto aos munícipes antes.

Elvira escreveu sobre o ensino superior, sobre as leis do governo, questionou a atuação

do governo, que somente defendia os interesses da burguesia, desprezando o operário que tudo

produzia.

Num de seus escritos mais incisivos, ela se mostrou agressiva, confrontando instituição

poderosa como a igreja católica. Como anarquista, Elvira defendia o amor livre, entendia que

as pessoas não precisavam fazer juramentos perante a igreja e nem registrar o compromisso

perante a lei. O importante seria um escolher o outro livremente.

Anda por toda parte a carolada que cheira a sebo de Sacristia, protestando contra a lei

do divórcio que os herejes pretendem adoptar como medida para sanar o mal que lhe

affecta o casamento interesseiro. Parece incrível que essa jesuitada de casaca e outros

tantos de batina se preocupem tanto com a resolução que tomaram meia dúzia de

homens de repelir os preconceitos da infernal Madre-Igreja. Não contentes essa corja

de destruírem o amor livre e levantarem códigos para o affecto e legislações para o

poema do beijo, criando leis para a união passional de duas almas complementares

que se encontraram e se amaram nos embates da luta (O OPERARIO, 27 out 1912,

p.1).

Em 12 de janeiro de 1913, num artigo denominado A burgueza e a Anarchista, fez uma

analogia entre a educação dos filhos dada pela mãe burguesa e pela mãe anarquista. A mulher

burguesa vive uma vida frívola à custa da exploração do trabalho alheio e cria os filhos da

143

mesma maneira como foi criada, formando “seres inúteis a sociedade, ociosos, hipócritas,

perversos, perseguidores como os nossos órgãos de justiça”. Para a autora, a verdadeira mãe, a

mãe ideal, prepara os seus filhos para o trabalho, a primeira condição da vida, prepara-os para

o sacrifício e desperta-lhes a energia e a vontade.

Uma mãe anarchica não escolherá para sua filha um marido usurpador e perverso, mas

um homem amante do trabalho, rico de bondade e energia e desprezaria tudo quanto

for contra esses principios (...) A verdadeira mãe! Oh, sublime realidade das gerações

futuras, este tipo de mãe anarchica é o sonho de todos os corações bons, a luz

inacessivel da humanidade nova fundada sobre as bases do trabalho e do amor (O

OPERARIO, 12 jan 1913, p.1).

Ela finaliza o artigo vaticinando que nas mãos da mulher anárquica estaria a salvação

do mundo.

Marcélia Picanço Valente, em sua dissertação de mestrado intitulada Imprensa e

educação: registro da escrita feminina no jornal O Operario (1909-1913) afirma, com certeza,

que Elvira era a anarquista Elvira Boni de Lacerda e que definiu sua identidade a partir de um

depoimento dado por ela à Angela de Castro Gomes, entre os meses de agosto e setembro de

1983, na residência da depoente no Rio de Janeiro. Esse depoimento e os de outros anarquistas

estão presentes no livro Velhos Militantes, da referida autora.

Segundo Angela de Castro Gomes (1988), Elvira Boni era filha de imigrantes italianos,

nascida em 1899, na cidade de Espírito Santo do Pinhal, interior de São Paulo. Seu pai era

serralheiro e dirigiu-se àquela cidade para trabalhar. Elvira cresceu numa família de anarquistas,

tornando-se militante sindical. Foi, também, atriz de um grupo de teatro amador anarquista e

uma das fundadoras do Sindicato das costureiras, no Rio de Janeiro onde teve intensa atuação

até se casar com Olgier Lacerda, um dos primeiros militantes comunistas cariocas. Dona de

casa e mãe, permaneceu toda sua vida interessada nos movimentos de política nacional, mas

com uma militância reduzida.

No jornal O Operário, a primeira publicação assinada por Elvira ocorreu em junho de

1912, então, se de fato Elvira Boni de Lacerda escreveu nesse jornal, o fez aos 12 anos de idade.

Sobre seus estudos, em seu depoimento, afirmou que não tinha nem o segundo ano completo:

[...] o único estudo que tive – foi muito pouco – foi quando papai me colocou no

Grupo Escolar Senador Vegueiro. Era um edifício muito grande, muito bom, com

quatro portões e um gradil de ferro em volta do jardim. Todos feitos por papai. Eu ia

completar seis anos quando ele me matriculou. (BONI, 1988 apud GOMES, 1988, p.

21)

A autora Rosa Fátima de Souza (1998) menciona, em seu trabalho, esse Grupo escolar,

porém, o nome que apresenta é diferente do citado por Elvira Boni:

144

[...] edifício do Grupo Escolar “Dr. Almeida Vergueiro” ocupava uma considerável

área no Largo das Brotas na cidade de Espírito Santo do Pinhal. Na frente do edifício,

belo e majestoso, erguia-se uma longa grade de ferro na qual existiam dois portões,

um para a secção masculina e outra para a secção feminina (SOUZA, 1998, p.127).

Em Sorocaba, o Grupo Escolar Senador Vergueiro foi criado somente em 1919, pouco

provável que ela tenha estudado nele. Prosseguindo, Elvira Boni conta que, quando iniciou sua

militância, encontrava dificuldades em expor suas ideias e explicava que “para uma menina que

não tinha ido à escola era difícil traduzir as coisas. Eu sabia o que queria, mas não sabia expor”.

Em seu depoimento, Elvira Boni deixa claro que, apesar de sua militância, sempre foi

muito obediente, “se não tivesse sido tão obediente talvez tivesse sido uma boa atriz, uma boa

cantora, que era o que eu queria ser” e seu pai não permitiu. Assim, dificilmente teria escrito

textos tão ousados, provocativos e contrastantes para a época.

Ao ser indagada por Angela Castro se a União das Costureiras utilizava a imprensa

operária para divulgação de algo, respondeu: “Não. Quando divulgávamos alguma coisa,

publicávamos na grande imprensa”.

Em nenhuma parte de seu longo depoimento mencionou a cidade de Sorocaba ou

afirmou ter atuado como colaboradora do jornal O Operário, ou qualquer outro, o que nos

permite duvidar de que Elvira Boni Lacerda seja a Elvira das páginas do O Operario.

2.2.3 A ideologia do jornal O operário

“É a liberdade que educa para a liberdade e para a solidariedade”.

(Errico Malatesta)

A propugnação de um ideal sempre esbarra com as condições necessárias de existência.

Dessa forma, todo o trabalho ideológico de sustentação e de conscientização é um embate

constante e árduo. Por isso, configura-se uma tarefa difícil estabelecer plenamente o

posicionamento ideológico do jornal O Operario, devido a determinados fatores.

Na visão de Rogério Lopes Pinheiro de Carvalho (2007), organizador da edição fac-

similar do O Operario, é possível, inclusive, classificar sua linha editorial como sendo uma

espécie de socialismo espírita. Como suas colunas eram abertas a todos os oprimidos,

significava que estavam presentes em suas páginas diferentes tendências, pois entre os

145

oprimidos estariam os anarco-sindicalistas, os socialistas utópicos, os social-democratas, os

marxistas (ainda que o Partido Comunista não houvesse sido fundado no Brasil), entre outros.

Considerando a época de sua circulação, período de penetração das ideias anarquistas

trazidas pelos imigrantes estrangeiros, que tinham a pretensão de semear o ideal anarquista em

outras terras, principalmente pelo fato de muitos deles terem sido expulsos de seus países de

origem por conta desse ideário, pode-se dizer que o jornal O Operário seguia o direcionamento

de outros jornais operários, quase sempre de tendência anarquista ou anarco-sindicalista.

Mas a semeadura de tais ideais no Brasil vislumbrava dificuldades espetaculares que

obstavam o rápido desenvolvimento do movimento operário, de toda ordem. Eram elas:

geográficas, físicas, etnológicas e econômicas. As impressões sobre as dificuldades de

penetração do ideário anarquista no Brasil de Alceste de Ambris (1906), figura proeminente do

movimento socialista italiano, que viveu por muito tempo no Brasil, e esteve em Sorocaba por

várias vezes fazendo palestras e conferências socialistas, corroboram os aspectos dificultadores

já apontados no presente trabalho:

[...] não se deve esquecer que a classe trabalhadora no Brasil, é constituída de

elementos díspares e variados em raça, temperamento, cultura e hábitos o que torna

mais difícil o entendimento e a organização. [...] muitos operários e camponeses se

consideram nesta terra como pássaros de passagem e – obcecados pela ânsia de voltar

à pátria – pensam e vivem individualisticamente, persuadidos que este seja o melhor

meio de “fazer a América” (AMBRIS, 1906, p 845).

Para Alceste de Ambris (1906), outra interveniente para a difusão do movimento

operário residia no fato de que a maior parte do proletariado – a agrícola – mantinha-se fora do

movimento devido às grandes distâncias que separavam uma fazenda da outra, sendo

praticamente impenetrável qualquer propaganda que pudesse fazer eco no campo fechado das

fazendas. Também os trabalhadores da terra que não se encontram na fazenda estavam

distribuídos nos núcleos de colonos, em condições econômicas que não os levava a sentir a

necessidade de organização. Eram eles pequenos proprietários - ou tinham a esperança e a

possibilidade de vir a sê-lo - e isso, certamente, não contribuiu para desenvolver neles aquele

sentimento e aquela solidariedade de classe, que são os fatores psicológicos indispensáveis da

organização operária.

A história nos mostra que o homem do campo brasileiro não se manteve apático sempre.

Num arrolamento de greves no campo, Michael Hall e Paulo Sérgio Pinheiro (1990)

identificaram diversos movimentos a partir da década de 1870. Citam um movimento

expressivo ocorrido em 1913, na região de Ribeirão Preto (São Paulo). Iniciado por

146

aproximadamente 70 famílias, acabou por envolver entre 10.000 a 15.000 trabalhadores rurais

que interromperam suas atividades reivindicando melhores salários.

As 70 famílias que foram o estopim da greve em 12 fazendas, seguiram fielmente o

espírito do movimento que ao cabo de oito dias envolveu toda a região oeste de São

Paulo. [...] Reuniram-se grupos de quatro ou cinco famílias agrupadas pela amizade

que já as ligava, sem ter um líder para cada grupo, mas apenas uma família

encarregada de transmitir o pensamento do comitê secreto que resolvia todas as

questões pendentes... Os motivos foram muitos, principalmente a miséria, que ajudou

a abrir a cabeça doentia da massa ignorante para a compreensão das razões de novas

condições de vida, de verdadeiros escravos. [...] As pessoas das fazendas vizinhas,

que por ordem de seus respectivos patrões iam oferecer-se para substituir os colonos

de Iracema, foram sensibilizados para o mal que estavam fazendo. Quando voltaram

uma segunda vez, foi-lhes pedido que permanecessem em suas casas para evitar

derramamento de sangue entre irmãos. Na terceira vez, os poucos que se apresentaram

foi-lhes mostrado que estavam agindo como traidores, e finalmente, não só foram

convencidos como também obtiveram seu apoio. Assim vencemos a causa que neste

momento já foi decidida em favor daquelas 70 familias. (LA BATTAGLIA, 18 maio

1912, p.4).

A maneira pela qual transcorreu essa greve, quanto à sua organização e às causas que

levaram a ela, sintetiza o pensamento de Eric Hobsbawm (2000) de que o hábito da

solidariedade industrial deve ser aprendido, como o de trabalhar uma semana regular, bem

como o senso comum de exigir concessões quando as condições são favoráveis, não quando a

fome sugere.

Há uma tendência forte entre os estudiosos do movimento operário em atribuir a apatia

ou a falta de consciência política dos operários industriais às suas origens rurais. Thompson

(1978, p.145) esclarece que a classe operária é definida pelo modo como as pessoas vivem a

sua própria história, que a classe e a consciência de classe emergem da luta de classes

propriamente dita, e que a experiência de uma classe não é mais verdadeira que a de outra.

Um dos principais ideólogos do Anarquismo foi o italiano Errico Malatesta presente

diversas vezes nas páginas do jornal O Operario. Ao tratar do idealismo e materialismo, ele

enfatiza que as necessidades materiais são um imperativo para a emancipação, já que são a base

necessária de toda a vida superior, moral e intelectual e sentencia: “Primeiro comer e depois

filosofar” (MALATESTA, 2007, p. 51). Ainda sobre esse mesmo tema, Malatesta revela que,

em toda a sua vida de militante libertário, frequentando organizações operárias, grupos

revolucionários e sociedades educativas, sempre verificou que os elementos mais ativos,

dedicados, dispostos até a contribuir com recursos de seus próprios ganhos eram

[...] os de melhor situação – e que sentiam impelidos à luta não tanto pelas próprias

necessidades, mas pelo desejo de cooperar em prol de uma boa obra e sentirem-se

nobilitados por um ideal. Os elementos de situação mais miserável, aqueles que, em

virtude de suas penosas condições de vida deveriam ser os mais direta e

147

imediatamente interessados na mudança das coisas, conservam-se ausentes, ou

participam apenas quando a isso são levados por um interesse imediato e, assim

mesmo, como parte passiva, beneficiando-se do esforço dos demais (MALATESTA,

2007, p.51).

A constatação de Errico Malatesta, um idealista, permite uma reflexão sob vários

aspectos. Quanto ao idealista sempre ser aquele que não vive uma situação precária, talvez se

encerra a questão de que “os idealistas são pessoas que comem todos os dias e tem sempre a

natural certeza de poderem comer no dia seguinte” (MALATESTA, 2007, p.51).

Para aquele que deveria ser o maior interessado, por conta da situação miserável em

que vive, falta-lhe o ânimo, encerra um fenômeno quase natural para aquele que está

plenamente envolvido na situação, faltam-lhe forças e a certeza de que algo possa mudar, mas

sobra-lhe a conformação, resignação e a desilusão para a mudança. Reverter esse quadro de

desânimo, permitindo que a pessoa vislumbre um caminho melhor, torna muito mais dificil a

atuação dos idealistas. O idealismo exige a coerência, a renúncia, a disposição para o embate e

para o diálogo, exige, acima de tudo, sacrifícios. Por isso é tão dificil assumi-lo.

Para entender o posicionamento do jornal O Operário e suas possíveis contradições ou

até mesmo ambiguidades, faz-se necessário elucidar algumas concepções ideológicas, tais

como o anarquismo, o anarcossindicalismo, o socialismo e o comunismo.

Edgar Leuenroth (2007), um dos militantes mais notórios do movimento anarquista

brasileiro, define o socialismo como o sistema de organização da sociedade que tem por base a

substituição do regime capitalista – fundamentado no domínio da propriedade privada e do

salariato, instrumento de exploração do homem pelo homem – por um regime cujo princípio

fundamental é socializar, isto é, pôr em comum os bens sociais em função dos interesses da

coletividade, como produtos que são dos esforços de todas as gerações.

Apesar de anarquistas e marxistas pretenderem lutar contra a sociedade capitalista

causadora da desordem, que tanta infelicidade traz para a humanidade, esses dois grupos

ideológicos não coadunavam num mesmo bloco. Uma das razões para essa cisão ocorreu em

1868, entre os componentes da Associação Internacional dos Trabalhadores (a chamada

Primeira Internacional) e da qual resultou a separação dos socialistas libertários (anarquistas) e

dos socialistas autoritários (marxistas). Desde então, anarquistas e socialistas, colocados em

campos de luta social, estão em permanente oposição.

O chefe supremo era Marx e, na teoria, é sempre ele. Em toda literatura socialista e

em toda propaganda oral, recorre-se a Marx e ao Manifesto Comunista de 1848 como

a um Profeta e a um Evangelho; ao invés de sustentar suas próprias razões com

argumentos racionais, discute-se para saber se esta ou aquela afirmação, ou esta ou

148

aquela tática está de acordo com os textos sagrados. É o que fazem os católicos, é o

que fazem os mazzinianos, é o que fazem os juristas, é o que fazem todos os religiosos

e todos os autoritários [...] Marx foi, com sua mania autoritária e centralizadora, uma

das causas da dissolução da Primeira Internacional, para cuja fundação ele contribuiu

extremamente (MALATESTA, 1989, p.91).

Ainda que pudessem ser confundidos como inimigos, esclarecia Malatesta que o que

diferia anarquistas de socialistas era “quanto ao meio a empregar para destruir e quanto ao modo

de reconstruir”:

Anarquistas e socialistas, somos igualmente inimigos da sociedade burguesa.

Queremos, uns e outros, abolir o capitalismo, a exploração do homem pelo homem;

queremos que as riquezas naturais e o trabalho humano sirvam para satisfazer as

necessidades de todos e não mais para fornecer lucro àqueles que usurparam os meios

de produção. Os socialistas e os anarquistas querem que os homens deixem de viver

do sofrimento de outrem, que eles deixem de ser os lobos que entredevoram e que o

fato de viver em sociedade sirva para garantir a todos o maior bem estar, o máximo

de desenvolvimento material, moral e intelectual (MALATESTA, 1989, p. 31).

Em linhas gerais, os socialistas tinham por objetivo organizar entidades que dessem

suporte ou mesmo que servissem de objeto de manobra para a criação de um partido socialista

forte (ARAUJO NETO, 2005). O anarquismo socialista defende a liberdade para todos, daí a

denominação libertários. Tratava-se não de uma liberdade teórica e jurídica, senão de uma

liberdade de fato, que consiste na ausência de toda coerção violenta do homem sobre o homem

e na faculdade de cada um dispor de si mesmo e fazer o que quiser, tendo como limite a

liberdade dos outros (TRAGTENBERG, 1989).

Em seus desdobramentos ideológicos, dentro do anarquismo, surge o

anarcossindicalismo, que pregava uma luta estritamente econômica entre trabalho-capital que

deveria ser organizada pelo sindicato. O sindicato deve ser autônomo ante qualquer partido ou

tendência para cumprir seu papel de resistência dos trabalhadores ante o capital e o anarquismo

deve ter um movimento autônomo ante qualquer organização operária existente, para cumprir

seu papel de incentivador, organizador da revolta social, dos trabalhadores, setores médios,

homens e mulheres, trabalhadores urbanos ou rurais (Idem, 1989).

Em resumo o que queriam os anarquistas era:

1º. Abolição da propriedade (capitalista ou estatal) da terra, das matérias-primas e dos

instrumentos de trabalho, para que ninguém tenha meios de explorar o trabalho dos

outros.

2º. Abolição do Estado e de qualquer poder que faça leis para impô-las aos outros.

3º. Organização da vida social por iniciativa das associações livres e das livres

federações de produtores e consumidores, criadas e modificadas conforme a vontade

de seus componentes guiados pela ciência e pela experiência e libertos de toda

obrigação que não se origine da necessidade natural, à qual todos de bom grado se

submeterão quando lhes reconheçam o caráter inelutável.

149

4º. A todos serão garantidos os meios de vida, de desenvolvimento, de bem-estar,

particularmente às crianças e a todos os que sejam incapazes de prover à própria

subsistência.

5º. Guerra a todos os preconceitos religiosos e a todas as mentiras, mesmo que se

ocultem sob o manto as ciências. Instrução completa para todos, até aos graus mais

elevados.

6º. Guerra às rivalidades e aos prejuízos patrióticos. Abolição das fronteiras,

confraternização de todos os povos.

7º. Libertação da família de todas as peias, de tal modo que ela resulte da prática do

amor, livre de toda influência estatal ou religiosa e da opressão econômica ou física

(MALATESTA, 2007, p. 27).

Na época em que teve início a circulação do jornal O Operário, o anarquismo socialista

tornara-se uma força expressiva que permeava os movimentos operários, ainda que mesclado

com outras ideologias, como o socialismo. Os redatores do jornal alinhavam-se à corrente do

anarcossindicalismo, porém, pelas vicissitudes da vida, não o propugnavam plenamente. Ora,

como propor o fim da propriedade e do capital se a subsistência dos operários só era possível

pelo salário conseguido pelo trabalho nas fábricas? Como convencer o operário a seguir um

ideal, quando a urgência mais premente era o pão cotidiano?

Entretanto, o ideal anarquista não ficou restrito às discussões teóricas. O Brasil teve

algumas tentativas de implantação de células anarquistas dentro da organização capitalista.

As ideias anarquistas começaram a circular entre os operários encontrando

receptividade no seio do operariado. O jornal O Operario apresenta à classe operária o

pensamento de Errico Malatesta, Élisée Reclus, Piotr Kropotkin e, em menor medida, o

pensamento de Karl Marx.

Sob o título A essência do socialismo, em cada edição o jornal apresentava aos seus

leitores a questão do socialismo, com os tópicos Como não ser socialista? ou A Reforma do

Socialismo. O jornal sintetizava esse pensamento da seguinte forma: “A essência do socialismo

é a equidade das relações, a abolição dos monopólios, a supressão do salariado, a cooperação

entre os eguais, etc. não é tal ou tal organisação da producção e das trocas, por associações, por

communas ou por Estados” (O OPERARIO, 16 jan 1910, p.1).

Nessa mesma seção do jornal foi apresentado o pensamento de Karl Marx, de forma

didática, a fim de favorecer o entendimento por parte dos leitores dos principais conceitos

elaborados por esse pensador. Explicava o jornal que Karl Marx, compenetrado em entender a

importância da organização dos trabalhadores, pois fora testemunha, no país clássico do

capitalismo, da grandeza da luta travada entre o capital e o trabalho, concebera um arrojado

plano científico: a concepção materialista da história.

150

[...] Derivou os factos econômicos (lucros, rendas, interesses, salários) da exploração

da força de trabalho (theoria da mais valia). Julgou que pelo próprio mecanismo da

exploração capitalista, a acumulação de riqueza augmentaria; que o proletariado se

encontraria reunido e muito numeroso: e que um choque final produziria a destruição

do systema (lei d’accumulação capitalista e luta de classes) (O OPERARIO, 31 dez

1911, p.1)

O jornal O Operario, durante toda a sua existência, lutou pela valorização social do

proletariado. Nos primeiros tempos, defendia a união da classe operária, reconhecendo-a como

colaboradora da burguesia, como é possível observar em um de seus primeiros números: “O

operário deve obediência ao seu patrão, deve cumprir os seus deveres, desempenhar, na medida

de suas forças o emprego que lhe foi confiado; mas esta obediência deve ser altiva porque o

operário é um cidadão livre” (O OPERARIO, 2 ago 1909, p.1).

Sem descuidar da união da classe operaria, o jornal mudou o tom de seu discurso no

decorrer de sua existência, declarando abertamente que os causadores das desventuras do

proletariado eram: o clero, a burguesia e o militarismo.

Transitaram e até dialogaram entre si pelas páginas do jornal O Operario o espiritismo,

a maçonaria, o socialismo, o anarquismo e outros movimentos e ideologias.

2.2.3.1 Ideias anarquistas em Sorocaba: os libertários

No reino da fábula todos os jardins são maravilhosos, todos os palácios encantados

são guardados por dragões ferozes. O dragão que está à porta do palácio da

anarquia nada tem de terrível: é apenas uma palavra. (Élisée Reclus)

Sorocaba, por sua realidade industrial, reunia condições para a disseminação das ideias

anarquistas, o que acabou por atrair libertários. Alguns deles, perseguidos pela polícia, vinham

refugiar-se em terras sorocabanas. Entretanto, é possível encontrar bem pouco material sobre

os anarquistas. Muito foi destruído pelas constantes perseguições policiais e prisões, que os

obrigava a apagar qualquer rastro que pudesse revelar algo. Outro ponto importante parece ser

o esquecimento proposital da sociedade em relação a esse ideal.

Mais uma vez para o historiador e pesquisador é a imprensa escrita, especialmente os

jornais da época, que preenchem essa lacuna da História, o que não significa que essa seja uma

fonte fidedigna dos fatos. Carregada de sentido ideológicos, de ideias preconcebidas, a

divulgação dos fatos dependia da posição ideológica de cada jornal. Nem sempre os jornais

enxergavam os libertários com bons olhos, por isso era mais comum que se referissem a eles

151

com adjetivos como agitadores, arruaceiros, numa declarada intenção de formar a opinião

pública. Provavelmente aí se explique a pouca ênfase dada, até os dias de hoje, aos anarquistas

que viveram ou passaram tempos em Sorocaba.

Vicente de Caria, idealista na total acepção da palavra, viveu e morreu por suas ideais

anarquistas. Esse italiano, camponês, pobre, chegou ao Brasil por volta de 1891. Em data

incerta, chegou a Sorocaba, instalando-se numa região onde predominava a população

espanhola. Segundo Edgar Rodrigues (2005), no ano de 1907, Vicente de Caria comprou uma

chácara no bairro da Caputera e, com sua família, passou a plantar cebolas, criando

posteriormente uma cooperativa juntamente com outros plantadores. Há quem afirme que a sua

intenção era tansformar sua chácara numa comunidade anarquista, mas isso não se realizou e a

cooperativa também não vingou. No entanto, sua chácara se manteve como um lugar que

recebia todos aqueles que necessitavam de ajuda. O seu ideal anarquista nunca esmoreceu e

tornava-se mais vivo a cada nascimento de um filho. Eram eles: Anarchia, Progresso, Libertad,

Acracia, Harmonia, Aurora, Círio, Germinal, Espartaco.

Nessa chácara, havia uma escola que procurava seguir o modelo da escola moderna

idealizada por Francisco Ferrer, a chamada escola racional, que se pautava num processo

educativo que tinha o seguinte preceito: “eduque pela razão, para que cada ser humano seja

capaz de racionar por si mesmo, conhecer o mundo e emitir seus próprios juízos de valor, sem

seguir nenhum mestre, nenhum guia”. (GALLO, 2014, p. 13)

Frequentavam a escola os filhos de Vicente de Caria e outras crianças, filhos de outros

anarquistas. Foi professora dessa escola, por muito tempo, Angelina Soares, irmã do também

anarquista Florentino Carvalho. Mas bem pouco se sabe sobre essa escola. Sobre Vicente de

Caria a professora Angelina fez o seguinte depoimento.

Para lembrar os camaradas de São Paulo, os homens sinceros que lutavam por uma

sociedade melhor, simplesmente porque o seu coração mandava, não podemos deixar

de mencionar Vicente de Cária. Era um homem simples, sem grande instrução, mas de

uma sinceridade a toda prova. Morava em Sorocaba, em um sítio, que era o seu meio

de vida, de onde tirava o sustento de sua família. Ali, naquela roça, naquela casa de

chão, Vicente recebia todos os que necessitavam de guarida. Não só camaradas de luta,

mas qualquer necessitado ali tinha uma cama para dormir, um prato de comidaà mesa.

Lamentava não ter grandes recursos para fazer pela humanidade. Simplesmente, sem

fazer alarde ajudava na publicação de jornais e livros de propaganda. Alma simples, não

era um intelectual, mas tão somente um grande coração. Maria Angelina Soares

(RODRIGUES, 1994)

Em 1927, o anarquista espanhol João Perdigão Gutierrez e outros anarquistas

estrangeiros, numa manifestação de 1º de maio em Santos, proferiram discursos inflamados

que, aos olhos da polícia, tentavam incitar a população, subvertendo a ordem. Passaram a ser

152

perseguidos e precisaram fugir para não serem expulsos do país. João Perdigão encontrou

refúgio na chácara de Vicente de Caria que já o conhecia. A sua permanência na chácara de

Caria culminou na união livre com Anarchia de Caria, em 24 de fevereiro de 1928.

Figura 16 – Casamento de João Perdigão Gutierrez e Anarchia de Caria

Fonte: Enciclopédia Sorocabana

Além de sua colaboração na imprensa, João Perdigão Gutierrez fundou o periódico Dor

Humana, do qual foi redator. Escreveu folhetos e manifestos em datas como o 1º de maio e

outras, e fez-se ouvir pela palavra em todas as oportunidades que lhe foram propiciadas. Morreu

em Sorocaba, Estado de S. Paulo, de onde trocava correspondência com os companheiros do

Brasil e do exterior (ENCICLOPÉDIA SOROCABANA, 1994).

Outro anarquista espanhol que viveu em Sorocaba foi José Prado Gutierrez. Operário

da fábrica Votorantim, aliou-se “aos chamados libertários e iniciou a luta social por melhores

condições de vida aos trabalhadores, participando de greves, distribuindo folhetos e auxiliando

na difusão da doutrina anarquista” (GAZETA DO ALÉM PONTE, 15 dez 1991, p.8) José Prado

casou-se com Libertad de Caria, uma das filhas de Vicente de Caria, e a pedido da esposa deixou

de participar do movimento anarquista, no entanto, sem renegar os ideiais anarquistas,

mantendo-os até o fim da vida. Não passa despercebido o fato de sua esposa, nascida num

ambiente libertário e vivendo entre anarquistas, ter feito tal pedido. Por que o fez?

153

Cavalheiro (2009, p. 149), ao pesquisar sobre o movimento operário em Sorocaba,

entrevistou a senhora Anarchia de Caria. Ela lhe disse que não chegou a ser militante anarquista

“embora tivesse convicção de muitos dos ideais difundidos pelos libertários”. Aprendera sobre

tais ideais com o pai, Vicente de Caria, e o marido, João Perdigão Gutierrez. Revelou ao autor

que não aprendera a ler, embora tanto o pai como o esposo fossem propagandistas da difusão

da cultura.

Na afirmação de Anarchia de Caria de que não aprendera a ler paira uma dúvida, pois

provavelmente estaria referindo-se à leitura de livros da doutrina anarquista, haja vista que, na

chácara de seu pai, havia uma escola Moderna. Mais uma vez ocorre a pergunta: por que o

desinteresse?

Outro anarquista importante no movimento operário de Sorocaba foi Angelo Vial, filho

de italianos, que foi operário da fábrica Votorantim. A força maior de Vial residia na palavra,

cujo poder de convencimento conseguia parar a fábrica. Por ter forte influência sobre o

operariado, representava um incômodo para os patrões. Numa atitude inusitada, Pereira Ignácio,

dono da fábrica, aconselhado por seu genro José Ermírio de Moraes, superintendente da fábrica,

resolveu fazer uma proposta para Vial, oferecendo-lhe a gerência da fábrica e mais alguns

benefícios, como 500 quilos de retalhos para venda por mês. Dessa maneira, teriam uma pessoa

que conhecia o lado dos operários e era querido por eles e também cessariam os constantes

movimentos reivindicatórios, que tanto atrapalhavam a produção.

Angelo Vial, líder operário e anarquista, ouviu seus pares antes de tomar alguma

decisão. Estes o autorizaram a conversar com os patrões. Vial impôs como condição “o fim da

lista negra, equivalente privado do atestado de ideologia, bem como a readmissão dos operários

despedidos pela participação em movimentos grevistas” (BONADIO, 2004). Os patrões

aceitaram, apesar dos riscos e Vial assumiu a gerência da fábrica Votorantim.

Cavalheiro (2001), em seu livro Salvadora!, relata uma passagem entre Salvadora

Lopes, operária da fábrica Votorantim e Angelo Vial, gerente. Como o gerente percebera a sua

liderança entre os operários, especialmente as operárias, deu-lhe um conselho:

Eu gostaria apenas de dar um conselho a você. Eu lutei muito pelos operários e sofri

bastante com isso. Você é jovem, idealista, inteligente, tem liderança. Sei que você

poderá vir a se tornar uma grande líder operária. No entanto, não vale a pena. É muito

sofrimento. Você será martirizada, como Cristo e seus companheiros não a

compreenderão. [...] No mesmo instante Salvadora respondeu: é preferível morrer

como Cristo a viver como Judas! (CAVALHEIRO, 2001, p.104)

154

Embora Angelo Vial tenha mudado de lado, não renegou suas ideias: foi sócio

contribuinte do Partido Comunista Brasileiro até a sua morte (BONADIO, 2004) e, na condição

de gerente, sempre foi querido pelos operários.

2.3 As primeiras tentativas de greve sob o olhar da imprensa

Mas ele desconhecia

Esse fato extraordinário:

Que o operário faz a coisa

E a coisa faz o operário.

De forma que, certo dia

À mesa, ao cortar o pão

O operário foi tomado

De uma súbita emoção

Ao constatar assombrado

Que tudo naquela mesa

- Garrafa, prato, facão -

Era ele quem os fazia

Ele, um humilde operário,

Um operário em construção.

Olhou em torno: gamela

Banco, enxerga, caldeirão

Vidro, parede, janela

Casa, cidade, nação!

Tudo, tudo o que existia

Era ele quem o fazia

Ele, um humilde operário

Um operário que sabia

Exercer a profissão.

(Vinicius de Moraes)

A partir das duas últimas décadas do século XIX, a indústria passou a exercer uma

influência decisiva sobre a estrutura urbana. A cidade passou a ser determinada, principalmente,

pelo crescimento fabril e a arquitetura das fábricas alterou a fisionomia da cidade. Para Boris

Fausto (1976), o sistema de máquinas exige a observação, a continuidade da vigilância que o

estilo das construções procura reforçar, com suas paredes elevadas e as janelas abertas no alto,

impedindo a visão do exterior. Em Sorocaba, as fábricas têxteis predominavam e

consequentemente eram as que empregavam maior número de operários. A fábrica Santa

Rosália frequentemente é citada por pesquisadores da história operária como aquela que sugava

a força de trabalho de seus operários, obrigando-os a cumprir jornadas de trabalho de até 15

horas diárias, das cinco da manhã às 8 horas da noite, indo de “estrelas a estrelas”, como

descreveu Jacob Penteado em suas memórias. A isso somou-se a utilização massiva e

155

apropriação pelo capital da força de trabalho de menores e mulheres, submetendo por completo

a família proletária às condições impostas pela produção fabril.

Tratava-se do mesmo segredo deslindado por Marx n’O Capital: a criação pelo

operário, no interior da fábrica, de um valor excedente maior do que o valor de sua

força de trabalho e não pago pelo capitalista, chave da acumulação de riqueza de toda

a sociedade burguesa; o nascimento de uma nova forma de escravidão que submete

os proletários como “apêndices vivos de um mecanismo morto que existe

independente deles (FOOT; LEONARDI, 1982, p. 179).

Considerando ainda que a mecanização das fábricas têxteis, com a energia a vapor e os

teares mecânicos, acarretava uma desvalorização maior da força de trabalho e,

consequentemente, um crescimento de um exército industrial de reserva, não é à toa que a

indústria têxtil concentrava as taxas mais baixas de salário, em relação a outros ramos

industriais.

O anarquista Everardo Dias (1977, p. 212) descreveu as fábricas da seguinte maneira:

“Cada fábrica tinha um aspecto fosco e hostil de presídio, com seus guardas de portão fardados

e armados, operários e operárias submetidos a vexatórias revistas e humilhantes observações,

quando não recebiam ameaças de toda sorte. ”

Nessas condições, Sorocaba mantinha crescente número de operários em suas fábricas.

A grande imprensa reconhecia o valor deles para o progresso na cidade, do estado e mesmo do

Brasil. Mas, para que houvesse prosperidade, exigia-se uma dose de sacrifícios de todas as

partes, fossem dos patrões ou dos empregados. As relações entre capital e trabalho foram

assumindo contornos bem definidos: os patrões cada vez mais ricos e os operários cumprindo

seu papel, trabalhando dentro da ordem, produzindo sempre, e cada vez mais empobrecidos. Os

operários foram percebendo que, dentro dos sacríficios, sempre lhes cabia a parcela maior e

permaneciam sem vislumbrar perspectivas de melhoras na sua condição de vida.

Provavelmente por essa razão os operários da fábrica de chapéus Pereira & Villela se

declararam em greve em novembro de 1890, o que causou estranheza em Sorocaba, haja vista

um fato dessa natureza nunca ter acontecido.

Gréve (?) – Hontem constou ao delegado de policia que alguns operarios da fabrica

dos srs. Pereira & Villela, tinham feito gréve e por todos os meios procuravam vedar

que outros fossem ao trabalho diario. Incontinenti aquella autoridade, chamando para

seu escrivão ad hoc o 1.º escrivão judicial sr. Sousa Leite, deu tam promptas

providencias, que desfez-se, ao que parece a greve projectada, não sendo alterada a

ordem publica. Dizem-nos que hoje voltarão todos, ou quasi todos os operarios ao

trabalho (DIÁRIO DE SOROCABA, 22 nov 1890).

156

Por ser uma atitude inusitada, o jornal Diário de Sorocaba, ao noticiar o fato, já o fez

com uma interrogação no título. Entendeu o jornal a greve como um ato de ousadia por parte

dos operários? Provavelmente sim, já que considerou plenamente acertado o procedimento

adotado pelo Delegado de polícia, desfazendo a greve. Os procedimentos para por fim à

pretensa greve foram escritos, porém os motivos que levaram a ela foram silenciados.

Por quase uma década, não se teve notícias de reivindicações de operários que tivessem

recorrido à greve. Somente em 1901, depois de difíceis negociações com seus patrões, sempre

infrutíferas, os operários da Estrada de Ferro Sorocabana se declararam em greve. A situação

vivida pelos operários da companhia Sorocabana era angustiante, pois estavam com os salários

atrasados havia vários meses.

Quarta-feira ultima os operarios da Companhia Sorocabana, depois de se

manifestarem em gréve, foram a estação de trem desta cidade aonde arrancaram

trilhos, cortaram os fios do telegrapho, por causa do pagamento, que ha 4 mezes que

dinheiro nem siquer para matar o bicho. Existem empregados na Companhia

Sorocabana, que fazem 10 ou 11 mezes que não recebem dinheiro que é isso

verdadeiramente uma injustiça e que claramente deixa ver o procedimento da

companhia. (A ARRELIA, 14 jul 1901, p.2).

Essa greve tinha por motivo principal o pagamento dos salários atrasados decorrentes

da má administração da empresa. Porém a empresa procurou desvirtuar esse objetivo, alegando

que os operários estavam descontentes devido à transferência dos escritórios e oficinas da

empresa para São Paulo e Mairinque.

Tendo os operários bloqueado a linha férrea e cortado fios do telegráfo, a força policial

não tardou a chegar, vinda de São Paulo. Essa greve teve vários desdobramentos e atos de

violência, principalmente por parte da polícia. Aconteceram prisões de operários, confrontos

entre operários e policiais na rua e foram abertos vários inquéritos sobre a atuação de operários

durante o ocorrido.

Já o declaramos no ultimo artigo que escrevemos sobre a Sorocabana: não apoiamos

a violencia; mas os ultimos actos da directoria e Superintendencia daquella

Sorocabana, autorisaram perfeitamente a gréve de hontem. Aos operarios assistia um

direito indiscutivel e á directoria da estrada cabia prever o acontecido e cumprir com

o seu dever. Calcula-se em mais de trezentos o numero de operarios em greve.[...] A’s

3 horas e cincoenta minutos da tarde, chegou da Capital ao Alto da Boa Vista, um

trem especial com o Superintendente da estrada [...] e quarenta e cinco praças de

policia, [...] Assim é que o ESTADO e o CORREIRO attribuem a greve á noticia da

mudança de escriptorio e officinas desta cidade para São Paulo e Mayrink. Como

podem ver os collegas, pelo que acima dissemos, o motivo unico da gréve foi a falta

de pagamento, ha mezes já atrazados (DIÁRIO DE SOROCABA, 14 jul 1901, p.2).

157

Nessa ocasião, os pagamentos foram efetuados e os operários que mais se destacaram

no movimento foram demitidos. A atuação da polícia foi um aviso bem claro aos operários de

que as situações de greve seriam tratadas como caso de polícia. Era um alerta para que atos

semelhantes não se repetissem.

Outra tentativa de greve ocorreu na fábrica de óleos Santa Helena, cujo proprietário

Antonio Pereira Ignácio era um industrial em ascensão na época, e foi noticiada pelos jornais

Cruzeiro do Sul e O 15 de Novembro. As duas notícias aparecem em rápidas linhas, mas chama

a atenção que ambas tiveram como chamamento a palavra “desordem”. O 15 de Novembro

apenas acrescentou que o motivo da paralisação foi a falta de apontamento “de um quarto de

serviço da noite de sabbado, não tendo porém reclamação a fazer contra os proprietários do

referido estabelecimento” (O 15 DE NOVEMBRO, 9 ago 1906, p.1). O Cruzeiro do Sul

noticiou sobre a greve, alegando motivos frívolos provocados por empregados despeitados,

conforme constata-se no trecho reproduzido a seguir:

Desordem na «Santa Helena» Terça-feira ultima, ás 8 horas e 1/2 da noite, mais ou

menos, alguns operarios da fabrica de oleos «Santa Helena», por motivos frivolos,

declararam-se em greve, incitando os seus companheiros a acompanhal-os tambem.

Comparecendo a policia no local, effectuou a prisão dos despeitados, em numero de

oito, que, mais tarde, pagos e satisfeitos, foram despedidos da fabrica (CRUZEIRO

DO SUL, 11 ago 1906, p. 3).

Essa ocorrência deu-se numa terça-feira, por volta das 20 horas, quando os operários

abandonaram o serviço ao verificar não terem recebido parte do pagamento noturno referente

ao sábado anterior trabalhado. O excesso de horas de trabalho e mesmo a falta de pagamento

correto que os trabalhadores mereciam foi silenciado pelos jornais.

Em 1909, numa nota, o jornal A cidade de Sorocaba comentou sobre uma greve dos

carroceiros com a devida interrogação. Esses trabalhadores faziam o transporte de feijão para

exportação até a estação ferroviária. Reivindicavam um aumento nos valores por saca de feijão

carregada e desobrigavam-se de efetuar o ensacamento e pesagem do produto.

Gréve? - Nessa atitude permaneceram durante todo o dia, até que a noite chegaram a

um accordo com os exportadores, obtendo augmento de 50 réis por sacco conduzido,

que ate alli era o de 100 réis e eximindo-se de diversas obrigações, como fossem as

de ensaccamento e pesagem do genero a exportar-se. O facto que passou despercebido

indica deante da prompta resolução dos interesses, que a razão estava ao lado dos

carroceiros, que, assim viram sem delongas terminado o primeiro movimento grevista

nesta cidade (A CIDADE DE SOROCABA, 21 fev 1909, p.3).

Este não foi o primeiro movimento grevista de Sorocaba, mas pode ser considerado o

primeiro movimento bem-sucedido, uma vez que os reclamantes alcançaram o seu intento. Para

158

o jornal A Cidade de Sorocaba esse movimento passou despercebido, já para o jornal Cruzeiro

do Sul, o ocorrido não foi nem digno de nota. Silenciou.

Em 1910, houve mais uma tentativa de greve entre os operários da Fábrica Santa

Rosália, cuja reivindicação era o aumento de salário e a redução das horas de trabalho. Para

representar os operários, foi formada uma comissão constituida por três membros: um

brasileiro, um italiano e um espanhol. Os patrões, tendo conhecimento do que se passava, foram

ao encontro da comissão de operários e decididamente negaram-lhes tudo, inclusive o direito

de expor a situação. Os operários, ao terem conhecimento da maneira pela qual a comissão fora

recebida pelo patrão, foram tomados por um sentimento de revolta e, imediatamente, decidiram

abandonar o trabalho, declarando-se em greve pacífica. Resultou disso o seguinte:

[...] sabedores os patrões, dos nomes dos chefes do movimento, ordenaram o

pagamento dos respectivos salários e tambem os dos que não quizessem continuar no

trabalho em numero de setenta, pouco mais pouco menos. Feito isto despediram-n’os,

concedendo-lhes o prazo de 2 horas, e mais tarde de 24 horas para que desoccupassem

os predios em que habitavam nos terrenos da fabrica, o que foi feito sem resistencia

(O OPERARIO, 20 mar 1910, p.2).

Sobre essa tentativa malsucedida de greve operária o jornal A Cidade de Sorocaba

silenciou, não há nenhum registro em suas páginas. O jornal Cruzeiro do Sul brevemente

noticiou:

Avisado, compareceu ao local o dr. Delegado de Policia que deu logo as providencias

precisas, sendo despedidos os chefes do movimento, em numero de dez, e voltando

os demais operarios ao trabalho. Pelo que se verificou a gréve não teve apoio dos

operarios do importante estabelecimento fabril, havendo apenas um pequeno numero

de solidarios. Não foi portanto necessaria a paralysação do serviço, continuando a

funccionar regularmente (CRUZEIRO DO SUL, 12 mar 1910, p.3).

Foi uma nota breve nas páginas internas, talvez propositalmente para evidenciar a

irrelevância do fato. O Cruzeiro do Sul refere-se a uma greve iniciada por “alguns tecelões” da

fábrica Santa Rosália, que exigiam aumento de salário e diminuição das horas de trabalho, sem

representar o interesse e o desejo da maioria dos operários. A pouca importância dada ao fato

pelo jornal era uma forma de desencorajar futuras tentativas de greve por parte de outros

operários.

2.4 O olhar da imprensa sobre a primeira greve operária bem-sucedida

“É preciso abrir as portas e janellas dessas lugubres fabricas de tecidos para que

nellas entre o clarão da liberdade!”

(O Operário, 18 jul 1911)

159

A situação penosa dos operários se estendia por muito tempo, sem dar esperanças de

mudanças e melhora. A greve passou a ser cogitada. Para os libertários, explicava Errico

Malatesta a greve, antes de tudo, tinha uma função educativa, especialmente na sua preparação,

uma vez que os trabalhadores aprendem a lição da solidariedade, do apoio mútuo, embora não

seja a greve que irá resolver a questão social (TRAGTENBERG, 1989, p. XV). O movimento

operário do início do século XX foi marcado por duas manifestações sociais bem definidas: as

greves operárias, recurso de mobilização contra o patronato; e os Congressos Operários

enquanto forma de organização política independente e própria dos trabalhadores.

Pode-se dizer que a primeira greve anunciada dos operários das fábricas de tecidos de

Sorocaba seguiu na esteira do movimento impetrado pelos pedreiros. Em 25 de julho de 1911,

reuniram-se cerca de duzentos pedreiros e serventes com o objetivo de formação de uma “Liga

dos Pedreiros”, cujo objetivo era a fixação das oito horas de trabalho diário, além de aumento

de salário.

[...] depois de lançadas as bases da nova sociedade, uma commissão pela mesma

designada irá entender-se com os patrões, expondo o desejo da «Liga». Caso não seja

attendida a representação, os pedreiros de Sorocaba, então, declaram a gréve, porem

pacifica. Lembram os reclamantes as medidas tomadas em S. Paulo, Santos e Ribeirão

Preto onde os seus collegas foram attendidos, já com o augmento de salarios, já com

a diminuição de horas de trabalho (CRUZEIRO DO SUL, 25 jul 1911, p.2).

Por não terem sido atendidos em suas reivindicações, os pedreiros, conforme haviam

adiantado, declararam-se em greve em 1º. de agosto. Apesar de se manterem em atitude

pacífica, com o intuito de manutenção da ordem, fora solicitado um reforço policial de quinze

“praças” que vieram da capital. O jornal divulgou o seguinte em suas páginas: “Felizmente, ao

que se sabe, ainda não se registrou caso algum de perturbação da ordem que demandasse o

emprego de força. Ao que consta, muitos patrões e mestres de obras já se comprometteram a

acceder ao pedido dos operários” (A CIDADE DE SOROCABA, 3 ago 1911, p.2).

A campanha por melhores condições de trabalho nas fábricas se intensificou nas colunas

do jornal O Operário. O operariado não suportava mais uma carga de trabalho de quase 15

horas diárias. Espelhando-se no exemplo dos pedreiros, a deflagração de uma greve nas fábricas

estava iminente. Certamente já constituía motivo de preocupação para os patrões, tanto que

apareceu nas páginas do jornal Cruzeiro do Sul um aconselhamento aos operários sobre as

consequências funestas que poderiam advir de uma greve.

Dirigindo-se “Á classe operária” o autor que se intitulava “Amigo da ordem”

desqualificava o jornal O Operário, chamando-o de “jornalzinho” e afirmava que o periódico

160

tinha como pretensão colocar o operariado sorocabano, até então “ordeiro e pacato”, numa

situação aflitíssima de consequências desastrosas, em que a miséria certamente bateria à porta.

Desistam os operarios de Sorocaba da infeliz idèa que ora os empolga, certos de que,

mais cedo ou mais tarde, os capitalistas tem de volver os olhos para elles, procurando

suavisar a sua vida e remuneral-os melhor, porque si estes precisam dos primeiros

que, como o trabalho, lhes dão o sustento para si e sua prole, os capitalistas tambem

necessitam de braços para impulsionar a sua industria e duplicar os seus haveres. No

terreno das ameaças, indubitavelmente, nada conseguirão (CRUZEIRO DO SUL, 2

ago 1911, p.2).

O jornal Cruzeiro do Sul, expressão da imprensa burguesa, não conseguiu demover os

operários de suas intenções com o referido conselho e mais acaloradas ficaram as manifestações

após os pedreiros declararem, em assembleia, que, a partir de 1º de agosto, não trabalhariam

mais de oito horas por dia. Os pedreiros aguardaram uma resposta por parte dos empregadores

e, como não a obtiveram, declararam-se em greve pacífica. O trabalho de pedreiro exigia

qualificação, daí poderem exigir melhores condições de salário e de vida, uma vez que o

empregador era um pequeno empreiteiro que só recebia após o término do serviço, muitas vezes

tendo que arcar com o custo dos materiais fornecidos. Ora, uma paralisação dos pedreiros, num

momento de extrema necessidade, tendo em vista as inúmeras construções em andamento na

cidade, seria muito prejudicial a eles.

O Cruzeiro do Sul passou a dar um destaque sobre o estado de greve instaurado no

município. Ainda na edição de 2 de agosto já apareceu a manifestação dos empregadores dos

pedreiros. Os pequenos empreiteiros foram os primeiros a conceder o exigido pelos pedreiros.

Sorocaba, nesse tempo, passava por mudanças urbanas intensas com construções importantes

sendo executadas ao mesmo tempo, como: o grupo escolar, as ampliações no hospital da Santa

Casa de Misericórdia, a construção de fábricas, de casas de moradia para operários e outras

construções que exigiam mão de obra qualificada. Alguns empresários, certamente com a

intenção de enfraquecer a liga dos pedreiros, chegaram a contratar pedreiros de São Paulo. No

entanto, essas contratações foram insuficientes tanto para o trabalho como para conter o

movimento grevista. Diante dessa situação, os empreiteiros se manifestaram: “Acceitamos o

pedido dos pedreiros para trabalharem somente 8 horas, com este horario: das 7 da manhã ás

10 — uma hora para almoço — e das 11 ás 4 horas da tarde” (CRUZEIRO DO SUL, 2 ago

1911, p.2).

Os grandes empreiteiros justificaram que não poderiam, naquele momento, alterar o

trabalho em suas obras, pois vigorava um contrato de trabalho, porém, nas obras vindouras seria

observado o horário de oito horas diárias. Completava a notícia a informação de que a “parede”

161

– como eram chamadas as paralisações – resumia-se somente à classe dos pedreiros, que não

se havia estendido ao operariado das fábricas.

Ocorreu que os operários das fábricas têxteis também se declararam em greve. No

entanto, para se trabalhar nas fábricas de tecidos, não era exigida uma qualificação, o que

acarretava um desprestígio. Além disso, uma demissão não seria sentida, pois os capitalistas

contavam com um exército industrial de reserva. Mesmo com todos os riscos, os operários se

declararam em greve, afinal, tinham motivos de sobra para exigir melhores condições de vida

e de trabalho. Certamente, ponderaram, quem não tem nada, o que tem a perder?

A organização operária fortalecida em outras cidades pelo país respaldava essa decisão.

Num levantamento parcial, Edgar Rodrigues aponta, que no período de 1900 a 1910, ocorreram

111 greves operárias no Brasil; e 258 no período de 1910-1920. Em abril de 1906, realizou-se

o 1º. Congresso Operário, reunindo muitas instituições representativas dos operários de todo o

país. Sorocaba não se fez representar nesse Congresso. Nas teses apresentadas para debates e

aprovadas no 1º. Congresso Operário Brasileiro, ficou evidente as preferências dos

trabalhadores por um sindicalismo revolucionário, anti-militarista, apolítico e pelo ensino laico

(RODRIGUES, 1969).

Decididos pela greve, dentre vários motivos, prudentemente elegeram a jornada de

trabalho como principal reivindicação. Alegavam que a longa jornada não lhes permitia ter o

devido descanso e nem frequentar as escolas operárias noturnas.

Em 1º de agosto, anunciaram-se em greve pacífica os operários da Fábrica Nossa

Senhora da Ponte “com o fim de obter a modificação do horario daquella fabrica, de 12 e meia

horas para dez horas sómente de trabalho por dia” (A CIDADE DE SOROCABA, 6 ago 1911,

p.2) Apesar da atitude ordeira dos operários, o delegado de polícia solicitou reforços para São

Paulo, que enviou 50 “praças”.

No terceiro dia de greve, quando os policiais permaneciam nos portões da fábrica,

oferecendo proteção aos que quisessem trabalhar, também os operários das fábricas Santa

Rosália e Santa Maria se declararam em greve pela redução do horário de trabalho e pela

supressão dos serões de que eram obrigados a participar.

O jornal Cruzeiro do Sul, mais uma vez alinhando-se aos interesses da burguesia,

silenciou-se quanto aos direitos do operariado, mas registrou a lei sobre os crimes contra a

liberdade de trabalho, que segue conforme publicação. Interessante notar que, ao mesmo tempo

em que não havia lei que amparasse o trabalhador, havia lei para garantir os direitos dos patrões,

conforme reproduzido abaixo:

162

Para conhecimento dos interessados, transcrevemos em seguida as disposições do

Codigo Penal que se referem aos crimes contra a liberdade do trabalho:

Art. 204 — Constranger, ou impedir alguem de exercer a sua industria, commercio ou

officio; de abrir ou fechar estabelecimentos e officinas do trabalho ou negocio; de

trabalhar ou deixar de trabalhar em certos e determinados dias; Pena — de prisão

cellular por um a tres mezes.

Art. 205 — Seduzir, ou alliciar, operarios e trabalhadores para deixarem os

estabelecimentos em que forem empregados, sob promessa de recompensa ou ameaça

de algum mal. Pena — de prisão cellular por um a tres mezes e multa de 200.000 a

500$000.

Art. 206 — Causar, ou provocar a cessação de trabalho, para impôr aos operarios ou

patrões augmento ou diminuição de serviços ou salario: Pena — de prisão cellular por

um a tres mezes.

Paragrapho 1.o — Si para esse fim se colligarem os interessados: Pena — aos chefes

ou cabeças da colligação, de prisão cellular por dois a seis mezes.

Paragrapho 2.o — Si usarem de violencia: Pena — de prisão cellular por seis mezes

a um anno, além das mais em que incorrerem pela violencia.

Os arts. 205 e 206 acima transcriptos e seus paragraphos foram revogados pelo decreto

n. 1162 de 12 de dezembro de 1890, que alterou a redacção pela seguinte fórma:

1.o — Desviar operarios ou trabalhadores dos estabelecimentos em que forem

empregados por meio de ameaças, constrangimento ou manobras fraudulentas: Penas

— de prisão cellular por um a trez mezes e de multa de 200$000 a 500$000.

2.o — Causar ou provocar a cessação ou suspensão de trabalho, por meio de ameaças

e violencias, para impôr aos operarios ou patrões augmento ou diminuição de salario

ou serviço: Penas — de prisão cellular por dois a seis mezes, e de multa de 200$000

a 500$000 (CRUZEIRO DO SUL, 3 ago 1911, p. 3).

Dois dias se passaram e o clima aparentemente era de calma, pois até então não se

registrara nenhuma ocorrência, além da adesão dos operários das fábricas Santa Maria e Santa

Rosália. Os patrões não se manifestaram quanto às reivindicações operárias para a resolução da

crise que se estabelecera. Fora, provavelmente, uma atitude para medir forças, por meio da qual

aguardavam a rendição dos operários. Mesmo assim, foi solicitado mais um reforço policial por

parte do Delegado de Polícia, completando, assim, um contingente de cem policiais. Além do

reforço policial, o delegado de polícia lançou um edital que fora afixado em vários locais da

cidade e publicado pela imprensa, pelo jornal Cruzeiro do Sul, através do qual garantia proteção

e segurança àqueles que desejassem trabalhar e ainda aconselhava aqueles que insistiam na

greve sobre as consequências danosas de tal conduta.

EDITAL - O dr. João Eremita da Silva Ramos, delegado de policia, faz saber aos que

o presente virem, que a delegacia de policia desta cidade está bem apparelhada para

garantir aos operarios extranhos ao movimento grévista que quizerem voltar ao

trabalho, uma vez reabertas as fabricas de tecidos, agindo com toda a energia para

com aquelles que, usando de «violencia ou ameaça», procurarem impedir o mesmo

trabalho, principalmente contra os individuos apontados como cabeças do alludido

movimento. Faz saber, como medida de ordem, que não admitte ajuntamento ou

agglomerações de pessoas nas esquinas e praças publicas e aproveita o ensejo para

pedir ás pessoas sensatas e aos filhos desta terra, em nome do seu nunca desmentido

patriotismo, que o auxiliem no desempenho da ardua missão que a sociedade, por um

dos seus orgãos, se dignou conferir-lhe, dando conselhos salutares aos rapazes

inexperientes que, impellidos por mão occulta, tem concorrido para a situação

anormal que Sorocaba ora atravessa. E para constar mandou lavrar o presente que vae

163

affixado em lugar publico e posteriormente publicado pela imprensa, ficando o

mesmo transcrito no livro competente. Sorocaba, 6 de Agosto de 1911. Eu, Joaquim

A. R. de Arruda, escrivão, o escrevi (CRUZEIRO DO SUL 8 ago 1911, p.3).

No dia 3 de agosto, os operários das fábricas Nossa Senhora da Ponte (Fonseca), Santa

Maria e Santa Rosália percorreram as ruas da cidade em atitude pacífica, sem nenhuma

alteração da ordem. Entretanto, os estabelecimentos industriais, a pedido de seus donos,

“estavam sendo guardados por praças competentemente municiadas”. Procurando tornar o fato

da greve irrelevante e algo passageiro, o jornal Cruzeiro do Sul completava a notícia da seguinte

maneira: “reina completa paz entre o operariado das fabricas S. Paulo e Votorantim, que não

adheriram ao movimento” (CRUZEIRO DO SUL, 5 ago 1911, p.2).

Em 8 de agosto, aconteceu algo inusitado que veio mudar radicalmente os rumos do

movimento e fora noticiado de maneira diferente pelos jornais Cruzeiro do Sul e A cidade de

Sorocaba. Aproximadamente duzentos operários da Fábrica Votorantim, que já cumpriam

jornada de dez horas diárias, em sinal de solidariedade, abandonaram o trabalho e seguiram

para Sorocaba a fim de apoiar os grevistas. O Cruzeiro do Sul, numa tentativa de mostrar a

obediência dos operários, disse que os “operários haviam solicitado uma licença de meio dia

para virem testemunhar a sua solidariedade com os seus companheiros da cidade”, como se

fosse possível interromper a produção da fábrica por esse motivo.

Com a chegada dos operários da Votorantim ocorreu uma situação de confronto entre

operários e policiais. O jornal A cidade de Sorocaba a descreveu da seguinte maneira:

[...] a policia, dizemos nós, entendeu ser prudente collocar um contingente de soldados

a entrada da cidade, com catadura feroz a ver se atemorizava os operarios do

Votorantim, e lhes suggeria a idéa commoda de voltarem pé atraz, evitando assim

muitos receios e trabalhos aos mantenedores da ordem. Entretanto os grevistas ou não

comprehendendo a ameaça ou menosprezando-a, transpuzeram a ponte do rio

Sorocaba, e penetraram no centro da cidade, pacificamente, sem armas, a dar vivas á

classe operaria. Quando se approximavam do edificio da cadeia publica, um pelotão

de soldados, ás pressas, como em imminencia de combate, forma-se em linha no meio

da rua, impedindo o transito e em seguida investe numa marcha de bayonetas caladas

contra os inermes grevistas, até o largo da Matriz, havendo uma enorme correria não

só dos atacados como tambem de curiosos e transeuntes que passavam por aquellas

adjacencias. [...] pouco depois a policia reentrou em si mesma, viu que o seu apparato

bellicoso estava produzindo consequencias deploraveis, e por esse motivo mandou

recolher a quarteis toda a força que se achava disseminada pela cidade (A CIDADE

DE SOROCABA, 10 ago 1911, p. 2).

Sobre o ocorrido quando da chegada dos operários, o jornal Cruzeiro do Sul relata:

Nessa occasião, devido á precipitação e á falta de calma de alguns poucos imprudentes

a autoridade local se viu na contingencia de, com alguma energia, dispersar um

numeroso ajuntamento que se formara na rua de S. Bento, nas proximidades do

164

Gabinete de Leitura. Entretanto a intervenção suasoria de varias pessoas de cotação

em nosso meio social, promptamente attendida pelos operarios, acalmou os animos

desde logo, evitando-se assim que as cousas assumissem maiores proporções

(CRUZEIRO DO SUL, 10 ago 1911, p.2).

Outro ponto de divergência na narrativa dos fatos entre os dois jornais diz respeito à

realização de uma reunião entre os industriais para discussão das reivindicações operárias.

Afirmou o Cruzeiro do Sul que a convocação para essa reunião partiu do Delegado de Polícia

“afim de poder bem se orientar sobre a situação, e no intuito mesmo de ver si era possivel obter

em favor do operariado alguma concessão justa”. Já o jornal A cidade de Sorocaba afirmou:

Emquanto, porém, se davam nas ruas taes exhibições, dignas de serem approveitadas

por Offenbach, uma commissão de pessoas pacificadoras, bem intencionadas, os srs.

Arthur Gomes e Francisco Catalano, incumbida pelos operarios em greve, se entendia

com os fabricantes, reunidos na Delegacia de Policia, e negociavam as bases de um

accordo para por termo ao movimento do operariado (A CIDADE DE SOROCABA,

10 ago 1911, p. 1).

De acordo com A cidade de Sorocaba, nessa reunião, realizada ao meio-dia, os

industriais aceitaram a redução da jornada, que passaria a valer a partir de 1º de outubro. Porém,

levada a proposta ao conhecimento dos operários, eles a recusaram. Esse ponto nem foi

mencionado pelo Cruzeiro do Sul. Nova reunião fora marcada para aquele mesmo dia,

conforme depreende-se do fragmento a seguir:

Reunidos de novo, á noute na casa do distincto industrial sr. Francisco José Speers os

negociadores do accordo, foi por fim elle ultimado, ficando estabellecido como

pediam os operarios a fixação de 10 horas de trabalho por dia, a começar hontem em

diante. Acceita com geral regosijo a solução da crise, hontem recomeçaram as fabricas

o seu trabalho ha dias interrompido (A CIDADE DE SOROCABA, 10 ago 1911, p.2).

Quanto ao desfecho dessa greve, o jornal A cidade de Sorocaba posicionou-se

classificando a greve como justa e razoável, como evidenciado nas palavras reproduzidas

abaixo:

Aqui cabe-nos dar parabens tanto á classe operaria como aos srs. fabricantes, aos

primeiros pela attitude correcta, digna, ordeira, pacifica em que sempre se manteve a

despeito das muitas provocações que em gente sem juiso causaria conflictos

lamentaveis, e porque obteve justiça para a sua causa; e aos segundos, os fabricantes,

porque, pondo de parte pequeninos interesses pecuniarios, obedeceram á propria

consciencia, cedendo a uma reclamação sob todos os pontos de vista, justa e razoavel

(A CIDADE DE SOROCABA, 10 ago 1911, p. 2).

O jornal Cruzeiro do Sul deixou transparecer que o resultado positivo fora uma solução

honrosa encontrada pelos patrões, quase um ato de bondade para com os seus operários:

165

Os srs. industriaes, que como todos nós sabemos, são homens de reconhecido amor

ao desenvolvimento desta terra, concedendo à classe operaria a fixação de horas de

trabalho pedida, praticaram um acto que muito os nobilita, provando, dest’arte, o

conceito em que tem aquelles que mourejam no afanoso labor quotidiano. Si os

operarios, pelo seu braço, pelo seu trabalho, são dignos de acatamento, os srs.

industriaes que fundam e sustentam monetariamente estabelecimentos onde se requer

o concurso dos mesmos operarios, não são menos dignos do apoio e do incitamento

de todos (CRUZEIRO DO SUL, 10 ago 1911, p.2).

Para o jornal O Operário, a vitória conseguida foi motivo de imenso júbilo, pois fora

uma “vitória sacrossanta”, que deu novos ânimos para continuar a luta pelos direitos dos

operários.

Salve!... A victoria operaria alcançada agora servirá de licção a essa récula de vanpiros

que existem em Sorocaba, que pensam que os seus operarios hâo de ser sempre uma

massa de infelizes e submersos [...] As violencias, as perseguições, e as ameaças por

parte da policia e dos taes falsos “Amigos da ordem” serviram de alicerce a grande e

esmagadoura victoria. [...] todos os operarios de Sorocaba honraram a Classe

libertando os seus collegas das garras aduncas da nefanda escravidão moderna (O

OPERARIO, 13 ago 1911, p.1).

Logo após o término da greve dos operários, houve troca de insultos pelos jornais. O

jornal A Cidade de Sorocaba publicou a carta de “Um Operário”, que denunciava a conduta

conciliatória do deputado Luiz Pereira de Campos Vergueiro. Apesar de se dizer amigo dos

operários, foi ele quem recomendou a solicitação de um aparato policial exagerado e que

interveio para que os companheiros de Votorantim fossem recebidos com violência policial,

quando apenas foram prestar apoio e solidariedade aos trabalhadores de Sorocaba. Segundo o

jornal, “Qual de nós ignora que o dr. Campos Vergueiro, ao mesmo tempo que aconselhava a

patrões tenaz resistencia, aconselhava tambem aos incautos operarios a persistirem na lucta

«pela justiça da nossa causa», hypothecando áquelles e a estes o seu apoio?! (A CIDADE DE

SOROCABA, 13 ago 1911, p.2).

Em resposta o chefe político do jornal Cruzeiro do Sul, Luiz Pereira de Campos

Vergueiro defendeu-se dizendo que sempre esteve ao lado dos operários, que inimigos políticos

estavam procurando colocar os operários contra a sua pessoa. Segundo ele, “nenhuma tem sido

a nossa intervenção, a não ser os conselhos que temos levado aos operarios nossos amigos para

que fujam da exploração de elementos perturbadores que menos visam os interesses da classe

do que tirarem para si vantagens proveitosas” (CRUZEIRO DO SUL, 14 ago 1911, p.3).

Essa greve foi além da simples reivindicação operária. Seus reflexos foram sentidos em

vários setores da sociedade e certamente serviram como alerta à elite industrial. Os operários

perceberam que a união os fortaleceu e que, juntos, poderiam conseguir muito mais. Os próprios

166

patrões, incrédulos quanto à força e resistência dos operários, foram obrigados a ceder. A cidade

se alterou. O comércio praticamente ficou paralisado. Até mesmo uma apresentação teatral

beneficente fora adiada. A polícia foi obrigada a pedir reforços, que não intimidaram os

operários. Os tempos estavam mudando, os operários conseguiram mostrar que eles existiam,

e que tinham significação social.

Com o desfecho da greve favorável aos operários, o jornal O Operario sentiu-se

fortalecido em prosseguir com a luta, afinal, haviam conseguido reduzir a jornada de trabalho

para dez horas, mas mesmo assim era uma jornada excessiva. Os patrões entenderam que havia

sido a primeira vitória dos operários e que outras viriam. Enquanto a imprensa operária

incentivava uma organização maior, os industriais iniciavam uma perseguição contra os

operários, antevendo o fortalecimento deles em suas reivindicações futuras.

O Jornal O Operário noticiou esses fatos da seguinte maneira: “Já fomos informados

que os proprietários das fabricas de Tecidos que se declararam em greve estão procurando

vingar-se dos seus operários maltratando-os” (O OPERARIO, 20 ago 1911, p.2).

Nessa ocasião, o jornal abriu o que foi chamado de “Álbum de Ouro”, onde seriam

inscritos os nomes dos empreiteiros, proprietários de oficinas etc., que concedessem aos seus

operários as oito horas de serviço.

O jornal conclamava os operários a se organizarem ainda mais, pois muito faltava a ser

conquistado, como o aumento de salário, a instrução para a criança proletária, a regulamentação

do trabalho de mulheres e crianças, a escola para operários etc. Para isso, seria necessária a

formação de uma “Liga” para “todos unidos defendermos os nossos direitos, o luctar pelo nosso

bem estar” (IDEM, p. 2).

A vitória dos operários nessa greve deu-lhes ânimo e, certamente, eles entenderam que

a união os fortalecia. A partir daí, as greves foram tornando-se mais frequentes, passaram a ser

utilizadas como recurso extremo. Se, por um lado, os operários se fortaleciam com os

movimentos grevistas, por outro lado, os patrões também se organizavam para combatê-las. Os

industriais perceberam que a situação operária não se tratava mais de pequenas manifestações

isoladas de alguns operários insatisfeitos, que poderiam ser dispersados pela polícia. A causa

operária ia adquirindo novos contornos e, para tanto, os industriais passaram a ter

procedimentos muito semelhantes entre si quanto às relações de trabalho, visando ao

enfraquecimento da classe operária. Não havia alternativa melhor para o operário, pois em todas

as fábricas era o mesmo sistema de trabalho. Os operários passaram a pagar um preço alto pela

reivindicação de seus direitos. As demissões, os despejos das casas, o tratamento cruel dentro

das fábricas, as perseguições de operários recrudesceram.

167

Sem se deixar cair numa banalização, as greves foram sucedendo-se. Os operários se

declaravam em greve, quase sempre de maneira pacífica por aumento de salário, por serem

tratados de maneira desumana por mestres e contramestres, pela longa jornada de trabalho, em

solidariedade por demissões sumárias de operários, pelas multas etc.

Mas, mesmo dentro da organização operária, havia problemas ideológicos, ou seja, a

luta pela conquista de direitos não era unânime. Muitos operários preferiam ter benefícios,

galgar posição melhor dentro da fábrica ou mesmo obter a simpatia do patrão pela via da

delação, da bajulação, da traição ou atuando como “fura-greve”. Eram os chamados “krumiros”,

que atuavam sempre visando desestabilizar os movimentos grevistas.

A greve mais importante ocorrida em Sorocaba foi em decorrência do que acontecia

também em São Paulo e em todo país. Em 1917, a situação de penúria vivida pelo povo

brasileiro era alarmante. Ninguém suportava mais a carestia dos gêneros alimentícios, o descaso

do governo em amparar legalmente os operários, tratando suas reivindicações sempre como

caso de polícia. Na visão do anarquista Gigi Damiani expulso do Brasil em 1919, o governo

brasileiro,

{...} emanado diretamente de um bando de patrões, antigos traficantes de escravos ou

filhos de fazendeiros de café, habituados ao comércio de escravos, impedia com fácil

êxito a afirmação de um movimento que não encontrava ainda correspondência na

grande massa dos trabalhadores (DAMIANI, 1920, p. 31)

Em 1917, os confrontos entre e a polícia e os operários se intensificaram nos portões

das fábricas de São Paulo. Liderados pelo Comitê de Defesa Proletária, era exigido aumento de

35% nos salários, ou 25% conforme o caso, e providências dos poderes públicos para evitar a

especulação nos gêneros de primeira necessidade (BEIGUELMAN, 1977).

No dia 9 de julho, defronte aos portões da fábrica Mariangela, num confronto entre

operários e a força policial, foram disparados tiros pela polícia, sendo que um deles veio a

atingir o sapateiro espanhol José Martinez, de 21 anos de idade, que faleceu no dia seguinte. A

partir desse fato, irrompeu-se a maior greve operária da história. O enterro do jovem operário

transformou-se numa grande manifestação.

Antes de entrar no cemitério, vários oradores se dirigem à multidão para verberar com

indignação o assassínio do moço operário, e que agora a polícia quer atribuir a culpa

aos próprios irmãos de sofrimento e opressão. Por último uma oradora fala e termina

o seu discurso em pranto. A multidão chora e clama justiça. A soldadesca não contém

a sua emoção, soldados limpam os olhos com a manga da farda (DIAS, 1977, p.297).

168

Em 17 de julho, os operários de Sorocaba se declararam em greve e a adesão foi

crescente, chegando a ter 10 mil operários parados em Sorocaba, conforme notícia do jornal

Cruzeiro do Sul:

O encarecimento rapido e crescente dos gêneros alimenticios e o decrescimo de

salarios, realisado em alguns estabelecimentos concorreram, alem de outros motivos

de ordem secundaria, para levar os operarios à greve. De facto, não era possível que

as coisas continuassem no pé em que estavam. A miseria negra e horrível ameaçava

centenas de lares. Ao trabalho exhaustivo de horas excessivas, não correspondia uma

alimentação generosa e bôa, pois para começar do pão, todos os artigos subiram muito

o preço e os operarios eram coagidos a reduzir ainda mais o seu parco “menu”. Os

operarios em parede pacifica procuram nem mais nem menos do que conseguir um

pequeno augmento de salario. Foi para esse fim que se declarou A GREVE

(CRUZEIRO DO SUL, 17 jul 1917, p.1).

Figura 17 - Jornal Cruzeiro do Sul de 17 jul 1917

Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.

Os industriais de Sorocaba, sabedores das proporções que tomava a greve em São Paulo

e temendo que o mesmo pudesse ocorrer em Sorocaba, reuniram-se rapidamente e decidiram

fazer algumas concessões como: conceder 20% de aumento de salário, não dispensar do

trabalho nenhum operário grevista, respeitar o direito de associação operária e pagar os salários

atrasados dentro da primeira quinzena do mês subsequente.

Entretanto, os operários não queriam concessões, exigiam seus direitos e não aceitaram

o que fora oferecido pelos patrões. Mais uma vez, os industriais se reuniram, agora contando

com uma comissão de representantes dos operários. Foi deliberado o seguinte:

169

Os industriaes abaixo-assignados se compromettem a beneficar os seus operarios,

dando-lhes: 1º- dez horas de trabalho por dia; 2º- 20% de augmento de salario; 3º- o

pagamento será por metro e não por peça; 4º- de acordo com as actuaes necessidades

farão trabalhos extraordinarios, fora os teares, augmentando assim o serviço de 10

para 11 horas, sendo esse excesso pago a parte, á razão de serviço extraordinario; 5º-

não sera nenhum operario demitido do trabalho por motivo de greve (CRUZEIRO DO

SUL, 18 jul 1917, p. 2).

Nos anos seguintes, 1918 e 1919, aconteceram outras grandes greves em São Paulo e

em Sorocaba. A conquista pelos direitos não havia terminado. As ideias anarquistas

encontravam terreno fértil no meio operário, o que gerou perseguições, prisões, deportações.

Entretanto, uma artimanha foi engendrada pelo secretário geral do Centro das Indústrias de

Fiação e Tecelagem de São Paulo (CIFTSP), Pupo de Oliveira, que, durante a década de 20,

criou e operou uma rede de informações bem coordenada e dirigida contra os sindicatos, tendo

como parceiro o delegado de polícia Braulio de Mendonça. A ideia original do secretário-geral

era formar uma “lista negra” para identificar os operários ladrões das fábricas. Como ele mesmo

não tardou a compreender, seria útil como meio de “limpar a força de trabalho de elementos

indesejáveis, que operam dentro dela, em certas ocasiões, como fermento de indisciplina”. Os

nomes dos agitadores deveriam ser encaminhados pelas fábricas ao Centro das Indústrias de

Fiação e Tecelagem de São Paulo (CIFTSP), que os retransmitiriam às demais fábricas. Durante

vários meses, entretanto, não se fizeram listas de ladrões: a maioria dos nomes que figuravam

nas relações eram de simples operários que outras coisas não haviam feito senão “demonstrar

indisciplina” (DEAN, s/d, p. 177).

Visando aprimorar o projeto, numa ação conjunta com o departamento de polícia,

resolvem “elaborar dossiês de todos os trabalhadores, de modo que se pudesse averiguar-lhes

continuamente a fidedignidade e os trabalhadores em greve fossem impedidos de encontrar

emprego em outras fábricas.” (IDEM, p. 177). Essa prática foi aprimorada em Sorocaba, em

parceria com o Delegado Braulio Mendonça, como se constata no trecho transcrito a seguir:

A Delegacia Regional de Polícia desta cidade está fazendo activamente a identificação

dos operários das nossas fábricas devendo concluir até o fim do mez cerca de 6 mil

promptuarios. As fichas dos promptuarios são remetidas ao Gabinete de identificação

que communicará à Delegacia desta cidade se há na policia algo em desabono do

identificado. Cada promptuario deverá ser completado com a fotografia da pessoa

identificada (CRUZEIRO DO SUL, 19 out 1919, p.2).

Dessa forma, criou-se uma relação harmoniosa entre os próprios industriais, já que o

número de associados do CIFTSP aumentou após essas medidas, inclusive contando com

membros da própria polícia. É sabido que o número de greves, ao menos noticiadas pela

imprensa, diminuiu depois de 1922, porém a identificação dos trabalhadores na policia

170

provocou revolta no seio do operariado, obrigando o próprio CIFTSP a assumir a tarefa de

proceder à identificação científica (sic) de todos os operários.

Em Sorocaba os operários tinham a chamada “caderneta operária”, onde eram

registrados todos os fatos da vida do operário. Esses procedimentos, que foram disseminando-

se em todas as fábricas, contribuíram eficazmente para o enfraquecimento do movimento

operário.

De acordo do Bonadio (2004), a conduta autoritária e intransigente do patronato em

relação aos trabalhadores mantinha-se forte e viva no final da década de 1940. No entanto,

Angelo Vial, gerente da Fábrica Votorantim, aboliu a “lista negra” para a admissão de operários

e foi seguido nesse gesto por Heitor Antunes, administrador da Fábrica de Tecidos Nossa

Senhora da Ponte. Essa atitude - e a de Antunes - lhe valeu ferrenha vigilância pelos órgãos

policiais, que interpretaram seu procedimento como uma aproximação ao comunismo, apesar

de sua notória atuação como líder católico. Esses dois gerentes, também unidos pela primeira

vez na história do operariado sorocabano, pagaram um abono de Natal aos seus empregados.

2.5 Embates ideológicos entre os jornais Cruzeiro do Sul e O Operario

O jornal Cruzeiro do Sul, chefiado por Luis Pereira de Campos Vergueiro, representava

os interesses da burguesia e o jornal O Operário defendia os interesses da classe operária. Esses

dois jornais, por representarem interesses opostos, viviam numa interminável troca de insultos

e acusações. A respeito de certos eventos e situações, apenas pela exposição dos fatos de um

ou de outro jornal, torna-se difícil saber o que realmente aconteceu, uma vez que as narrativas

têm pontos de vistas e interesses totalmente opostos sobre os fatos.

Em seu primeiro editorial, o jornal O Operario rebatia críticas recebidas por outro

jornal, certamente tratava-se do Cruzeiro do Sul:

Antes do nosso aparecimento, já merecemos a honra de um combate: attribuiram-nos

uma origem mesquinha, a causa embryonaria duma paternidade politica claramente

apontada. Neste pressuposto, atacaram apenas o que se esboçava, o projecto desta

publicação, que visa um desideratum muito legítimo, qual é o de conseguir a união ou

a solidariedade da família operaria de Sorocaba (O OPERARIO, 18 jul 1909, p.1).

Não demorou muito tempo para o jornal Cruzeiro do Sul começar a rebater as críticas

feitas pelo O Operario sobre as condições vividas pelo operariado nas fábricas:

171

Appareceu no domingo passado o jornal «O Operario» atacando, em diversos artigos,

o pessoal superior e administrativo de algumas fabricas existentes. [...] A imprensa

subentende liberdade e a liberdade deve ser aproveitada em auxilio de algum generoso

pensamento de humanitarismo. Mas... e este é o ponto. «O Operario» será mesmo um

jornal, na significação precisa, exacta dessa palavra? (CRUZEIRO DO SUL, 30 set

1909, p.2)

Num tom provocativo, o Cruzeiro do Sul questionava a conduta desse novo órgão,

desfilando várias indagações: tinha uma orientação social, política ou filosófica? Qual a

doutrina que pretendia divulgar? Qual era a sua propaganda? Qual a defesa que pretendia?

Colocava em dúvida, ainda, a idoneidade de seus redatores.

Vêm os leitores quantas interrogações, sem respostas, acompanham n’uma assuada

forte, o excepcional paladino da classe operaria . . . Acompanham e acompanharão,

porque não pode a opinião publica consentir que se pratique, tão a vontade, negro

attentado de enganar honestos trabalhadores, querendo arrastal-os a um caminho

perigoso, com a affirmação de factos inveridicos (CRUZEIRO DO SUL, 30 set , 1909,

p. 2)

Para o Cruzeiro do Sul, parece que a versão do patrão é a única verdade e as revelações

dos abusos do mais forte sobre o mais fraco são um falseamento da realidade.

O período de convivência entre esses dois jornais foi marcado por embates constantes.

O Operário, enquanto defensor e aglutinador da classe operária, fazia as denúncias sobre o que

ocorria nas fábricas. O Cruzeiro do Sul rebatia essas denúncias e críticas e posicionava-se

claramente ao lado dos patrões. Entretanto, diante das acusações feitas pelo outro jornal,

lançava mão de um expediente que, à primeira vista, representava ser a expressão da verdade,

conforme se verá nos exemplos arrolados a seguir.

Em agosto de 1909, num fato já apresentado neste trabalho, o jornal O Operário fez

pesadas críticas à Fábrica Votorantim sobre a emissão de cartões com determinados valores

para a compra de gêneros alimentícios pelos operários somente num determinado

estabelecimento comercial, denominando essa prática de abusiva, pois não permitia que os

operários comprassem o que quisessem e nem onde quisessem. Para O Operario, o gerente da

fábrica Votorantim, Eugênio Mariz, era “conspicuo, intelligente, honesto”, porém

“deshumano” (O OPERARIO, 17 out 1909, p.1).

Em resposta a essa denúncia, o jornal Cruzeiro do Sul publicou um manifesto dos

operários da fábrica de Votorantim. Nele, os operários afirmavam-se satisfeitos com o sistema

de cartões e até o consideravam vantajoso e penhoravam total apoio a “digna gerência da

fábrica”. Afirmavam, ainda, que desaprovavam a postura “de um papelucho, que se diz jornal

defensor dos operários”, protestando energicamente contra essa publicação (CRUZEIRO DO

172

SUL, 5 out 1909, p.2). Seguiram-se, a esse manifesto, assinaturas de mais de 300 nomes de

operários, chefes de seção e funcionários do escritório da fábrica Votorantim.

Além do manifesto publicado pelo jornal Cruzeiro do Sul, os operários da fábrica,

acompanhados pela banda de música, foram “levar ao seu gerente os protestos da sua

solidariedade no momento em que um jornal o procurava desprestigiar aos olhos de seus

subalternos” (CRUZEIRO DO SUL, 2 out 1909, p.2). Após discursos que ressaltavam as

qualidades do gerente, ele distribuiu aos presentes “profuso copo de cerveja”.

Sobre essa manifestação, o jornal O Operário afirmou que os operários foram

pressionados a assinar o manifesto e, na manifestação na casa do gerente, a “ella so

compareceram creanças illudidas pelas promessas de distribuição profusa de marmelada e

bolachas” (O OPERARIO, 17 out 1909, p.1).

Em resposta as acusações do jornal O Operário, o Cruzeiro do Sul assim se manifestou:

Fique sabendo a gente do «Operario» que os operarios de Sorocaba são homens

altivos, honestos, criteriosos e prefiririam perder o emprego do que sujeitar-se ao

papel degradante de assignar um protesto contra a sua vontade. São homens pobres

mas honrados; e a pobreza não os impede na conservação de sua altivez, de sua

hombridade, -qualidades essas que a gente do «Operario» não as possue, porque se as

possuisse não proseguiriam nessa carreira polluta, ou antes, nem siquer a encetaria

(CRUZEIRO DO SUL, 13 out 1909, p.2).

Em outra situação, numa mesma edição, o jornal O Operário denunciou fatos ocorridos

em duas fábricas da cidade. Sob o título Violências de um gerente, referiu-se ao procedimento

do “prepotente e violento” gerente Julio Cugnasca, da fábrica Nossa Senhora da Ponte, que,

dentre várias arbitrariedades, estava obrigando todos os operários a contribuirem com a Santa

Casa de Misericórdia. Os descontos eram feitos nos “seus minguados ordenados” e, mesmo que

houvesse vários membros de uma única família trabalhando, todos sofriam os descontos. Na

mesma página, com o título Contra Mestre espancador, o jornal denunciou o tratamento

desumano dispensado, por parte de um encarregado, às crianças da fábrica Santa Maria:

O Contra Mestre da fiação daquelle estabelecimento industrial costuma

frequentemente, infligir aos menores sob sua direcção, castigos corporaes sem que até

agora tenha havido uma medida energica e prohibitiva desse acto de affronta aos

nossos brios, por parte do sr. Alberto, gerente daquella fabrica, que conhece de sobra

os procedimentos do seu subordinado (O OPERÁRIO, 26 set 1909, p.1).

Mais uma vez, o jornal Cruzeiro do Sul saiu em defesa dos patrões, anunciando uma

manifestação que seria “promovida pelos operarios daquelle estabelecimento, como protesto

173

contra as perfidas e perversas accusações que se tem feito aos distincto moço”. Referia-se ao

gerente da fábrica Santa Maria, Alberto Kenworthy.

Os operários da fábrica Santa Maria, tal qual os operários da fábrica Votorantim,

publicam, no jornal Cruzeiro do Sul, um manifesto onde repudiaram veementemente as

denúncias do jornal O Operário, seguidas de mais de trezentas assinaturas de operários. Num

determinado dia, esses operários, espontaneamente, “num numeroso prestito”, dirigiram-se à

residência do gerente Alberto Kenworthy, que fora avisado da “expontanea manifestação” para

prestar-lhe as devidas homenagens e agradecimentos por sua conduta correta na direção da

fábrica. De acordo com o Cruzeiro do Sul, participaram da manifestação o pessoal do escritório

da fábrica, mestres e contramestres e todos os empregados do estabelecimento. Finalizava o

jornal dizendo que “depois de algumas horas de agradavel e amistoso acolhimento, na

residencia do sr. Alberto Kenworthy, retiraram-se todos para o Club Sta. Maria, onde dera

começo á animada soirée”. Para esse jornal, a referida manifestação foi a demonstração maior

da amizade e da união que reinava entre os operários da Fábrica Santa Maria e o seu gerente.

Chama a atenção, na leitura do protesto dos operários da fábrica Santa Maria, o tom

raivoso com que eles se referem ao jornal O Operário, empregando termos como “papelucho”

mantido por “ calumniadores de profissão”. Finalizavam o manifesto com as seguintes palavras:

Não deveriamos ter descido tanto, para dar uma resposta a esses calumniadores de

profissão; mas diante de tão perfidas mentiras, vimos nos obrigados a vir destruil-as

com o exemplo mais frizante que é o de ter o sr. Alberto Kenworthy assumido a

gerencia da Fabrica ácerca de 5 annos e ainda conservarem-se nella mais de 60% dos

empregados que elle encontrou. E si ainda isso não basta, podem os responsaveis

desses papeluchos (que cremos não terem ido interrogar todos os operarios da Sta.

Maria, sem distincção de classe, que terão sempre palavras elogiosas a favor do sr.

Alberto Kenworthy, porque encontramos nelle o verdadeiro prototypo da honra, o

verdadeiro prototypo da caridade. Portanto acabem para sempre com essas vilanias,

por que do contrario reclamaremos como Lycurgo: a extincção dos homens inuteis a

sociedade (CRUZEIRO DO SUL, 12 out 1909, p.1).

Da leitura desse “vigoroso protesto”, chama a atenção os operários considerarem

insignificante uma rotatividade, em cinco anos, de 40% de operários. Outro ponto a ser

observado: não nos parece que havia uma animosidade entre os próprios operários, afinal, o

jornal O Operário tinha em sua direção operários, inclusive que trabalhavam na fábrica Santa

Maria. A utilização de termos tão violentos, rebuscados e elitistas assemelham-se muito ao

estilo da própria redação do jornal Cruzeiro do Sul, como o que segue:

Tal periodico, que se não sabe de onde veiu e para onde vae, sem responsavel, sem

programma, sem idéa e sem doutrina, já está reduzido á nullidade caracteristica dos

174

corpos imprestaveis, de onde nunca deveria ter sahido, pelo altivo e glorioso libello

lançado pela nobre classe dos homens do trabalho,—homens que não pactuam com o

sodalicio açafalado, com a mamcomunação retrograda e perversa de dois ou tres

individuos que não fazem parte da classe e que, por isso mesmo, pretendem a

derrocada da ordem e consequentes effeitos. A gente de tal folha, se possuir ainda um

vago resquicio de pudor, moralidade, e amor proprio, deve recolher-se

terminantemente aos seus bastidores, cobrindo o rosto deslavado com ambas as mãos,

—tal o dislate, tal o insuccesso de sua ignominiosa tarefa. E isso para seu bem, pra

socego do operariado honesto que não vive de intrigas, e para desafogo da linguagem

portugueza, cuja grammatica està sendo mais espezinhada do que as victimas da

aberração pathologica... (CRUZEIRO DO SUL, 13 out 1909, p.2)

No que diz respeito à instrução do operário, esses dois jornais também mantiveram

posicionamentos antagônicos, que serão tratados com mais detalhes no capítulo referente à

educação operária.

2.6 O fim do jornal O Operario

Em seu número inaugural, o jornal O Operario tecia os seguintes esclarecimentos sobre

a sua conduta:

Não pretendendo, ostensivamente, qualquer ligação partidária no munícipio, porque

nosso fito é outro, teremos, todavia, em occasiões opportunas, de lançar a publico uma

serie de verdades orientadoras da conducta do operariado, cuja educação civica

precisa ser completada, nem tanto para o conhecimento lucido de seus deveres para

com a Patria, quanto para a valorisação individual, que resultará a integra e perfeita,

a concepção de seus direitos de espirito e de consciência (O OPERARIO, 18 jul 1909,

p.1).

Ao apresentar a sua pretensão, o jornal deixou claro que a educação ideológica seria a

norteadora de suas ações para arregimentar e unir o proletariado. Para isso, no decorrer de suas

publicações, foi apresentando o que denominou de A essência do socialismo, com o intento de

aproximar o leitor dessas ideias.

Após a exposição dessas ideias, que permaneceram por vários números, sob o título O

que se faz necessário, concluíram que o ideal para a classe operária seria a instalação dos

sindicatos e a forma como isso ocorreria seria a partir do momento em que o operário pensasse

e agisse de maneira conscienciosa e racionalmente, que abandonasse a ideia de política, pois os

políticos são “charlatães”, que abandonassem por completo a crença desse mito chamado

“Pátria” e, ainda, que lutassem pela queda do direito de propriedade, pois “a propriedade não

passa de um roubo protegido por lei” (O OPERARIO, 27 ago 1911, p. 1). Essas ideias, assim

175

expostas, expressavam o ponto fulcral do anarcossindicalismo, tendência assumida por esse

jornal e por outros jornais da classe operária da época.

Entretanto, depois de um certo tempo de existência, o jornal foi apresentando uma linha

editorial que, em determinados momentos ou situações, mostrou-se ambígua ou até mesmo

contraditória, reflexo dos desentendimentos internos provocados, principalmente, por

divergências ideológicas entre seus redatores e colaboradores, que se dividiam entre anarquistas

e anarcossindicalistas.

A questão ideológica se mostrou mais marcante num desentendimento ocorrido entre a

redação do jornal O Operario e a União Operária Sorocabana quanto a maneira de se

comemorar o dia 1º de maio de 1912. A União Operária Sorocabana pretendia promover uma

greve geral em luto aos “mártires de Chicago” e enfatizar o seu caráter de luta no seio do

proletariado sorocabano. Já os redatores d’O Operário fariam o que sempre tinham feito até ali,

“participar de pic-nic’s”, fazer pronunciamentos elogiosos à organização do evento e à classe

operária e desfrutar da festa que se seguia (ARAUJO NETO, 2005, p. 98).

A partir desse impasse, sucederam-se acusações recíprocas acarretando um desgaste

entre as duas associações, uma vez que o O Operário, a partir de 13 de agosto de 1911,

apresentava-se como “propriedade de uma Associação Operária”. Esse ocorrido provocou certa

cisão dentro do movimento. A partir daí, a preocupação maior dessas duas associações passou

a ser a sua liderança na condução do movimento operário na cidade e não os interesses do

operariado em si. Apesar de a União Operária ter criticado a comemoração festiva proposta

pelo jornal O Operario, não fez muito diferente. Entretanto, apesar de noticiar com entusiasmo

a festa promovida pela União Operária, sutilmente, o jornal evidenciou a sua presença no evento

quando o “povo em massa” a notou, vindo cumprimentar o prezado companheiro do jornal, P.S.

Mesquita de Oliveira

Revestiu-se de um verdadeiro brilho a festa cívica comemorando a grande data

operária de 1º de maio, levada a effeito pela denodada União Operaria [...] Ás duas

horas da tarde começaram a chegar os convidados acompanhados de suas exmas.

Familias. [...] falaram os seguintes oradores: Dr. Passos Cunha; Eladio Antunha,

representante da federação Operária de Santos que n’uma bellissima peça oratoria

soube incutir o ideal da verdade no audictorio [...] formou-se o prestito: a bandeira

rubra desfraldada sob a guarda libertaria formosamente imponente de gentis operarias

que em grande numero deram um excepcional brilho a passeata, e depois em seguida

esta multidão operaria entoando enthusiasticamente o hymno operario ao som da

excelente banda de musica “6 de janeiro” [...] o povo em massa, aos vivas a liberdade

veio comprimentar a nossa folha, fazendo uso mais uma vez da palavra afim de nos

saudar o ardoroso Dr. Passos Cunha respondeu-lhe interpretando os nossos

agradecimentos o presado companheiro Mesquita [...] (O OPERARIO, 3 maio 1912,

p.3).

176

Sem muitas explicações ao público leitor, apareceu, no dia 23 de junho de 1912, a

informação de que o senhor Pedro Salles de Oliveira Mesquita, o grande companheiro, a partir

de “18 de corrente, deixou de ser nosso representante nesta cidade, e em qualquer ponto do

Brasil”.

Na edição seguinte, o jornal respondeu a um “artiguete” publicado por Oliveira

Mesquita, em seção paga no jornal A Cidade de Sorocaba, sobre a sua saída do jornal O

Operário.

[...] A declaração do Sr. Mesquita não tem valor algum, porquanto ella representa não

uma despedida da nossa redacção, mas sim um insulto proprio de quem não reflecte

aquillo que fez. A sua pouca idade provavelmente é o movel de tudo isso. [...]

podemos provar com artigos de sua lavra que temos em nosso poder e motivaram a

sua retirada do “Operario” (O OPERARIO, 30 jun 1912, p.2).

Após a saída de Mesquita de Oliveira, o jornal passou a atacá-lo repetidas vezes,

afirmando que ele tinha convertido-se ao jesuitismo e que pretendia candidatar-se a deputado,

condições totalmente avessas ao pensamento anarquista.

Entretanto, não foram apenas os desentendimentos internos, que extrapolavam as

paredes da oficina, que arranharam a sua imagem. O jornal assumiu uma postura extremamente

combativa e atacava de maneira imprevidente segmentos importantes da sociedade, como a

igreja católica, os políticos, a polícia, os industriais, enfim, os representantes conservadores da

sociedade.

O homem é religioso porque durante oitos longos seculos a igreja catholica imperou

em todo universo sem nunca dar um passo em beneficio aos trabalhadores, ao

contrario os explorou sempre vilmente e os explora até em nossos dias com os taes

sacramentos e em muitas partes d’America escravisa os indios enfligindo-lhe castigos

horriveis, nunca se preocupou com a instrucção dos operarios, mas ensinando-lhes

sempre mentiras, para humilial-o e conserval-o como uma besta, abrindo-lhe a porta

de todos os crimes com o perdão do confissionario (O OPERARIO 12 jan 1912, p.

1).

No entanto, um episódio ocorrido na fábrica Votorantim, que poderia ter passado

despercebido, assumiu grandes proporções e arranhou ainda mais a imagem do jornal e revelou

sua vulnerabilidade perante a comunidade em geral.

Aconteceu que, num determinado dia de novembro de 1911, a fábrica Votorantim

recebeu um grupo de frades que vieram conhecê-la. O gerente acompanhou o grupo, mostrando-

lhes todas as dependências da fábrica. Durante a visita, os frades foram recebidos com vaias

por grupos de operários, deliberadamente anticlericais. Incomodado com o ocorrido, o gerente

demitiu aquele que julgou ter sido o operário que mais se excedeu.

177

Sobre esse fato, o jornal O Operário, sob o título No Votorantim, assim noticiou:

Qual!... o Operariado do Votorantim está sempre na ponta em questão de

solidariedade!... Quarta-feira, 9 do corrente foi aparecendo sem mais nem menos

naquella fabrica um grupo de gorduchos padres, e como aquelle pessoal vota nos

homens da batina grande “amisade” receberam os padres com uma [...] vaia. Foi o

que bastou para que o mestre geral Snr. José Settimo dar a conta a um empregado

daquella fabrica. E como aquelle pessoal não é de ferro impuzeram ao mestre a

readimissão daquelle colega, abandonando o trabalho até que o mesmo fosse

admitido. Bella lição de solidariedade (O OPERARIO, 12 nov 1911, p.3).

Devido à demissão de um operário, houve uma paralisação parcial dos operários.

Entretanto, a situação agravou-se quando o gerente achou por bem demitir as famílias daqueles

que estavam envolvidos no ocorrido com os padres, num total de 17 famílias, que foram

sumariamente despejadas de suas casas na vila operária. Na edição seguinte, não esperando que

os fatos seguissem nessa direção, o jornal O Operário mudou completamente a maneira de se

referir aos padres, à fábrica e aos fatos e tentou justificar o ocorrido, alegando que este poderia

ter sido evitado:

[...] Os frades beneditinos em companhia do respeitável padre Luiz Scicluna, cujo

nome está ligado em feitos de verdadeiro amor a humanidade, foram visitar, cousa

muito natural, a mais importante fábrica do Estado, para della provavelmente levarem

as melhores impressões do nosso progresso material. [...] O gerente [...] conhecedor

bastante da indole da maioria dos seus empregados, do seu espírito avêsso a toda

crença religiosa, devia, pensamos nós, entreter os frades até a hora da saida do pessoal

e dahi ir mostrar-lhes socegadamente todas as dependencias do vasto estabelecimento,

sem o menor perigo, sem a minima perturbação (O OPERARIO, 19 nov 1911, p.2).

Apesar de ter mudado o tom, o jornal não conseguiu mudar a situação e os operários

retornaram ao trabalho após as demissões e o despejo das famílias. Nessa mesma notícia sobre

a greve, O Operário finalizou informando que “os operarios demittidos, porém, não

conseguiram rehaver os seus lugares”. (Idem, p. 2)

Nessa mesma edição, numa nota assinada por Petrus, sobre o desfecho desastroso da

greve, o autor admitou que “por uma infelicidade a greve daquelles nossos companheiros não

encontrou sympathia no seio do Povo – o verdadeiro juiz, mais não é por isso que se há de

deixar espulsar de uma localidade como o Votorantim perto de vinte famílias. ” (Idem, Ibidem,

p.2)

Na edição de 3 de dezembro de 1911, numa colaboração assinada por “Uma operária”,

sobre o despejo dessas famílias e a falta de solidariedade dos operários em aderir à greve, ela

escreveu:

Eu, como sou uma pobre mãe, que não possuo ouro, riqueza e sinto a necessidade do

trabalho, sei avaliar o sofrimento dessas famílias sem lar, sem pão e sem trabalho, por

178

culpa, somente, desses operários que se dizem nossos colegas, quando não são mais

do que uns verdadeiros ursos. Uma Operaria (O OPERARIO, 3 dez 1911, p.2).

Um outro acontecimento também seguiu um rumo inesperado pelo jornal, que fez uma

denúncia feroz sobre o que ocorria na fábrica de calçados Soares & Irmão:

A fabrica de calçados de Soares & Irmão tornou-se uma verdadeira penitenciária

russa. Ali se despede os melhores operarios, só porque professam ideiais anarchistas.

É um crime em ter brio, dignidade e independencia nessa fabrica. Aos proprietários

so lhes agradam os puxa-saccos, essa vil canalha que lhe serve de espiã e cousas

semelhantes. Ao bandido gerente de Votorantim, há outros para imital-o (O

OPERARIO, 10 nov 1912, p.2).

Pelas acusações feitas sobre a fábrica de calçados Soares & Irmão, o redator do jornal,

autor do texto, Joseph Joubert Rivier, foi processado por calúnia pelos proprietários da fábrica,

que tinham a orientação do hábil advogado Otávio Moreira Guimarães, pessoa muito influente

nos meios políticos da época. Essa não foi a primeira nem a única vez que o jornal precisou

responder por calúnia, mas foi a que teve consequências mais danosas. Sob o título Um homem

perigoso, o jornal Cruzeiro do Sul publicou o seguinte:

Quando pretendia ante-hontem obter uma licença para promover nesta cidade um

comicio contra a carestia de vida, foi preso, na delegacia de policia o conhecido

agitador Joseph Joubert condemnado pelo nosso tribunal de Justiça a 4 mezes de

prisão e 500$000 de multa por ter publicado em o extincto jornaleco “O Operario”,

artigos injuriosos á pessoa do nosso illustre amigo e distincto collaborador sr. dr.

Octavio Moreira Guimarães (CRUZEIRO DO SUL, 20 nov 1912, p.3).

O jornalista Joseph Joubert cumpriu a pena que lhe fora imposta e, durante o tempo que

ficou ausente, o jornal deixou de circular. Passado um tempo, respondeu processo judicial

aberto com base na Lei Adopho Gordo. Foi condenado e expulso do Brasil.

O desgaste do jornal foi inevitável. Até 2 de fevereiro de 1913, apresentava-se como

“Semanario de Combate”, de “propriedade de uma associação operaria”. Após essa data, houve

uma interrupção na circulação do jornal, exatamente no tempo da ausência de Joubert Rivier, e

reapareceu em 26 de outubro de 1913, agora como “Orgam Imparcial” e cujo redator era J.

Castro Lima, o mesmo do jornal Clarim da Luz, com colaboradores diversos. Houve um

segundo número, em 23 de novembro de 1913, e nada mais.

Independente de suas ambiguidades e contradições, é inegável a importância do jornal

O Operário na organização operária de Sorocaba. Se não teve vida longa, deixou um

direcionamento de luta e organização para a classe operária. Permitiu que os operários se

179

enxergassem como sujeitos de direitos, direitos que somente seriam conquistados por eles

próprios.

3. A EDUCAÇÃO E AS ESCOLAS PARA OPERÁRIOS

Escola para operarios, é a cousa mais necessaria e mais santa

que se possa imaginar, porque cada escola que se abre ,é um carcere que fecha

é n’ella que se reconhece o valor da liberdade.

(O Operario, 18 jul 1911)

Este capítulo tratará da educação operária, considerada pelo operariado tão importante

quanto as melhores condições de trabalho. Na verdade, consideravam que só atingiriam

melhores condições de trabalho através da educação. Para os libertários que abraçaram a

concepção pedagógica de Francisco Ferrer, o futuro era construído pela escola, porém, para que

a escola pudesse ser um veículo de uma nova sociedade, ela precisaria ser um centro em que

houvesse disseminada a verdade e em que a ciência, construída por todos, fosse igualmente

distribuída entre todos (GALLO, 2014)

Entendiam que o operariado necessitava de instrução para não ser tão explorado e que

somente pela luz da instrução conquistariam a liberdade. Os livros são a pólvora do espírito.

Essa era a síntese do pensamento dos operários em geral, no tocante à necessidade do

conhecimento, da educação na formação da pessoa, e, consequentemente, na melhora da

sociedade.

Para os libertários, a emancipação do operário só se daria pela educação, porém a

educação precisava ser conquistada e, por isso, também fazia parte da luta operária.

3.1 A educação em Sorocaba nos tempos do Império

No século XIX, pela imprensa sorocabana, é possível conhecer, mesmo que de maneira

vaga, aspectos sobre a educação no município, como era desenvolvida e, diga-se de passagem,

a situação não diferia da de outros lugares do país. Era, enfim, uma educação precária, fruto do

pouco interesse dos governos em oferecer uma educação principalmente voltada para os mais

pobres, que representavam a maioria da população.

180

As notícias sobre as primeiras escolas e professores de Sorocaba são trazidas por Aluísio

de Almeida, que conversou com pessoas, pesquisou em arquivos da Diocese de Sorocaba,

mergulhou na leitura de jornais de época, vasculhou documentos existentes no Gabinete de

leitura, entre outros.

Conforme esse autor salienta, a primeira escola pública de Sorocaba foi criada quase

duzentos anos após a fundação da cidade. Um longo período transcorreu em que a população

sorocabana permaneceu na mais crassa ignorância, contando apenas com esparsas iniciativas

de escolas particulares, quase sempre de vida efêmera. Em 1831, o professor Jacinto Heliodoro

de Vasconcelos, conhecido por Mestre Jacinto, foi nomeado professor da única escola pública

de Sorocaba, a qual atendia somente meninos. Para tomar posse, mestre Jacinto demorou mais

de meio ano. Chegou a oficiar ao Presidente da Província que a Câmara de Sorocaba não lhe

provera com os recursos necessários para o desenvolvimento das aulas, como sala e bancada,

já que pretendia seguir a lei através do Ensino Mútuo. O Ensino Mútuo, ou Lancasteriano,

consistia no ensino dado pelo mestre a alguns alunos mais adiantados, que tinham por

incumbência repassá-lo aos demais, em grupos de dez alunos, daí o nome de decurião para o

aluno monitor. De acordo com Dermeval Saviani (2010), o método supunha regras

predeterminadas, rigorosa disciplina e distribuição hierarquizada dos alunos, sentados em

bancos dispostos num salão único bem amplo. De uma das extremidades do salão, o mestre

sentado numa cadeira alta, supervisionava toda a escola, em especial os monitores. Com o

Ensino Mútuo, buscava-se a aceleração do ensino, atingindo rapidamente e a baixo custo grande

número de alunos. Em Sorocaba, o Ensino Mútuo foi praticado até 1887.

O próprio Aluísio de Almeida comenta que, em Guareí, sua cidade natal, ainda em 1887,

praticava-se também essa modalidade de ensino e prossegue esclarecendo que os padres do

Mosteiro de São Bento, com pena do professor Jacinto, cederam-lhe uma sala no andar térreo

e “ele aguentou lá com seus cem alunos, lotação, com cinco horas por dia. Ensinava ainda em

1855” (DIÁRIO DE SOROCABA, 22 out 1965, p.2).

A primeira escola pública feminina de Sorocaba ficou a cargo da professora Vicentina

Adelaide de Vasconcelos. Essa professora, em 30 de agosto de 1841, prestou exame, na câmara,

perante os doutores José Maria de Souza e Vicente Eufrásio da Silva Abreu. Logo após a

aprovação, tomou posse da 1ª escola feminina de Sorocaba. Lecionou por mais de 30 anos numa

escola mantida por ela numa rua central da cidade. Essa foi a primeira escola pública para

meninas, pois, em 1824, já havia duas particulares (DIÁRIO DE SOROCABA, 22 mar 1955).

Em seu relatório ao Inspetor, sobre o andamento das aulas e aproveitamento das alunas,

a professora Vicentina Adelaide de Vasconcellos “lastimava-se de que as alunas só

181

freqüentavam as aulas nas horas em que se ensinavam os trabalhos de costuras e bordados”. Por

outro lado, “outras discípulas, apenas aprendidos os rudimentos de leitura e escrita, deixavam

de freqüentá-las, visto as mães precisarem delas para os serviços caseiros e julgarem um luxo

a jovem saber as quatro operações”. Para os Inspetores, o problema estava diretamente

relacionado à “desídia e à ignorância das mestras” (MENON, 2000, p.101).

Em 4 de maio de 1872, sem muitos detalhes, apareceu um anúncio, no jornal Ypanema,

sobre uma escola particular de instrução primária, localizada na rua de São Paulo, no centro da

cidade, regida “pelo preto João, escravo de Joaquim Cardozo” (YPANEMA, 4 maio 1872, p.2).

Infelizmente, não foram encontradas outras fontes que pudessem corroborar ou até mesmo

detalhar como transcorriam essas aulas ministradas pelo escravo e a quem eram destinadas.

No ano de 1872, o jornal Ypanema, numa sucessão de artigos publicados em partes,

entre denúncias e propostas inovadoras, apresentou o retrato da situação do ensino na época e

os reflexos dessa situação não só em Sorocaba, mas em todo o país.

No primeiro artigo após a exposição das mazelas do ensino, como medidas reparadoras,

o articulista aventou a possibilidade de o ensino ser entregue para um número maior de

“senhoras” e que as escolas passassem a ser mistas. O articulista via como vantagem as aulas

serem ministradas por mulheres, como já vinha ocorrendo com sucesso nos Estados Unidos da

América do Norte, pois os alunos do sexo masculino “tornam-se mais polidos”. Criticava as

“estufas em que mettem nossas crianças que ficam pregados nos bancos escolares por 5 horas

de aula, sem atividades diferenciadas como a educação física” e a pouca valorização que tinha

o professor

.

O professor entre nós é mal pago. Este facto traz como consequencia arredar do

magisterio, não dizemos já os homens verdadeiramente superiores, mas até as

capacidades medianas. É o ensino a ultima taboa de salvação para os que reconhecem

sem prestimo para qualquer emprego. [...] Sobre esses importantes encarregados da

mais elevada missão social, recae a desconsideração nem sempre justa, que de

ordinario acompanha a ignorancia e a miseria. Mal retribuido pelo estado,

desestimado pelo publico, sem força moral para com os proprios discipulos o mestre

cae em profundo desanimo, e trabalha como o escravo porque a desdita o obriga a

isso, mas amaldiçoando a sorte (YPANEMA, 2 jun 1872, p.1).

Para um leitor desavisado quanto a época em que fora escrito esse texto, bem pode

considerar tratar-se de assunto atual sobre a educação brasileira, tal a semelhança das

circunstâncias. Apesar de decorrido tanto tempo desde sua publicação, ainda permanecem os

baixos salários, a desvalorização do profissional e o descaso das políticas governamentais em

relação à escola pública,

182

Na sequência dos artigos denominados Escólas, em outra publicação, não é possível se

reconhecer a identidade do articulista, porém o texto leva a crer que se tratava do próprio redator

do jornal, uma vez que ele expunha o que acontecia em Sorocaba. Referia-se o autor à questão

dos prédios escolares. Como não havia prédios públicos para as escolas, o professor tinha de

tirar de seu “miseravel ordenado uma quota para casa”. Entretanto, nem sempre o local

escolhido ou aquele disponível para a realização das aulas oferecia condições adequadas, como

espaço arejado, bem iluminado e limpo.

Nesta cidade ha uma escola em que os bancos não chegam para os alumnos. Por

alguns annos reclamou o professor e nada conseguiu. Os paes pobres, e muitas vezes

os mesmos abastados, não dão aos meninos livros, papel, pennas, lapis, etc.; o Estado

de tempos em tempos manda quatro cathecismos para abastecer cada escola

(YPANEMA, 13 jun 1872, p. 2).

Nesse mesmo artigo, denunciava-se a maneira vergonhosa de trabalhar a que se

prestavam as inspetorias das escolas. Questionava-se a inspeção das escolas, se não deveria ser

executada por elementos competentes e afinados com o ensino, para acompanhar o

desenvolvimento das escolas, auxiliando-as em suas necessidades, fossem elas financeiras ou

pedagógicas. Segundo a publicação, as inspeções tinham se transformado numa fiscalização

feita por analfabetos investidos das funções de censores, fiscais e conselhos dos mestres.

Transformara-se, portanto, em “arma do partido”, mas, conforme denunciado no artigo,

“Degradar o professor exigindo-lhe o voto e adhesão ao governo em troca de um attestado;

traficar com o que ha de mais sancto, a creança e o futuro da patria, é a nosso ver profanação

para ser estigmatisada por todo o homem de bem” (IDEM, 1872, p.2).

O autor prossegue apontando outras necessidades educacionais, como os cursos

noturnos destinados aos operários que trabalhavam durante o dia. Apesar de ser reduzido o

número de operários que estudavam, a educação era tida como necessária não só para os homens

adultos como também para os meninos trabalhadores. Com os cursos noturnos, os operários,

ocupados durante o dia com o trabalho, iriam à noite procurar o estudo “em vez da taberna, da

casa de jogo, ou do lupanar”. Entretanto, condenava a atitude do governo em relação às escolas

noturnas, criadas por “homens de boa vontade”, que eram vigiadas, perseguidas, cercadas pela

polícia e denunciadas pela imprensa e igrejas como invenções de protestantes e pedreiros livres.

“Chegou-se a reclamar o augmento da força publica para conter a invasão do abc. Foi preciso

que o Imperador dissesse: ‘Mas, meus Srs., eu não tenho medo de escolas, desejo-as ’”

(YPANEMA, 13 jun 1872 p. 2).

183

Sorocaba, em 1872, contava com duas escolas públicas para o sexo masculino, duas

para o sexo feminino, três particulares para o sexo masculino, duas particulares para o sexo

feminino e uma escola noturna masculina mantida pela Loja Maçonica Perseverança III,

conforme informação publicada pelo jornal Ypanema de 21 de novembro desse ano. Todas essas

escolas ofereciam educação primária. A educação secundária pública era algo praticamente

inacessível para a população em geral, não só na cidade de Sorocaba como em outras da região,

conforme se constata na publicação feita pelo jornal O Sorocabano do relatório do presidente

da província de São Paulo, apresentado à Assembleia Provincial em 1870, que pedia a supressão

das aulas de latim e francês, pois o número de alunos frequentes estava aquém do estabelecido

pela lei para o seu funcionamento, que deveria ser de no mínimo 18 alunos.

Em instrucção secundaria das publicas que tinha anteriormente a provincia, só restão

as tres aulas de latim e francez das cidades de Itú, Sorocaba e Santos. A de Itu’ contém

actualmente 40 alumnos matriculados, dos quaes 36 são frequentes. A de Sorocaba

contem 10 alumnos matriculados e frequentes (O SOROCABANO, 20 mar 1870, p.3).

Argumentava o jornal que, pelo fato de não existir em Sorocaba escolas de instrução

secundária particulares, era imperdoável suprimir aquela mantida pelos cofres da província. Se

isso fosse feito, certamente seria motivo para se lastimar futuramente. Então o jornal fez um

apelo aos pais de família, responsáveis pelo futuro de seus filhos, para que os mandassem à

escola, a fim de evitar a sua desativação. Mas foi em vão, o presidente da província suprimiu

as cadeiras de latim e francês da cidade e o jornal se manifestou dizendo: “Lastimamos que este

facto se desse tendo por causa a falta de alumnos em uma cidade populosa e importante como

esta” (O SOROCABANO, 20 mar 1870, p.3).

Iniciativas particulares surgiam a fim de atender as demandas mais urgentes sem, no

entanto, se constituir uma educação formalizada, como se depreende do anúncio publicado por

Nicolau José de Athouguia, que se oferecia a explicar o sistema métrico. Ao que parece, não se

tratava de um professor, pois na edição de 13 de fevereiro de 1870 aparece um anúncio dessa

mesma pessoa como “dentista americano” e o seu local de atendimento.

Attenção - Nicoláo José de Athouguia, propõe-se a esplicar o systema metrico decimal

que tem de ser adoptado em todo o Imperio por Lei de 26 de Junho de 1862. As lições

serão tres vezes por semana das quatro as seis horas da tarde. 6$000 reis mensaes para

as pessoas que poderem pagar. Aos pobres gratis (O SOROCABANO, 20 mar, 1870,

p.2).

Em 1874, começou a funcionar o Colégio União Sorocabana, oferecendo instrução para

os dois sexos, porém com as aulas completamente separadas. O professor dos meninos era José

184

Raimundo de Vasconcelos. O regime de disciplina dessa escola era tão rigoroso que sete alunos

de Tietê fugiram no meio do ano letivo. Em 1875, continuou a seção feminina, dirigida pelas

professoras norte americanas H. Wullul e Ana Wilk (DIÁRIO DE SOROCABA, 22 out 1965).

Em 1º. de dezembro de 1875, o jornal A Voz do Povo tecia vigorosa crítica ao governo

sobre o abandono em que se encontrava a questão da instrução, tanto na província de São Paulo

como no país. Para o jornal, restavam apenas dois meios para melhorar o ensino no país:

melhorar os salários dos professores e criar mais “cadeiras”. Asseverava que o serviço mal pago

consequentemente é mal feito e, por isso, não era de se estranhar que o professor pouco se

esforçasse para o progresso de seus alunos, limitando-se apenas a cumprir a sua obrigação.

A questão da instrução sempre figurou nas páginas da imprensa sorocabana, quase

sempre motivada por críticas exaltadas pelo estado lamentável em que o governo imperial

conservava a instrução no país. Sorocaba, por sua vez, um dos mais importantes municípios do

sul da província, com população calculada em 13 mil habitantes, contava com três escolas

primárias para o sexo masculino e duas para o sexo feminino. Havia a promessa do governo de

criação de mais uma escola masculina e o jornal propunha também a criação de mais uma escola

feminina, por uma “questão de justiça”, tendo em vista o aumento anual do número de meninas

que procuravam a escola.

A fim de retratar fielmente a realidade escolar, o jornal Ypanema apresentou

interessantes dados estatísticos:

O numero de menores livres, de 6 a 15 annos de edade, segundo o recenseamento feito

em 1872, subia a 2.630; d’estes só frequentavam as escólas 469 ou 17,83% [...] Pelo

já referido recenseamento, vê-se que a população d’este municipio era de 13.999

habitantes, sendo 3.456 escravos e 10.543 livres. D’estes receberam instrucção,

incluidos aquelles que mal assignavam seus nomes 1884 e jaziam na mais crassa

ignorancia 8.659 ou 82,13% (YPANEMA, 20 jul 1876, p.2).

Somente a título de informação, cabe esclarecer que a denominação escola, nos tempos

do Império, tem uma conotação bastante diferente da escola hodierna enquanto organização.

Uma escola era de responsabilidade do professor que assumia a cadeira, ou seja, era

incumbência do mestre encontrar o local onde seriam ministradas as aulas, adotar a própria

metodologia de ensino, bem como escolher do material didático, que algumas vezes era enviado

pelo governo, quase sempre de maneira parcimoniosa. Somente deveriam receber material

aqueles comprovadamente carentes, o que representava a maioria dos alunos. Nem mesmo

seguir um calendário oficial era possível, uma vez que dependia muito da época de ingresso do

professor. A única incumbência do governo para com essas escolas era o fornecimento da

mobília, o que nem sempre era feito.

185

O anúncio reproduzido abaixo demonstra o engajamento do professor nesse processo de

formação de turmas.

Eu, abaixo assignado, professor formado pela Eschola Normal de São Paulo, tenho a

honra de participar aos senhores paes de familia que as aulas de primeiras lettras da

terceira cadeira d’esta cidade se abrem hoje, pelas 9 horas da manhã á rua da Matriz,

n. 9. Os meninos que foram enviados à eschola deverão trazer as seguintes

declarações: de seu nome, do nome de seu pae, tutor ou pessoa, em cujo poder estiver,

de sua naturalidade, nacionalidade e de sua edade, para os devidos assentamentos no

livro de matrícula; art. 94 § § 1º, 2º, 3º 4º e 5º do Regulamento da Instrucção Publica

de 18 de abril de 1869. Sorocaba, 23 de março de 1877 – Fidelis de Oliveira

(YPANEMA, 6 abr 1877, p.4).

O fato de o professor manter a escola às suas expensas não ocorreu somente nos tempos

imperiais, estendeu-se muito além desse tempo. Mesmo após a proclamação da República, com

as reformas educacionais ocorridas e a criação de uma legislação organizadora do ensino, esse

encargo se manteve, como atesta o relato sobre seu tempo de professora feito por D. Brites à

Eclea Bosi e publicado no belíssimo estudo sobre as Lembranças de velhos (BOSI, 2004,

p.324):

.

Em 1925 fiz concurso para a capital e fui trabalhar na Fábrica, no ponto final do bonde

Fábrica. [...] Uma colega e eu alugamos uma sala na rua Lino Coutinho onde era a

fábrica do Jafet. O ordenado era trezentos mil-réis por mês e o aluguel da casa era cem

mil-réis. O pessoal explorava porque sabia que a professora precisava daquele canto.

[...] Quando cheguei no primeiro dia de aula já estavam algumas crianças espiando

para ver se a gente chegava. Preguei na porta um cartão: “Matrículas para o primeiro

ano”; apareceram mais crianças. Com as crianças eu lavei a escola, que estava suja,

arrumei as carteiras, comprei uma vassoura, arranjei um balde. Jogamos água no chão,

lavamos a porta, as vidraças. Às cinco horas a sala já estava limpa para começar a aula

no outro dia. Foi assim que comecei.

Não obstante todos os empecilhos encontrados para o bom desenvolvimento da

educação, os exames finais das duas escolas femininas e das duas masculinas, do ano de 1877,

em Sorocaba, foram realizados e publicados pelo jornal Ypanema, com o devido destaque, o

que acena para a relevância da educação.

Começaram hontem os exames nas escólas primarias d’esta cidade, sob a inspectoria

do sr. José Marques da Silva Pavão, principiando pelas do sexo feminino, de que são

professoras sras. Vicentina Adelaide de Vasconcelos e Januaria de Oliveira Simas.

Assistimos aos exames de ambas as escólas, e podemos assegurar que o grande

aproveitamento tem obtido as meninas pela maneira satisfatoria porque responderam

nas diferentes materias em que foram examinadas. As meninas da 2ª cadeira regida

pela exma sra. D. Januaria mostraram grande progresso e adeantamento nos trabalhos

de agulha e prendas domesticas que attestam o interesse e dedicação de sua distincta

professora. Um voto de louvor áquellas distinctas professoras e os nossos parabens

pela maneira que viram satisfeitos os seus esforços (YPANEMA, 4 dez 1877, p.3).

186

Sobre os exames das escolas femininas realizados e noticiados é possível depreender

que provavelmente não só o jornal, mas a própria instituição escolar dava um valor maior aos

trabalhos manuais confeccionados pelas alunas do que ao desempenho delas nas disciplinas

estudadas. O mesmo ocorre com o trabalho das professoras, como no caso da professora D.

Januária, cuja dedicação foi evidenciada por meio dos trabalhos de agulha executados pelas

alunas, que de fato era o mais valorizado.

É possível que o desempenho de suas alunas tenha ficado aquém do esperado e que

aquele que escreveu a notícia tenha procurado algo de positivo para conservar o brilhantismo

do evento, prática bastante utilizada. Apesar disso, considerando-se que o papel da mulher na

sociedade visava somente ao matrimônio e à maternidade, o fato de as alunas aprenderem a ler

e escrever pode ser entendido como avanço para a época e como mudanças nos rumos da

sociedade. Certamente as ideias liberais estavam despontando e instalando-se na sociedade

brasileira.

Esse mesmo jornal também registrou os exames das escolas masculinas, mas não o fez

com o mesmo entusiasmo:

Os exames correram regularmente, mostrando os srs. professores Fidelis de Oliveira

e Venâncio José Fontoura que fizeram o que era humanamente possível para o

progresso da instrucção em vista das repetidas faltas dos meninos. Podemos, portanto

com razão dar os parabens aos srs. paes de famílias sorocabanos, pela boa

administração do ensino que recebem seus filhos (YPANEMA, 7 dez 1877, p. 2).

Outro ponto interessante a ser assinalado a partir da leitura dos jornais pesquisados,

independente de posicionamento ideológico ou a quem eles pertencessem, em todas as vezes

que foram retratados os exames das escolas públicas, principalmente após a República, não foi

encontrada, uma única vez, algum demérito aos professores, nem por parte dos jornais e nem

pelas bancas examinadoras, que quase sempre finalizavam as sessões de exames com um voto

de louvor ao professor. Surgem, portanto, algumas indagações. Seria uma forma de incentivo

ao mestre, tão desprestigiado? Apontar um trabalho sem qualidade em público seria

constrangedor tanto para quem o fizesse como para quem o recebesse? Havia uma

compreensão, por parte da imprensa e da banca examinadora, das condições adversas nas quais

era realizado o trabalho do professor, daí sempre um parecer favorável?

Esse reconhecimento ao trabalho do professor estava previsto no Regimento Interno das

Escolas Púbicas do Estado de São Paulo de 1894, conforme pode ser constatado no seguinte

artigo: “Art. 55 - Si algum professor do districto de reconhecida dedicação, inteligência e

moralidade, si tornar digno de menção por terem os seus alunos apresentado grande

187

aproveitamento, o inspector o indicará ao Conselho Superior, para lhe ser conferida nota de

louvor (REGIMENTO INTERNO ... 1894).

Em 1887, a província de São Paulo como um todo tinha apenas 29% de alfabetizados e

um professor para cada 1.156 habitantes, ao passo que a capital tinha um professor para cada

596 habitantes (ARAUJO JR, 2007).

Nesse ano, na busca de promover a educação secundária no município, a Câmara

Municipal de Sorocaba resolveu instalar um Lyceu Municipal. Depois de encontrado o local

para instalação da escola e de realizada a compra do mobiliário, fora aberto concurso para a

seleção dos professores. Candidataram-se à vaga de professor os srs. Arthur Gomes e Ernesto

Babo, que realizaram as provas e cujo desempenho foi o seguinte:

Em Portuguez, os candidatos fizeram provas boas, ficando em primeiro logar Arthur

Gomes, em segundo Ernesto Babo. Em Francez exhibiram tambem boas provas,

ficando em primeiro logar Arthur Gomes, em segundo Ernesto Babo. Em Inglez as

provas foram soffriveis, ficando em primeiro logar Arthur Gomes, em segundo

Ernesto Babo. Em latim, porem, as provas exhibidas foram más, sem classificação

possivel, pois a prova escripta de Gomes foi nulla, a de Babo foi má e má a oral

produzida por ambos, o que os inhabilita para o ensino d’esta materia. A commissão

com esta envia as provas escriptas. Sorocaba, 24 de Agosto de 1887. – Joaquim

Toledo Piza e Almeida. José Zacharias de Miranda. Antonio José Ferreira Braga.

José Francisco Uchoa (DIÁRIO DE SOROCABA, 26 out 1887, p.2).

Diante dos resultados aquém do esperado dos dois candidatos, houve uma cisão entre

os membros da comissão examinadora e a Câmara Municipal. Uma parte entendia que nenhum

dos dois candidatos poderia ser considerado aprovado, devendo-se realizar novo concurso.

Outros entendiam que o professor Arthur Gomes poderia ser nomeado professor interino,

mesmo tendo sido sua prova de latim nula, ou seja, mesmo inabilitado para essa disciplina, ele

poderia lecioná-la. E foi o que prevaleceu.

O impasse surgido quanto a escolha dos professores demonstra o quanto a formação

docente precisava de ajustes. O Lyceu, que pretendia promover uma educação de qualidade,

iniciava suas atividades com um professor que não sabia latim, cujo estudo era conteúdo

indispensável do português, visto que sem o latim não havia ortografia possível, segundo o

pensamento da época. Entretanto, seleção rigorosa também se estabeleceu para o

preenchimento das vagas para os estudantes no referido Lyceu. Em reunião na Câmara

Municipal ficou estabelecido que, para que o Lyceu Municipal tivesse pleno êxito, seriam

necessárias as seguintes condições:

1.ª. Não admittir a matricula meninos ou moços que não saibam lêr e escrever as

materias ao menos regularmente;

188

2.ª. Para isso haverá um exame de sufficiencia, pelo qual se verificará si os candidatos

á matricula estão no caso de se matricularem;

3.ª. Dever-se-á nomear uma commissão de tres membros, comprehendendo o

professor, para esse exame, sendo o Presidente um vereador;

4.ª. Constará o mesmo de leitura e escripta de um trecho facil escolhido na occasião,

podendo ser um dictado qualquer, uma vez que seja facil para a escripta na pedra ou

quadro negro;

5.ª. Dos exames se lavrará uma acta que será assignada pela commissão, servindo de

secretario o professor;

6.ª. Estes exames terão logar no fim das ferias de Dezembro, sendo feita a inscripção

dos candidatos durante as mesmas;

7.ª. O professor será obrigado a marcar as faltas dos alumnos, bem como tomar nota

das lições e comportamento de cada um.;

8.ª. Apresentará annualmente um relatorio circumstanciado do movimento do Lyceu;

9.ª. Haverá todos os annos exames das materias ensinadas no Lyceu, tendo logar nos

ultimos quatro dias do anno letivo, constando o mesmo de prova escripta e oral.

10.ª. Para esses exames será nomeada uma commissão examinadora pela Camara,

comprehendendo o professor que servirá de secretario para lavrar uma acta dos ditos

exames, que serão presididos por um vereador. Sala da Camara Municipal, 9 de

Janeiro de 1888. – F. M. França.” Posta em discussão e votos, foi ella unanimemente

approvada. (DIÁRIO DE SOROCABA, 24 jan 1888, p.3).

Em 5 de novembro de 1887, o Lyceu Municipal foi instalado num salão do prédio nº.

12 da rua São Bento. Contava com um único professor, Arthur Gomes, que lecionava português,

francês, inglês e latim, ainda que tivesse sido reprovado na prova de habilitação. Na ocasião da

instalação, matricularam-se 16 alunos.

Nesse mesmo dia em reunião da Câmara Municipal o professor Arthur Gomes prestou

juramento ao assumir o cargo de professor interino do Lyceu. Na ocasião, o presidente da

câmara apresentou e leu o programa de ensino que deveria ser seguido e que foi transcrito no

livro ata da câmara municipal:

PROGRAMMA DE ENSINO DO LYCEU MUNICIPAL – Portuguez: Leitura de

trechos classicos da selecta de Aulete e leitura de poesia. Tudo com expressão,

havendo explicação do professor. Dictado. Composição sobre varios assumptos.

Reducção de verso a prosa. Grammatica de Freire. FRANCEZ: - Leitura, traducção e

versão, Chateaubriand e Théatre Classique. Dictado. Grammatica de Savènne.

INGLEZ: - Leitura, tradução e versão. Escripta na pedra. Adoptam-se os livros da

Academia. Grammatica de Motta. LATIM: - Leitura, traducção e versão. Adoptam-

se os livros da Academia. – As materias serão ensinadas: Portuguez e Latim em um

dia, Francez e Inglez no dia immediato. As horas do ensino serão quatro em cada dia,

começando ás dez da manhã e terminando ás 3 da tarde, havendo uma hora de

intervallo do meio dia a uma hora da tarde. São feriados os dias sanctificados, os de

grande galla e festas nacionaes, de entrudo e de cinza, de Domingo de Ramos a

Domingo de Paschoa, o dia de finados e de 8 de dezembro a 6 de Janeiro. Sorocaba,

5 de Novembro de 1887. – Fernando M. França. Brasilico Paes de Barros. Antonio

Monteiro de Carvalho e Silva. José Padilha de Camargo. Antonio Maria de Góes.

(DIÁRIO DE SOROCABA, 10 jan 1888, p.3).

Em março de 1890, o jornal Diário de Sorocaba publicava que a Intendência Municipal

decidira modificar o programa de ensino daquele estabelecimento de instrução, considerando o

189

distanciamento existente entre o que se ensinava no Lyceu e as reais necessidades de seu

público. Dessa forma, as aulas de inglês seriam substituídas por “arithmetica, geometria,

compreendendo desenho linear, geografia, compreendendo cosmografia e conhecimentos

gerais” (DIÁRIO DE SOROCABA, 20 mar 1890, p.2).

Em 1891, o professor Arthur Gomes pediu exoneração de seu cargo de professor do

Lyceu Municipal, pois passara num concurso de escrivão de um cartório. As aulas foram

interrompidas por alguns meses, sempre com a promessa de que retornariam. Em fevereiro de

1893, o jornal Diário de Sorocaba anunciava o encerramento das atividades do Lyceu

Municipal, residindo na falta de alunos o motivo principal.

A trajetória do Lyceu Municipal evidencia as dificuldades maiores enfrentadas pela

educação. O reduzido número de alunos deixa claro o quanto a educação, especialmente a

secundária, era privilégio de poucos.

No estertor do Império, fora criado, por meio da lei nº. 81 de 6 de abril de 1887 e

Regulamento de 28 de março de 1888, o imposto de capitação, a fim de constituir um fundo

para prover o custeio da instrução. A referida lei determinava que esse fundo seria:

Art. 1º. – Destinado exclusivamente á manutenção e auxilio do ensino publico é

instituido o imposto de capitação que recahirá sobre o chefe de cada familia com

domicilio e economia propria existente, nesta cidade ou seu municipio, e sobre os

referidos no art. 3.

§ Unico – Para os effeitos do presente artigo consideram-se chefe de familia o esposo

ou a esposa, viuvo ou viuva, ascendente, collateral, descendente, pai ou mãe adoptivo,

a quem se atribue a superintendencia e autoridade moral sobre o lar domestico.

Art. 2º. – O imposto de capitação será annual, cujo lançamento effectuar-se-ha tendo

por criterio o valor do predio que habitar o contribuinte, da maneira seguinte: Até

10:000$000, 5$000; de 10:000$000 para mais, 10$000.

Art. 3º. – Ainda que não sejam chefes de familia, ficam sujeitos ao imposto de

capitação os industriaes, commerciantes e funccionarios publicos, tomando-se neste

caso para base do lançamento o predio onde funccionar a industria ou estabelecimento

commercial, para as duas primeiras classes, e o predio de moradia para os ultimos.

Art. 4º. Em caso nenhum se cobrarão duas taxas ao mesmo contribuinte, prevalecendo

sempre a maior para o lançamento (DIÁRIO DE SOROCABA, 25 ago 1890, p.2).

A criação desse imposto visava à melhoria da instrução em geral, entretanto, acarretou

algumas situações não previstas e que tiveram repercussão negativa em Sorocaba, conforme

publicação do Diário de Sorocaba. Acusava esse jornal que, após a criação do imposto, o

governo deixara de fornecer o que era necessário para as escolas. Por outro lado, também os

pais entenderam que, uma vez pagos os impostos, não tinham que providenciar mais livros,

papéis e outros materiais necessários ao estudo de seus filhos. Sem contar que o povo, em sua

maioria, resistia ao pagamento desse imposto. O reflexo dessa situação de pouca vontade entre

os maiores interessados resultava em mais um ônus para o professor que, de um jeito ou de

190

outro, precisava suprir essas falhas e, portanto, “menos apego destes no cumprimento de seus

deveres” (DIARIO DE SOROCABA, 25 ago 1890, p.2).

Outro agravante sobre o mesmo imposto também fora denunciado pelo jornal Diario de

Sorocaba. A cobrança desse imposto passou a ser determinada pela Câmara Municipal, que

passou a taxar os imóveis de maneira exorbitante, provocando reclamações por parte dos

munícipes, especialmente os operários tão pobres. Em alguns casos, o cálculo para a cobrança

do imposto fora triplicado.

Por essa lei, aliás clarissima, fica sujeito ao imposto de 5$000 o chefe de familia que

residir em predio cujo valor seja de 2 até 10 contos e o imposto é de 10$000 rs. (para

o predio acima de 10 contos). Fica isento do imposto o operario que residir em predio

de valor inferior a 2:000$000 rs. Assim sendo, não sabemos como explicar o facto da

não observancia das disposições da lei, elevando-se ao triplo o valor dos predios em

que residem pobres operarios, predios cujo valor não excede de 2 contos, e cobrando-

se a alguns contribuintes o imposto de 15$000 rs. (DIARIO DE SOROCABA, 25 ago

1890, p.2).

Até 1901, apareciam notas sobre a cobrança desse imposto, a partir das quais percebe-

se que houve a correção dos valores cobrados. Depois disso, o jornal não abordou mais esse

assunto.

3.1.1 A Escola Popular

E um fato novo se viu

Que a todos admirava:

O que o operário dizia

Outro operário escutava.

(Vinicius de Moraes)

No Livro para Registro dos Estabelecimentos Particulares de Instrucção neste

Município, cujos registros foram iniciados em 1887, dentre as 16 escolas registradas, aparece a

Escola Popular, caracterizada por ser uma inicativa de particulares, porém gratuita aos alunos.

Escola Popular creada e mantida pela Associação Luz e Liberdade, destinada ao

ensino primário dos adultos e menores que, por suas occupações não podem

frequentar as aulas publicas. São seus professores os senhores Arthur Gomes e

Benedicto Estevam Cordeiro. Funcciona a rua do Commercio desta cidade – aulas

nocturnas e gratuitas. Fundada a 2 de julho de 1888 (LIVRO DE REGISTRO, 1887,

p. 59).

Segundo Aleixo Irmão (1994), essa escola partiu da iniciativa dos professores Arthur

Gomes, Benedicto Estevam Cordeiro e pelos senhores Antonio Egidio Padilha, João Padilha e

Adolfo Osse, que formaram a associação Luz e Liberdade, com a intenção de oferecer ensino

191

gratuito a adultos e menores brancos e negros libertos, somente para homens. Solicitaram à

Loja Maçônica Perseverança III que lhes cedesse uma de suas salas para a instalação da Aula

Noturna que recebeu o nome de Escola Popular. A Perseverança III cedeu a sala e também

forneceu a iluminação dela. As aulas começaram com 75 alunos matriculados e, rapidamente,

esse número aumentou. A Escola Popular, como ficou conhecida, ao ser criada, foi sustentada

pelo “ideal de transformar o Brasil em uma civilização, tendo entre outros elementos a educação

como um de seus pilares dessa construção”. Esse ideal defendido sofria a influência do

liberalismo, do positivismo e do evolucionismo, que marcaram o século XIX (ANANIAS,

2000, p.31),

Segundo Ananias (2000), essas escolas destinadas à população pobre, a exemplo das

Aulas Noturnas mantidas pela Maçonaria, estabeleciam critérios rígidos tanto para a seleção

dos alunos como de seus professores. Os mestres deveriam ser profissionais reconhecidos pela

sociedade e, de preferência, que atuassem em colégios renomados. O professor Artur Gomes

ministrava aulas de latim, francês, inglês e português no Lyceu Municipal. Já os alunos

deveriam comprovar uma ocupação profissional. As preocupações pedagógicas desta escola

resumiam-se ao ensino primário: oferecia a alfabetização visando a um encaminhamento

profissional, considerando as transformações do momento e a necessidade de mão de obra

qualificada. Havia, ainda, uma acentuada preocupação com que os alunos aprendessem os

direitos dos homens na sociedade, pois, “Por meio da educação, o ‘povo’ deveria saber governar

e fazer valer os seus direitos. Todas as pessoas envolvidas com essas construções

compartilhavam da crença de que a educação, se não salvaria, pelo menos melhoraria os

homens” (ANANIAS, 2000, p. 42,).

Entretanto, a Escola Popular de Sorocaba não se sustentou por muito tempo. Passados

três meses de sua abertura, a escola encerrou suas atividades devido a retirada de alunos que

eram recrutados indiscriminadamente pelo governo, conforme carta do Ministério da Justiça

aos presidentes das províncias:

O ministerio da Justiça, em data de 9 do corrente, expediu aos presidente de provincias

esta circular: “Ilm. e exm. sr. – Repetindo-se as queixas por abuso no recrutamento a

cargo das autoridades policiaes, sinão provados, pelo menos verosimeis nos casos em

que os recrutas forem immediatamente soltos, julgados incapazes ou dispensados,

soffrendo, além do vexame da captura, e damno da privação do trabalho de que

tiravam subsistencia para si ou porventura para sua familia, e cumprindo obstar que

se reproduzam factos semelhantes, recommendo a v. exc. de lembrar ás autoridades

encarregadas do recrutamento que incorrem em responsabilidade criminal pelo abuso

que commetterem prendendo cidadãos conhecidamente isentos ou incapazes, além de

ficarem obrigadas á satisfação do damno causado, assim ao estado como ao recrutado,

e ainda subjeitos á immediata demissão de seus cargos. Sendo mais segura garantia

da ordem publica o indefectivel respeito a liberdade individual, estou certo que v. exc.

192

não hesitará em tornar effectiva a responsabilidade dos transgressores da lei e

desattentos ás advertencias de seu superior. Deus guarde a v. exc. – A. Ferreira Vianna

(DIÁRIO DE SOROCABA, 22 out 1888, p.2).

Esclareceram os idealizadores da escola, através do jornal Diário de Sorocaba, segundo

Aleixo Irmão, o motivo da suspensão de suas atividades:

A Sociedade Luz e Liberdade, por deliberação de seus fundadores resolveu suspender

temporariamente as aulas noturnas que mantinha nesta cidade, a expensas sua e da

Loja Perseverança III por causa do recrutamento que se está procedendo neste

município. Cumpre acrescentar que essas aulas estabelecidas para os libertos,

operários e meninos que não pudessem frequentar diurnas, eram frequentadas por

grande número dos mesmos, atingindo o número dos matriculados a cento e trinta e

sete, e desde a notícia do recrutamento o número destes desceu a menos da quarta

parte. (ALEIXO IRMÃO, 1994, p. 389)

A razão do esvaziamento dessa escola foi em decorrência da Lei de Recrutamento de

1874. Determinava essa lei que o alistamento seria feito voluntariamente ou por sorteio, para

cobrir as vagas não preenchidas de modo voluntário. Havia algumas exceções, visto que a lei

permitia, aos que não quisessem servir, pagar certa quantia em dinheiro ou apresentar um

substituto. Também estavam isentos do serviço militar bacharéis, padres, proprietários de

empresas agrícolas e pastoris, comerciantes e outros. Coincidência ou não, eram sempre os mais

pobres e sem recursos os sorteados, daí o esvaziamento da escola, pois o seu público preenchia

os requisitos de recrutamento.

Em 5 de janeiro de 1889, a escola reabria suas portas com os mesmos objetivos

anteriores, para fechar mais uma vez em dezembro do mesmo ano (MENON, 2000).

3.2 A educação em Sorocaba após a República

Desde 1870, com o surgimento do Partido Republicano no país, foi sendo plantada a

ideia de construção do novo homem, através da instrução popular. Os republicanos almejavam

que aqueles, antes súditos de um imperador, transformassem-se nesse novo homem, que

constituiria uma nova nação alicerçada na democracia. A escola pública seria um dos pilares da

República, como é possível perceber a partir das palavras de Souza (1998, p. 28):

[...] é uma escola para a difusão dos valores republicanos e comprometida com a

construção e a consolidação do novo regime; é a escola da República e para a

193

República. Esse vínculo entre a educação popular e o novo regime democrático era

exaltado pelos profissionais da educação.

Com a proclamação da República, a escola foi, no estado de São Paulo, o emblema da

instauração da nova ordem, o sinal da diferença que se pretendia instituir entre um passado de

trevas, obscurantismo e opressão e um futuro luminoso, em que o saber e a cidadania se

entrelaçariam trazendo o Progresso. Como signo da instauração da nova ordem, a escola deveria

“fazer ver” (CARVALHO, 1989, p.23).

Segundo o ideario do governo republicano, a escola não podia mais permanecer na

precariedade dos tempos do império, quando os meninos se amontoavam em salas abafadas,

sem luz e sem higiene. Não haveria mais como manter, também, a falta de recursos e a

desmotivação dos professores pelas condições adversas que enfrentavam. A educação passou a

ser vista como imprescindível para a formação do cidadão, principalmente do cidadão

republicano. A crença do poder redentor da educação pressupunha a confiança na instrução

como elemento (con) formador dos indivíduos (SOUZA, 1998). A concretização do ideal

republicano exigia a visibilidade da escola e isso se daria com a reunião das escolas, antes

precárias, num prédio imponente. Seriam os chamados Grupos Escolares, com concursos para

admissão de professores, com novos métodos de ensino e uma legislação reguladora.

Apesar do entusiasmo dos republicanos paulistas com a educação popular, muitos

entraves do período anterior à República se mantiveram. Mais escolas foram criadas, porém a

criação de uma escola pelo governo e a escolha dela como local de trabalho pelo professor, nem

sempre habilitado, não significava a certeza de seu funcionamento. Não raro, as escolas eram

escolhidas, mas os professores não as assumiam. Sobre a falta de professores, a condição

precária das escolas e os reflexos dessa situação para a educação das crianças a imprensa não

silenciava.

Continua fechada a 1ª cadeira do sexo masculino desta cidade, desde março do ano

passado. [...] Há quase dez mezes foi provida sem que o novo proprietario tivesse

vindo tomar conta da cadeira até hoje. Ou esta cadeira existe para supprir a

necessidade de uma população, cuja infancia requer escólas ou é apenas para

assegurar direitos que no futuro possam fazer bons arranjos (DIARIO DE

SOROCABA, 22 abr 1891, p.2).

O fato de um professor não assumir uma escola não era o único motivo pelo qual as

escolas permaneciam fechadas. A constante concessão de licenças para os docentes

apresentava-se como outro fator complicador recorrente na instrução pública, conforme

anunciado na seguinte notícia: “Foram concedidos mais trez mezes de licença em prorrogação

ao professor da 3ª cadeira desta cidade, Manoel dos Reis. Esta, portanto, fechada mais esta

194

escóla destinada a educação da nossa infancia. [...] O professor vae percebendo apesar disso o

ordenado” (DIÁRIO DE SOROCABA, 26 maio 1891, p.1).

O isolamento das escolas, onde o professor era responsável por tudo, ou seja,

providenciar o local para as aulas, materiais, métodos, horários etc., era um fator complicador,

pois a fiscalização não tinha o alcance de todas as escolas. Então seria o compromisso moral

do professor que prevaleceria. Entretanto, as condições de vida dos professores, com salários

irrisórios obrigavam-os a procurar outros meios de sobrevivência, o que muitas vezes interferia

de maneira prejudicial no ensino. Uma situação dessas foi citada por Elvira Boni, quando

lamentou o pouco estudo que teve e as condições em ele foi ministrado:

Mas assim que chegamos lá papai me matriculou no colégio que havia, porque a

preocupação dele era que a gente estudasse. O colégio era um grupo escolar do

governo e tinha apenas uma professora de primeiras letras e um casal de professores

que também eram os diretores. Acontece que eu já sabia ler, escrever, fazia as quatro

operações, tinha noções de história, geografia, corpo humano. E a professora fazia

doces para fora. De maneira que, quando estávamos no melhor da aula, a empregada

chamava: “O forno está quente!” Ela largava a turma e ia cuidar dos doces que tinha

que fazer. Mas o mais interessante, o mais louco, é que ela me deixava tomando conta

da classe! Queria que eu ensinasse aquilo que eu sabia para as outras crianças

(GOMES, 1988, p.23).

Já em 1890, os professores públicos do Estado “fizeram subir ao illustre governador

uma petição solicitando augmento de salario” (DIARIO DE SOROCABA, 10 set 1890, p.1).

Apesar da causa do professorado ter sido “simpática” ao governo, os professores não foram

atendidos em sua solicitação.

O jornal Diário de Sorocaba apresentou o movimento das escolas públicas em

Sorocaba, no mês de fevereiro: “Alumnos matriculados, 461”; “Frequentes, 339” e “Cadeiras

em funcionamento, 11”. A partir desses dados, calculava o jornal que, em cada escola, havia 41

alunos matriculados e 30 frequentes (DIARIO DE SOROCABA, 6 mar 1890, p.1). Entretanto,

cabe uma dúvida sobre a confiabilidade dessas estatísticas, uma vez que havia escolas que,

apesar de constarem nas estatísticas, não estavam atendendo à população, o que poderia

superlotar uma outra escola. Quanto às licenças tiradas pelos professores, nem sempre se

encontravam substitutos, permanecendo-se longos períodos sem aulas. Apesar de ter havido

aumento do número de escolas, elas eram insuficientes e mantinha-se elevado o número de

crianças e adultos distantes dos bancos escolares.

Na última década do século XIX, em Sorocaba, foram despontando iniciativas escolares

particulares ou oferecidas pelas associações operárias.

Em 1888, a Societá Operaria Italiana Umberto I criava o Collegio Umberto I, de ensino

diurno, para os filhos dos associados e tendo “annexa a esta um curso trisemanal para os adultos

195

da colonia que queiram gosar d’esse beneficio” (DIÁRIO DE SOROCABA, 13 out 1888, p.2).

Essa escola funcionou até 1895, quando encerrou suas atividades.

Em 1893, a Societá Operaia Italiana de Mutuo Socorso criou uma escola para os filhos

de seus associados, cujo professor era o sr. Alfredo Gonevino, que “leciona diversas materias a

cerca de trinta alumnos que se acham matriculados e frequentando as aulas” (O 15 DE

NOVEMBRO, 8 out 1893, p.2).

Também no mês de outubro, abriu o Externato São João, funcionando na rua de São

Bento, n. 22, destinado apenas para a educação feminina e cuja direção estava a cargo das sras.

Maria José Rodrigues Gonçalves e Joanna A. de Carvalho. As matérias lecionadas eram

divididas em dois cursos, independentes entre si. O primeiro curso constava das “primeiras

lettras, escripta, taboada, as 4 operações, leitura, grammatica portugueza, cathecismo da

doutrina cristã, lições de couzas e alguns trabalhos de agulha, ponto de marca, crochet e tricot.”

(O 15 DE NOVEMBRO, 16 out 1893, p.2)

Já o segundo curso tratava-se de um aprofundamento das disciplinas do primeiro curso

com o acréscimo da “grammatica franceza, leitura, traducções, versões, conversação, noções

de geographia, historia, arithmetica, systema metrico, calligraphia, trabalhos de agulha, etc.”

Os preços variavam. Para o primeiro curso, o valor trimestral era de 15$000 e o segundo

curso, trimestralmente, era de 30$000. Esclareciam as diretoras que o estabelecimento nada

forneceria, os alunos deveriam trazer, além dos livros solicitados, todo o material para as lições

e também uma caderneta onde seriam registradas as notas. Informavam, ainda, que a escola

ofereceria, fora do horário regular das aulas, um curso de música, piano e canto, a ser ministrado

pela professora Joanna de Carvalho.

Cabe salientar que eram abertas escolas particulares frequentemente, umas destinadas

exclusivamente para meninas, outras só para os meninos e, quase sempre, escolas primárias,

que, apesar de extenso programa e oferecimento de muitas matérias, nem sempre contava com

professores habilitados adequadamente para o exercício da função. Haja vista este anúncio

publicado sobre o Internato e Externato Santa Clara: “Nota – O Director deste estabelecimento

tendo estado algum tempo em diversos países da Europa, aperfeiçou-se em algumas linguas,

pelo que acha-se habilitado para lecional-as” (O 15 DE NOVEMBRO, 5 fev 1899, p.2).

O valor das mensalidades certamente impedia a adesão de um bom número de alunos,

uma vez que a maioria da população era pobre e muitas crianças já estavam empregadas nas

fábricas do município.

Ainda nesse mesmo ano, o jornal O 15 de Novembro noticiou a pretensão dos padres

salesianos em fundar, em Sorocaba, um colégio destinado à educação primária e secundária

196

para o sexo masculino. Para a aquisição do prédio destinado ao estabelecimento, formou-se

uma comissão composta das seguintes pessoas: Dr. Alvaro Cesar da Cunha Soares, Constancio

Pereira de Souza, Domingos Gonçalves Bastos, Comendador Geoerge Oeterer, Francisco de

Souza Pereira, Francisco Teixeira de Souza Leite, Francisco Cozetti, Ten. Cel. José Loureiro

de Almeida, José Manoel Soares do Amaral, Major Manuel da Silva Villela e Manoel José da

Fonseca. Esse grupo era heterogêneo, havendo médicos, industriais, membros do exército e

pessoas da elite. A intenção era que a escola funcionasse num sobrado, localizado no largo do

Rosário, no centro da cidade, junto à igreja de mesmo nome.

A abertura de casa de ensino é sempre um motivo de júbilo por parte da população,

porquanto é seguramente uma força inexgotavel de beneficios que se abre, mormente

em Sorocaba, onde a instrucção secundaria tem tido pouco desenvolvimento, nada em

relação com o seu progresso natural. Que os illustres membros da comissão consigam

o seu nobre desideratum.(O 15 DE NOVEMBRO, 22 out 1893, p.2)

Em edição seguinte, o jornal retificava que a pretensão de se fundar um colégio católico

era dos padres beneditos e não salesianos, como apresentado inicialmente, porém não foi

concretizada de imediato.

Em 1896, foi autorizada, pelo bispo D. Joaquim Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti,

a compra de um dos casarões da família Lopes de Oliveira para a instalação do Colégio

Diocesano em Sorocaba. As aulas se iniciaram em 5 de abril daquele ano. O corpo docente era

formado pelos seguintes professores: Pe. Pereira Barros, Pe. Luiz Augusto Scicluna e Pe.

Thierry Onisífero de Albuquerque, pelos doutores Pereira Barros (juiz de direito), Álvaro

Soares e Alberto Seabra (médicos) e Luiz Nogueira Martins (advogado) e, ainda, pelos

professores Arthur Gomes, Inácio Maurício e Amaro Egidio. O diretor do estabelecimento era

nomeado pelo próprio bispo.

O colégio funcionaria também em regime de internato. Os alunos internos deveriam ter

de 8 a 15 anos, sendo que irmãos teriam um desconto de 15% na anuidade. Já os alunos externos,

além da mensalidade, pagavam jóias de 20$000, que lhes dava o direito à mesa de estudos,

cadeira e luz.

Esse colégio teve vida curta, pois, no ano seguinte ao da sua criação, foi destruído por

um incêndio incontrolável.

Em 14 de dezembro de 1893, o jornal O 15 de Novembro anunciava a inauguração da

escola noturna gratuita para os operários. Ela seria mantida pela Societá Operaiá Italiana de

Mutuo Socorso e seria instalada numa das salas do prédio da rua da Penha, pertencente à

sociedade.

197

Esse mesmo jornal, ainda no ano de 1893, informava que o industrial Manuel José da

Fonseca, proprietário da fábrica de tecidos Nossa Senhora da Ponte, havia criado “há meses”

uma escola noturna gratuita para seus operários. Esclarecia que “agora para maior vantagem

acaba de declarar obrigatoria a frequencia da alludida escola aos operarios que não souberem

ler, sendo despedidos os que não se quizerem sujeitar a essa condição. Digno de ser imitado”

(O 15 DE NOVEMBRO, 15 nov 1893, p.2).

Há de se reconhecer a grandeza do ato do industrial, apesar da maneira pouco delicada

de fazê-lo. Entretanto, fica uma dúvida quanto ao funcionamento da escola e à frequência dos

alunos, uma vez que essa fábrica sempre esteve entre aquelas cujo horário de trabalho avançava

noite a dentro. Não foram encontrados outros registros sobre essa escola, ficando em aberto o

período de tempo em que teria funcionado. Alguns anos mais tarde, em 1899, esse mesmo

industrial abriu uma nova escola noturna gratuita para os meninos que trabalhavam durante o

dia em sua fábrica. O professor era Horácio Ovídio de Oliveira. Na imprensa, houve a seguinte

menção à referida escola: “Aquelles que desejarem frequentar a nova escola, devem ir

matricular-se no escriptorio da fabrica á rua de Santo Antonio. É digno dos maiores elogios o

nobre acto que acaba de practicar o sr. Fonseca” (O 15 DE NOVEMBRO, 6 ago 1899, p. 2).

No final de 1893, foram realizados os exames finais nas escolas preliminares públicas

do município, na qual os alunos foram examinados por comissão previamente determinada pela

inspetoria. O jornal O 15 de Novembro, obviamente republicano, reconhecia que as

reformulações no ensino ainda precisavam de ajustes, mas não deixava de destacar o esforço

do governo em prol da educação:

O resultado de taes exames, geralmente considerado, muito deixou a desejar devido á

desorganisação geral em que jaz a instrucção publica. Com a applicação das medidas

traçadas pela recente reforma do ensino, contando com a boa vontade dos srs.

professores, revelado nos exames a que assistimos e com a cooperação dos paes e

mais interessados na santa causa do ensino – é de esperar-se que no proximo anno, o

patriotico esforço empregado pelo governo e seus agentes seja convertido em util

realidade (O 15 DE NOVEMBRO, 12 nov 1893, p.2).

No início do ano de 1894, o inspetor do distrito, José Monteiro Boanova, em nota no

jornal O 15 de Novembro, informava sobre a reabertura das escolas públicas da cidade e, para

o conhecimento dos interessados, publicava os locais onde as escolas funcionariam e seus

respectivos professores.

PARA O SEXO MASCULINO

1.ª Cadeira – Professor Alberto de Almeida Mello – rua do Rosario, 34.

2.ª Cadeira – Professor Amaro Egydio de Oliveira – rua Direita, 9.

3.ª Cadeira – Professor Joaquim Ferreira de Alembert – rua de Santa Clara, 40 A.

4.ª Cadeira – Professor Joaquim Izidoro de Marins – rua da Matriz, 1.

198

PARA O SEXO FEMININO

1.ª Cadeira – Professora d. Escholastica Rosa de Almeida - rua da Penha, 96.

2.ª Cadeira – Professora d. Carlota de Padua Ferreira - rua de São Bento, 26.

3.ª Cadeira – Professora d. Gertrudes Pires de Almeida Mello - rua de São Paulo, 22.

4.ª Cadeira – Professora d. Benedicta Ernestina do Prado, rua das Flores, 7.

Sorocaba, 8 de Janeiro de 1894. - O Inspector do Districto José Monteiro Boanova.

(O 15 DE NOVEMBRO, 8 jan 1894, p.2).

Em setembro de 1894, o jornal O 15 de Novembro noticiou que recebia diversas queixas,

sem especificar a procedência delas, sobre a necessidade de aumentar-se o número de escolas

públicas no centro da cidade, por se tratar da região onde se concentrava maior número de

alunos e que, naquela época, contava com apenas uma escola, que atendia um número de alunos

superior à sua capacidade, comprometendo o ensino.

O jornal solicitava ao inspetor do distrito uma melhor distribuição das escolas e que,

preferencialmente, o centro da cidade fosse contemplado com mais escolas. A essa queixa o

inspetor respondeu que eram inúmeras as dificuldades encontradas por ele no exercício de sua

função para promover uma distribuição adequada das escolas e o seu bom funcionamento.

Esclareceu que as chamadas escolas preliminares eram instituições transitórias, posto que a

recente reforma da “instrução”, de 1892, pretendia adequá-las ao plano adotado pelas Escolas

Modelo da capital. Segundo ele: “Entretanto, esse ideal é de dificil execusão attentos os

elevados recursos materiaes que ella exige, a vasta extensão do nosso territorio, a falta de

pessoal technico, etc” (O 15 DE NOVEMBRO, 16 set 1894, p.2).

Apontando as dificuldades para o melhoramento das escolas, o inspetor acenou para

uma possível solução: com a reunião das escolas em um único estabelecimento, referia-se ao

Grupo Escolar que começava a ser implantado no Estado de São Paulo. Concluía dizendo que,

após estudos feitos, tinha “firmes e bem fundadas esperanças de, no proximo anno lectivo de

95, inaugurar os trabalhos escolares no novo estabelecimento” (O 15 DE NOVEMBRO, 16 set

1894, p.2)

As dificuldades apresentadas pelo Inspetor de Distrito de Sorocaba em sua resposta

retratam com fidelidade a situação na qual se encontrava a instrução paulista e os impedimentos

para sua implantação. O próprio médico e deputado Cesário Mota, ao assumir a Secretaria do

Interior, em relatório apresentado ao Presidente do Estado, admitiu ser a instrução “o ponto de

estrangulamento do progresso de São Paulo” (REIS FILHO, 1995, p.107).

Para Casemiro dos Reis Filho (1995), o “Grupo Escolar” foi a criação, do período da

reforma, que melhor atendeu às necessidades do ensino primário. Esse estabelecimento de

ensino reunia, em um único prédio, de quatro a dez escolas (que posteriormente passaram a ser

199

chamadas de classes), compreendidas no raio da obrigatoriedade escolar (2 km para o sexo

masculino e 1 km para o feminino, ou seja, a distância entre a escola e a casa do aluno), sob a

direção de um diretor. Sobre a criação dos Grupos Escolares, as novas formas de ensino e os

efeitos delas no ensino paulista, pronunciou-se o Secretário do Interior e Justiça José Cardoso

de Almeida, em relatório de 1904, apresentado ao Presidente do Estado de São Paulo:

A útil e recomendada instituição dos grupos escolares tem produzido ótimos

resultados à vista dos quais já não há dúvidas a respeito da conveniência de novas

criações. Edifícios apropriados, móveis adequados, professores capazes, disciplina

rigorosa, direção inteligente, de par com a assídua vigilância e metódica distribuição

do ensino, permitem contar, entre os melhores, os serviços desses estabelecimentos à

causa da instrução pública do Estado de São Paulo (SOUZA, 1998, p. 31).

É inegável que a instalação dos Grupos Escolares representou um grande avanço para a

educação em todo estado de São Paulo. Além de construir escolas, os republicanos queriam

provas de que a qualidade de ensino era superior àquela dos tempos do império. Daí o extremo

cuidado dispensado ao aspecto arquitetônico dos prédios, visto que os grupos escolares

deveriam fazer parte da cena urbana com o devido destaque e visibilidade.

Ao tratar do Grupo Escolar e do espaço arquitetônico, Araujo Jr. (2007, p. 48) sintetiza:

No edifício escolar estava a imagem do que o ensino deveria propagar uma feição

austera, adornada, simétrica, sem desvios na sua “coluna vertebral” arquitetônica: um

bloco monolítico, pesado, sério, concentrado em um espaço amplo para melhor ser

contemplado e reverenciado em sua arquitetura nobre, integralmente importada da

Europa e segundo os moldes mais modernos da época.

Com os grupos escolares, o espaço escolar foi repensado. Representavam um espaço

próprio para a educação, em nada parecido com as salas precárias das escolas isoladas dos

tempos passados.

A fim de uniformizar e manter o mesmo padrão de atendimento, foi elaborado o

Regimento Interno das Escolas Públicas do Estado de São Paulo, através do decreto 248 de 26

de julho de 1894, além da observação constante do Código de Posturas.

De acordo com o Regimento Interno, os grupos escolares poderiam agrupar de 4 a 10

escolas isoladas em salas com capacidade para 40 alunos. Poderiam funcionar no mesmo prédio

escolas do sexo masculino e feminino, desde que observada a completa a separação dos sexos.

Apesar do número de alunos ser diferente - geralmente era maior o de meninos - as salas eram

distribuídas igualmente: uma para cada ano de ensino e para cada sexo.

As questões de higiene deveriam ser rigorosamente observadas. Através das

regulamentações, é possível perceber que o direcionamento dos Grupos Escolares estava

200

preestabelecido pelas normas pedagógicas. “Caberia à criatividade de engenheiros e arquitetos

codificar e traduzir, nesse formato, as necessidades da escola pública” (ARAUJO JR, 2007,

p.25) O passado de doenças e insalubridade pertencia ao tempo do império.

As salas de aula deveriam ter janelas grandes para permitir ao máximo a entrada de luz

natural. Durante o recreio, as janelas das salas deveriam ser abertas para o devido arejamento.

As paredes e o piso deveriam ser laváveis, daí a preferência pelos pisos de madeiras, cuja

conservação se fazia com panos molhados, sempre visando à prevenção de doenças. As paredes

deveriam ser pintadas com tinta óleo até a altura de 1, 50 m para facilitar a limpeza e evitar o

acúmulo de pó. O Código Sanitário, sempre alertando para o perigo das epidemias,

recomendava que as construções dos Grupos Escolares ficassem distantes de cemitérios,

fábricas, igrejas, prisões, ferrovias e até mesmo de locais com grande aglomeração urbana.

As construções deveriam privilegiar pátios e jardins e ter banheiros em número

suficiente e de preferência separados do prédio das salas de aula. Enfim, no edifício escolar

estava a imagem que o ensino deveria propagar, qual seja, organização, excelência, limpeza,

novos tempos.

Diferente de outras cidades paulistas que foram contempladas com Grupos Escolares

bem construídos, Sorocaba não o conseguiu de imediato. Explica Souza (1998) que motivações

políticas podem ser apontadas como justificativas para a criação dos Grupos Escolares em

determinadas localidades. Evidentemente, a legislação previa a concessão de prioridade aos

municípios que contribuíssem com terrenos e donativos para a instalação da escola.

Coincidentemente ou não, as primeiras cidades beneficiadas pelos Grupos Escolares foram

aquelas que constituíam os caminhos do café. Sorocaba não se enquadrava como produtora de

café, a sua produção agrícola era predominantemente algodoeira.

Em Sorocaba, o primeiro grupo escolar foi instalado em 14 de agosto de 1895,

recebendo o nome de Grupo Escolar Antonio Padilha, em homenagem ao comerciante e

vereador Antonio Egidio Padilha, um dos incentivadores da instalação da escola, que falecera

dias antes da inauguração dela. Ao contrário das construções imponentes dos grupos escolares

desejados pela República, no sentido de dar visibilidade para a escola, o grupo escolar de

Sorocaba foi instalado num sobrado alugado pela câmara municipal, localizado na rua das

Flores, região central, onde foram reunidas as oito escolas da cidade e mantiveram-se os

mesmos professores das escolas antes isoladas.

Foi nomeado, para a direção do grupo escolar, o major Luiz Campos, como se verifica

na notícia publicada na época:

201

Hontem, ás 11 horas da manhã, reunidas as oito escolas desta cidade, no largo da

Matriz, tendo á sua frente a bandeira nacional, depois de formado um caprichoso

prestito, foram os alumnos, alumnas e professores tomar posse das suas competentes

salas, no sobrado sito a rua das Flores. – Grande numero de pessoas do povo e muitas

familias seguiam o prestito até o edificio Escolar, onde os alumnos cantaram alguns

hymnos que foram delirantemente applaudidos. (O 15 DE NOVEMBRO, 15 ago

1895, p.1)

Figura 18 - Grupo Escolar Antonio Padilha – 1895.

Fonte: Museu Histórico Sorocabano.

Passados poucos dias da inauguração do Grupo Escolar Antonio Padilha, O 15 de

Novembro publicou uma notícia afirmando que a instalação desse Grupo Escolar fora feita de

maneira ilegal e que o Conselho Superior de Instrucção Publica exigia apurada investigação

dos fatos e seus autores. De fato, essa inauguração não foi a oficial, partiu da ação precipitada

de alguns professores.

Para atender às exigências da nova escola, foi preciso reformá-lo, o que efetivamente

começou em julho de 1895. Impacientes, os professores Amaro Egydeo de Oliveira,

Joaquim Izidoro Marins, José de Azevedo Antunes e Alvaro de Moraes Roza, em fins

de agosto, resolvem ‘inaugurar’ o prédio, instalando ali suas classes. Essa ocupação

ocorreu durante o período em que o Inspetor encontrava-se ausente da cidade. Sabedor

do fato o Conselho Superior, na seção de 30 de agosto, declarou ilegal a instalação do

Grupo Escolar, por não ter o ato sido precedido das formalidades legais e ocorrer sem

a prévia aprovação do Governo (MENON, 2000, p. 90).

202

Oficialmente a inauguração do Grupo Escolar Antonio Padilha deu-se em 26 de março

de 1896 (MENON, 2000). Já no início de seu funcionamento, o prédio mostrou-se acanhado

para o número de alunos e em desacordo com o Código Sanitário. Passaram a ser frequentes as

queixas sobre as condições higiênicas do prédio, tanto que, em 1899, quando a cidade

atravessou grave surto de peste bubônica, as aulas foram suspensas por longo período, como

também ocorrera nos tempos da epidemia de febre amarela e outras doenças.

Interessante assinalar um fato ocorrido quando do surto de peste bubônica em Sorocaba

que traça um retrato da sociedade daquela época. Esse surto foi tão violento que as autoridades

se viram obrigadas a comprar os ratos da população. As pessoas que capturassem os ratos

deveriam levá-los até o mercado municipal, onde receberiam a quantia de 200 réis por rato

entregue. E, nesse mesmo local, os ratos eram incinerados. Essa situação causou muita

polêmica, pois o administrador do mercado recusava-se a recolher os ratos naquele lugar, por

ser inapropriado. Houve ainda comentários de que muitas pessoas passaram a criar ratos para

conseguir mais dinheiro. Sobre esse tempo, o jornal anunciou o seguinte:

As aulas do Grupo Escolar Antonio Padilha, desta cidade, foram suspensas até

segunda ordem. – Esta resolução do digno director daquelle estabelecimento de ensino

foi tomada em vista do máo estado em que se acha o edificio do grupo, depois que se

encetou a extinção dos ratos alli existentes. (O 15 DE NOVEMBRO, 8 nov 1899, p.2)

O prédio alugado para a instalação do Grupo, além de não ser condizente com as

exigências sanitárias, no que dizia respeito à higiene, também não era suficientemente amplo

para atender plenamente a demanda de alunos.

Em relatório, o Inspetor da Escola lavrou que o prédio deixava muito a desejar, como

se pode constatar no fragmento reproduzido a seguir:

[...] devido a insufficiencia de accomodações acham-se funccionando em uma só sala

duas series ou turmas do 2º anno do sexo feminino, uma com 37 e outra com 33

alumnas. A divisão que separa o 3º do 1º anno da mesma secção é de taboas e apenas

de 2 metros de altura, de forma que o rumor que não pode ser evitado no 1º anno,

pertuba enormemente os exercicios do 3º. As tres series do 1º anno do sexo feminino

com 151 alumnas funccionam em uma única sala de 7,50 × 6m! Todas as salas são

mobiliadas com carteiras Chandless e como estas são em número insufficientes

sentam-se dous alumnas em cada carteira servindo-se de uma pequena taboa para unir

e ampliar as cadeiras, o que deve constituir um supplicio (MENON, 2000, p.91).

Nos anos que se seguiram, o número de interessados em estudar sempre fora superior

ao de vagas oferecidas, obrigando a direção do estabelecimento a recorrer a sorteios de alunos

para o preenchimento das vagas. Apesar dos sorteios, que davam um viés de imparcialidade, o

203

grupo escolar acabava contemplando, em sua maioria, os pertencentes às camadas mais altas

da sociedade, uma vez que era elevado o número de crianças que ficavam impedidas de estudar

devido ao trabalho diário nas fábricas. Mas mesmo assim, algumas delas chegavam à escola. A

existência de crianças operárias nas escolas primárias não era exclusividade de Sorocaba.

Novamente, o relato da professora Dona Brites, que atuava na cidade de São Paulo, confirma

essa realidade, que muito se repetia também em Sorocaba:

Meus alunos eram todos filhos de operários. [...] As fábricas aceitavam trabalho de

menores. Eu tinha uma aluna, Elvira Massari, moreninha, magrinha, os traços muito

finos. Não era morena era cinzenta. Ela trabalhava no turno da noite. Quando a fábrica

apitava quatro horas ela saía da escola, ia pra casa, dizia ela que jantava. Entrava às

seis horas na fábrica e trabalhava até meia-noite. Teria uns onze anos, a mãe ia buscar

a menina na saída da fábrica. (BOSI, 1994, p. 32)

Por ocasião da dispensa do diretor do Grupo Escolar Antonio Padilha, cujos motivos

não foram claramente revelados, o jornal O 15 de Novembro publicou um termo de visita do

inspetor Domingos de Paula e Silva, procurando destacar as boas qualidades do diretor

dispensado, o que nos permite apreender as reais condições de funcionamento do Grupo

Escolar:

Em visita a este estabelecimento verifiquei o seu funccionamento com a matricula de

511 alumnos classificados até o 5º anno do curso preliminar. Acho este numero

avultado para a capacidade das salas e faço lembrar as prescripções do art. 69 do

Regimento Interno dos Grupos e Escholas Modelo. Quanto ao ensino é ministrado

com regularidade e aproveitamento em diversas classes, notando, porém, organisação

escholar viciada, disciplina falha e falta de higyene. Sou o primeiro a reconhecer o

preparo e a competencia technica do seu director e os defeitos apontados estou certo,

são originarios do imprestavel predio em que esta installado este grupo, e, com a sua

transferencia para outro, espero serão sanadas essas lacunas (O 15 DE NOVEMBRO,

1 set 1904, p. 3).

A situação precária apresentada pelo prédio adaptado - ou quem sabe improvisado - para

o Grupo Escolar acarretava problemas de toda ordem e não apenas nos aspectos de higiene e

lotação de alunos, como pode ser observado em relatório do inspetor geral do ensino sobre uma

ocorrência protagonizada por dois professores do estabelecimento.

Sorocaba, 25 de setembro de 1901

Tendo ocorrido nesta cidade, em dias da semana passada, factos que se relacionam,

com a vida íntima do Grupo Escolar “Antonio Padilha”, tratei de syndicar desses

factos e cheguei ao conhecimento do seguinte: O professor Joaquim Isidoro Marius

(sic), a quem, aliás, nada si tem a increpar quanto ao cumprimento de seus deveres

profissionais, vive em completa desarmonia com todo o corpo docente deste grupo. A

sua sala funciona para dentro da sala onde leciona o professor José de Asevedo

Antunes, de quem é inimigo, tendo os seus alunos ao entrar e sahir de passar por esta

sala. Em um dos dias da semana passada a classe do professor Antunes, na ocasião de

sahir, foi alcançada pela do professor Marius (sic) (consta a boa disciplina) que com

204

ella misturou, para o recreio. Lá o professor Antunes repreendeu a classe de Marins.

Na sua, a sahida dos alunos, os do professor Marins vaiaram o professor Antunes.

Conhecido o facto pelo diretor, foram impostas penas de expulsão e suspensão aos

alunos delinquentes. O facto por si se reveste de gravidade, esta porem sob de ponto

se si chegar a evidenciar que Marins auctorisou ou acaroçou tal vaia, conforme

depuseram alguns alunos. Do inquérito porem a que isto não ficou provado; si os

alunos procederam de modo próprio na certeza de que agradavam ao seu professor

que é inimigo do outro. Não havendo pois matéria para denuncia nesta occurrencia

me parece que a melhor medida será a justiça preventiva para casos futuros. Ora, desse

acordo está o professor Marins (que é ali o passo de uma discordância) que deseja a

sua remoção para esta Capital para uma escola qualquer, a que vae requerer. Penso,

pois que o Governo já facilitando a sua retirada, dá a melhor solução possível à

questão tratada. Saúde e fraternidade. Cidadão Mario Bulcão. M.D. Inspector Geral

do Ensino (ARQUIVO DO ESTADO, 1901 apud ARAUJO JR, 2007, p.120).

Em 1911, iniciou-se a construção de um novo prédio para abrigar o Grupo Escolar. Em

outubro de 1913, foi inaugurado o prédio do Grupo Escolar Antonio Padilha, localizado em

região central de Sorocaba. O prédio situa-se na Cesário Mota e conserva, até hoje, suas

características originais quase integralmente.

Figura 19 - Grupo Escolar Antonio Padilha – Prédio definitivo – 1913.

Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.

Logo após o início das aulas no novo prédio, o jornal Cruzeiro do Sul fez uma visita a

convite do “nosso ilustre amigo e colaborador sr. Major Luiz de Campos, digno e dedicado

diretor do grupo escolar ‘Antonio Padilha’” e, numa extensa reportagem rasgando elogios para

todos, o jornal expõe as suas impressões “agradabilíssimas”, assegurando que Sorocaba “póde-

se orgulhar de possuir uma casa de ensino de primeira ordem. ”

205

E a nossa impressão foi agradabilissima, não havendo mesmo expressão que possa

definir a nossa satisfação, o nosso indizivel contentamento ao observarmos como é ali

ministrada a instrucção áquellas creanças em numero superior a 600, rebentos

promissores de uma geração nova, intelligente, que ha de fazer da patria brasileira a

nação mais culta, mais admirada e invejada de todo o mundo; a instrucção é antes de

tudo, a principal base onde se assenta o progresso de um paiz; é a instrucção a alavanca

do progresso e da civilização; è pela instrucção de um povo que se avalia a sua força,

o seu valor e o seu poder (CRUZEIRO DO SUL, 22 out 1913, p.2).

O jornal exaltava, ainda, o governo de São Paulo, o qual considerava um exemplo para

todo o país pelo verdadeiro interesse com que tratava à educação, merecendo aplausos.

Prosseguindo, o jornal afirmava que, na visita feita ao Grupo Escolar, por tudo que os

representantes do Cruzeiro do Sul observaram, não sabiam o que deveriam salientar: se o local

“magnifico” onde estava construido o “majestoso prédio”, se o asseio, a higiene, a

“commodidade que ali se nota”; se o “luxo do mobiliário”, a ordem e disposição em que foram

colocadas as mobílias. Ou ainda, se o método do ensino ali ministrado; se o “carinho e a boa

vontade dos professores” para com os seus alumnos; se a competencia dos professores; se a

disciplina destas “creancinhas e o respeito para com os seus mestres”; na verdade, sentiam-se

embaraçados ao descrever tudo o que viram pois poderiam ser considerados por algum

pessimista de “exagerados ao confessar o enthusiasmo que nos domina, ao manifestar sem

mentir a nossa verdadeira impressão”. Mas sem incorrer em injustiça, tinham a certeza de que

cidade alguma do interior poderia ter um estabelecimento de instrução primaria tão bem

instalado, apesar de as obras ainda não terem terminado.

O Grupo Escolar funcionava em dois turnos. Das 8 horas ao meio dia funcionava a

“secção masculina” e do meio dia às 16 horas, a “secção feminina”. (CRUZEIRO DO SUL, 22

out 1913, p.2) Em todas as salas visitadas, encontraram ordem, disciplina e crianças alegres e

“como sentiam-se satisfeitas e com que enthusiasmo entoaram os hymnos infantis que lhes

ensinaram os seus professores”.

As salas de aula eram grandes, muito bem ventiladas, como o mobiliário todo novo e

“offereciam um aspecto agradabilissimo, magnifico e encantador”.

Ao todo eram dezesseis as salas, todas numeradas, com as mesmas dimensões,

oferecendo comodidade e conforto. No centro, havia uma área cimentada; nos lados, dois

gabinetes, um para a reunião dos professores e outro para as crianças que, durante o recreio,

preferissem ficar no prédio; nos fundos existiam dois “enormes e bellisimos pavilhões” para o

recreio, em tempo de chuvas; aos lados do prédio ficava o “enormíssimo” parque, com mais de

duzentas árvores, para o recreio dos alunos; no outro, estava sendo construido o campo para os

206

“exercicios athleticos e jogos varios — lawn-tennis, basket-ball, foot-ball, tamborins, crichet,

etc” e, na frente do prédio, estava sendo plantado um jardim.

Nos fundos, ficavam, ainda, os banheiros dos alunos, conforme recomendação do

Código Sanitário, onde “o asseio é rigorosissimo; ali existe tambem um reservatorio d’agua,

com 2.300 litros do precioso liquido”.

Havia, ainda, uma sala onde estava sendo organizado o museu escolar, com “uma

infinidade de objectos curiosos e interessantes”.

O edificio, como dissemos, está situado no logar mais alto da cidade, aprazivel e onde

se gosa o melhor clima. E’ todo muito bem ventilado, com janellas de vidro, altas e

grandes, com resposteiros. As salas, de grandes dimensões, são claras, contêm

carteiras duplas, de estylo moderno e elegante, com lousas em toda a largura da sala.

Todas essas salas são eguaes: possuem mappas, globos, cartas geographicas, retratos

dos vultos proeminentes da nossa patria, para o ensino de historia do Brasil, etc

(CRUZEIRO DO SUL, 22 out 1913, p.2).

Os visitantes também tiveram a oportunidade de se inteirar sobre os métodos de ensino

ministrados no estabelecimento. Utilizando métodos modernos, bem diferentes daqueles do

passado, os professores permitiam que as crianças aprendessem com maior facilidade as

matérias ensinadas: “tão esplendido, racional e útil o methodo usado” era o método intuitivo.

Actualmente são os seguintes os professores e professoras do grupo escolar e

respectiva classes: SECÇÃO FEMENINA - 1º anno A — d. Francisca de Almeida;

1º anno B — d. Angelina Grohmann; 2º anno A — Antonia Nogueira Padilha; 2º anno

B — d. Isouraida Vieira Soares; 2º anno C — d. Dinorah de Toledo; 3º anno A — d.

Maria José Loureiro; 3º anno B — d. Escolastica Rosa de Almeida; 3º anno C — d.

Amelia Cezar; 4 anno A — d. Benedicta Leme de Faria; 4º anno B — d. Emygdia de

Almeida SECÇÃO MASCULINA - 1º anno A — d. Maria Annunciação Almeida; 1º

anno B — d. Anna de Barros; 1º anno C — sr. Luiz Gonzaga Fleury; 2º anno A — d.

Laudelina Rolim; 2º anno B — sr. Salvador Santos; 2º nno C — sr. Ozorio de Campos

Maia; 3º anno A — sr. Fernando Rios; 3º anno B — sr. Florentino Bella; 4º anno A

— sr. Luiz Wagner; 4º anno B — sr. Aristides de Campos. (IDEM p. 2)

Esclarecia a reportagem que, por falta de espaço, teriam que finalizar o texto, porém não

sem antes exaltar que o edifício fora construído sob a direcção do “nosso distincto amigo sr.

coronel José de Barros, estimado constructo-architecto, sendo um dos mais bellos do Estado”.

Enfim, após registrar, mais uma vez, que a impressão que tiveram do grupo escolar foi

“a mais agradavel, e deliciosa possível”, por uma questão de justiça, não podiam deixar de citar

dois nomes muito importantes para a concretização do grupo escolar:

207

Figura 20 - Alunos do Grupo Escolar Antonio Padilha nas escadarias da Igreja Matriz de Sorocaba.

Foto de Domingos Alves Fogaça.

Fonte: Acervo do Museu Histórico Sorocabano.

O primeiro—o do nosso chefe dr. Campos Vergueiro, a quem devemos mais este

benefício de inestimavel valor. Todos sabem o empenho e o esforço que ele empregou

para tornar realidade essa justissima aspiração do povo sorocabano. O outro— do

nosso illustre e distincto amigo sr. major Luiz de Campos, benemerito educador e

incansável director do grupo escolar, que empregou todos os meios para que as obras

ficassem concluidas dentro do menor tempo possivel e cujos esforços para conseguir

do governo o melhor material escolar e o melhor mobiliario existente na secretaria do

Interior, foram inauditos. Devido à sua boa vontade o nosso grupo escolar é hoje o

primeiro do Estado: possue um museu escolar, ainda em formação, um campo

agricola, jogos infantis para exercicio dos alumnos, adquiridos por meio de uma

subscripção e outros melhoramentos quaes, dispondo de espaço necessario poderemos

então salientar (CRUZEIRO DO SUL, 22 out 1913, p.2).

Apesar das ótimas condições do prédio e do ensino, o Grupo Escolar Antonio Padilha

nunca pôde atender plenamente sua demanda. A insuficiência de vagas sempre foi questionada

pela população, porém somente foi autorizada a criação de um segundo grupo escolar em 1914.

O Grupo recebeu o nome de Visconde de Porto Seguro, em homenagem ao historiador

Francisco Adolfo de Varnhagen, e foi instalado no mesmo sobrado em que inicialmente

funcionara o Grupo Escolar Antonio Padilha, que certamente apresentava-se em estado ainda

mais precário.

208

Figura 21 - Professores do Grupo Escolar Antonio Padilha. 1913.

Fonte: Museu Histórico Sorocabano.

No final do século XIX, a educação não acompanhou o ritmo das transformações

urbanas. O tão desejado ingresso à modernidade, especialmente com o advento da

industrialização, evidenciou o problema da educação ao mostrar que a maioria dos

trabalhadores era analfabeta. Como forma de enfrentar tamanho desafio, em 1895, foi criada

uma escola noturna oficial para os adultos do sexo masculino. Essa escola apresentava um

número de matrículas superior a trinta alunos e, por funcionar com regularidade, dizia o jornal,

o inspetor do distrito “vae propor ao governo a creação de mais algumas dessas escolas sendo

duas destinadas ao sexo feminino” (O 15 de NOVEMBRO, 7 abr 1895, p.1).

As Escolas Noturnas foram criadas pela Lei nº. 88, de 8 de setembro de 1892. Eram

gratuitas e podiam ser instaladas em todo lugar onde houvesse frequência provável de trinta

alunos. Pelo Regimento Interno das Escolas Públicas de 26 de julho de 1894, essas escolas

destinavam-se a fornecer os conhecimentos indispensáveis às pessoas do sexo masculino,

maiores de dezesseis anos, que não pudessem frequentar outras escolas. Regidas pelos

professores das escolas preliminares, que recebiam uma gratificação, as escolas noturnas

funcionavam das 18 às 21 horas. Nessa escola, destinada à educação de adultos, os professores

ampliavam o estudo da Geometria, fazendo a explicação dos processos de desenho empregados

nos diversos ofícios. Essa escola não se dirigia à alfabetização, mas tinha intenções

profissionalizantes (REIS FILHO, 1995). As aulas nas escolas noturnas eram ministradas pelos

209

professores do curso preliminar, devidamente designados para isso, inclusive com as mesmas

obrigações inerentes ao cargo.

Conforme o Regimento Interno, o programa de ensino das escolas noturnas deveria ser

o mesmo das escolas preliminares, com exceção dos trabalhos manuais, da ginástica e de todos

os exercícios que não fossem apropriados à idade desses alunos. A disciplina deveria ser

observada nos seguintes termos:

Art. 97 – Á hora da sahida dos alunos, o professor deve procurar evitar, sempre que

lhe fôr possível, que eles façam gritarias ou profiram palavras obscenas.

Art. 98 – O professor deve prohibir expressamente, sob pena de eliminação, no caso

de, reincidência, que os alunos escrevam ou desenhem nas paredes da escola, bem

como nas bancas ou carteiras. (REGIMENTO INTERNO... 1894, p. 17)

A visibilidade da escola republicana e a consequente propagação do ideal republicano

também se fazia presente com as escolas noturnas, conforme o regimento: “Art. 101 – As

escolas noturnas do mesmo modo das preliminares, devem ser francas a todas aquellas pessoas

que, mostrando interesse pela instrucção, desejem visital-as”. (Idem, p.17).

A renovação do ensino pretendida pelos republicanos não estava circunscrita apenas na

construção de bons prédios escolares, apoiava-se em dois pilares: a formação de professores e

a adoção do método intuitivo. Esses dois aspectos apresentavam-se intrinsecamente

relacionadas, pois a formação dos professores era compreendida tendo como fundamento a

prática de novos processos pedagógicos (SOUZA, 1998).

O método intuitivo assentava-se numa abordagem indutiva, pela qual o ensino deveria

partir do conhecido para o desconhecido, do particular para o geral, do concreto para o abstrato.

A prática do ensino concreto seria realizada pelas “lições de coisas”:

A adoção do método intuitivo significou uma tentativa de mudar radicalmente a forma

de organizar o ensino e de executar o trabalho docente, uma vez que exigia mudança

das formas tradicionais de lidar com o conhecimento e de ensinar. O apelo à

observação, à experiência, a relevância dada ao concreto e à curiosidade infantil,

contrapunham-e às práticas mnemônicas, à recitação em coro, às lições de cor.

Colocavam-se novos desafios para o professor desenvolver o seu trabalho e ainda se

reclamava um novo tipo de perfil profissional ao serem exigidas criatividade,

iniciativa e atualização (SOUZA, 1998, p. 165).

O discurso reformador, não obstante as boas intenções, ou a falta delas, a formação dos

professores e a aplicação dos novos métodos de ensino mostravam-se um grande desafio ao

governo republicano, no sentido de poder por em prática o novo conceito de educação.

Uma longa reportagem publicada pelo jornal O 15 de novembro, sobre a realização dos

exames finais das escolas isoladas de Sorocaba, evidencia que a escola deveria ter visibilidade.

210

Os exames finais representavam um grande evento e extrapolavam as paredes da sala de aula.

Eles deveriam ser realizados em grandes espaços, tendo muitos espectadores:

EXAMES ESCOLARES – Com toda solenidade e magnificiencia principiaram a 24

os exames annuaes das aulas publicas da cidade no Paço Municipal. Ás 11 horas da

manhã daquele dia deu entrada no salão do jury que estava caprichosamente

ornamentado, o numeroso préstito infantil, composto de alunos e alumnas das diversas

escolas publicas. As meninas vestidas de branco, ostentando distinctivos das escolas

a que pertenciam garbosamente entraram no salão entoando um belíssimo hymno

escolar que produziu em enthusiasmo indiscriptivel. O grande concurso popular que

assistia aquella interessante festa do ensino acolheu-as com phrenéticos aplausos

prolongada salva de palmas (O 15 DE NOVEMBRO, 27 dez 1894, p.2)

No meio da grande festa do ensino, era necessário lembrar à população que tudo aquilo

só fora possível com a República:

[...] o inspector do districto litterario, professor José Monteiro Boànóva que a ella

presidia, depois de ler um excelente discurso em que salientou os serviços prestados

pelo governo republicano ao ensino publico primário, declarou que ia dar começo aos

exames do sexo feminino na sua ordem numérica (IDEM, p.2)

Entretanto, mesmo com todo êxito manifestado nos vários dias que se seguiram na

realização dos exames, o próprio jornal reconhecia as dificuldades e desafios que se

avizinhavam para a consolidação dos novos métodos e da instrução em si:

[...] Em geral os exames foram além da expectativa geral, demonstrando as alumnas

das diversas classes aproveitamento, salientando os esforços ingentes de suas dignas

mestras, dentro do acanhado circulo em que se vêm, já pela falta de frequência assídua

das creanças, já pela falta de materiais de ensino, muitas vezes supridos por

explicações que custam penosíssimos trabalhos. (Ibidem, p.2)

Nesse ano, após a realização dos exames escolares, houve uma sessão solene no salão

do júri, oferecida pela Câmara Municipal, para premiação dos professores públicos e dos alunos

que mais se destacaram no ano de 1894.

O primeiro grupo escolar de Sorocaba e os outros vindouros nunca tiveram condições

de absorver toda a demanda escolar, deixando um significativo número de crianças para trás,

notadamente as mais pobres. No ano de 1904, no Grupo Escolar Antonio Padilha, a seção

feminina atendia 286 meninas e a seção masculina atendia 238 meninos, num total de 524

alunos. Entretanto, mais de 100 crianças foram preteridas por falta de vagas (CRUZEIRO DO

SUL, 11 fev 1904).

211

3.3 Uma escola para operários: escola da Loja Maçônica Perseverança III

A Maçonaria sempre teve uma participação na vida social das cidades, com seus

membros fazendo parte da política, da imprensa, do comércio e de outros setores. As

transformações que ocorriam na sociedade sorocabana acabavam por revelar aspectos que

atravancariam o seu progresso. Uma constatação que se impunha era o elevado número de

analfabetos de todas as idades, além de reduzido número de escolas.

De acordo com um artigo publicado no jornal O Sorocabano, na década de 1870, com

uma população aproximada de 16 mil habitantes, Sorocaba somava nove instituições de ensino,

sendo quatro públicas e cinco particulares. Desse total, seis escolas atendiam ao sexo masculino

e três ao sexo feminino, sendo sete escolas primárias e duas secundárias. O número de alunos

matriculados nessas escolas perfazia 323, porém frequentavam as escolas 302 e, desse número,

224 eram meninos e 78, meninas. O atendimento escolar estava muito aquém do necessário (O

SOROCABANO, 1 nov 1870, p.2).

Diante desse quadro desolador em que quase a totalidade da população não tinha acesso

à instrução, a Loja Maçônica, dentro dos seus princípios de educação e liberdade para o

melhoramento da sociedade, investiu, em 1869, na abertura de uma Escola Noturna para os

trabalhadores adultos ou maiores de 14 anos do sexo masculino. O ideário maçônico liberal e

republicano sustentava-se no princípio de que só através da educação era possível transformar

o indivíduo em cidadão produtivo e consciente de seus deveres cívicos, capaz – portanto – de

exercer a liberdade propiciada pela cidadania. A luta contra o analfabetismo e pela difusão da

instrução ao povo obedecia a objetivos precisos: o alargamento das bases de participação

política no país, a conformação da cidadania, indispensáveis à legitimação do Estado

Republicano (MORAIS, 2006 apud SILVA, 2013). As lojas maçônicas empreenderam

verdadeira campanha contra o analfabetismo, daí as primeiras iniciativas de escolas noturnas

na província de São Paulo serem obra da Maçonaria.

A primeira Escola Noturna em Sorocaba, mantida pela Maçonaria, teve início em 7 de

setembro de 1869 e, pelo considerável número de matriculados, formaram-se três salas, o que

resultou na contratação de um professor titular, Leonel Jandovy de Abreu Sandoval, e também

de um auxiliar para ele. No entanto, esse professor titular lecionou até 27 de novembro daquele

ano, quando pediu demissão do cargo. A Loja ponderou que não teria condições de pagar dois

professores, ficando assim só um professor. Foi proposto, ainda, “que d’ora em diante sejam

admitidos a matrícula na escola noturna os escravos que para isso apresentassem licença por

212

escrito dos seus senhores” (ALEIXO IRMÃO, 1999, p.67). Apesar de essa escola ter tido boa

procura, um fato externo acabou por refletir negativamente na imagem dela, provocando o seu

esvaziamento.

De acordo com o jornal O Sorocabano, nessa escola noturna, no período de 7 de

setembro de 1869 a 20 de julho de 1870, foram matriculados 117 alunos, mas, devido a “boatos

malevolamente espalhados na população de ser a escola protestante”, saíram 65 alunos e, dos

52 restantes, a frequencia média era de 35 alunos. A notícia, no entanto, esclarece o seguinte:

[...] mas hoje, reconhecendo que não ha ali propaganda religiosa de especie alguma,

e são admittidas todas as crenças, tem voltado muito dos que sahiram. Tem se notado

grande aproveitamento dos alumnos; alguns que entraram sem conhecer o —A—

leêm correntemente manuscriptos e livros, fazem as 4 operações arithmeticas, e

exercitam-se em outras contas. A off... Perseverança III dá aos alumnos: mestre,

livros, papel, pennas, lapis, etc (O SOROCABANO, 31 jul de 1870, p.2).

Esse esvaziamento provavelmente ocorreu por uma associação equivocada feita pela

população a respeito do ponto de vista religioso. No ano de 1869, em Sorocaba, além da

fundação da Loja Maçonica Perseverança III, também foi criada a 1ª Igreja Presbiteriana de

Sorocaba, cuja organização foi feita na casa do maçom José Antonio de Souza Bertholdo.

Talvez, por isso, a escola tenha sido associada ao movimento protestante que se inseria neste

período em Sorocaba (SILVA, 2007, p.106).

Passados alguns anos do fechamento dessa escola, em 1896, na sessão de 23 de

setembro, novamente foi apresentada proposta de criação da Escola Noturna da Perseverança

III, visto que a população operária em Sorocaba havia aumentado significativamente. A referida

escola deveria funcionar na sala do prédio da própria Loja, tendo as aulas duração de duas horas

e meia diárias. O professor deveria ser maçon e os membros da maçonaria se cotizariam para

pagar o salário dele.

A Loja Perseverança III, em sessão de 13 de janeiro de 1897, decidiu abrir a Aula

Noturna, apesar dos pesares. Foi, então, nomeada uma comissão para arranjar tudo o que fosse

necessário para a sua abertura, inclusive que fossem solicitados à Câmara “bancos e utensílios

do antigo Liceu” (ALEIXO IRMÃO, 1994, p.131).

No mês seguinte, o jornal O 15 de Novembro anunciava a abertura da Escola Noturna

criada pela Maçonaria, que funcionaria no prédio da referida loja e cujas aulas seriam

ministradas pelo professor normalista Álvaro de Morais Rosa, que, apesar da pouca idade,

mostrava-se competente. Avisava, ainda, que, no ato da matrícula, teriam preferência os

empregados e operários portadores dos cartões de suas respectivas fábricas.

213

A Escola Noturna teve vida longa, mas isto não significa que não tenha enfrentado

dificuldades. Nem sempre a municipalidade ou o governo estadual ofereceram subsídios para a

manutenção da escola e o pagamento dos professores. Então era necessário promover festas e

espetáculos teatrais em benefício dela. Os irmãos-membros mais abonados da maçonaria

faziam generosas doações para esse fim.

Havia alta rotatividade dos professores, que, por diversas razões, não ficavam por muito

tempo a frente das aulas noturnas. O professor Alvaro de Morais assumiu a escola em fevereiro

de 1897, e nela atuou até julho de 1898. Nessa data, assumiu o cargo Otto Wey, que, parece-

nos, não era professor formado e atuou somente até dezembro daquele ano, quando se demitiu.

E assim se foram sucedendo, por muito tempo, as mudanças de professores.

Com o aumento das fábricas em Sorocaba, o número de interessados em estudar nessas

escolas também aumentou, tornando inviável “conservar-se alunos por muito tempo

frequentando as aulas, estudando coisas que não são muito necessárias, e tomando lugar de

outros que desejem aprender um pouco”. Para resolver parte desse problema, o professor

Eugênio Pilar França solicitou à Loja autorização para eliminar os alunos que não se portassem

bem e sem respeito. O pedido foi aprovado, porém o professor deveria avisar inicialmente à

Loja os motivos que levaram ao pedido de eliminação e esta comunicaria aos pais do aluno

sobre o mau comportamento. Caso não houvesse melhora, seria, então, eliminado.

A eliminação por si só não resolveria a situação da demanda e da falta de vagas e nem

era a intenção da Maçonaria praticá-la em demasia. Assim, ficou decidido adotar medidas

estruturais, como suprimir lições de gramática e aritmética e ensinar apenas leitura, escrita, as

quatro operações fundamentais e algumas noções de desenho linear, isto tudo, praticamente,

porque os meninos eram empregados e não tinha tempo de estudar teorias, sendo o ensino

prático mais proveitoso e menos trabalhoso (ALEIXO IRMÃO, 1994).

Em relação aos aspectos pedagógico-administrativos, a escola tinha certa autonomia na

implantação das disciplinas, que deveriam estar voltadas diretamente para o tipo de clientela a

que se destinava. No entanto, preocupava-se em ensinar apenas os rudimentos de algumas

disciplinas, fato que ocasionava, no início do ano, o retorno às salas de aulas daqueles alunos

que estavam interessados em prosseguir nos estudos, em função da falta de uma escola em

período noturno que os conduzisse no desenvolvimento dos estudos. Sem demonstrar qualquer

interesse e até mesmo prejulgando a capacidade e interesse daqueles alunos, antepunha uma

série de obstáculos intransponíveis:

214

João José como um dos membros da Comissão encarregada da fiscalização das Aulas

Nocturnas declara que tendo recebido ordem de não mais acceitar alumnos que

tivessem sido approvados nos exames, elle achou-se embaraçado no abrir a matrícula

visto não ter um programa organisado afim de fazer sciente aos interessados quaes os

motivos que o faziam assim proceder, e tendo combinado com os Professores das

Aulas, adiou a abertura da matrícula para outro dia e trazer ao conhecimento da Loja

afim de que ella resolva sobre o caso (MENON, 2000, p.53).

A partir dessa decisão tomada pela maçonaria ficou flagrante o aligeiramento do curso

oferecido.

Em 1901, através do jornal O 15 de Novembro, a Loja Perseverança III comunicava aos

pais de família que, no dia seguinte, estariam reabertas as matrículas para aquele ano letivo,

sendo “as aulas grátis para os pobres” (O 15 DE NOVEMBRO, 6 jan 1901, p.2). As reiteradas

faltas dos alunos passaram a ser outro ponto problemático, pois, com as longas jornadas de

trabalho nas fábricas, os operários não chegavam a tempo do início das aulas ou, quando

chegavam, estavam cansados demais devido à labuta diária e não encontravam ânimo para os

estudos.

Figura 22 - Escola Noturna Perseverança III.

Fonte: Museu histórico Sorocabano.

Em 1911, quando houve a greve dos tecelões, após os operários das fábricas de tecidos

terem conseguido a redução da jornada de trabalho para 10 horas diárias, O Operario anunciava

com satisfação que aumentara o número de alunos e a frequência nas “Escolas Nocturnas da

Perseverança III”, uma vez que o único objetivo dessa greve fora promover a “instrucção da

classe menos favorecida da sociedade”. Nesse tempo, os operários que quisessem ou pudessem

215

frequentar escolas só podiam recorrer às escolas da Maçonaria. Por mais paradoxal que possa

parecer, o jornal O Operario fez o seguinte agradecimento:

O procedimento digno e correcto da benemerita loja Perseverança III, merece, por

todos os titulos, os nossos melhores encomios e por essa razão, louvamos, do melhor

coração, o grande alcance dos dignos propugnadores do bem, que constituem o

elemento massonico local. Essa grande instituição, abrindo escolas para os miseros

sedentos de luz, não faz mais do que abrir as portas do grandioso templo, onde residem

o absoluto que é Deus (O OPERARIO, 27 ago 1911, p.2).

Essa questão foi apontada pelo Diretor Geral da Instrução Pública no Anuário do ensino

referente ao ano de 1917. Reconhecia o Diretor Geral a importância das escolas noturnas para

a classe operária, porém, da maneira como o ensino vinha sendo desenvolvido pouco contribuía

para a educação dos operários. Esse diretor entendia que os horários estabelecidos para o

funcionamento dessas escolas “concorrem para afastar em vez de atrair, quem trabalha em

serviço até as cinco horas da tarde não pode sentir-se com disposição para frequentar as aulas

que começam às seis horas e meia como exige o regulamento”. Ele prosseguia afirmando que

o mesmo ocorria com o professor, que já cumpria uma jornada durante o dia e “vão para dar

aulas já cansados do trabalho que exercem em suas escolas durante o dia, portanto, não

conseguem fazer com que as aulas da noite sejam proveitosas”. Finalizava dizendo que a seu

ver “as escolas e cursos noturnos deveriam desaparecer e serem substituídas por escolas, que,

devidamente organizadas possam prestar melhores serviços as classes a que se destinam”

(Anuário do Ensino do Estado de São Paulo, 1917, p.11).

As Escolas Noturnas ou Aulas Noturnas, como também eram chamadas, pertencentes à

Loja Maçônica Perseverança III passavam por constantes fiscalizações pelos membros da Loja.

Ocorria ainda, a cada final de ano letivo, a sessão de exames, onde os alunos eram arguidos por

uma banca examinadora.

No ano de 1901, o jornal O 15 de Novembro noticiou a realização de exames finais,

afirmando que os examinadores ficaram satisfeitos “com os resultados apresentados por todos

os alunos, os quais mostraram bastante aproveitamento nas matérias ensinadas naquele

estabelecimento de instrução” e os parabenizava da seguinte maneira:

[...] A Loja perseverança III pela obra benéfica que tomou a seu cargo, tratando de

distribuir o pão espiritual aos necessitados e pelo que vai concorrendo com uma

grande parcela de auxílio para a felicidade e aperfeiçoamento da família humana, e

ainda ao professor Eugenio Pilar França, a quem está confiada aquela escola, pelos

lisonjeiros resultados que colheu dos seus esforços e trabalho (SOROCABA 350

ANOS, 2004, p.183).

216

Em 1903, o professor Eugenio Pilar França, da Escola Noturna, chegou a pedir para os

membros da Loja Maçônica autorização para encerrar o ano letivo sem a realização dos exames

finais. Justificava o pedido pelo fato de a maior parte dos alunos mais adiantados ter deixado a

escola e os seus lugares terem sido preenchidos por outros que ainda estavam atrasados.

A trajetória das Escolas Noturnas mantidas pela Loja Perseverança III, reorganizadas

com mais sucesso em 1896, chegou até os anos de 1950, quando a educação brasileira assumiu

novos contornos e os membros da Maçonaria entenderam que a educação por eles oferecida já

cumprira plenamente ao que se propusera a realizar.

Outra iniciativa educacional importante da Loja Maçônica Perseverança III em

Sorocaba foi a criação do Lyceu Sorocabano, em julho de 1901, estabelecimento de ensino

secundário gratuito. Todos os seus professores eram maçons e trabalhavam gratuitamente. O

Lyceu Sorocabano não recebia nenhuma subvenção, contando apenas com o “idealismo

daqueles homens, sob o comando de Arthur Gomes”. (ALEIXO IRMÃO, 1994, p.192) O ano

de 1904 encontrou o Lyceu Sorocabano de portas cerradas devido à falta de alunos. Entretanto,

segundo Aleixo Irmão (1994), havia grande número de pedidos para as Aulas Noturnas, de

ensino primário, obrigando a formação de mais uma turma nas dependências do extinto Lyceu

Sorocabano.

3.4 Uma escola para as moças operárias

As iniciativas escolares para atendimento dos operários da cidade de Sorocaba não

ficaram restritas às escolas mantidas pela Loja Maçônica Perseverança III. Fundado pelas Irmãs

Beneditinas Missionárias de Tutzing, em 28 de setembro de 1905, o Colégio Santa Escolástica,

destinado a oferecer educação particular para meninas, o fez até 1969, quando passou a ter

turmas mistas.

Por volta de 1913, esse colégio, imbuído da sua filosofia cristã, passou a oferecer

gratuitamente um ensino para as operárias das fábricas de tecidos de Sorocaba. O jornal

Cruzeiro do Sul apresentou extensa matéria sobre essa escola gratuita, dizendo que as Irmãs

estavam “prodigalisando as luzes da instrucção a essas infelizes, obrigadas desde crianças a

viver dentro dessas enormes officinas do trabalho onde nem sempre há hygiene e conforto”

(CRUZEIRO DO SUL, 29 maio 1913, p.2).

Para atender às moças operárias, o Colégio Santa Escolástica, instituição que se mantém

até hoje, oferecia aulas para duas turmas diurnas, das 9 às 11 horas da manhã, e para outras duas

217

turmas noturnas, das 18 às 20 horas. Todas as turmas somavam mais de 100 alunas

matriculadas, “todas operárias pobres”, sendo que algumas “já de edade e que no emtanto, ali

vão aprender ainda as primeiras lettras” (Idem, p.2).

Figura 23 – Asilo S. Agostinho e Colégio Santa Escolástica.

Fonte: Gabinete de Leitura Sorocabano.

Após visita realizada a essas aulas, o repórter do Cruzeiro do Sul incumbido de tal tarefa

relatou suas impressões, que foram as melhores, a começar pela postura obediente das alunas

em sala de aula, que o deixou encantado. Com a intenção de mostrar o aproveitamento das

alunas aos visitantes, as irmãs regentes submeteram-nas a um pequeno exame oral.

[...] pois com a nossa presença, puzeram-se respeitosamente em pé e nem mais

pareciam as operárias de uma fábrica de tecidos, atiradas pela necessidade, desde cedo

aos vae e vens da sorte. Foi preciso que um dos nossos companheiros de visita

solicitasse para que novamente se colocassem nos seus logares, afim de que ellas,

obedientes, continuassem no estudo de suas lições. [...] somos accordes em affirmar

que as operarias recebem ali a verdadeira instrucção popular e uma houve, que apezar

da não pouca edade, recitou com desembaraço e comprehensão a inesquecivel poesia

de Fagundes Varela (CRUZEIRO DO SUL, 29 maio 1913, p.2)

Na sequência, o repórter dizia que era admirável o trabalho desempenhado pelas irmãs

Bonifácia, Praxedes, Hermentrudes e Angita, que “empregaram titanicos esforços afim de fazer

daquellas inconscientes operarias conscenciosas mulheres e educadas donas de casa”.

Esclarecia que a dificuldade maior encontrada pelas irmãs professoras residia no fato de as

alunas não terem material pedagógico adequado, ou seja, levavam cada uma um tipo de livro,

218

quando podiam levar, o que dificultava o trabalho de ensinar. Finalizava informando que “a

illustrada prioreza já havia solicitado ao Secretário do Interior o devido material escolar”.

Esse visitante enalteceu o trabalho e a bondade das Irmãs Beneditinas em oferecer

ensino para as moças pobres, e reafirmou o papel ocupado pelas operárias na sociedade, reflexo

do vivenciado nas fábricas, ou seja, a obediência, o disciplinamento, a pouca ambição na vida

e a possibilidade, quando muito, de tornarem-se boas mães operárias.

Segundo Aluisio de Almeida (1965, p. 6), em 1919, em uma sala da antiga igreja

pertencente ao Colégio Santa Escolástica, abriu-se o Externato São Miguel, gratuito para moças

operárias “que a gente daquele tempo chamavam de pobres e de fato eram”. Lá, elas aprendiam

prendas domésticas e alfabetizavam-se.

Com as modificações decorrentes do tempo, esse externato passou a atender crianças

pobres, em sua maioria filhos de operários, entre as quais eu, que tive oportunidade de lá

estudar. Esse ensino primário foi oferecido até 1971.

3.5 A instrução para o operário: o verdadeiro pão do espírito

“E foi assim que o operário

Do edifício em construção

Que sempre dizia sim

Começou a dizer não.

E aprendeu a notar coisas

A que não dava atenção:

Notou que sua marmita

Era o prato do patrão

Que sua cerveja preta

Era o uísque do patrão

Que seu macacão de zuarte

Era o terno do patrão

Que o casebre onde morava

Era a mansão do patrão

Que seus dois pés andarilhos

Eram as rodas do patrão

Que a dureza do seu dia

Era a noite do patrão

Que sua imensa fadiga

Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!

E o operário fez-se forte

Na sua resolução.”

(Vinicius de Moraes)

219

Para os operários, a educação enquanto pão do espírito não podia ficar apenas na

conquista da educação oferecida pela escola pública, principalmente porque, para os libertários,

a educação formal era a expressão do capitalismo. Nas escolas, formava-se o cidadão para servir

ao capitalismo. Dessa forma, tornava-se premente a necessidade de formar o homem

integralmente, e não apenas ensiná-lo a ler e a escrever. Era preciso que ele tivesse uma

formação para a vida, para pôr em prática novos ideais, pois só a educação traria a libertação

dos que tudo produzem.

Um documento enviado por operários de São Paulo ao III Congresso da Internacional

Socialista, realizado em Zurich, em 1893, em sua parte final, sintetiza de forma bastante

significativa os verdadeiros objetivos da organização operária no Brasil: “Queremos, quando o

povo estiver educado, a revolução social” (FOOT; LEONARDI, 1982, p. 258).

Nesse ponto, socialistas e anarquistas se dividiam ideologicamente quanto ao

oferecimento de educação. Para os primeiros, seguindo o pensamento de Karl Marx, a educação

deveria ficar a cargo do Estado, mas não o Estado capitalista; para os últimos, deveria ser uma

escola direcionada pelas ideias anarquistas, de preferência mantida pelas Ligas e Uniões

Operárias.

No período de 1897 a 1915, em todo o país foram criadas mais de 200 Ligas de

Resistência e Uniões, sendo que, desse número, mais de 80 estavam localizadas em São Paulo

e a maioria delas, na capital. As sedes das Ligas e das Uniões foram verdadeiros centros

irradiadores de cultura operária. Os imigrantes fundaram, em cada associação, escolas para

alfabetização de adultos e escolas modernas ou racionalistas para os filhos dos operários.

Anteriores a esse período, as Associações Operárias já se mostravam preocupadas com a

instrução dos filhos dos operários, quase sempre filhos de imigrantes, e, em suas escolas,

ministravam o ensino na língua materna dos imigrantes.

Os anarquistas não se preocupavam apenas com as reivindicações salariais e com as

greves, quando se faziam necessárias. Eles se preocupavam, igualmente, com temas como: o

ensino, a cultura, a higiene nas escolas e nos locais de trabalho, nos restaurantes, o seguro de

acidentes no trabalho, a defesa da mulher e da criança, etc (RODRIGUES, 1969).

Não obstante todas as dificuldades que se impunham para a obtenção de seus intentos,

os anarquistas tinham a clareza de que somente pela instrução poderiam conscientizar o

operariado sobre os seus direitos e vida digna. Essa formação não seria apenas fruto da educação

oferecida nas escolas, tão precariamente oferecida pelo governo. Pretendiam, através de outros

meios, formar ideologicamente o operário.

220

As Ligas e Uniões Operárias desempenharam papel importante para atingir esse intento,

tendo em vista que ofereciam atividades diferenciadas como palestras, conferências, exibição

de filmes, festas, enfim todo tipo de atividade que elevasse o conhecimento e promovesse a

construção de uma consciência de classe no seio dos operários. Os eventos que ocorriam nestas

sociedades eram para toda a família operária.

A escritora Zélia Gattai, já mencionada neste trabalho, em diversas passagens de seus

livros, comenta sobre as “Classes laboriosas” que, na sua visão de menina, eram lugares, antes

de tudo, de divertimentos. Foi frequentando as “Classes Laboriosas” que a autora passou a ter

conhecimento das ideias anarquistas e dos seus principais representantes. Nas palavras dela

sobre uma reunião muito concorrida nas “Classes Laboriosas”:

Reconheci alguns homens da comitiva que o acompanhavam [o conde] ao palco. Eram

todos figuras importantes: professores e jornalistas renomados. Entre eles estava

Edgard Leuenroth, José Oiticica, Alexandre Cerchiai, Ângelo Bandoni e Oreste

Ristori. Todos eles tinham sido amigos do meu avô Gattai (GATTAI, 1994, p. 176).

Segundo Fausto (1976) os libertários preocupavam-se com o significado dos atos da

vida cotidiana e, por supervalorizarem a moral, passaram a ter um moralismo de estilo religioso.

Condenavam os jogos, o alcoolismo, a dança etc. O jornal A Terra Livre, ao condenar a dança,

dizia que “o baile só serve para manter os sentidos excitados, não é ginástico, nem moral” (A

TERRA LIVRE, 23 fev 1907).

A realização de um jogo de futebol, por iniciativa dos operários da fábrica Votorantim,

numa festa da empresa, fora objeto de severa crítica do jornal A Terra Livre, até mesmo porque

configurava-se como colaboração entre classes:

Vamos ver também o elegante jogo de foot-ball, depois do qual os jogadores

fatigados, aborrecidos, vão brigar com a família; é um jogo bom para os parasitas e os

ociosos que precisam de exercitar os músculos em um trabalho inútil, desprezando ao

mesmo tempo o trabalho útil e os que o fazem. Quanto a nós, temos exercício de sobra.

Exercício até rebentar (A TERRA LIVRE, 9 dez 1907).

A imprensa operária sempre atuou como uma fonte de instrução e conscientização do

operário. Das páginas do jornal O Operário depreende-se uma preocupação com a educação

integral do homem-operário. Daí a ênfase no combate ao alcoolismo – cujos efeitos

devastadores entre as classes populares não podiam ser mais deletérios, especialmente o

alcoolismo na infância.

221

Quando, em 1910, Oreste Ristori percorreu o interior do estado realizando conferências

em benefício das Escolas Modernas, incluiu “o flagelo do alcoolismo”, anunciado com um tom

aterrorizante e com umas quarenta projeções impressionantes relativas

[...] aos efeitos desastrosos produzidos pela lenta intoxicação alcoólica no organismo

do indivíduo, nas condições da família e nas relações sociais; perda do sentimento, da

dignidade pessoal, de amor à família, aos filhos, ao estudo; tendência para o crime,

enfraquecimento físico, ulceração dos órgãos internos, atrofia da memória, espantosas

alucinações, delirium tremen, loucura e morte (FAUSTO, 1976, p.87).

Esse conferencista visitou Sorocaba por diversas vezes, especialmente, como já

mencionado, nos tempos em que pretendia angariar fundos para a implantação das Escolas

Modernas.

Os principais temas abordados pelo jornal O Operário diziam respeito ao alcoolismo,

como pode ser constatado pelos artigos intitulados Alcoolismo na infância, Para nossos filhos

por uma amiga da infância, Aos educadores, Combatendo o jogo, Às nossas mulheres etc.

A politização do operário não ficou restrita à imprensa operária. Com a formação de

Ligas e Associações Operárias, a alfabetização dos adultos passou a ser uma das principais

metas culturais. Entretanto, outros recursos eram utilizados, como as conferências e as peças de

teatro. Uma conferência que ganhou fama foi Jesus Cristo, agitador social, proferida pela

primeira vez em dezembro de 1905, pelo militante anarquista Everardo Dias. Em Sorocaba após

as conferências, quase sempre aconteciam bailes com a intenção de promover a diversão e atrair

mais simpatizantes. Os piqueniques em áreas mais distantes da cidade também aconteciam com

frequência. No caso de Sorocaba, o local preferido para esses encontros e bailes era o “pitoresco

Votorantim”, maneira como referiam-se a Votorantim, por ser um lugar muito bonito.

As peças de teatro atraíam muitos espectadores e quase sempre tinham forte apelo

anticlerical. Elvira Boni de Lacerda, atriz amadora nesses grupos de teatro anarquista, sobre

uma das peças em que atuou, contou o seguinte:

Fiz uma que era uma heresia total: uma chamada A fome. Nem sei se devo contar. Era

um casal de irmãos e a mãe. Quando levantava o pano, a mãe estava sentada numa

cadeira, com a cabeça apoiada na mesa, e o rapaz estava conversando com ela. A irmã

estava na rua, e nisso cai um grande temporal. Ela chega toda molhada e fica

conversando com o irmão contando as dificuldades porque passou. De repente a mãe

dá um suspiro, a moça vai ver e nota que a mãe morreu. Então vai ao oratório e começa

a rezar, a pedir a Deus que olhe por isso, por aquilo, fala, fala, por fim pega o crucifixo,

vai para perto da mãe, mostra-a e diz: “Você não está vendo que minha mãe morreu?”

Afinal de contas, termina a peça com ela atirando o Cristo longe. Ela diz assim:

“Maldito sejas!” (GOMES, 1988, p.46)

222

As peças de teatro, sempre com cunho doutrinário, gozavam de grande repercussão entre

os operários. As associações operárias também investiam na formação de bibliotecas,

oferecendo a literatura apropriada para a formação ideológica do operário. Indicavam-se as

leituras de Karl Marx, Piotr Kropotkin, Errico Malatesta, Elisée Reclus, entre outros.

Em 1904, foi fundada, no Rio de Janeiro, a Universidade Popular de Ensino Livre, de

caráter anticlerical e laico, fruto de uma iniciativa de líderes sindicalistas locais. Seu corpo

docente era formado por intelectuais famosos como: Elysio de Carvalho, Silvio Romero, José

Veríssimo, Rocha Pombo e Fábio Luz.

Essa universidade fracassou pouco tempo após sua criação, devido ao déficit financeiro

e à distância existente entre o discurso erudito dos mestres e o analfabetismo predominante na

classe operária carioca (FOOT; LEONARDI, 1982).

3.6 A educação operária sob as lentes dos jornais Cruzeiro do Sul e O Operário

A educação do operário ou a falta dela sempre figurou nas páginas dos jornais

sorocabanos. O jornal O Operário entendia a educação e a instrução como fatores cruciais para

as conquistas do proletariado, tanto que, na greve de 1911, a primeira em que o operariado

obteve sucesso em suas aspirações, o motivo principal foi a redução da jornada de trabalho,

justamente para que os operários pudessem frequentar as escolas noturnas. Desde o início de

sua existência, o jornal denunciava essa situação:

Sorocaba a Manchester do Estado de S. Paulo, conta com um número elevadíssimo

de operarios que são obrigados pelos seus patrões a trabalharem 13 e 14 horas diárias

para não morrer de fome! Mal tratados pelos prepotentes gerentes e seus auxiliares

que são os mestres e contra-mestres bajuladores que, não trepidam sómente em

maltratar tambem os seus companheiros, roubando-lhes o suor, em proveito de seus

patrões, impondo-lhes multas exageradas e, reduzindo a classe ao estado a que se

acha: sem horas para se instruir, sem horario para o seu descanço e sem liberdade de

pensamento (O OPERARIO, 31 out 1909, p.1).

O jornal O Operário não escondia e, ao que parece, nem queria fazê-lo, que a

impossibilidade dos operários frequentarem escolas era tão somente fruto da ganância dos

patrões, que exigiam longas jornadas de trabalho de seus empregados. Esse jornal mostrava-se

incansável em reivindicar a educação, tanto para as crianças como para os adultos, como

evidenciado na seguinte publicação:

223

Dòe-me deveras, dentro d’alma, operarios ao ver nestas gelidas manhãs, essas pobres

e desditosas criancinhas que despidas completamente da sorte e sentindo a dura

necessidade de ganhar o pão, o negro pão quotidiano seguem o caminho das fábricas,

descalças, entanguidas, tiritando de frio!... [...] Os srs. patrões fazem questão que

entremos as 5, 5 e meia da madrugada e retiremos ás 7, 7 e meia ou 8 da noite. Ás

crianças que passam o dia todo submergidas no fundo da fabricas, jamais é dado a

liberdade de frequentarem as escolas nocturnas... (O OPERARIO, 25 jun 1911, p.2).

Das páginas do Cruzeiro do Sul, depreende-se que esse jornal conhecia a importância

da educação para os operários, muito embora, sutilmente, expressasse seu pensamento elitista,

tentando incutir, no trabalhador, a conformação quanto ao seu papel na sociedade. Admitia que

os operários enfrentavam dificuldades para frequentar escolas, decorrentes das “vicissitudes da

vida se vêm na contingência de buscar no trabalho quotidiano recursos para a sua subsistência”,

sem fazer alusão às condições de exploração existentes nas fábricas. Com a mesma sutileza,

destacava que as melhorias viriam graças aos esforços do governo e dos chefes políticos, entre

eles o deputado Luiz Pereira de Campos Vergueiro.

O nosso representante da camara dos deputados dr. Luiz Pereira de Campos Vergueiro

apresentou ao projecto nº 3, deste anno, creando escolas, uma emenda em virtude da

qual ficarão creadas neste municipio duas novas escolas nocturnas para os adultos,

que muito irão beneficiar os operarios das fábricas Votorantim e Santa Rosalia. Tal

conducta do nosso distincto chefe procurando junto dos poderes constituidos do

Estado, prover as necessidades da classe operaria, no que diz respeito aos desejos que

tem a mesma que se lhes facilite a instrucção, é a melhor resposta que pode ser dada

às baixas intrigas que certo elemento conhecido já pela perfidia de suas insinuações

tem pretendido vingar no seio do operariado sorocabano. Confie a honrada classe

operaria de Sorocaba na acção do dr. Campos Vergueiro e terá dentro em pouco a

prova de quanto elle se empenha e se interessa para que as suas condicções, em tudo

que depender do Governo de São Paulo se vão sempre melhorando e aperfeiçoando.

Com isso os poderes publicos nada mais farão do que dar-lhe uma justa compensação

pelo muito com que o proletariado, pelo seu trabalho constante e dedicado, concorre

para o engrandecimento do nosso Estado (CRUZEIRO DO SUL, 26 ago 1911, p. 2).

Enquanto órgão preocupado com a formação integral do operário, o jornal Cruzeiro do

Sul frequentemente publicava artigos sem autoria definida, apenas assinado como “Um

Operário”. Pelo teor de tais artigos, quase doutrinários, é bem provável que tivessem sido

escritos por membros do próprio jornal.

Em 1904, por ocasião da formação da Sociedade Operária, em um artigo publicado

nesse jornal e intitulado Pelos Operários, o autor afirmou que a sua intenção era animar a

Sociedade União Operária, não que a entendesse decadente, pelo contrário “por ver que viceja

e floresce”. Alertava que os sócios dessa sociedade deveriam pensar no futuro, pensar mais em

seus filhos, que em si próprios. Para tanto, fazia-se necessário abrir-se escolas “onde o trabalho

seja honrado e onde se ensine os filhos dos trabalhadores o caminho do labor e do dever”

(CRUZEIRO DO SUL, 16 jul 1906, p.2).

224

O texto prosseguiu com as informações de que, para os meninos, já havia uma escola

aberta, não pela Sociedade Operária, mas pela Loja Maçônica Perseverança III e que todo o

ensino que o filho de um operário deveria receber era ali ministrado. Entretanto, os olhares

deveriam ser direcionados à educação das meninas, “filhas de operários, futuras esposas e mães

de futuros operários”. Mas a escola a que se referia o articulista era similar às que existiam nos

Estados Unidos, responsáveis por formar donas de casas:

[...] Nos Estados Unidos da América do Norte há escolas de donas de casa. Ali vae a

menina aprendendo a vida interna do lar, e fica sabendo desde as minudencias dos

temperos culinarios ate as etiquetas de um banquete, ou de uma visita cerimoniosa.

Consigamos, amigos operarios, um ensino não tão perfeito, mas o bastante para fazer

da menina de hoje a alegria do lar do trabalhador. [...] Cuidemos da educação dos

nossos filhos, de nossas filhas, de nós próprios, e seremos felizes – o nome de

OPERARIO ser-nos-á uma honra. Um Operario (CRUZEIRO DO SUL, 16 jul 1904,

p. 2).

Interessante notar que a tônica desse artigo é a conformação da condição de operários,

no presente e no futuro, sem vislumbrar possibilidades de mudança e de melhora de vida, nem

mesmo para os filhos. Esse discurso assemelhava-se mais ao pensamento dos patrões do que

dos próprios operários.

Num outro artigo, também assinado por Um Operário, esse amigo do operariado

alertava sobre os riscos em aproximar-se de ideias anarquistas, pois elas só semeavam o ódio

no operário contra o seu patrão. Tornava-se necessário que o homem do trabalho “fosse o mais

fiel executor das ideias superiores” e que fosse “amigo e não inimigo do industrial”. Devaneava

o autor ao dizer que “o operario torne-se o confidente do patrão”.

Assim, segundo o articulista, os benefícios desses procedimentos seriam mútuos, pois

[...] a industria crescendo, enriquece ao proprietario que, por sua vez paga melhor e

pontualmente seus empregados. Si, ao contrario, a mão do operario anarchista arruina

a fabrica, anniquila-se tudo – o prejuizo soffrido pelo proprietario reflecte-se na falta

de pão para os filhos dos pobres que na fabrica trabalhavam. (CRUZEIRO DO SUL,

2 nov 1904, p.3)

Finalizava o artigo recomendando à Sociedade Operária de Sorocaba que competia a

ela estudar esse assunto “apenas esboçado por Um Operario”. Mais uma vez, o discurso estava

mais próximo ao gosto dos patrões que ao dos operários.

O jornal O Operario, infatigável em sua campanha pela redução das horas de trabalho

do operário, alertava sobre as consequências prejudiciais das jornadas extenuantes para o

crescimento, tanto físico como intelectual, das crianças, configurando uma crueldade mantê-las

distantes da instrução. Lamentava o fato de haver uma escola para operários oferecida pela Loja

225

Maçônica e tantos alunos ficarem impedidos de frequentá-la. O jornal tentava, de todas as

formas, convencer a população dos efeitos nocivos da exploração do trabalho infantil: em certas

ocasiões, investia num discurso incisivo e até raivoso contra os patrões, em outras, procurava

apelar para a bondade dos patrões, tocando em seus corações, para que diminuíssem a longa

jornada de trabalho.

Ora, aqui em Sorocaba temos uma optima escola nocturna, mantida pela Loja

Maçonica Perseverança III, desta cidade, sob o regimen de trez hábeis professores, e

no entanto, os alunos que trabalham nas fábricas, não possuem tempo suficiente para

frequental-a devido as horas demasiadas de tabalho, pois entram ás cinco horas da

manhã e retiram-se ás sete ou oito da noite, não restando por conseguinte, tempo

suficiente para estudar. Portanto estas creanças estão condenadas a viver para sempre,

na escuridão da ignorância?! ... Não; os senhores patrões compadecer-se-hão delas, e

lhes consederão as OITO HORAS DE TRABALHO, cumprindo, por assim dizer, um

dos mais sagrados deveres! – compadecendo, pois, dessas mizeras criancinhas, dessas

victimas do trabalho (O OPERARIO, 6 mar 1910, p.2).

No afã de resolver a questão da educação para as crianças operárias, os diretores do

jornal, cônscios de seu dever irrestrito de lutar pela classe operária, sugeriam aos proprietários

das fábricas que arranjassem professores particulares para ensiná-las ou então que criassem

escolas noturnas, prevendo um futuro obscuro para a sociedade, fruto da falta de instrução dos

futuros homens.

Ellas, coitadas, pela força da necessidade, sujeitam-se ao trabalho, mas, daqui a alguns

anos, si cometerem um crime pela sua ignorância, culpados devem ser os homens que

aproveitaram o seu suor o que provavelmente nada farão por ellas. É uma necessidade

imprescindível que os proprietários de fabrica, criem escolas nocturnas para os seus

empregados, por sua conta, sem a menor remuneração da parte deles, pois que do

contrario podemos contar com uma leva de perdidos que só poderão dar prejuízo a

sociedade ( O OPERARIO, 29 maio 1910, p.2).

Em 1910, o governo estadual, “num rasgo de verdadeiro sentimento de humanidade,

remediou esse mal” sancionando a lei que estabelecia a criação de escolas noturnas para adultos

maiores de quatorze anos em diversos pontos industriais do estado. Sorocaba fora contemplada

com uma escola.

Essa lei foi motivo de imenso júbilo para o jornal O Operario e coincidiu com o

aniversário de um ano de existência desse jornal. O jornal praticamente reivindicava para si

essa conquista. Sob o título “Estamos vencendo” afirmava que “a creação e funcionamento

dessas escolas vem é, incontestavel, melhorar muito a condição actual dos operarios, que por

serem analphabetos, na sua maioria vivem sempre de rastos, mergulhados nas trevas da mais

crassa ignorância” (O OPERARIO, 31 jul 1910, p.2).

226

Provavelmente, o contentamento fora tamanho que o jornal publicou na íntegra a

referida lei, para que nenhum operário desconhecesse seus direitos. Segue:

Art. 1º. – As escolas nocturnas criadas pela lei n. 1.195 de 24 de dezembro de 1909,

se destinam as pessoas do sexo masculino maiores de 14 annos.

Art. 2º - Estas escolas funccionarão todas as noites das 6 horas e meia ás 9, salvo os

dias feriados por lei.

Art. 3º - O curso das escolas nocturnas compreenderá as seguintes materias: leitura,

escripta, linguagem, arithmetica e lições geraes compreendendo noções de geometria,

desenho, higyene, a educação moral e civica e principaes applicações das sciencias

physiconaturaes.

Paragrapho único – Estas materias serão esplicadas em lições diarias de acordo com

o programma anexo.

Art. 4º - A matricula das escolas estará aberta tres dias antes do inicio dos trabalhos

lectivos.

Paragrapho único – É de 50 o numero de alumnos a matriculas em cada escola, a qual

não poderá funccionar com frequencia media a 25.

Art. 5º - As escolas nocturnas serão localisadas em centros de população operaria,

tendo preferencia em seu provimento aquelas para cujo funccionamento as

municipalidades offereçam predios adequados.

Art. 6º - nas localidades onde existirem mais de duas escolas poderão ellas, a juizo do

governo, funccionar nos predios dos grupos escolares, competindo a sua direcção ao

director do grupo. Em outros casos, caberá cumulativamente a direcção a um dos

professores que for designado pelo governo.

Paragrapho 1º - O governo poderá nomear um servente para as escolas assim

agrupadas.

Paragrapho 2º - O pessoal administrativo dos grupos que servir nas escolas nocturnas

tera uma gratificação “prolabore” arbitrada pelo governo.

Art. 7º - As escolas nocturnas serão regidas pla legislação escolar em vigor em tudo o

que estiver previsto, neste regulamento.

Art. 8º - As disposições deste regulamento serão applicadas aos cursos nocturnos no

que se referir a matricula, horarios, programma de ensino e localisação das escolas.

Art. 9º - Este regulamento entrará em vigor desde já

(O OPERARIO, 31 jul 1910, p.2).

O jornal O Operario, sobre essa lei, só tinha a lamentar o fato desta não admitir

matriculas de menores de 14 anos nas escolas noturnas, “pois o numero de crianças que

trabalham em fabricas e que não sabem ler, é avultadissimo, principalmente em Sorocaba, onde

a industria, póde-se dizer é a única fonte de sua vida econômica” (O OPERARIO, 31 jul 1910,

p. 20 ).

Para o jornal Cruzeiro do Sul, foram mais de cinquenta escolas criadas no estado e

Sorocaba foi uma das primeiras cidades a ter o provimento de uma escola, tendo em vista que

o secretário do interior reconhecera a procedência das ponderações feitas pela nossa prefeitura

no “sentido de que em nosso meio, onde prepondera o elemento operário se favorecesse o

ensino àquelles que se vêm na contingencia de buscar no trabalho quotidiano recursos para a

subsistência” (CRUZEIRO DO SUL, 9 set 1910, p.2). O jornal afirmava, ainda, que o governo

recomendava que a localização dessa escola fosse próxima das fábricas São Paulo, Santa Maria,

Santa Helena e Souza Pereira, a fim de facilitar a frequência dos alunos. E que a outra escola a

227

ser provida posteriormente deveria localizar-se próxima das fábricas Santa Rosália e Nossa

Senhora da Ponte.

Apesar de a lei das escolas noturnas estabelecer que a idade mínima de ingresso seria

de 14 anos, o professor nomeado, Theodomiro de Barros publicou o seguinte anúncio:

Acha-se aberta, durante 3 dias das 6 às 8 horas da noite, a matricula desta escola, a

rua do Rosario, n. 24. Só serão aceitos alunos maiores de 16 annos de edade. As aulas

funccionarão todos os dias uteis das 6 as 9 horas da noite. Sorocaba, 13 de setembro

de 1910. O professor – Theodomiro de Barros (CRUZEIRO DO SUL, 14 set 1910,

p.3).

Passada a euforia no meio operário pelas escolas noturnas, os operários retornam à dura

realidade e constataram que as escolas foram criadas, mas as longas jornadas de trabalho se

mantinham e impediam o comparecimento dos alunos, pois, segundo o regulamento, as aulas

teriam início às 18 horas e término às 21 horas. Dizia o jornal O Operario que aprovavam o

horário, na verdade, o consideravam “magnifico”, mas queixavam-se da dificuldade que

[...] dahi advem para os operarios as frequentarem devido ao adiantado da hora que

largam o serviço. As fabricas de tecidos Santa Maria e Santa Rosália trabalham até às

oito e meia da noite (!!!) e da Nossa Senhora da Ponte até as sete e a Fabrica de

Chapeus até as cinco e meia da tarde. Diante de um horario tão commodo quanto

rendoso para os patrões, nenhum operario poderá frequentar as escolas nocturnas (O

OPERARIO, 2 out 1910, p.1).

O jornal apontava opções para se resolver essa questão. Uma seria o governo, por meio

da lei, regularizar as horas de trabalho em todas as fábricas, ou, então, que os patrões, por

vontade própria, reduzissem as horas de trabalho, ao menos para aqueles que frequentassem as

escolas. Entretanto, o próprio jornal considerava que essa medida, apesar de ser a ideal, era a

mais improvável de acontecer. Apresentava, então, outra opção: aconselhava as fábricas Santa

Maria, Santa Rosália, e Nossa Senhora da Ponte “a darem começo ao trabalho ás tres horas da

madrugada fazendo-o cessar as cinco” (O OPERARIO, 2 out 1910, p.1).

O próprio jornal reconheceu que a criação e a manutenção de escolas para a educação

dos operários a cargo dos industriais, a despeito de todos os argumentos e apelos levantados

pelo jornal, não produziu nenhum efeito positivo: “está claro da completa indiferença que reina

no espirito dos senhores patronatos em favor da classe operaria, única que sabe sofrer sem oppor

resistência” (O OPERARIO, 31 jul 1910, p.2).

228

3.7 Escola Moderna ou Racionalista: educação para a emancipação

“Como era de se esperar

As bocas da delação

Começaram a dizer coisas

Aos ouvidos do patrão.

Mas o patrão não queria

Nenhuma preocupação

- "Convençam-no" do contrário -

Disse ele sobre o operário

E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário

Ao sair da construção

Viu-se súbito cercado

Dos homens da delação

E sofreu, por destinado

Sua primeira agressão.

Teve seu rosto cuspido

Teve seu braço quebrado

Mas quando foi perguntado

O operário disse: Não!”

(Vinícius de Moraes)

Para a classe operária, a educação sempre ocupou papel de destaque entre suas

necessidades. Pelas próprias contingências, a educação reivindicada pelos operários não

avançava da primária, uma vez que o país não conseguia atender plenamente nem o nível

primário, quanto mais o secundário, para toda a população. Porém a educação ministrada na

escola púbica não condizia com os ideiais anarquistas, que pretendiam um outro tipo de

educação e foram buscar, no modelo educacional de Francisco Ferrer, as bases para a educação

operária.

Os operários, em especial os imigrantes, fundaram em cada associação operária escolas

para alfabetização de adultos e escolas modernas para os filhos dos operários, nos moldes da

proposta pedagógica de Francisco Ferrer y Guardia.

Esse educador espanhol de tendência anarquista fundou, em 1901, na cidade de

Barcelona, na Espanha, a Escola Moderna. Evitou nomeá-la como anarquista pela certeza de

perseguição por parte dos setores poderosos da sociedade, entenda-se Igreja Católica e Estado,

já que sua proposta educacional se apresentava totalmente desvinculada da tradição católica.

Esse tipo de ensino proliferou em todas as associações operárias dessa época e não deixou de

existir após a morte do seu idealizador. Manteve-se no Canadá até 1970 (SAFÓN, 2003).

Em 1901, ano de sua criação, a Escola Moderna contava com 30 alunos: 12 meninas e

18 meninos. Em 1903, já contava com 114 alunos.

229

Alguns dados estatísticos permitem-nos vislumbrar o cenário educacional da Espanha

nesse tempo. No início do século XX a Espanha contava com 72% de analfabetos em sua

população. Em 1909, ano do assassinato de Ferrer, 30 mil vilarejos não tinham escola. A Igreja

possuía 80% do ensino privado: 294 comunidades religiosas de ensino para educação de

meninos e 910 para a educação das meninas. Só na cidade de Barcelona, as escolas

confessionais elevavam-se a 489, contra 137 não confessionais, estatais ou privadas, as quais

acolhiam apenas 20 mil alunos, numa população de 60 mil crianças a serem escolarizadas

(SAFON, 2003).

A presença preponderante da Igreja Católica no campo educacional esbarrava nas ideias

anticlericais da escola Moderna. Eis o elemento motivador para uma perseguição a Ferrer.

Some-se a isso, uma série de fatos ocorridos em sua vida particular que também contribuíram

para essa situação.

Após um casamento mal-sucedido, Ferrer perdeu dois filhos para a esposa que o

abandonou. Depois disso, ele passou a se dedicar integralmente a suas intenções pedagógicas.

Foi professor de espanhol em Paris e, entre suas alunas, travou amizade com a senhorita.

Meunié, uma mulher de certa idade, católica fervorosa e muito rica e com a jovem que

desempenhava a função de companhia e amiga da senhorita Meunié, Léopoldine Bonnard, de

tendência libertária, e que se tornaria sua segunda companheira (SAFON, 2003). Em 1896,

morreu a senhorita Meunié e esta legou a Ferrer uma fortuna, a qual foi empregada no

estabelecimento de sua escola e sua editora.

Depois de um tempo, Ferrer separou-se de sua segunda esposa Léopoldine, com a qual

teve um filho chamado Riego, e desposou, em seguida, uma jovem professora de nome Soledad

Villafranca, que era igualmente amada pelo ex-bibliotecário da Escola Moderna, Mateo Morral.

Em 1906, em Madri, esse anarquista, talvez por desilusão amorosa, atentou contra a carruagem

nupcial do rei Afonso XIII, que nada sofreu. Após sua captura, Mateo Morral suicidou-se. As

autoridades que passaram a investigar o caso, ao saberem que o criminoso havia sido

bibliotecário na escola de Ferrer, acusaram-no de ter sido o mentor do atentado. Ferrer foi preso,

a Escola Moderna, fechada e todo o seu material, confiscado. Mais de um ano depois, Ferrer

foi inocentado, mas já não possuía recursos para reconstruir a escola. Ferrer mudou-se para a

França e, depois, para Bruxelas, onde fundou a Liga Internacional para a Educação Racional

da Infância e iniciou a publicação da revista da liga, L’École Renovée, e retomou a publicação

do Boletim da Escola Moderna, em Paris.

Em 1909, ele retornou para a Espanha, visitando familiares na Catalunha. Em agosto

daquele ano, eclodiu uma revolta popular contra a guerra que a Espanha fazia no Marrocos,

230

cujos soldados recrutados eram pais de família da classe operária. Os soldados operários se

recusavam a ir para a guerra e as manifestações cresceram. O período de 26 de julho a 2 de

agosto de 1909 foi muito violento e ficou conhecido como Semana trágica. Estabelecimentos

comerciais foram saqueados, igrejas e conventos foram incendiados. A revolta era contra a

burguesia espanhola, a Monarquia e a Igreja. A repressão do governo foi dura e foi ordenada a

prisão de uma série de proeminentes intelectuais e militantes republicanos, dentre eles

Francisco Ferrer (GALLO, 2014).

Sobre a participação de Ferrer nesse movimento, o bispo Casanes, que lhe consagrava

um ódio inflexível, declarou, em pleno púlpito, o seguinte:

A palavra de Deus, por minha boca, assinalará, pois, sem ter de pronunciar seu nome,

neste local santo, aquele que é culpado da força amplificada do laicismo e do

racionalismo, o autêntico desencadeador do flagelo que devasta nossa Santa Igreja e

que põe a fogo e a sangue toda a Espanha! (SAFÓN, 2003, p.25)

Num tumultuado julgamento militar, Francisco Ferrer foi condenado à morte por

fuzilamento pelo governo espanhol, que se manteve indiferente a todas as manifestações

internacionais solicitando o perdão dele.

A notícia da execução de Ferrer motivou pedidos de clemência e protestos em muitas

partes do mundo, inclusive em Sorocaba. Mas tudo foi em vão e, em 13 de outubro de 1909,

ele foi fuzilado.

Em Sorocaba, a morte de Francisco Ferrer foi motivo de grande comoção. Mesmo os

jornais considerados representantes da burguesia noticiaram e lamentaram sobre sua “morte

que tão dolorosamente ecoou por todo o mundo civilisado”. A fim de promover um protesto

popular, os senhores Arthur Gomes, Vicente Caputti, Vicente Guariglia, Francisco Catalano,

Gumercindo Gonçalves, Manoel Afonso, Otto Brinkmann, Antonio Marques Flores e Francisco

Campana, segundo o jornal Cidade de Sorocaba, reuniram, no largo da Matriz, mais de duas

mil pessoas. Após os discursos proferidos por algumas pessoas sobre a crueldade da execução

de Ferrer, os manifestantes saíram percorrendo as ruas da cidade:

[...] Ficou decidido que a commissão alludida redigisse e endereçasse ao governo da

República uma moção pedindo-lhe que officialmente fizesse sentir ao governo da

Hespanha e ao mundo civilisado o desgosto profundo do povo brasileiro pela

execução do malogrado Francisco Ferrer. (A CIDADE DE SOROCABA, 17 out

1909, p.2)

Em 29 de dezembro de 1911, Francisco Ferrer foi oficialmente declarado, pela justiça

espanhola, inocente das acusações que o levaram à morte, sendo suspenso o arresto de seus

231

bens, que foram devolvidos à família. “Morto Ferrer, ele já não era uma ameaça aos poderes

constituídos” (GALLO, 2014, p. 15).

3.7.1. A pedagogia de Francisco Ferrer y Guardia

A intenção educativa de Ferrer parte de uma evidência social: a desigualdade e a

injustiça sustentadas pelo Estado e transmitidas por todo dogma religioso que prega a

obediência. Contra esse estado de coisas, Ferrer propõe uma educação que eleve o combate do

indivíduo, em toda circunstância, para reivindicar os direitos humanos e participar do

patrimônio universal. É indispensável “que as crianças aprendam a ser verdadeiros homens, e

só então que se declarem revoltados, se for possível”.

Por isso, “a missão da Escola Moderna consiste em fazer com que os meninos e as

meninas que lhe forem confiados se tornem pessoas instruídas, verdadeiras, justas e livres de

qualquer preconceito. Para isso o estudo dogmático será substituído pelo estudo racionalizado

das ciências naturais” (FERRER Y GUARDIA, 2014, p. 37).

Francisco Ferrer inspirou-se nas ideias de Bakunin sobre a instrução integral, que

concerne à formação conjunta do intelecto e do manual, o adquirido da teoria e a obra da prática

(SAFÓN, 2003). Sua pedagogia pautou-se em autores como Rousseau, Montaigne, Spencer,

Fröebel e outros. Ele mantinha laços de amizade com pensadores anarquistas como Elisée

Reclus e Piotr Kropotkin.

Segundo Ferrer (2014, p.37), a Escola Moderna ensinará os verdadeiros deveres sociais,

conforme a justa máxima: “não há deveres sem direitos; não há direitos sem deveres”.

Sua pedagogia deveria pautar-se nas pesquisas de especialistas que estudam o

desenvolvimento infantil e seus problemas. Para isso, uma das maneiras a ser trabalhada seria

o princípio do jogo na realidade, o despertar imaginativo e o sentido social do jogo. Por meio

do jogo, o professor conhecerá o caráter da criança e conseguirá orientá-la de maneira que ela

compreenda e aceite a solidariedade entre os jogadores, aprendendo, assim, a tolerância e a

aceitação da diferença alheia.

Recomendava não precipitar os desejos da criança para instruir-se: “que a instrução, o

ensino só comecem quando a criança pedir”. Diferentemente das escolas de então, a Escola

Moderna se apresentava mista, aceitava crianças de ambos os sexos a partir dos cinco anos de

idade e lançava um olhar diferenciado para a mulher. Para Ferrer

232

a mulher não deve estar recolhida ao lar. O raio de sua ação deve ser dilatado para

fora das paredes das casas: este raio deveria ser concluído onde chega e termina a

sociedade. Mas para que a mulher exerça sua ação benéfica, os conhecimentos que

lhe são permitidos não devem ser convertidos em pouco menos que zero: deveriam

ser em quantidade e em qualidade os mesmos que ao homem são proporcionados.

(FERRER Y GUARDIA, 2014, p.49)

A Escola Moderna não era uma escola que atenderia somente pobres, inclusive seus

alunos pagavam pelo ensino. Para Ferrer y Guardia (2014, p.52), o benefício da coeducação das

classes sociais residia no fato de pobres e ricos conviverem em contato uns com os outros, na

inocente igualdade da infância, por meio da igualdade sistemática da escola racional. Essa é a

escola boa, necessária e reparadora. A escola estava aberta para pobres e ricos e o sistema de

remuneração variava de acordo com os meios financeiros dos pais dos alunos.

Para essa ideia eu procurei ter alunos de todas as classes sociais para reagrupá-los na

classe única adotando um sistema de retribuição adaptado às circunstâncias dos pais

ou encarregados dos alunos, não tendo um tipo único de matrícula, mas praticando

uma espécie de nivelação que ia desde a gratuidade, as mensalidades mínimas, as

medianas até as máximas. (FERRER Y GUARDIA, 2014, p. 52)

Com o objetivo de um ensino igualitário, isto é, diferenciado segundo as inteligências,

a escola deve oferecer um conjunto de conhecimentos, pois não será ela quem vai determinar a

aptidão ou incapacidade de quem quer que seja. Assim, “todo aluno sairá da escola para entrar

na vida social com a aptidão necessária para tornar-se seu próprio mestre e guia ao longo de

sua vida”. Seguindo esse princípio basilar, a escola não pode oferecer prêmio e nem tampouco

punir. Também não deve haver provas, principalmente as chamadas provas clássicas, aquelas

que estamos habituados a ver no fim do ano escolar, que nada mais é que tornar o aluno vítima

de tormentos requintados. Tudo isso porque, segundo Ferrer y Guardia (2014, p. 81)

Das provas não se tira nada de bom; pelo contrário, o aluno recebe embriões de muito

mal. Além das doenças físicas mencionadas, sobretudo as do sistema nervoso e o

acaso de uma morte prematura, os elementos morais que este ato imoral qualificado

de prova inicia na consciência da criança são: a vaidade enlouquecedora dos altamente

premiados; a inveja roedora e a humilhação, obstáculo de iniciativas saudáveis, aos

que falharam; e em uns e outros, e em todos, os alvores da maioria dos sentimentos

que formam os matizes do egoísmo.

A Escola Moderna propunha, ainda, uma troca entre as escolas, por meio de

correspondências, excursões escolares organizadas na natureza e nas indústrias, com

comentadores (SAFON, 2003). Uma outra forma de educação que não poderia ser desprezada,

considerando a época, dizia respeito à higiene. Esclarecendo às crianças que a sujeira é causa

233

de enfermidades, que a limpeza é bela, a sujeira, feia. “Ao incitar as crianças a higiene, sem

dúvida os pais as seguirão”. Assim, será indispensável, em cada escola, manter um caderno

sanitário para cada criança e dispor de um médico. A organização do serviço deveria

compreender os seguintes pontos: salubridade dos edifícios; profilaxia das doenças

transmissíveis; observação atenta quanto a função normal dos órgãos e crescimento; criação de

uma educação física e adaptação dos estudos à capacidade intelectual de cada criança; educação

e instrução sanitária (práticas de higiene). Para Ferrer, a obra educadora tinha que extrapolar os

muros da escola, contando com a participação dos pais e pedagogos, porém de maneira coerente

com a proposta pedagógica racional, de respeito à individualidade da criança.

Os pais e pedagogos têm que ser até certo ponto passivos na obra educadora. As

observações do pai e as instruções do professor não devem ser convertidas em preceito

imperativo à maneira de ordem mecânica nem militar ou mandato dogmático

religioso. Uns e outros encontram, no educando, uma vida particular. Ela não pode

ser governada com uma direção arbitrária; ela deve ser desenvolvida dinamicamente

de dentro para fora, apenas ajudando suas disposições nativas a se desenvolverem

(FERRER Y GUARDIA, 2014, p. 62).

Todo esse programa pedagógico, com esse ensino diferenciado, somente poderia ser

ministrado por um professorado afinado com as ideias racionalistas. Para tanto, tornou-se

necessária a fundação de uma escola normal e de uma universidade popular para debater essas

orientações e formar professores racionalistas. O ensino dos professores era feito sob a direção

de um professor experiente e com a participação dos professores da Escola Moderna. As

matrículas ficavam abertas para jovens interessados de ambos os sexos.

Paralelamente a criação da Escola Moderna, Ferrer montou uma editora publicando

inúmeras brochuras e grandes obras para sustentar o aprendizado. Foram publicadas, pela

editora de Ferrer, as importantes obras anarquistas O homem e a terra, de Elisée Reclus, e a

Grande Revolução, de Piotr Kropotkin. Além das grandes obras, Ferrer tinha o projeto de editar

uma enciclopédia do ensino superior popular, cujo conteúdo partiria da evolução do mundo, até

chegar ao estudo dos fatores de transformação social por meio do pensamento, das civilizações,

das leis, e das morais, das religiões, dos sistemas econômicos, dos progressos da técnica e da

arte. Um programa de envergadura que Ferrer não pôde realizar (SAFÓN, 2003).

Também fazia parte desse projeto, visando a alcançar o maior número de pessoas

possível, a criação de bibliotecas, além da organização de conferências, edição de manuais e de

livros para o maior alcance possível.

234

3.7.2 Escola Moderna em Sorocaba

Os operários das fábricas e, principalmente, aqueles que comungavam das ideias

anarquistas perceberam que, pela vontade dos governantes, dificilmente haveria escolas em

número suficiente para oferecer instrução a todos e a seus filhos e, mesmo que a educação fosse

oferecida, não seria aquela que promoveria a emancipação, que lhes assegurasse o entendimento

das causas da desigualdade social que tantos males lhes causavam. Exatamente pela clareza que

passaram a ter da situação é que acolheram com entusiasmo os métodos da Escola Racionalista

ou Moderna, nos moldes do ideário de Francisco Ferrer y Guardia, propugnador de uma

educação avançada.

Preocupado com a formação integral da criança, visando a um adulto íntegro no futuro,

Francisco Ferrer fundou, em Bruxelas, a Liga Internacional para a Educação da Criança, que

passou a ser seguida pelos anarquistas e estava embasada nos seguintes princípios:

1º. - A educação dada à criança deve ser racional e baseada na ciência e na experiência.

Deve-se dela afastar qualquer noção mística ou sobrenatural;

2º. - A instrução faz parte da educação; a educação deve compreender também, ao

mesmo tempo, que a formação da inteligência, o desenvolvimento do caráter, a cultura

da vontade, a formação dum ser moral e fisicamente bem equilibrado, no qual as

faculdades estejam harmoniosamente associadas e elevadas ao seu máximo de poder;

3º. - A educação moral, muito menos teórica que prática, deve sobretudo resultar do

exemplo e apoiar-se na grande lei natural da solidariedade;

4º. - É necessário, principalmente no ensino da primeira infância, que os programas e

os métodos estejam adaptados tão exatamente quanto possível à psicologia da criança;

5º. – É preciso também que, em toda a parte, o educador digno deste nome, que se faz

o redentor das crianças confiadas a seus cuidados, adquira e conserve por seu turno a

inteira liberdade profissional (RODRIGUES, 1969, p. 264).

No início de sua implantação no Brasil, as Escolas Modernas foram aceitas pelo

governo, uma vez que ele não tinha condições de abrir escolas. Foram abertas Escolas Modernas

no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Rio Grande do Sul e em outros lugares, mas com o passar

do tempo, esses estabelecimentos passaram a ser vistos com certa desconfiança pelos poderes

públicos e pela polícia, que entenderam a sua aproximação com o ideal anarquista.

Em Sorocaba, em 1910, começaram os primeiros passos para a instalação dessa escola.

O jornal Cruzeiro do Sul publicou uma notícia sobre a instalação de uma Escola Moderna em

São Paulo, que “é quase um facto si não falhar o necessario auxilio dos homens de ideas livres”.

Esclarecia que a escola teria um prédio próprio com condições de dar instrução a mais de 600

alunos, observando um programma completamente moderno e com corpo docente qualificado.

“Annexo ao curso de sciencias, terá uma secção de gymnastica, uma boa biblioteca e uma

235

typographia para fornecer cadernos e livros a todas as escolas que queiram adoptar o ensino

racionalista” (CRUZEIRO DO SUL, 6 fev 1910, p.2).

Finalizava a notícia informando que, em Sorocaba, estava formando-se uma comissão

para angariar donativos, e também seria organizada uma festa cujo produto reverteria em

benefício “da ideia tão bem acceita pelos batalhadores do livre pensamento”. Informava, ainda,

que toda pessoa que, de qualquer forma, contribuisse para esse intento teria seu nome publicado

pela imprensa. “A ideia pelo que sabemos tem alcançado grande acceitação nesta cidade”

(CRUZEIRO DO SUL, 6 fev 1910, p.2).

O jornal Do Commercio noticiou uma festa realizada no Club Campos Salles, em

benefício da Escola Moderna que se pretendia fundar em Sorocaba. A festa constou de uma

quermesse e “partida dansante” e prolongou-se animadamente até altas horas da manhã. “O

producto total da quermesse attingiu a importancia de 372$” (JORNAL DO COMMERCIO, 6

mar 1910, p.2).

O jornal O Operario também se empenhou na campanha em favor da Escola Moderna,

procurando, principalmente, conscientizar aos operários sobre a metodologia da escola e dos

benefícios que tal metodologia traria para a formação de seus filhos. Para isso, fora convidado

o anarquista Oreste Ristori para falar-lhes sobre essa escola.

Esteve nesta cidade, e deu-nos o prazer de ouvir a sua eloquente palavra, o illustre

orador, cujo nome nos serve de epigraphe, discutindo sobre varios pontos referentes

à Escola Moderna, demonstrando de um modo claro e preciso as vantagens do

ensinamento, unico racional, o único verdadeiro, o único digno de ser ministrado aos

nossos filhos para que não sejam amigos de padres e de ... confissionarios (O

OPERÁRIO, 24 abr 1910, p.2).

Algum tempo depois dessa palestra, por meio de uma exibição cinematográfica,

realizada em benefício da Escola Moderna, o palestrante Oreste Ristori, perante “numeroso

auditorio”, discorreu sobre dois assuntos de importância e de atualidade para o meio operário,

a saber: “o elemento clerical no seio da sociedade brasileira e a prepotencia dos patrões no

ambiente das fábricas”. Para o jornal, esses dois pontos exigiam uma reação enérgica por parte

do povo, que sofria as consequências de tal ação.

[...] o primeiro embrutecendo a consciencia, ennegrecendo a razão em proveito da sua

ambição sem limites, os segundos, castigando o misero operario, com horarios

deshumanos e outras tantas cousas, afim de que o mesmo, nunca possa libertar-se de

seu jugo, tornando-se dess’arte, um escravo voluntario, levado tão somente pela força

da necessidade (O OPERARIO, 23 out 1910, p.2).

236

O jornal concluía afirmando que somente a Escola Moderna, “nobre a sábia instituição

de Ferrer”, iria esclarecer a criança, mostrando-lhe “a verdade, a razão e o direito de cada

cidadão no concerto mais grandioso da sociedade humana” (O OPERARIO, 23 out 1910, p.2).

Em abril de 1912, o jornal O Operário publicou que, em reunião realizada pela União

Operária, entre vários assuntos, fora tratado sobre a “creação de uma escola moderna em

Votorantim, para ambos os sexos e uma outra em S. Rosália” (O OPERARIO, 7 abr 1912, p.2).

É pouco provável que tenha sido criada uma Escola Moderna em Votorantim, pois nada foi

encontrado nesse sentido, nem nos jornais pesquisados ou em obras de outros autores.

Em Sorocaba, é sabido que houve uma escola nos moldes da racionalista de Ferrer

mantida pela União Operária, cujo professor foi Joseph Joubert Rivier, que também era

colaborador do jornal O Operário e, posteriormente, foi diretor desse jornal e secretário da

União Operária.

Na edição de 1º de maio de 1912, o jornal O Operário afirmou que escola mantida pela

Liga Operária continuava em plena atividade, tendo à frente o professor Joseph Rivier, e que

contava “com grande numero de alumnos” sem, no entanto, informar exatamente o número

alunos. O texto se desmancha em elogios quanto a qualidade pedagógica do professor Rivier:

[...] sendo digno de nota o empenho daquelle distincto mestre em incutir o Ideal da

verdade, da Luz no cerebro dos pequenitos Operarios. Ao contrario do que corre por

ahi, o bom professor só pensa em ensinar o Bem aos seus amados alumnos com um

carinho paternal digno de exemplo (O OPERARIO , 1º maio 1912, p. 3).

Prosseguia a notícia dizendo que um dos membros da diretoria do jornal, Pedro Sales

de Oliveira Mesquita, fez uma visita àquela “casa de Luz” e retornou com as melhores

impressões, quanto à boa administração da escola e ao trabalho do professor. Não temos

elementos suficientes para aquilatar a qualidade desse ensino, mas, com base nessa notícia, há

de se considerar a amizade que havia entre todos, daí talvez os encômios excessivos.

Após algum tempo de funcionamento dessa escola, em reunião da União Operária, foi

deliberado sobre a necessidade de se nomear uma professora adjunta para auxiliar na

administração do ensino às alunas, o qual já estava funcionando (O OPERARIO, 9 jun 1912,

p.2).

Por ocasião das comemorações do dia 1º. de maio de 1912 organizadas pela União

Operária de Sorocaba, os alunos da escola do professor Rivier também tiveram participação:

A menina Thereza de Lima recitou uma bela poesia, com a qual recebeu muitas

palmas. Em seguida a inteligente operaria senhorita Francisca Capalbo n’um bonito

237

discurso falou em defesa da mulher operaria [...] O menino Oscar Harder com

educados gestos declamou uma linda poesia sobre o 1º de maio; O menino Antonio

Place, inteligente como é recitou a poesia A Sciencia recebendo muitos applausos. A

formosa menina Dolores de Lucas pronunciou um bonitinho discurso sobre a

liberdade sendo vivamente applaudida. [...] Fechou a sessão com um vibrante discurso

discorrendo substanciosamente sobre a liuta operaria e o 1º de maio o emérito

professor da União Snr. Joseph Revier, que terminou convidando os presentes para a

passeata cívica (O OPERARIO, 3 maio 1912, p.3).

A União Operária de Sorocaba promovia mensalmente, para seus sócios, as Velada

mensal da União Operaria. Nesses encontros, havia uma sessão literária, com pequenas

conferências sobre diversos assuntos, que tinham por objetivo formar a identidade operária. Ao

que parece, o evento era aberto para todos aqueles que tivessem interesse em se pronunciar

sobre assuntos pertinentes à classe trabalhadora. A notícia do jornal O Operário traz o programa

da sessão de 18 de maio de 1912, do qual participaram operárias e alunos da Escola Moderna.

Vale destacar que todos os palestrantes foram efusivamente aplaudidos.

Fallaram mais, as gentis operarias: Faustina Scamussi, [...] sobre a questão social.

Isaura Gomes de Freitas, que fallou sobre a necessidade de instrucção no seio

operario, [...] Maria Luna que brilhantemente discorreu sobre o clero convencendo o

audictorio que o padre em nenhum tempo se intereçou pela classe proletaria. Maria da

Conceição [...] sobre as tres virtudes theologaes n’uma eloquencia apostolica: Maria

José Dias [...] sobre a União. Teresa Peres sobre a revolução social no México, [...]

Maria Munhoz sobre a emancipação da mulher, Luiza Candiotta, uma criancinha

pode-se assim dizer, [...] sobre a escola moderna e o seu valor. O menino João Martins

que fallou, sobre a anarchia filosofica. [...] As gentis e inteligentes companheiras

acima, bem assim o ultimo menino João Martins são alumnos do distincto e esforçado

professor da União Operaria, snr. Joseph Revier (O OPERARIO, 26 maio 1912, p.2).

Apesar da escassez de dados, é possível depreender, pela notícia, que a Escola Moderna

de Sorocaba seguia os princípios básicos propostos por Ferrer ao atender alunos de ambos os

sexos e promover uma conscientização sobre a situação da classe operária, especialmente sobre

a desigualdade e a injustiça.

É sabido que essa escola não teve vida longa, devido aos problemas enfrentados por seu

professor, já expostos neste trabalho.

A educação sempre foi vista como grande necessidade para o operário, muitas vezes

comparado a escravos modernos. Somente a educação os libertaria das garras dessa escravidão.

Mas para isso torna-se necessário antes de tudo educar o trabalhador, educar a misera

infancia proletaria que vive num canto abandonada num horrível sudario de

amarguras. Sim, a redempção da classe productora depende sòmente da Instrucção da

Luz para o productor. Sem educar o operariado nada valerá a lucta, todos os esforços

serão infrutiferos. De que vale fazer conferencias, proferir discursos etc. à uma

multidão inconsciente, sem um resquicio apenas de luz, accostumada a applaudir a

virtude e juntamente o vicio? (A CIDADE DE SOROCABA, 21 ago 1912, p.1).

238

A educação e a conscientização plena dependiam deles próprios, os únicos capazes de

promover a politização da classe e a construção de uma identidade operária para a emancipação.

O próprio jornal O Operario reconheceu que a criação e a manutenção de escolas para a

educação dos operários a cargo dos industriais, a despeito de todos os argumentos e apelos

levantados pelo jornal, não produzira nenhum efeito.

Contra toda forma de luta dos operários na reivindicação de seus direitos, vale assinalar

que os patrões foram a voz dissonante, que se ergueu para tentar manter o operariado silenciado.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: NOVOS SENTIDOS EM CONSTRUÇÃO

“E um grande silêncio fez-se

Dentro do seu coração

Um silêncio de martírios

Um silêncio de prisão.

Um silêncio povoado

De pedidos de perdão

Um silêncio apavorado

Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas

E gritos de maldição

Um silêncio de fraturas

A se arrastarem no chão.

E o operário ouviu a voz

De todos os seus irmãos

Os seus irmãos que morreram

Por outros que viverão.

Uma esperança sincera

Cresceu no seu coração

E dentro da tarde mansa

Agigantou-se a razão

De um homem pobre e esquecido

Razão porém que fizera

Em operário construído

239

O operário em construção.”

(Vinicius de Moraes)

O propósito deste trabalho foi o de analisar de forma recorrente a história operária de

Sorocaba, com ênfase no papel atribuído à educação no seio do movimento operário e nas

possibilidades que poderiam advir da educação para a formação de uma sociedade em que o

proletariado tivesse significação social. A fonte principal foi o olhar da imprensa, tanto a

operária, largamente utilizada na época estudada, como a chamada grande imprensa, quase

sempre representante dos interesses das classes dominantes.

A história do movimento operário de Sorocaba foi feita por homens, mulheres e crianças

que, apesar de construírem suas próprias histórias, não o fizeram pelas circunstâncias escolhidas

por eles próprios. Repetindo-se o que bem definiu Marx em sua obra O 18 Brumário de Louis

Bonaparte, numa citação clássica, “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem

segundo a sua livre vontade, em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas

circunstâncias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas pelo passado” (MARX, 2011,

p. 207).

A cidade de Sorocaba por muito tempo foi marcada por uma vida tranquila, sem grandes

alterações no seu cotidiano, sendo essa tranquilidade quebrada somente nas épocas da feira de

muares, quando a ela acorria grande número de pessoas. Economicamente, vivia do comércio

de animais e de uma agricultura praticamente de subsistência, de pequenos comércios e tinha o

poder político concentrado nas mãos dos comerciantes de animais. Uma cidade pequena, sem

grandes atrações, além das religiosas, para oferecer à sua pequena e pacata população.

Nas últimas décadas do século XIX, a cidade viu-se num processo de mudanças.

Começou um período de verdadeira efervescência nos aspectos políticos, econômicos e sociais:

o comércio deixou de ser em função da feira de muares, que já dava sinais de esgotamento,

houve aumento da população urbana, desenvolvimento industrial crescente, diversificação da

produção agrícola, aumento da complexidade nas relações políticas, transferência da elite rural

para a cidade e surgimento de uma elite urbano-industrial. A paisagem urbana se transformou

com o melhoramento das ruas, saneamento, luz elétrica, cinema, teatros, bares, gabinete de

leitura, clubes e, principalmente, a estrada de ferro, símbolo da modernidade. Novos atores

sociais surgiram e, com eles, novas aspirações e reivindicações, entre elas, ocupando papel

proeminente, estava a escola.

240

Essa mesma efervescência era sentida no país com transformações e rupturas. De acordo

com Nelson Werneck Sodré (s/d, p. 294), em 1889, o quadro brasileiro podia ser traçado em

umas poucas coordenadas: o país dispunha de 14 milhões de habitantes, distribuídos em 916

municípios, com 348 cidades; contava com apenas dois portos aparelhados e apenas uma usina

elétrica; com 8.000 escolas, 533 jornais. 360 quilômetros de rodovias, 10.000 quilômetros de

ferrovias e 18.000 de linhas telegráficas; sua produção agrícola ascendia, em moeda nacional,

ao valor de 500.000 contos de réis, e a sua produção industrial a excedia um pouco, pois ia a

508.000 contos de réis. Mesmo que possa parecer que a produção industrial superasse a

agrícola, não cabem comparações, pois a industrialização mostrava-se incipiente naquele

momento. Nesse cenário, aconteceu a queda da monarquia e o início do governo republicano,

a abolição do trabalho escravo e a introdução do trabalho assalariado, fluxo imigratório e

aumento das exportações de café. Enfim, o país esforçava-se em adaptar-se às condições do

capitalismo.

De qualquer forma, Sorocaba também acompanhava e vivenciava as novas mudanças

acontecidas pelo país. Nesse cenário, onde uma nova sociedade começava a se delinear, o

surgimento das fábricas passou a ditar novas relações sociais, políticas, econômicas e de

trabalho. A poeira levantada pelo carro de boi cedeu lugar para a fumaça das chaminés. O apito

da fábrica foi controlando o tempo e a vida das pessoas. Entre as indústrias que se instalaram,

predominaram as fábricas de tecidos. Essas fábricas absorviam grande contingente de mão de

obra assalariada, formada por brasileiros pobres, muitos eram ex-escravos, e imigrantes

estrangeiros, igualmente pobres. Dentre esses trabalhadores, surgia um elemento novo nas

relações de trabalho: mulheres e crianças de ambos os sexos.

A imigração fora um expediente bastante vantajoso adotado, tanto para os países que

enviavam os imigrantes como para aqueles que os recebiam. Dentre os países da Europa que

mais utilizaram a imigração de seus filhos, estava a Itália. Esse país, no final do século XIX e

início do século XX, enfrentava uma situação de extrema miséria, não podendo oferecer

condições dignas a seu povo e praticamente os expulsou da própria terra. A Itália era pobre,

mas não para todos, e a imigração em massa dos italianos logo começou a despontar como

vantajosa. Ganharam as grandes companhias de navegação, cujos representantes percorriam os

povoados e vilas com um belo discurso, em busca de interessados em empreender uma viagem

a um país distante e repleto de boas oportunidades e, assim, iam enchendo seus navios de

interessados.

Paralelamente, ganhava também o governo italiano, que se livrava de um contingente

de famintos, sem perspectivas de melhoras e que, após empreendida a viagem, rapidamente

241

enviava suas remessas, o que permitiu gerar grandes lucros aos bancos que se formaram a partir

do envio das remessas dos expatriados. O imigrante tornou-se uma mercadoria e, diga-se, era a

única mercadoria que a Itália tinha em abundância. Para o Brasil, a chegada de milhares de

imigrantes também se mostrou vantajosa, pois abastecia de braços a lavoura de café e,

posteriormente, passou a oferecer mão de obra para a indústria. A mão de obra abundante

favoreceu o rebaixamento dos salários, além de constituir rapidamente um exército industrial

de reserva, bastante útil para a burguesia brasileira. As práticas capitalistas estavam presentes

em todo o processo imigratório, tudo gerava lucro, mas só alguns lucravam.

Os motivos pelos quais chegavam os imigrantes eram os mais variados possíveis. Pode-

se dizer que a maioria, formada pelos pobres, vinha imbuída de esperanças de construir uma

vida melhor neste país e, depois de formado um pecúlio, retornar à terra natal. Outros, os mais

qualificados, vinham com a oferta de bons empregos e pretendiam estabelecer-se nesta terra. A

procura por operários qualificados estrangeiros demonstra a mentalidade equivocada dos

industriais, que viam o brasileiro como um trabalhador desqualificado, técnica e fisicamente,

para trabalhar em indústrias mais adiantadas.

Vinham, ainda, aqueles que foram expulsos da própria terra por conta de suas ideias.

Eles traziam, na bagagem, ideias para transformar o mundo e encontraram, aqui, um terreno

fértil para disseminar seus ideiais.

Sorocaba, no final do século XIX, por reunir determinadas condições, passou a atrair

imigrantes estrangeiros, que vinham ocupar-se no trabalho das fábricas.

Dentro das fábricas, as condições de trabalho eram as piores possíveis: longas jornadas

de trabalho, ambiente insalubre, com excesso de barulho e poeira. Sempre sob a espreita da

tuberculose e de outras doenças, trabalhavam homens, mulheres e crianças. Além dos salários

baixíssimos, sofriam descontos por danos no material ou multas por atraso ou por quaisquer

outros motivos inventados pelos patrões. Desrespeitados em sua dignidade e tratados de

maneira desumana por parte dos encarregados, os operários-imigrantes viam escapar suas

esperanças de vida melhor.

A situação da classe trabalhadora de Sorocaba assemelhava-se em muito da situação da

classe trabalhadora na Inglaterra, no século XIX, tão bem definida e descrita por Friedrich

Engels (2010). As fábricas maiores, como a Santa Rosália, Santa Maria e a Votorantim

construíam, ao seu redor, vilas operárias, como forma de fixar o operário no local e dispor de

mão de obra constante. A fábrica Votorantim, que em algumas épocas chegou a ser a maior do

estado, era um caso à parte, dispondo de praticamente tudo de uma cidade, pois localizava-se

distante do centro de Sorocaba, o que lhe garantia um isolamento. Oferecia a aparente facilidade

242

de comprar alimentos e outros gêneros no armazém da fábrica e ter o desconto no salário.

Oferecia-se, ainda, o clube de futebol, o cinema, a farmácia, descontados no salário. A ligação

entre Votorantim e Sorocaba era feita pela estrada de ferro pertencente à fábrica, que controlava

os dias e horários dos bondes, bem como o preço das passagens.

Numa política dissimulada em benefícios, a fábrica ocultava uma dominação que ia

muito além de seus muros. A casa para morar, que repesentava para o operário verdadeira

dádiva, tornava-se objeto de ameaça constante, pois, diante de qualquer ato entendido por

insubordinação ou rebeldia, a fábrica punia o operário com o despejo, ou seja, a família toda ia

para rua. A expressão maior da dominação da fábrica residia no oferecimento de emprego para

toda a família, com míseros salários, selando um vínculo de extrema dependência e submissão.

“O proletariado é desprovido de tudo. Tudo o que ele necessita só pode obtê-lo dessa burguesia

cujo monopólio é protegido pela força do estado” (ENGELS, 2010, p.188). Não é à toa que a

grande indústria têxtil representou o lado mais avançado das relações capitalistas de produção

no Brasil. Nesse momento, na sociedade sorocabana, as relações sociais adquiriram novos

contornos, definidos em duas classes sociais bem distintas em seus interesses: os capitalistas e

o proletariado. O operário tornou-se refém do trabalho: estava aprisionado.

O imigrante estrangeiro aqui no Brasil não contribuiu apenas com a mão de obra. É

indiscutível sua presença marcante no movimento operário brasileiro, que, certamente, na sua

ausência, não teria avançado da maneira como vimos no presente trabalho. Os imigrantes que

não se adaptaram ou não se sujeitaram ao regime de semiescravidão existente nas fazendas de

café rumaram para as cidades na incansável busca de melhores condições de vida e passaram a

ser a principal mão de obra da indústria nascente, principalmente da têxtil. Segundo Thompson

(2012), as fábricas de tecidos produziram não só a maior quantidade de mercadorias, mas o

próprio “Movimento trabalhista”. Foram as condições materiais que propiciaram uma maior

agitação do meio proletário.

No momento em que os operários tomaram consciência de que tinham interesses em

comum e que esses interesses eram antagônicos aos da burguesia, formaram a consciência de

classe para si. Então, somente pela união, poderiam mudar esse estado de coisas. Inicialmente,

uniram-se por laços de amizade e solidariedade nas chamadas Sociedades de Auxílio Mútuo,

que aos poucos foram transformando-se nas Ligas ou Uniões Operárias, que deram novos

significados aos anseios do operariado, promovendo a organização de um movimento operário

com o objetivo de luta para conquista dos direitos, de melhores condições de trabalho e de vida.

A pobreza do operariado não se resumia à pobreza material, chegava a ser a pobreza de ter

esperança.

243

A organização operária, fruto das condições de existência, fundamentou-se em três

pilares: as diferentes formas associativas que levaram à formação dos sindicatos; a imprensa

operária, enquanto órgão disseminador das ideias e instrução; e as escolas, responsáveis pela

valorização do homem.

A imprensa operária, obra quase inteiramente dos imigrantes, teve papel preponderante

na organização do movimento operário, indo além, atuando como um organizador social.

É inegável a força dos imigrantes na formação do movimento operário brasileiro, foram

eles que imprimiram um papel positivo no processo de formação do proletariado como classe

para si. Entre as diferentes formas utilizadas para a conscientização do operário, a imprensa foi

um dos veículos mais ativos pelo seu potencial de alcance, daí se explica a grande proliferação

da imprensa operária em todo país.

Em Sorocaba, a voz do trabalhador se fez ouvir pelo jornal O Operario, que circulou de

1909 a 1913, com uma interrupção de 8 meses, no ano de 1912. Surgiu com a promessa de

defender a classe operária e o fez durante todo o seu tempo de vida. É possível depreender das

páginas d’O Operario que não foi sem sacrifícios que ele se manteve. O seu corpo de redatores

era formado quase unicamente por operários que se dedicavam ao jornal após a labuta diária

nas fábricas. Também são visíveis as humilhações que sofriam, especialmente por parte do

jornal Cruzeiro do Sul, que se referia a ele como “jornaleco”, que nem mesmo a língua

vernacular conhecia. Por várias vezes, O Operario se justificou aos seus leitores sobre os

problemas relativos ao domínio da Língua Portuguesa por parte de seus colaboradores.

Foi a partir de 1909, pelas páginas desse jornal, que houve maior penetração do ideário

anarcossindicalista, que contribuiu para a organização operária e o fortalecimento de sua luta.

Apesar de abrir espaço para outras ideologias, o jornal O Operário apresentava, aos seus

leitores, autores e suas ideologias, procurando manter uma coerência ideológica, posicionando-

se como aguerrido combatente do capitalismo, causador de todas as desventuras do operariado

e engendrou a conscientização de classe no meio operário. As denúncias sobre o que se passava

dentro das fábricas e das condições de vida do operário fora delas, feitas pelo jornal O Operário,

contrapunham-se ao discurso de uma cidade embalada para o progresso. O jornal, como tantos

outros representantes da imprensa operária, rompeu com o monopólio dos setores dominantes

sobre a palavra impressa.

Nas páginas desse jornal, estão contidas contradições, certamente, fruto das dificuldades

enfrentadas de toda ordem: financeiras, ideológicas. Visando à formação integral do

trabalhador, o jornal combatia tudo aquilo que viesse a comprometer negativamente a vida do

operário e de sua família, como os vícios. Assim, combatia, com veemência, o alcoolismo,

244

inclusive na infância, e o tabagismo. Mas, no mesmo jornal, na parte dos anúncios, constavam

bons vinhos e caninha pura e recomendava-se aos operários que fumassem os cigarros Dr.

Ferreira Braga, nome dado em homenagem a um político conhecido como defensor dos

oprimidos, que fora assassinado, em 1910, por opositores políticos.

Nas conferências, palestras e reuniões operárias sempre havia bailes, que não eram bem

vistos pelos anarquistas, porém constituíam um bom chamariz, além de promover a

socialização, onde o jornal sempre se fazia representar. Mesmo o jornal se declarando avesso a

qualquer crença religiosa, apareciam, com relativa frequência, mensagens cristãs e temas sobre

o espiritismo e agradecimentos à Loja Maçônica Perseverança III, que apoiava o jornal

financeiramente.

Por outro lado, havia atitudes inovadoras, ousadas e avançadas para a época, como

ofertar suas colunas à palavra da mulher. Elas, que ocupam, na sociedade, um papel de sujeito

histórico silenciado. Em muitos veículos de comunicação, escrevia-se sobre as mulheres e para

as mulheres, mas eram homens que o faziam. As mulheres que escreveram no O Operario não

escreviam sobre temas frívolos referentes ao “belo sexo”, mas sobre temas importantes para a

causa operária e o papel da mulher na sociedade, como: casamento, divórcio, amor livre,

importância do estudo para os filhos dos operários, anticlericalismo, anarquismo etc. Sobre o

amor livre, bem ao gosto dos anarquistas, o jornal O Operário anunciava que a União Operária

“incumbe-se de preparar papeis para casamentos nessas condições gratuito aos sócios dela” (O

OPERARIO, 22 dez 1912, p.2).

Mesmo com todas as adversidades, esse jornal teve fôlego, mantendo-se em circulação

por três anos, sem muitos atrasos e interrupções, exceto a ocorrida em 1912 e conseguindo, por

meio de sua atuação, mudar comportamentos e ideias numa sociedade provinciana como a

sorocabana. Passeatas, manifestações, panfletagens passaram a ocorrer na cidade com relativa

frequência, contando com a massiva participação das mulheres, que até então viviam confinadas

no lar. Enfrentou os setores poderosos da sociedade, como os industriais, a igreja, os políticos

e a polícia. Foi a partir da ação do jornal que aconteceram as primeiras greves. Justamente esses

enfrentamentos, somados aos desentendimentos ideológicos internos do jornal, que o

desgastaram, levando-o ao fim. A Igreja Católica chegou a proibir a leitura e a assinatura do

jornal O Operario por seus fiéis. Por isso, torna-se indiscutível a influência desse jornal na

mudança de rumos da situação da classe trabalhadora.

As greves foram um recurso muito utilizado pelo movimento operário, e, no caso de

Sorocaba, as greves de maior duração e com maior número de participantes somente

aconteceram a partir do surgimento do jornal O Operario. Essa imprensa operária lutava pela

245

redução da jornada de trabalho - que em algumas fábricas chegava a 14 horas diárias, impedindo

o operário de frequentar as escolas e, inclusive, de vislumbrar possibilidades de estudo para as

crianças operárias -, lutava, ainda, pela regularização do trabalho noturno de mulheres e

crianças e por melhores condições de trabalho.

As condições de exploração favoreceram a expansão do movimento operário. Na

verdade, a vida do operário, como muito bem denunciava O Operário não era viver, era perecer.

Interessante registrar que a primeira greve, ocorrida em 1911, teve grande adesão dos operários

e operárias e um saldo positivo para os operários, com a redução da jornada de trabalho para 10

horas diárias não deu sinais de que pudesse ocorrer. A greve não deu mostras de que iria

acontecer.

Nem mesmo o jornal O Operário fizera alguma referência que desse a entender que

havia uma preparação de greve em curso. Os operários das fábricas de tecidos seguiram na

esteira no movimento reivindicatório dos pedreiros, certamente o pensamento que os moveu foi

o de arriscar, afinal, quem não tem nada, nada tem a perder.

No transcurso dessa greve e depois dela, o jornal O Operário atuou como grande

incentivador e assim permaneceu nas greves vindouras, enquanto o seu mais ferrenho opositor,

o jornal Cruzeiro do Sul, sustentava-se como voz oficial da cidade, de perfil conservador. Em

raríssimas vezes, contrapôs-se aos interesses da classe dominante e política, posicionando-se

sempre do lado dos industriais, assumindo uma postura de desestímulo à greve, aconselhando

os operários para que fossem cautelosos nas decisões de greve e ponderando sobre a ação

deletéria desta na vida do operário. O Cruzeiro do Sul, ao dar a notícia, o fazia por um viés

próprio, visando a formação de opinião.

A opção pela greve por parte dos operários acarretava muitos prejuízos para os patrões,

que se viam obrigados a afrouxar a dominação, concedendo-lhes alguns benefícios. Entretanto,

o que se conseguia hoje, perdia-se amanhã. Apesar da tibieza do estado na formulação de leis

trabalhistas, elas vagarosamente foram acontecendo. No entanto, apesar de serem consideradas

a grande conquista do trabalhador, as leis trabalhistas foram, antes de tudo, uma conquista do

capital, pois a ele interessava o controle da vida do operário. Implicitamente, instituía-se o poder

de controle aos capitalistas, pois as leis mais beneficiavam o patrão que o operário, davam ao

patrão o controle da vida do operário. Mais ágil, tanto na elaboração quanto na aplicação, foi

a lei de expulsão dos imigrantes considerados elementos perniciosos para a sociedade, a

conhecida Lei Adolpho Gordo, de 1904, que visava a cercear a liberdade de pensamento e a

impedir qualquer formação de organizações operárias e movimentos grevistas.

246

Esse jornal denunciou a baixa remuneração, as doenças causadas, os castigos, as

agressões aos menores trabalhadores, os assédios, tanto moral quanto sexual, às mulheres

trabalhadoras, e o fato dos operários serem impedidos de estudar, pois a longa jornada de

trabalho não lhes permitia chegar a tempo nas escolas.

Uma questão espinhosa a ser combatida pelo jornal dizia respeito ao trabalho infantil

nas fábricas, pois não era possível lutar pelo fim do trabalho infantil, tão necessário à família

operária. Então, o jornal lutava por uma regularização desse trabalho, clamava para que

houvesse um limite de idade para o ingresso no trabalho e pela redução da jornada, já que em

todas as fábricas era a mesma que a dos adultos e, como as leis eram feitas só para serem

descumpridas, restava ao jornal apelar para o lado humanitário dos patrões, para que se

compadecessem de seus pobres pequenos operários, que tinham pela frente o futuro

comprometido pela ignorância ou pelas doenças, fruto de uma jornada tão excessiva já na tenra

idade.

No tocante à instrução, o jornal defendia a criação de escolas modernas, seguindo os

preceitos pedagógicos do educador espanhol Francisco Ferrer y Guardia e é provável que pelo

menos duas escolas dessa vertente tenham sido criadas, uma em Santa Rosália e outra em

Votorantim, porém sobre essa última não nos foi possível encontrar evidências de que de fato

existiu. A criação de escolas noturnas para adultos também aparecia no rol de reivindicações

elaboradas por esse jornal. Somente a criação de escolas não resolvia o problema, mas podia

minimizá-lo. O estado até as criava, porém o horário de funcionamento delas era das 18 às 21

horas, o que inviabilizava a frequência dos alunos, pois a maioria deles saía do serviço muito

além desse horário.

Sem dúvida, esse jornal honrou o seu compromisso de politização da classe e construção

de uma identidade de classe. Combateu e foi combatido sem esmorecer em seus propósitos de

defender a classe operária, apesar da imprensa hegemônica. Mostrou-se resistente e capaz de

mobilizar os operários, reafirmando sempre que, só através da educação, o operário poderia

desvencilhar-se das amarras da exploração e da ignorância.

Haja vista que nos Congressos Operários a educação sempre figurou como direito

importante a ser conquistado, com a recomendação de que as escolas deveriam ser voltadas ao

ensino livre, os próprios operários tinham a consciência de que, antes de deflagrar o movimento

operário, seria necessário educar o trabalhador.

A defesa da instrução era compartilhada entre operários e o recém-instalado governo

republicano, mas esses grupos diferiam quanto ao modo de ministrar a instrução e os objetivos

pretendidos a partir dela. Os primeiros a viam como única forma de libertação da exploração

247

burguesa, os últimos consideravam-na essencial para o desenvolvimento e progresso do país,

enfim, para a consolidação do regime republicano.

Portanto, para os republicanos, tornava-se imperioso alfabetizar a multidão de

analfabetos que habitavam as cidades e o campo. No início da República, o “entusiasmo da

educação” passou para o “otimismo pedagógico”, visando a formação do novo homem

brasileiro.

No estado de São Paulo, parte da concretização se fez com a criação dos Grupos

Escolares, em 1894. Construções imponentes, com a devida atenção aos preceitos de higiene e

total aproveitamento dos espaços para o pedagógico, o Grupo Escolar não admitia improvisos.

Geralmente construído nas áreas centrais da cidade, de preferência na praça principal, o Grupo

Escolar tinha que ter visibilidade. Com intenções iniciais de atender a toda população, acabou

por atender as camadas mais favorecidas da sociedade, enquanto as escolas isoladas

caminhavam com a mesma precariedade dos tempos do Império, atendendo os mais pobres.

Além de construir escolas, era fundamental, para os republicanos, provar que a

qualidade de ensino era superior, daí o extremo cuidado com o aspecto arquitetônico, que fez,

muitas vezes, a fachada sacrificar o pedagógico. No edíficio opulento, estava a imagem que o

ensino deveria propagar. A criação dos Grupos Escolares exigiu novos métodos de ensino,

concursos para professores, utilização de materiais pedagógicos diferenciados etc. Entretanto,

o que se verificou foi um distanciamento entre o desejado e a realidade, o que tornou

praticamente inexequível a escola pensada e desejada pelos republicanos. Vários fatores

contribuíram para esse distanciamento, como o despreparo dos professores para a

implementação dos novos métodos de ensino, a insuficiência de escolas para atender a demanda

e o imenso analfabetismo.

Em Sorocaba com grande festa popular, foi inaugurado, em 1895, o primeiro Grupo

Escolar, denominado Antonio Padilha. Como previa o Regimento, foi criado com quatro

classes para cada sexo, correspondentes ao 1º, 2º, 3º e 4º anos do curso preliminar, com 40

alunos em cada uma, perfazendo 320 crianças.

Provavelmente, por não pertencer à zona produtora de café, Sorocaba não foi

contemplada com a construção de um grupo escolar num prédio imponente, como ocorreu em

outros lugares. O grupo escolar fora instalado num sobrado adaptado, que antes servia de

moradia, não atendendo aos preceitos mínimos de higiene exigidos e propícios à aprendizagem.

Diante de uma população de mais de 17.000 pessoas e mais de 13.000 analfabetos, a escola

nem de longe conseguiu atender sua demanda, perpetuando a exclusão de crianças de seus

bancos escolares.

248

Foi somente no ano de 1913 que o Grupo Escolar Antonio Padilha passou a ocupar

prédio próprio construído para esse fim, mas carregou consigo o problema da insuficiência de

vagas. Em tempo algum conseguiu atender e acompanhar toda demanda e, paradoxalmente,

tornou-se uma escola de prestígio excluindo negros, pobres, miseráveis. O prestígio era sempre

enaltecido pela imprensa tradicional, que o fazia com imenso entusiasmo, mas que silenciava a

respeito da desigualdade de oportunidades educacionais oferecidas para a população.

O que mais ganhou visibilidade nesse tempo, em Sorocaba, foi a pobreza que atingia

uma população adulta, em sua maioria analfabeta, e uma população infantil, que deveria ocupar

os bancos escolares, mas era impedida, pois fazia parte do contingente de operários empregados

nas fábricas de tecidos.

Nesse tempo, os jornais, numa visão míope da realidade, produziam a imagem daquelas

crianças que, não podendo frequentar a escola, eram tidas como vadias e difíceis de serem

controladas, pois não haviam sido treinadas na disciplina escolar. O jornal O 15 de Novembro,

num artigo intitulado Menores vagabundos, assegurava que os dois princípios que deveriam ser

observados na educação da infância, imprescindíveis para a sua formação e para vencer na vida

eram: a disciplina e o trabalho. E, para os “menores vagabundos” o único remédio era o

“Instituto Disciplinar”(O 15 DE NOVEMBRO, 3 mar 1907, p.2).

Ainda que tivessem pontos de vista diferentes, até mesmo antagônicos, a imprensa

escrita de Sorocaba defendia a criação de maior número de escolas para atender plenamente à

demanda escolar. Mas a legislação caminhava devagar no tocante à construção e à criação de

escolas. O segundo Grupo Escolar denominado Visconde de Porto Seguro só foi instalado em

1914, no mesmo sobrado adaptado em que, anteriormente, funcionara o primeiro Grupo

Escolar, ou seja, na mesma precariedade do prédio. Em 1919, foi criado o Grupo Escolar

Senador Vergueiro, numa região mais periférica, destinada a atender os bairros operários. Era

o Terceiro Grupo Escolar da cidade, que, apesar disso, ainda não conseguia atender todas as

crianças.

Para os operários, a educação sempre figurou entre as principais reivindicações. Tinham

a consciência de que, somente por ela e através dela, poderiam deixar de ser explorados e que

a luz da instrução os libertaria das escuras fábricas. Por essa razão, anunciavam que, primeiro,

precisariam educar o homem e, depois, fazer a revolução.

A educação que almejavam ia muito além da educação oferecida pela escola republicana

sob a égide do capitalismo. A escola no capitalismo não forma, não educa, apenas molda

segundo aquilo que o estado autoritário deseja para manter um sistema de dominação e de

exploração. Eles aspiravam por uma educação diferente, que contribuísse para a formação

249

integral do homem e, naquele momento, a que mais atendia a esse intento era a Escola Moderna,

proposta pelo educador espanhol Francisco Ferrer y Guardia, que a denominou de Pedagogia

Racional. Trata-se de um processo educativo que educa pela razão, para que cada ser humano

seja capaz de raciocinar por si mesmo, conhecer o mundo e emitir seus próprios juízos de valor

sem seguir nenhum mestre, nenhum guia (GALLO, 2014). Mas a dura realidade que se

impunha no meio operário trazia todo tipo de obstáculos. Afinal, como defender uma educação

emancipadora se não havia escolas suficientes para todos? Como educar as crianças se muitas

famílias não tinham condições de mantê-las apenas estudando?

Uma Escola Moderna baseada nos princípios pedagógicos de Ferrer foi criada pela

União Operária em Sorocaba, mas não foram encontrados dados suficientes sobre quanto tempo

ela funcionou, o número de alunos frequentes ou onde se localizava. Sabe-se quem foi seu

professor: Joseph Joubert Rivier, que também era redator do jornal O Operario. A Escola

Moderna da União Operária recebeu do Governo do Estado um bom sortimento de material

escolar. Em vista da valiosa oferta, a União Operária oficiou ao Secretario do Interior

agradecendo (O OPERARIO, 24 abr 1912). No início, as Escolas Modernas foram bem vistas

pelo governo federal e estadual e poderiam até suprir a necessidade de escolas. Somente depois

de ter os órgãos oficiais terem conhecimento de sua ideologia é que essas escolas começaram a

ser perseguidas pelo país afora.

Outras indagações foram surgindo no decorrer da pesquisa, além das apresentadas

inicialmente. Em discursos eivados de promessas de igualdade, a escola de então não fora capaz

de suprimir as desigualdades, pelo contrário, acentou ainda mais a desigualdade e a injustiça

vigentes na sociedade, uma vez que a educação oferecida se limitava praticamente à

alfabetização, tornando-se inacessível para os pobres avançar em níveis mais elevados do

ensino.

As escolas noturnas reivindicadas pelos operários e até reivindicadas por patrões não

funcionavam em número suficiente, tendo em vista a enorme massa de trabalhadores. Quando

criadas, a longa jornada de trabalho nas fábricas impedia os alunos de comparecerem ou,

quando conseguiam fazê-lo, estavam tão cansados que pouco aproveitavam as aulas. O cansaço

também acometia os professores que trabalhavam em outras escolas durante o dia.

Numa iniciativa filantrópica para suprir a falta de escolas noturnas para operários, a Loja

Maçônica Perseverança III, dentro dos seus princípios de “educar para libertar”, ofereceu, por

muitos anos, uma Aula Noturna para homens e meninos, atendendo com prioridade os operários

das fábricas. Porém, por uma série de infortúnios, oferecia um ensino aligeirado, avançando

muito pouco além da alfabetização.

250

Sobre o olhar que a elite dirigia à educação operária, não se pode negar que havia uma

nesga de preocupação. Patrões chegavam a solicitar, junto à municipalidade ou ao governo

estadual, a instalação de escolas noturnas para seus empregados, mas esse ensino também não

ultrapassava a linha da alfabetização. Entretanto, trazia benefícios à imagem do patrão, além a

acalmar as reivindicações. Esses gestos acabavam por confundir o operário: se eram atos de

bondade ou mais uma forma velada de dominação, tornando o operário ainda mais aprisionado

ao patrão.

No caso de Sorocaba, no aspecto político e no período estudado, a figura proeminente

era Luiz Vergueiro. Ele entendia que, para uma cidade estritamente industrial, a educação

primária e um ensino profissionalizante, visando a melhorar a mão de obra, já eram suficientes,

tornando-se desnecessário pensar num ensino secundário ou até mesmo uma Escola Normal.

A elite sorocabana não se incomodava com o fato de não ter uma escola de ensino secundário

na cidade, uma vez que, normalmente, enviavam seus filhos para Campinas ou São Paulo, onde

cursariam o ensino secundário.

Apesar do combate a todas as formas de exploração promovidas pela burguesia, os

anarquistas não conseguiram sair vencedores. Muitos dos idealistas acabaram curvando-se ou

resignando-se sobre a sociedade capitalista. Foi o caso de Giovani Rossi, que materializou seu

idealismo numa experiência linda, capaz de servir de exemplo para a humanidade, um lugar de

igualdade e respeito entre os homens, a chamada Colônia Cecilia, em terras do Paraná na última

década do século XIX mas que sucumbiu, diante de tantas dificuldades impostas pela sociedade

capitalista.

O mesmo ocorreu mais próximo, na fábrica Votorantim, com o idealista Angelo Vial,

que acabou cedendo, seduzido pelo belo discurso do capital, talvez também desiludido, como

ele mesmo confessara a Salvadora Lopes, cansado de ser incompreendido enquanto líder

operário.

Houve também as filhas de Vicente de Caria, um dos maiores apoiadores do anarquismo

em Sorocaba, que preferiram, quando adultas, não se envolver nesses assuntos. Por que o

desinteresse, se sempre viveram nesse meio?

Com o fortalecimento dos patrões adotando medidas repressivas à união dos operários,

como a conhecida lista negra dos operários de Sorocaba, o movimento operário foi

enfraquecendo. A legislação se intensificou com deportações e prisões de militantes operários,

a ponto de imigrantes alertarem, com veemência, que o Brasil era um país para o qual não se

devia emigrar. E entenderam que o fim da exploração aconteceria apenas com a fim da

imigração, quando cessasse essa fonte inesgotável de mão de obra barata.

251

A educação não foi negada para impedir, aos pobres, o acesso ao conhecimento

simplesmente, mas por tudo o que ela poderia propiciar enquanto entendimento de mundo e

disposição para a mudança da sociedade. Nesse fato, residia a preocupação dos patrões e do

governo com a expansão das ideias de esquerda, que acabariam chegando ao conhecimento das

crianças e jovens. Pelas vicissitudes da vida, a classe operária não se tornou silenciosa, foi

silenciada... mas a marca indelével deixada pela luta operária não pode ser apagada.

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O Araçoiaba, set 1866 – mar 1867

O Operário, jul 1909 – fev 1913; out/nov 1913

O 15 de Novembro, nov 1892 – jan 1908

O Sorocabano, fev 1870 – abr 1871

Ypanema, abr 1872 – mar 1880

LIVROS DE REGISTRO (Arquivo Municipal de Sorocaba)

Livro para registro dos estabelecimentos particulares de instrucção, neste municipio de 1887

ALMANAQUES E REVISTAS (Gabinete de Leitura Sorocabano)

Almanach de Sorocaba 1903. Ed. Fac-similar. Taquarituba, São Paulo, 2007.

Almanach de Sorocaba 1904. Ed. Fac-similar. Taquarituba, São Paulo, 2007.

259

Almanach Illustrado de Sorocaba. 1914. Ed. Fac-similar. Taquarituba, São Paulo, 2006.

Revista O fim do século. 1897.

LEGISLAÇÃO

Anuário do Ensino do Estado de São Paulo de 1917

Lei nº. 81 de 6 de abril de 1887

Lei nº. 641 de 26 de junho de 1852

Lei nº 88 de 8 de setembro de 1892

Lei nº 1.195 de 24 de dezembro de 1909

Regimento Interno das Escolas Públicas do Estado de São Paulo de 1894

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MEMORIAL (APÊNDICE)

Escrever um memorial não é uma tarefa fácil, ao menos para mim. Só posso falar sobre

aquilo que tenho vivido. Se devo falar da minha vida, tenho que relatar o que foi significativo

para mim. Por mais que as finalidades sejam acadêmicas, é dificil me apartar dos sentimentos,

valores, alegrias e tristezas, conquistas e desilusões. Quase sempre tive uma vida ajuizada, sem

grandes loucuras, porque não tenho muita disposição para sofrer. Mesmo sendo ajuizada, troco

o certo pelo incerto e, mesmo quando tenho medo, enfrento, pois aprendi que, quando se tem

medo, vive-se pela metade.

Nasci na rua Heitor Avino, nº 100 na vila operária da Chave, em Votorantim. Meu pai

se chamava Antonio, já é falecido e minha mãe, Marina, estava com 87 anos, quando comecei

esta escrita. Sou a terceira das cinco filhas que tiveram. São elas: Maria Amélia, já falecida,

Lucia Helena, eu, Ana Célia e Rita de Cássia. Quando nasci, meu pai trabalhava na fábrica de

cimento Santa Helena e minha mãe na fábrica de tecidos Votorantim, ambas localizadas em

Votorantim e pertencentes ao grupo de mesmo nome. Nós nos enquadrávamos na categoria

“muito pobres” e isso foi por muito tempo. A nossa casa pertencia à fábrica. Era bem pequena,

três cômodos apenas. Uma sala, um quarto, uma cozinha e o banheiro ficava no quintal,

separado da casa. Nessa vila, as casas eram estreitas e geminadas, então o quarto não tinha

janelas e nem porta, era varado, como diziam, pois ficava entre a sala e a cozinha.

Desde muito pequena, lembro-me de ter de acordar de madrugada para seguir com

minha mãe para a fábrica. Antes do apito das cinco horas, eu já estava na creche que ficava

dentro da fábrica e, quando apitasse cinco horas, ela deveria estar na seção para mais um dia

exaustivo de trabalho. Quase sempre eu acordava irritada e não queria ir para a creche, ficava

choramingando e não tomava o café com leite para sair. Até que um dia meu pai me deu uns

tapas no traseiro porque estávamos muito atrasados. Fui contrariada, injuriada, chorando e jurei

nunca mais tomar café com leite e ainda mantenho esse juramento.

Quando chegávamos à portaria da fábrica, eu, mesmo sem conhecer os números, retirava

a chapa da minha mãe e passava para a chapeira daqueles que tinham vindo trabalhar. Ainda

me lembro do tilintar das chapinhas de metal caindo ao mesmo tempo, afinal eram tantos

operários e tantas chapas, dia após dia, a mesma rotina e quase nenhuma possibilidade de

mudança de vida nem para nós, nem para os outros.

Minha mãe sempre estava trabalhando. Após cumprir sua jornada na fábrica, chegava

em casa, lavava roupa, limpava a casa, passava roupa, fazia a comida, pois precisava preparar

as marmitas para o dia seguinte, cuidava das filhas. Apesar de meu pai e minha mãe trabalharem

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bastante, nós não tínhamos muitas coisas. Principalmente aquelas que eram importantes na

visão de uma criança, ou seja, brinquedos e comida gostosa. A cada pedido feito para se comprar

alguma coisa, vinha sempre a mesma resposta. “Isso é para quem pode, nós não podemos”.

Mesmo sem conhecer as bases da sociedade capitalista, pensava comigo: “Por que alguns

podem e nós não? Quando que nós vamos poder?” Eu só pensava, não adiantava ficar

questionando muito. Normalmente minha mãe, mais pragmática, finalizava a conversa

concluindo: “a vida é assim, tem de se conformar”.

A escolha da minha pesquisa em boa medida deve-se a essa situação vivida e sofrida.

Ao passar por dentro da fábrica, via as máquinas tão barulhentas que não paravam nunca. Tanta

gente trabalhando, parecia até que todos viviam a mesma vida. Trabalhar na fábrica, morar na

vila, não ter dinheiro para quase nada. E essa mesma vida reservada para os filhos. Talvez a

pretensão desta pesquisa seja tentar explicar por que as coisas eram desse jeito.

Guardo lembranças do tempo que frequentei a creche da fábrica. Havia professoras, mas

não me lembro de atividades que desenvolvessem nossas capacidades cognitivas plenamente.

Pensando com a minha cabeça de criança, acredito que eu não gostava muito daquele lugar.

Não tenho muitas lembranças desse tempo, certamente porque os momentos divertidos eram

poucos. E aqui remeto-me ao pensamento de Adélia Prado: “O que a memória ama, fica eterno”.

E não era o caso. As principais atividades das quais me lembro eram: jardinagem, que consistia

em tirar os “matinhos” dos canteiros, brincadeiras de roda, pular corda, não me lembro de

nenhuma atividade de escrita. A comida não era gostosa, sempre a mesma coisa: arroz, feijão

e carne com mandioca e, de sobremesa, uma banana enorme que mal cabia em nossas pequenas

bocas, muito raramente havia pudim. A única festa de que me lembro era a de São João (não

junina, pois não havia questões religiosas naquele tempo), ocasião em que dançávamos a

quadrilha. Quando chegava o Natal, a fábrica dava para cada filho dos operários um corte de

pano, de gosto duvidoso, e um pacote de balas. Era para nós uma alegria, principalmente pelas

balas, que minha mãe repartia entre todos e um pouco por dia para render mais. O tecido dava

para fazer um vestido. Muitas vezes o pano era horrível, mas o vestido saía assim mesmo.

Em 1969, entrei no primeiro ano da escola no colégio Santa Escolástica, em Sorocaba,

colégio tradicional católico, de qualidade e pago. Mas nesse tempo o turno da manhã era

gratuito. Meu pai era muito católico e sempre valorizou a escola; por isso fez de tudo para que

pudéssemos estudar, principalmente naquele colégio. Na verdade, ele sempre lamentou o fato

de ter sido obrigado a interromper seus estudos no 2º ano primário para trabalhar na roça.

Quando entrei na escola, ia de ônibus com minha irmã mais velha, Lúcia. Ela cursava

o 4º ano e eu o 1º ano. Não sei explicar a razão, mas não fui alfabetizada pela cartilha “Caminho

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Suave”, como era a prática na época. Pelo que me lembro, fui alfabetizada de uma maneira

muito próxima ao Construtivismo de hoje. Ocorreu que no primeiro ano eu não aprendi a ler

nada. Fui para o segundo ano sem saber ler e escrever e, para piorar a minha situação, minha

irmã deixou de estudar no colégio, pois o ensino gratuito era somente até o quarto ano. Eu ia

para a escola de ônibus. Quando terminavam as aulas, ia para o ponto de ônibus, mas não sabia

ler o nome do ônibus que ia para Votorantim e entrava em desespero, pois via que as minhas

amigas iam embora e eu ficava lá sozinha, sem saber o que fazer. Muitas vezes abria a boca a

chorar até que alguma boa alma me ajudava a identificar o ônibus. Para resolver esse terrível

problema que tanto me afligia, minha irmã Lúcia escreveu num papel, em letras de forma, da

mesma maneira que vinha escrito no letreiro do ônibus. Assim, eu ia conferindo o nome do

ônibus e o nome que estava no papel, até que um dia a empresa trocou alguns ônibus e o letreiro

passou a ser escrito diferente. Mas nesse ponto eu já estava lendo um pouco e pude me sair

bem.

Quando passei para o 4º. ano, o colégio deixou de oferecer ensino gratuito. Entretanto,

a madre diretora ofereceu ao meu pai uma bolsa de estudos integral para mim. Passei a estudar

à tarde junto com os alunos que pagavam. Foi nessa época que eu descobri o que era diferença

de classes sociais. Eu sempre fora uma aluna com certos problemas de comportamento, pois

gostava de brincar, conversava bastante durante as aulas, tinha amizade com todas da classe e,

com a nova turma, simplesmente me apaguei. Vários alunos nem conversavam comigo. Não

tenho boas lembranças desse tempo, pois fui extremamente discriminada pela minha visível

pobreza, desde o meu uniforme, meu material escolar, o meu lanche, os meus sapatos, tudo

diferente daqueles dos que tinham dinheiro. Mas tive a sorte de ter, naquele ano, uma professora

muito competente e bonita, professora Vânia, que veio a ser minha professora outras vezes.

Como o meu círculo de amizades ficou muito reduzido, apliquei-me nos estudos e era

considerada uma boa aluna, pelas notas que eu tirava. Aconteceu que, no final do 4º. ano, que

seria o meu último ano de estudos naquele colégio, a madre diretora ofereceu a continuidade da

bolsa de estudos para eu cursar as séries seguintes e o 2º grau. Tratava-se de uma boa oferta,

certamente a garantia de uma boa educação. Minhas irmãs estudavam em escolas públicas, os

gastos com material, uniformes, condução ficariam mais pesados. Além desses motivos, não

me atraía a ideia de ficar por muito mais tempo num lugar que não me sentia à vontade. Eu era

pobre e bem resolvida quanto a nossa pobreza, porém me incomodava um pouco aquela

situação. Foi então que pedi a meu pai para vir estudar na escola pública em Votorantim. Ele

certamente ponderou os gastos que teria e aceitou. Entretanto, não posso deixar de reconhecer

que tive uma boa base de estudos naquele colégio. Passei a estudar na única escola de

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Votorantim e fui muito feliz e vim a ser, depois de alguns anos, diretora dessa escola e também

fui feliz.

Fui crescendo e continuei estudando em escolas públicas. Fiz o 2º grau na Escola

Técnica “Rubens de Faria e Souza”, em Sorocaba. Como estava em vigor a Lei 5.692/71, o

ensino profissionalizante era obrigatório nas escolas de 2º grau. Optei por cursar Eletrotécnica,

um curso em que não havia nada que me atraía, na verdade eu nem sabia direito sobre o que

estava aprendendo. Eu gostava muito de ler, e lia bastante. Gostava das disciplinas de História,

Geografia, Português, mas mesmo assim fiz Eletrotécnica. Entretanto, na 3ª série, como a

matriz curricular era formada praticamente por disciplinas profissionalizantes, tive a minha

primeira derrota enquanto estudante, fui retida. Apesar de ter repetido de ano, decidi continuar

nessa escola e no mesmo curso de Eletrotécnica. E foi uma boa decisão, pois nesse ano conheci

e comecei a namorar meu futuro marido, pois estávamos na mesma sala e estamos juntos até

agora. Novamente repeti de ano, tudo por causa da eletrotécnica. Resolvi ir para outra escola,

afinal não gostava daquele curso e já tinha arrumado namorado. Concluí o 2º grau na outra

escola.

Nesse tempo eu já trabalhava e nem cogitava parar os estudos. Era início da década de

1980, vivíamos a ditadura militar e eu precisava me decidir sobre o que estudar no ensino

superior. Desde pequena, sempre alimentei o desejo de ser professora, mesmo com toda a

desvalorização da profissão. Decidi-me por fazer licenciatura em História, na Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba, que posteriormente viria a se transformar em

universidade, a UNISO. Comecei a fazer História em 1983.

Trabalhava durante o dia na Siderúrgica Nossa Senhora Aparecida, em Sorocaba, na

parte de escritório, e estudava à noite. Tempos difíceis. Saía de casa muito cedo para trabalhar

e ia direto para a faculdade sem tomar banho, sem jantar e cansada. Retornava a noite, quase

nem via minha mãe durante a semana. Meu pai não tinha condições de me ajudar

financeiramente, então eu mesma paguei o curso. Apesar de gostar muito de História, hoje

avalio que o curso não foi bom. Em que pese o momento político da época ser a ditadura militar,

talvez os professores fossem cerceados no exercício de uma prática mais dinâmica. Mas guardo

comigo algumas dúvidas sobre isso. A meu ver, faltava conhecimento e domínio para alguns

deles. O curso foi pobre em leituras e nas discussões ideológicas, que na verdade nunca

existiram.

Quando faltava pouco para terminar o curso de História, resolvi sair da fábrica onde eu

trabalhava. Nunca gostei do serviço da fábrica. Ficava o dia todo num lugar, sem produzir nada

que me realizasse e ganhando tão pouco. Queria fazer algo de útil, que fosse prazeroso. Foi

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então que comecei a trabalhar como professora eventual, afinal, não estava formada ainda. Devo

dizer que minhas primeiras experiências como professora eventual não foram nada prazerosas.

Deparei-me com a realidade da sala de aula e com a minha realidade enquanto

professora. De um lado, a minha inexperiência e o pouco domínio do conhecimento, por falta

de suporte da faculdade, e, do outro, a escola simplesmente “jogar” o professor na sala de aula,

sem dar nenhuma orientação. É você por você mesmo.

Precisei escolher um caminho pedagógico a seguir. Invoquei meus melhores

professores, procurando relembrar aqueles cujas aulas eu gostava. Enfim, lancei mão da

imitação, recurso muito utilizado pelos professores iniciantes. Passei a estudar muito, a

aprender aquilo que não aprendera. Preparava todas as aulas com muito zelo, e num nível muito

elevado para os pequenos alunos das 5ª séries que estavam em minhas mãos. Queria ensinar-

lhes o máximo, mas eles pouco aprendiam. Entendi que precisava dosar melhor o conteúdo das

aulas. Encontrei ainda uma situação interessante quanto aos hábitos escolares dos alunos na

disciplina de História. Eles estavam acostumados com o método catequético, no qual o

professor fazia o questionário já com as respostas e os alunos decoravam. Foi um trabalho

demorado para fazê-los entender que essa não era a melhor forma de estudar e nem de entender

a história. Sempre procurei e procuro estimular o pensamento crítico dos alunos, fazê-los

pensar.

Em 1986, já formada, consegui substituir uma professora por alguns meses na EE Prof.ª

Edith Maganini, em Votorantim. Essa escola era de 1º grau, ou seja, de 1ª a 8º série. O corpo

docente era composto, na maioria, de professoras experientes, bem próximas da aposentadoria.

Eu, com animação própria dos iniciantes, sempre propunha algo diferente para melhorar a

escola, para torná-la mais atraente para os alunos e recebia um sonoro “aqui isso não dá certo”.

Até que um dia, após propor algo diferente e ter recebido novamente essa resposta um professor

me disse:

- Não espere nada dessa velharada, porque elas estão muito desanimadas. Mas você não

perca essa animação. Bom professor é aquele que é animado sempre.

Considerei muito as palavras desse professor e, apesar de todas as dificuldades

encontradas, não desanimei e procuro manter-me assim até hoje. São bem poucas as pessoas

que nos aconselham positivamente no início de carreira.

Nesse mesmo ano de 1986, casei-me e logo engravidei. Em 1987, nasceu meu filho

Vinícius. As aulas foram aparecendo, naquele momento já apareciam aulas livres e eu sempre

estudava e me preparava para as aulas, pois temia que algum aluno me perguntasse algo que eu

não soubesse responder.

265

Quando faltava uma semana para o meu filho fazer dois anos, nasceu minha filha, Elise.

Eu trabalhava numa escola pequena, recém-criada, onde havia aulas de História para mim e

aulas de Geografia para uma outra professora. Como ela era formada em Estudos Sociais, podia

ministrar as duas disciplinas, eu não. Por motivos pessoais, no ano seguinte ela escolheu as

aulas de História e eu fiquei sem nada, sendo obrigada a sair dessa escola. Fiquei muito

revoltada com essa situação e decidi que não ficaria dependendo da bondade dos outros para

ter trabalho. Resolvi fazer Pedagogia. Fiz o vestibular e fiquei classificada em 3º lugar.

Em 1990 iniciei o curso de Pedagogia na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de

Sorocaba e consegui eliminar algumas disciplinas, sendo classificada no 2º ano. O curso era de

três anos de duração. Nesse curso, tive a satisfação de reencontrar com a minha professora do

4ª ano do colégio Santa Escolástica, professora Vânia e ela continuava ótima professora. Voltei

a ser aluna de alguns professores do meu curso de História, que continuavam com as mesmas

fichas de aulas amareladas e aplicando as mesmas provas. Fiz a Pedagogia com mais

maturidade, era uma aluna responsável e comprometida com os estudos, discutia mais e agora

podia contar com a minha experiência docente. Cheguei, inclusive, a ter embates ideológicos

com alguns professores. Mas o curso transcorreu de maneira muito semelhante ao da minha

primeira graduação, e o momento político não servia mais para justificativa, uma vez que a

ditadura militar havia acabado.

Aconteceu, porém, que novamente engravidei. Meu terceiro filho, Lucas, nasceu no

final do 1º semestre do último ano, um dia depois da última prova. Passei por mais uma situação

complicada quando retornei da licença maternidade. Por vários motivos, não tinha onde deixar

o meu bebê, então como faltavam menos de três meses para concluir o curso, passei a levá-lo

comigo para as aulas. E devo dizer que ele sempre se comportou muito bem durante as aulas e

também pude contar com a colaboração dos professores.

A cada filho que nascia, mais eu trabalhava. Quando terminei o curso de Pedagogia, fui

obrigada, por questões financeiras, a trabalhar também em escola particular. Fui contratada por

uma escola de alunos pertencentes à classe alta. Tempos difíceis. Três filhos pequenos e eu me

dividindo entre as aulas das escolas pública e particular. Cheguei a dar 53 aulas por semana.

Mas isso não é bom para o professor e nem para o aluno. A experiência nessa escola particular

não foi prazerosa. Estava acostumada a trabalhar com crianças que consideravam e respeitavam

o professor e, na escola particular, os alunos (não todos) viam o professor como mais um

empregado deles.

Na década de 1990, eu não era professora titular de cargo, mas não ficava sem aulas,

pois havia poucos professores efetivos e sobravam aulas. Foram anos de agitação quanto ao

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trabalho do professor. As greves eram constantes e eu sempre participava intensamente delas.

Entendia que precisava participar da luta para conseguir melhores condições de trabalho.

Indignavam-me aqueles professores que, a meu ver, eram acomodados e cheguei até a entrar

em atrito com colegas. Numa situação de greve, um professor da escola onde eu trabalhava foi

categórico em dizer “eu não faço greve”. Perguntei-lhe o porquê dessa atitude, afinal tínhamos

de lutar pela nossa classe. Ele respondeu-me:

- Quando eu era criança, passei muita fome por causa de greve. Meu pai era operário e

participava dos movimentos grevistas e, por isso, não parava em emprego nenhum e nós, muitas

vezes, não tínhamos o que comer.

Com o tempo fui aprendendo que muitas vezes não é que as pessoas não querem fazer

coisas, elas simplesmente não podem ou não conseguem. Comecei a exercitar mais a alteridade.

Passei a observar com mais atenção a condução do movimento quanto a atuação dos membros

do sindicato dos professores, especialmente a APEOESP e fui me convencendo de que não

podia ficar esperando dos outros para melhorar.

Em 1994, na escola em que eu era professora de História, vagou o cargo de vice-diretor

e fui escolhida pelo Conselho de Escola para ocupar o cargo, a contragosto do diretor. Essa

experiência não foi muito boa, nem para mim e nem para ele, pois o relacionamento não era

adequado. Mas, por sair da sala de aula, tive condições de enxergá-la diferente e aprendi mais.

Fiquei nessa função por um ano e meio, quando houve a reorganização das escolas estaduais e

fui transferida para outra escola, voltando a ser professora.

Apesar do trabalho excessivo, sempre mantive a ideia de continuar com meus estudos

em nível de pós-graduação, no entanto, os programas de mestrado e doutorado eram poucos e

para poucos. Fiz, então, um curso lato sensu na UNISO sobre a História da América, com aulas

aos sábados, por um ano e meio. Foi um curso muito bom. A maior parte dos professores era

da USP. Entretanto, mais uma vez, recebi críticas de familiares por deixar os filhos para estudar.

Passado mais algum tempo, comecei a amadurecer a ideia de tentar um mestrado e as

opções seriam USP e UNICAMP, pois não havia outras universidades mais próximas, nem

outros programas. Antes de qualquer tentativa nesse sentido, em 1996, minha vida deu uma

reviravolta.

Minha irmã mais velha estava grávida e, por uma série de fatores de toda ordem, teve

complicações no parto e veio a falecer, sem saber que tinha dado à luz uma menina, Mariana.

Alegando não ter condições para cuidar do bebê, o pai, uma pessoa inqualificável, pediu-me

para ficar com ela por um certo tempo. Assim, até um dia eu tinha três filhos e, no dia seguinte,

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tinha quatro. Foram tempos difíceis, de muito sofrimento, quando ele quis levá-la embora. Mas

ela ficou.

Nessa época, eu estava na EE Prof. Azarias Mendes, devido à reorganização. Fiquei um

ano como professora e, no ano seguinte, assumi o cargo de Professor Coordenador. Passei a

trabalhar mais próximo com os professores. Gostava do que fazia e me dediquei bastante nessa

nova função.

Com quatro filhos pequenos, os planos de prosseguir com os estudos foram adiados por

mais tempo, mas não esquecidos. Foi então que prestei a segunda prova do concurso para

Diretor de Escola. Nesse concurso, considerado o mais demorado (foram 5 anos entre a

inscrição e o resultado final) e mais difícil da história do magistério de São Paulo, fui a única

pessoa aprovada na minha cidade e a primeira colocada em nível de Diretoria de Ensino, num

total de 5 pessoas. Para mim, foi uma grande vitória, pois estava atravessando uma fase muito

difícil na vida.

Em 1998, assumi meu cargo de diretora na EE Profª Clotilde Belini Capitani, em

Votorantim. Essa escola funcionava de 1ª. a 8ª série do ensino fundamental e contava com

classes de supletivo, também de ensino fundamental. Encontrei pessoas muito boas nessa

escola. Mas, como eu sou muito intensa nas coisas que faço, assustei um pouco os professores

no início, pois estavam acostumados com a outra diretora que era boa, mas bem mais calma que

eu. A direção de escola muda a vista do seu ponto e você enxerga a educação de outra maneira.

Passa a compreender o papel da família na vida escolar dos alunos, seus limites e suas

possibilidades, evitando os julgamentos. O mesmo ocorre com o olhar que se tem dos

professores. Encontrei professores limitados, mas também encontrei professores excelentes que

comungavam das mesmas ideias que eu. Talvez por isso os considere tão bons.

Apesar de gostar muito dessa escola, no final de 1999, apareceu-me a oportunidade de

substituição de um cargo vago na supervisão de ensino. Ponderei quanto a distância, o salário

e o trabalho mais tranquilo que na escola e fui. Entretanto, o supervisor de ensino ainda é visto

pelos membros das escolas como aquele profissional que só serve para fiscalizar, apontar erros

e aplicar a lei. Essa nunca foi a minha postura enquanto supervisora, porém essa imagem do

supervisor está arraigada no imaginário das escolas e emperra qualquer tentativa de trabalho

diferente desse modelo.

Estava com a minha vida relativamente estabilizada profissionalmente. Um dia, no

início de 2004, um amigo convidou-me para dar uma aula sobre Paulo Freire num cursinho que

ele havia montado para um concurso de professores no município. Eu já estava há um bom

tempo distante da sala de aula, mas me preparei e fui. Acabei dando outras aulas. Na aula sobre

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Paulo Freire, trabalhava o livro Pedagogia da autonomia e, num dado momento, ao explicar o

pensamento do autor, uma das alunas, aproveitando-se do trecho do livro, comentou que era “

imperioso” que eu fosse dar aulas em faculdade. Dizia que eu explicava bem e as outras alunas

concordaram.

Comecei a considerar essa possibilidade, apesar de achá-la muito improvável.

Encaminhei um curriculum para a Universidade Paulista - UNIP de Sorocaba em fins de janeiro

e também me inscrevi no mestrado em educação da UNISO como aluna especial. Fui aceita

como aluna especial e, dois meses depois, fui contratada pela UNIP, onde estou até hoje.

Em 2005, fui aprovada como aluna regular no Mestrado em Educação da UNISO. Para

poder cursar o mestrado, pedi licença sem remuneração do serviço público. O mestrado foi

muito bom. Conheci pessoas interessantes, fiz amigos e as aulas eram de excelente qualidade,

gostava das aulas. Quando fui aceita no programa, o professor que me entrevistou gostou do

meu tema que, segundo ele, era “apaixonante” e, de imediato, dispôs-se a ser meu orientador.

Pela minha história de vida, filha de operários, professora de História, quis tratar sobre a história

da educação na vila operária de Votorantim, pois até então não havia nenhuma pesquisa no

município sobre esse tema. Seria a minha contribuição para preservação da memória e história

da cidade.

Aconteceu que, no semestre seguinte, esse professor fora fazer um curso de

aperfeiçoamento no exterior e tive a oportunidade, - o privilégio! - de ter aulas com o professor

José Luis Sanfelice, cuja conduta ideológica estava bem próxima do que eu pretendia

desenvolver no trabalho de pesquisa. E o inevitável aconteceu, pedi a ele para ser meu

orientador, e ele aceitou. Entretanto, o mais desagradável foi comunicar ao outro professor que

eu estava trocando de orientador. Apesar de ele ter dito a mim que aquilo era totalmente normal

na academia, ficou um bom tempo sem me dirigir a palavra.

Em agosto de 2007, defendi minha dissertação de mestrado, cujo título é: “História da

educação de Votorantim: do apito da fábrica à sineta da escola”. Minha mãe estava presente

nesse dia e chorou quando viu que dediquei o trabalho “a todos os meninos e meninas, entre

eles minha mãe, que tiveram a infância roubada pelo trabalho na fábrica”. Também não podia

deixar de dedicar ao meu pai, que sempre quis que as filhas estudassem tudo o que ele não pôde.

Terminado o mestrado, retornei, em 2008, para o meu cargo de diretor de escola, agora

na EE Prof. Daniel Verano, em Votorantim, a mesma escola em que estudei da 5ª. a 8ª. série.

A minha intenção era ficar naquela escola até a aposentadoria. Uma escola grande, com muitos

problemas, onde me dediquei muito. Os próprios alunos reconheciam que a escola estava

melhorando. Os professores, que no início resistiram, reconheceram o trabalho e colaboraram

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bastante. Fui muito feliz nessa escola e sentia-me realizada. Entretanto, nesse ano abriu

concurso para Supervisor de Ensino. Prestei a prova, sem muito compromisso, e infelizmente

fui aprovada e consegui uma vaga na Diretoria de Ensino de Votorantim.

Em fevereiro de 2009, assumi o cargo de supervisor de ensino e foi com muita tristeza

que escrevi a carta pedindo minha exoneração do cargo de diretor de escola. No final desse ano,

foi o lançamento do meu livro, fruto da minha dissertação de mestrado. O dia do lançamento

foi emocionante, quando que eu poderia imaginar que escreveria um livro? Também nesse ano,

resolvi apresentar um projeto de pesquisa para o doutorado em educação na UNICAMP, mas

não fui aceita. A minha entrevista foi desastrosa, principalmente pelo meu nervosismo.

Em 2010, consegui realizar um sonho de muito tempo, desde os tempos de criança. Eu,

nascida na Chave, onde nada era para gente, fui para a Europa. Foi uma viagem linda. Mas meu

marido não me acompanhou. Nesse ano, tentei novamente o doutorado na UNICAMP e desta

vez fui aceita.

Ingressei em 2011 e, novamente, tive oportunidade de conhecer pessoas interessantes,

excelentes professores, ótimas aulas. Aprendi muito. O melhor foi a oportunidade de ter

novamente como orientador o professor Sanfelice. Mas fazer o doutorado tem sido uma das

coisas mais difíceis da minha vida. Que desafio!

Até aqui eu escrevi para a qualificação, acreditando que nada mais pudesse acontecer

para retardar a minha defesa, só me faltava terminar o texto. Mas fazemos um plano e a vida

faz outros. A maior tristeza da minha vida ainda estava por vir. Minha mãe foi embora. A

revisão mais difícil feita no texto foi, nas referências que fiz a ela, passar os verbos para o

passado. E, finalmente, com mais de um ano de atraso, em junho de 2017, defendi minha tese.