a crise do positivismo jurÍdico -...

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A VALIDADE HERMENÊUTICA DAS CONVICÇÕES PARA A INTERPRETAÇÃO CONSTRUTIVA DO DIREITO: OS FUNDAMENTOS POSSÍVEIS EM GADAMER E DWORKIN. THE HERMENEUTIC VALIDITY OF CONVICTIONS FOR A CONSTRUCTIVE INTERPRETATION OF LAW: THE POSSIBLE FOUNDATIONS IN GADAMER AND DWORKIN. João Henrique Vasconcelos Arouck RESUMO A comunicação coloca sob discussão algumas repercussões da atitude interpretativa de Dworkin enquanto autêntica filosofia do direito através dos elementos hermenêutico- filosóficos que traz em seu cerne a partir da obra de Gadamer. O problema inicial refere-se à efetuação hermenêutica disposta no processo decisório do direito a partir da interpretação de sua prática social. Fala-se depois, neste mesmo esteio, sobre a inevitável dimensão moral da hermenêutica a partir de efetuações baseadas em um sistema legítimo de convicções a serem defendidas e assumidas pelos intérpretes. Propõe-se aqui a possibilidade de que a dimensão moral da interpretação possa se constituir em uma via autêntica para a produção de exercícios hermenêuticos aptos a contribuir para o processo permanente de justificação e fundamentação correta da positividade do direito a partir de sua imanência hermenêutico-filosófica e no desenvolvimento da idéia de interpretação construtiva proposta por Dworkin. Discute-se em seguida; de maneira breve e conclusiva, a questão da eficácia das normas abstratas a partir deste referencial teórico. Trabalha-se na hipótese de que as aporias decorrentes do raciocínio sobre a eficácia das normas se encontra na configuração metafísica de alguns aspectos do conhecimento jurídico no afastamento que lega ao intérprete às questões morais do direito e à necessidade permanente de justificar sua positividade através de práticas interpretativas situadas. PALAVRAS-CHAVES: INTERPRETAÇÃO; CONVICÇÃO; MORALIDADE. ABSTRACT This paper intends to discuss the positive repercussions of Dworkin theory of interpretation as an authentic philosophy of law in its universality by the gadamerian hermeneutic influences. The production and interpretation of Law as a complex process is the central point of analysis taking under consideration the interpretation possibilities leaded by historical and unified ethical convictions assumed by interpreters. This is considered one of the possible ways to treat immediate judicial problems by the event of interpretation and, of course, through the coercive instrumentality of law practice disposed to be legitimated by its interpreters in the processes of moral engagement. In spite of these hypothetical possibilities one problem must be faced: the hermeneutic 4759

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A VALIDADE HERMENÊUTICA DAS CONVICÇÕES PARA A INTERPRETAÇÃO CONSTRUTIVA DO DIREITO: OS FUNDAMENTOS

POSSÍVEIS EM GADAMER E DWORKIN.

THE HERMENEUTIC VALIDITY OF CONVICTIONS FOR A CONSTRUCTIVE INTERPRETATION OF LAW: THE POSSIBLE

FOUNDATIONS IN GADAMER AND DWORKIN.

João Henrique Vasconcelos Arouck

RESUMO

A comunicação coloca sob discussão algumas repercussões da atitude interpretativa de Dworkin enquanto autêntica filosofia do direito através dos elementos hermenêutico-filosóficos que traz em seu cerne a partir da obra de Gadamer. O problema inicial refere-se à efetuação hermenêutica disposta no processo decisório do direito a partir da interpretação de sua prática social. Fala-se depois, neste mesmo esteio, sobre a inevitável dimensão moral da hermenêutica a partir de efetuações baseadas em um sistema legítimo de convicções a serem defendidas e assumidas pelos intérpretes. Propõe-se aqui a possibilidade de que a dimensão moral da interpretação possa se constituir em uma via autêntica para a produção de exercícios hermenêuticos aptos a contribuir para o processo permanente de justificação e fundamentação correta da positividade do direito a partir de sua imanência hermenêutico-filosófica e no desenvolvimento da idéia de interpretação construtiva proposta por Dworkin. Discute-se em seguida; de maneira breve e conclusiva, a questão da eficácia das normas abstratas a partir deste referencial teórico. Trabalha-se na hipótese de que as aporias decorrentes do raciocínio sobre a eficácia das normas se encontra na configuração metafísica de alguns aspectos do conhecimento jurídico no afastamento que lega ao intérprete às questões morais do direito e à necessidade permanente de justificar sua positividade através de práticas interpretativas situadas.

PALAVRAS-CHAVES: INTERPRETAÇÃO; CONVICÇÃO; MORALIDADE.

ABSTRACT

This paper intends to discuss the positive repercussions of Dworkin theory of interpretation as an authentic philosophy of law in its universality by the gadamerian hermeneutic influences. The production and interpretation of Law as a complex process is the central point of analysis taking under consideration the interpretation possibilities leaded by historical and unified ethical convictions assumed by interpreters. This is considered one of the possible ways to treat immediate judicial problems by the event of interpretation and, of course, through the coercive instrumentality of law practice disposed to be legitimated by its interpreters in the processes of moral engagement. In spite of these hypothetical possibilities one problem must be faced: the hermeneutic

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process to produce law decisions and discourses is accompanied by inherent logical problems that have no clear solution. That problem is hypothetically linked to the metaphysical interface that informs part of law´s knowledge mostly in the theorical concerning about law´s efficacy. A consequence of it can be observed on the improper separation of law´s knowledge from the most immediate problems of human life and from the permanent need to justify law´s coercive essence by good or attractive interpretations. On the enfacement of all these problems a moral engagement, leaded by true personal convictions, is defended as way to suspend or even to trespass those logical irresolutions in the hermeneutic happening of law.

KEYWORDS: INTERPRETATION; CONVICTION; MORALITY.

1. Introdução

A atitude interpretativa, no modo prático da interpretação construtiva, pretende ser abordada nesta comunicação como uma via autêntica para exercícios que privilegiem os inevitáveis conteúdos morais fundamentadores de toda a construção prática do direito levando-se em conta seu constante aprimoramento hermenêutico e sua exteriorização produtiva na forma de decisões. Dá-se primazia nem tanto a um comento estruturado de uma das obras fundamentais de Dworkin – o Império do Direito – mas sim à sua conjugação necessária com os horizontes hermenêutico-filosóficos propostos por Gadamer na Verdade e Método e propriamente referido como uma das fontes mais originais do que se concebe por atitude interpretativa e por interpretação construtiva do direito.

As confluências do modelo interpretativo do direito com toda a estrutura conceitual da hermenêutica filosófica são priorizadas para que se aborde adequadamente uma das questões fundamentais da hermenêutica jurídica: sua dimensão moral obliterada, em sua real importância, pela antiga idéia de cânones metódicos dispostos a certificar a correta interpretação para que, após a configuração apriorística do conteúdo semântico da norma, se faça a futura aplicação da norma interpretada ao caso concreto. Não obstante a isto, sabe-se que uma das repercussões mais incisivas da obra de Gadamer foi justamente a de traçar a compreensão hermenêutica não naquilo que ela deve ser[1] – como problema teórico a ser solucionado pela idéia de método; bem à moda do objetivismo de E. Betti, por exemplo – mas sim naquilo que ela mesmo é – enquanto um modo de ser da compreensão humana vislumbrada em sua movimentação espiritual no esteio definido de uma tradição da própria compreensão.

Em um quadro de amplas possibilidades, a hermenêutica jurídica se torna um caso paradigmático porque além de agregar os elementos tradicionais das ciências do espírito (geisteswissenchaften), naquilo que trazem enquanto experiência do pensamento em seu acontecimento espiritual; condiciona-se, com mesma força, ao fato inescusável da positividade, quer dizer, para a hermenêutica jurídica, o direito existe fenomenalmente como norma abstrata, mas só passa a ganhar concreção a partir da tensão determinada pelos anseios e inclinações, muitas vezes opostas, do ego daquele que interpreta e diz o direito.

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Estes novos aportes teóricos servem para que se possa analisar melhor um problema comum das teorias hermenêuticas de ordem objetivista: a positividade inafastável e indispensável da norma abstrata na tradição ontológica da idéia de lei – principalmente da lei escrita – pode ser considerada como um dos fatores determinantes da configuração metafísica de parte do discurso jurídico a partir da metodologia dos cânones hermenêuticos. Isto se explica basicamente pelo elemento coercivo da norma e, em uma acepção mais estrita, pela boa fé de juristas não dispostos a promover discursos que neguem a positividade das normas jurídicas abstratas. A questão ganha mais relevo quando se supõe que a configuração metafísica do discurso jurídico a partir da metódica por cânones é uma das causas virtuais do afastamento da prática do direito de seus problemas concretos; a serem resolvidos em seu acontecimento prático e não apenas pelo a priori da teoria. Podemos concluir disto que tanto os problemas quanto as possibilidades positivas que se abrem ao conhecimento do direito na contemporaneidade estão, em grande parte, voltados para a questão hermenêutica: a experiência do direito é acima de tudo uma questão de interpretação; ainda mais quando o abordamos no modo de sua prática social.

Para além de modelos interpretativos voltados apenas para casos difíceis; a interpretação da prática do direito a partir do reconhecimento do âmbito moral que a envolve torna-se uma hipótese para a resolução de problemas não mais dificultados por impasses lógicos (aporias) assumidos pelo intérprete na boa fé de conformar-se à vigência da norma abstrata e ao império coercivo da lei para torná-la “materialmente” eficaz. Na negação das aporias a partir do reconhecimento da validade hermenêutica das convicções morais acredita-se que o exercício da interpretação possa se expandir para temáticas necessárias através da aceitação de toda a moralidade – como um ethos temporalizado e correspondente a um fundo comum de princípios – imanente à atitude interpretativa que transporia, neste sentido, as separações estanques entre o direito e os conteúdos éticos e políticos.

As aporias decorrentes da busca pela eficácia material; pelo dever ser da norma abstrata, se entremeiam no discurso jurídico a partir de certos pontos de partida dos quais o intérprete toma como igualmente válidos para então promover seu discurso justificando de maneira lógica suas interpretações que, nesta perspectiva, são concebidas como um resultado neutro e operacional de métodos conscientemente assumidos. Desenvolvendo estes pontos de partida, os caminhos aporéticos, como impasses lógicos, tornam-se fatores graduais de obscurecimento das significações morais imanentes e necessárias para a legitimação da positividade através da interpretação, já que sempre trazem e retornam consigo questões metafísicas de difícil resolução.

A discussão sobre a validade de convicções morais a serem inferidas, assumidas e afirmadas nos processos e matizes do fenômeno geral da interpretação se liga também ao argumento de que é possível reconstruir por processos interpretativos os elementos mais significativos da tradição de reivindicação ética efetuada no decorrer historicizado da prática social do direito. Os elementos legítimos desta experiência temporal – pelo que foi legislado, declarado ou decidido – são teoricamente passíveis de serem reconstruídos hermeneuticamente em novas práticas para que possam então legitimar aquilo que está atualmente posto como norma abstrata e positividade contingente. A reconstrução, como cerne da interpretação construtiva, vincula-se ao processo de reapropriação hermenêutica a ser realizado pelo intérprete mediante a autenticidade de um modelo compreensivo apto à conservação temporal do que se considera legítimo no

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viés dos significados dispostos pela e na tradição e, da mesma forma, por convicções moralizadas representativas daquela mesma tradição ética disposta no tempo enquanto fundamento da ontologia do direito, ou seja, como sua razão de ser na forma de um manual existencial em prol de valores humanos reconhecidos e assumidos por seus intérpretes já que legítimos e adequados ao tempo. Defende-se, com estas premissas, que através da efetuação hermenêutica o processo decisional possa ganhar novas possibilidades em sua função de atualizar a experiência do direito perante questões imediatas e vinculadas ao que é coletivamente considerado como os valores legitimadores de sua positividade.

Desta maneira, o modo de articulação entre os conceitos de interpretação defendidos por Dworkin a partir dos elementos hermenêutico-filosóficos de Gadamer, não se pautará em descrições esquemáticas desta convergência, mas sim a partir daquilo que oferecem enquanto um aporte resolutivo para problemas teóricos do direito. O tema das aporias na questão da eficácia é conclusivamente escolhido por representar panoramicamente a consciência metafísica que configura parte relevante do conhecimento jurídico em sua determinação no cerne do processo decisional. Acredita-se que esta abordagem coaduna-se mesmo com aquilo que a atitude interpretativa e a própria hermenêutica filosófica trazem em prol de novos modos e matizes de experiência no acontecer da vivência cultural do direito.

2. Moral, Hermenêutica e as Aporias do direito.

A dimensão moral pode ser desde já compreendida como aquilo que resta de positivo e agregável para o contínuo tradicional da interpretação do direito quando comparada às aporias irresolúveis encadeadas na estruturação argumentativa dos discursos jurídicos ainda vislumbrados como um a posteriori de uma interpretação anteriormente realizada. Por aquilo que resta entenda-se tudo o que pode ser reapropriado e reconsiderado de modo construtivo quando posteriormente, ao se interpretar os textos fundamentais do direito em outra época ou, de maneira ampla, a sua própria prática social, sejam levados em consideração os fundamentos morais que emergem da experiência hermenêutica dos intérpretes e que se encontram vinculados - não apenas de forma semântica - a todo rol de reivindicações éticas que tornam o direito como uma prática coesa e passível de ser justificada em prol de sua legitimidade no intermédio de casos concretos. No âmbito particular do discurso teórico e doutrinário, a valência hermenêutica dos conteúdos morais assumidos no acontecer da interpretação já pode ser desde já vislumbrada como a sobrepujança maior em relação à importância legada aos problemas aporéticos decorrentes da dualidade metafísica quando, por exemplo, o intérprete procura, ele mesmo, resolver definitivamente a questão da eficácia da norma abstrata através da epistemologia do normativismo.

De outro modo, a moralidade assumida como um dos aspectos da efetuação hermenêutica realizada pelo intérprete e exteriorizada nos discursos que produz - especificamente no discurso doutrinário e das decisões judiciais - passa a ser uma agregação produtiva para a tarefa hermenêutica de outros intérpretes na medida em que, quando posteriormente reapropriada no decorrer experiência incessante do direito, os

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conteúdos da moralidade passam a legar aos intérpretes da prática jurídica os fundamentos concretos e não mais metafísicos para a sua atualização ontológica. Este processo vincula-se não apenas às necessidades urgentes ou mundanas que o direito, enquanto vivência deve abarcar e assumir, mas, fundamentalmente, à necessidade de sua própria legitimação ou razão de ser no esteio do consenso temporal dos destinatários.

Dworkin, ao delinear a estrutura encadeada do direito na apresentação da teoria da Integridade[2], anteviu muito bem este contínuo temporal de reapropriação hermenêutica a partir da moralidade como o processo mais apto a legitimar a prática jurídica e correspondê-la ao estatuto ontológico que subjaz ao direito enquanto fenômeno de natureza ética, mas que, ainda assim; configura-se como inseparável da coercividade das decisões legislativas contingentes; estas que, ao mesmo tempo em que garantem a manualidade existencial do direito; o torna, de outro modo, suscetível de deslegitimação no acontecer de sua própria prática. A circularidade deste processo é muito bem ilustrada na conhecida alegoria do romance em cadeia onde partes coerentemente ordenadas passam a constituir uma rede concatenada de fundamentos morais. Como observado, as dimensões morais que emergem do processo interpretativo individual e coletivo podem ser consideradas como o conteúdo de significação que se agrega e se permanece sucessivamente na linearidade prática do (s) direito (s) no tempo. Daí ressaltar-se seu caráter como rendimento e resultado[3] que ganha duração na prática dos seus intérpretes, quer dizer, é o conteúdo que resta – é o argumento capaz de ser continuamente reapropriado na continuidade (ou integridade) histórica do direito tornando-se assim capaz de fundamentá-lo e legitimá-lo; justificando-o para além de qualquer engenhosidade lingüística e metafísica.

Ao conformar a teoria da Integridade no Império do Direito, Dworkin faz referências constantes ao que poderíamos interpretar como a inescusabilidade de todo um sistema de convicções morais que legam a validade própria da interpretação jurídica, que se constituem, ainda, como os pontos de referências maiores do processo hermenêutico; sendo, desta maneira, o nicho de legitimação da dignidade do jurista quando efetua a interpretação do direito em seus âmbitos mais práticos. Como já ressalvado, é na incidência de todas as convicções pautadas na questão de princípio – o jurista se confunde com um homem de princípios e convicções mais do que um especialista em promover subsunções e articular a semântica dos textos jurídicos – que o problema permanente de como legitimar a força coerciva do direito em decisões que afetam a vida de uma comunidade pode encontrar um lugar apropriado parar resolver-se no consenso dos que experienciam a prática do direito.

Não obstante, desde já se faz necessário pôr em relevo um ponto problemático da dimensão moral da hermenêutica: as indefinições sobre o que realmente significa a moralidade e sobre a sua real capacidade para legitimar o direito e para justificá-lo na melhor interpretação apresentada por um sujeito. Não há uma definição semântica fechada do que seja a moralidade no decorrer do Império do Direito; sabe-se ainda que a moralidade constitui-se em um problema histórico da filosofia[4] não estando completamente resolvida mesmo quando vinculada aos significados usados para definir a Ética. Veja-se, ainda, que no delineamento da hermenêutica filosófica[5]; o problema é abordado por Gadamer no viés da filosofia prática; da phrónesis aristotélica – como na filosofia prática do Nicômaco – e nem tanto pela tradição daqueles que buscam definir a moralidade de modo completo e suficiente. Em prol dos argumentos aqui defendidos,

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parte-se do ponto de vista da Ética como a disciplina da moral estando a moralidade, por conseguinte, imersa no magma dos valores e daquilo que os intérpretes tem para si como convicção; como questão de princípio. À primeira vista, então, não seria errôneo afirmar que o sentido da moralidade dado por Dworkin em uma de suas obras principais possui também esta textura aberta e se liga fundamentalmente com a questão de princípio – ou seja, àquilo que, historicamente provado, passa a fundamentar e legitimar o direito na linha temporal de sua experiência histórica refletida na vivência de cada intérprete.

De qualquer forma, levando-se em consideração estas premissas, é preciso assumir a dimensão moral da hermenêutica como uma imanência e uma precedência do próprio processo da interpretação – é somente desta maneira que a questão se constitui em problema da teoria já que é inegável o fato de que mesmo com toda a estruturação lingüística e com os entremeados formais do conhecimento e da hermenêutica jurídica tradicional, os intérpretes, quando autenticamente interpelados, ainda decidem mais por convicções do que pela metodologia da ciência jurídica estritamente considerada – tal é o aspecto inegável disposto pelo problema da dimensão moral ainda obliterado como e na questão hermenêutica.

No enfrentamento das aporias que surgem no processo interpretativo e na exteriorização dos argumentos do discurso; a dimensão moral da hermenêutica deve ser interpelada tanto pela alegoria do romance em cadeia quanto pela idéia de círculo hermenêutico na forma delineada por Gadamer. Como já observado, o tema das aporias serve justamente para denotar o quanto os novos aportes da interpretação construtiva (Dworkin) e da hermenêutica filosófica (Gadamer) podem legar em novos horizontes para um processo permanente de legitimação principiológica do direito para além de seus problemas metafísicos irresolúveis decorrentes de toda sua interface metodológica e conceitual ainda preconcebida na atuação de muitos intérpretes[6].

Assim, as aporias, por sempre se voltarem a si próprias, mesmo que a partir de parâmetros variados, dificultam ao intérprete situar o discurso jurídico em função da necessidade de sua atualização ontológica a partir dos problemas de determinada época. Este processo de atualização daquilo que o direito é em seu acontecimento prático atual – assim como no exemplo da interpretação da cortesia no capítulo segundo do Império[7] – se entremeia com a urgência inescusável de legitimá-lo perante os viventes de sua prática. As aporias na dificuldade que apresentam em sua difícil resolução excluem o intérprete daquilo que o direito como cultura oferece para melhoramentos gerais na e para a vivência epocal. Dessa maneira, o sistema de convicções, âmbito permanente da hermenêutica jurídica naquilo que ela realmente é, ou seja, em sua determinação específica; se plenamente esclarecido em sua imanência, podem oferecer aportes mais adequados para este processo de atualização ontológica e legitimação perante a comunidade.

Como dito, a alegoria do romance em cadeia está vinculada ao que Dworkin propõe na estruturação da teoria do direito como integridade. A premissa de entrever-se o direito enquanto política em constante aperfeiçoamento e desenvolvimento temporal (coerência de princípio horizontal e vertical); torna possível ao intérprete perceber a natureza encadeada do fenômeno, justificando as declarações jurídicas do passado em sua adaptação necessária no presente. Não se trata de repetir o conteúdo moral do passado – como numa apropriação formal de convicções passadas defendidas por outros – mas

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sim de encontrar na linha temporal longínqua; os fundamentos necessários para defender o que se defende hoje, readaptando-os em prol da coerência do direito enquanto uma vivência unívoca refletida na vida de seus intérpretes mais atuais; ou seja, como na integridade de um romance bem conformado em suas partes distintas, mas que, ao final, se conformam na sua univocidade imanente.

A consideração do encadeamento tem muito a oferecer ao intérprete na medida em que reforça a dignidade de seu exercício hermenêutico; as convicções dão força àquilo que o intérprete se sente compelido; relega as dificuldades lógicas da aporia a um segundo plano já que a substancialidade daquilo em que se realmente acredita promove a força do direito em se realizar como um existenciário; qual uma manualidade situada em prol da vida do homem. Evidentemente, as convicções, a dimensão moral da hermenêutica, não são inventadas, quer dizer, não são criações livres do intelecto, não são nem um pouco idiossincráticas e singulares na medida em que em sendo assim perderão toda a sua capacidade enquanto fundamento ou mesmo como mero argumento de persuasão em prol do processo de legitimação do direito pelo intérprete. A questão de princípio, muito trabalhada por Dworkin também em outras obras[8]; é o que torna qualquer convicção de um intérprete como algo do mundo; como ligado a uma situação mundana e existencial.

Sabe-se que um dos eixos centrais desse discurso seria o da ambição em prol de uma comunidade de princípios. Ao defender a teoria da integridade, Dworkin não hesita em afirmar que “o direito é estruturado por um conjunto coerente de princípios sobre a justiça; a equidade e o devido processo legal adjetivo”.[9] Na amplitude que representa o princípio, seria mais útil que não sejam considerados como outra tipologia de norma diante do tipo da regra. Mesmo que possa ser abordado também desta maneira; mais interessante seria entrevê-lo como a ordenação valorativa capaz de legitimar a legislação, a jurisprudência e o próprio discurso doutrinário. Aquilo conhecido como uma questão de princípio (o matter of principle) é o que torna a convicção possível de ser defendida e aceita no consenso não apenas conciliatório dos intérpretes de um tribunal, mas também no de uma comunidade inteira. Em vista disso, é mais apropriado ao intérprete fundamentar uma proposição no cerne de sua efetuação hermenêutica a partir da questão de princípio do que por apelos logicistas próprios das entremeações da via aporética.

Portanto, caberia mais dizer: decido assim porque sou um homem de princípios e assumo o risco de defender o que defendo em uma contenda com meus pares – do que afirmar: decido assim porque algumas operações lógicas me impeliram e me convenceram para tanto a despeito de minhas convicções. Na primeira hipótese a dimensão moral favorece a discussão porque não idiossincrática já que as convicções autênticas, não falseadas, ligam-se a princípios comunitários. Na segunda hipótese a articulação feita pelo intérprete fecha o debate na autoridade daquilo que o sujeito presume ser um desfecho de sua própria inteligência vinculada à universalidade metafísica do discurso representativo do direito – presume-se erroneamente que todos pensam desta mesma maneira. Na dimensão moral a discussão é sempre possível porque situada no esteio de um fundo compartilhado de aferições e opiniões. A segunda hipótese também é insuficiente na medida em que mesmo a partir de articulações lógicas, a decisão sempre se reveste da convicção – o senso moral é, assim, o lugar comum do debate jurídico.

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Não obstante, é preciso admitir que a estruturação lógico-formal da experiência jurídica tem seu grau de valia para um manejo cada vez mais sofisticado do processo decisório e mesmo na questão de como legitimar, justificar e fundamentar decisões que dizem direitos e o próprio direito em sua totalidade enquanto prática social. A obra de Emillio Betti[10] tem sua valência; e de maneira mais contundente, citem-se, contemporaneamente, as obras de Perelman[11] ou mesmo de Alexy[12]. A questão, portanto, é a de como encontrar a devida autenticidade de cada uma delas nas práticas jurídicas mais comuns – no sentido da estruturação sofisticada da convicção disposta como legitimação da positividade.

É de se notar, desta forma, que a pesquisa em argumentação favorece em muito a compreensão da tecnologia que conforma argumentos em bons discursos sobre o direito; é só pensarmos, por exemplo, nas sendas abertas do silogismo disposto na subsunção jurídica – como na teoria pura[13] – onde a premissa do dispositivo abstrato; aquela escolhida para o confrontamento junto ao fato, muitas vezes carece da devida justificação – da fundamentação da própria escolha daquele dispositivo e não de outro. É neste espaço que a técnica argumentativa tem como esclarecer os mecanismos desse processo; melhorando a forma dialógica do processo decisório porque expõe para os intérpretes as estruturas imanentes da dialética processual. Todavia, se a questão perseguida for a de como legitimar a legislação, a jurisprudência e o discurso doutrinário, bem como a de procurar compreender a fundo o que realmente ocorre na efetuação hermenêutica dos intérpretes do direito - uma premissa da disposição hermenêutico-filosófica - as teorias da argumentação e a nova retórica devem estar transversalizadas em importância com os horizontes necessários expostos pela hermenêutica filosófica e pela interpretação construtiva. Através dessa perspectiva, a questão moral, como vértice comum de todo o debate legitimador do direito no cerne de processos interpretativos persiste como dimensão necessária para uma compreensão efetiva do que a hermenêutica jurídica tem a oferecer para expor a totalidade do direito à sua melhor luz; como recorrentemente defende Dworkin ao tratar da interpretação.

3. A função Hermenêutica da Convicção na Interpretação Construtiva.

Em seu sentido usual, a convicção – de ordem moral – vincula-se à idéia de certeza; no sentido de configurar-se como uma profunda evidência interna geralmente exteriorizada no discurso na forma da defesa de valores que a todos é possível reconhecerem como existentes e operantes no mundo da con-vivência. A incidência das estruturas subjetivas da convicção no decorrer da efetuação hermenêutica no âmbito prático-decisional do direito é um dos pontos de grande valia a ser destacado no texto do Império. Entretanto, como já acautelado, não há qualquer rótulo semântico para definir a convicção como mais uma categoria do conhecimento sobre o direito: a convicção simplesmente se efetua como um fato na vivência de cada intérprete; e tal fato é muito bem ressaltado por Dworkin na discussão sobre o processo de legitimação da positividade jurídica na própria aplicação do direito por seus intérpretes.

Se relacionarmos a convicção com a discussão filosófica da moral e da ética; as dificuldades surgirão de antemão já que, como observado, a moral já ganhou o estatuto

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de tema central em vários momentos da História da Filosofia. Com a questão ética a dificuldade não é menor: de Aristóteles[14] a Spinoza[15], se quisermos tratar das convicções pela interpretação desses textos clássicos; a imbricação do que seja a convicção moral com a experiência hermenêutica própria ao direito talvez se perca naquilo que oferece para o esclarecimento de seus processos decisionais – o objetivo maior desta comunicação; embora de maneira ainda panorâmica.

Se na História da Filosofia o tratamento da questão moral e ética possuem primazia inegável; com o conhecimento filosófico sobre o direito a pujança sobre essas questões é quase a mesma. Sabe-se que, tradicionalmente, na história da configuração do pensamento jurídico, a separação estanque entre ética, moral e política com relação aos elementos do estatuto ontológico do direito – pelo menos do direito enquanto ciência e conhecimento – encontrou guarida nas produções teóricas mais relevantes; principalmente nas que seguem a abordagem positivista ou normativista. Um autor emblemático nesta separação é Kelsen. É prudente observar, todavia, que esta separação não pode ser aprioristicamente definida como incompleta e desvinculada da teleologia do direito. Antes de qualquer coisa é preciso que se considere a boa fé dos grandes autores – no sentido mesmo da abertura hermenêutica que textos estratégicos oferecem para a compreensão da experiência do direito – principalmente de Kelsen; ainda de inegável importância para a compreensão dos fenômenos atinentes à jurisdição constitucional, por exemplo[16]. Mesmo assim, na função crítica que o pensamento do direito assume sobre si mesmo; a epistemologia defendida por Kelsen torna-se o ponto de incidência maior da razão crítica justamente por negar a complexidade do direito em seus âmbitos práticos; decisionais. Não obstante a função didática que pode oferecer a teoria pura; a separação que traz sobre as esferas moral, ética, política e jurídica impedem a expansão temática do conhecimento do direito – principalmente da hermenêutica jurídica – naquilo que ela mesmo é na vivência imediata de seus intérpretes.

A separação entre direito e moral na obra mais comentada de Kelsen[17]se estrutura organicamente na totalidade das proposições a que o autor se propõe. Se quisermos fazer referência aos seus elementos metafísicos, não haveria dificuldade: basta observar o que sugere o significado da grundnorm essencialmente ligado à retórica transcendental da metafísica crítica. Além disso, o aparte e o corte efetuado por Kelsen entre um sujeito existencial situado, partícipe e não apenas observador da experiência ontológica do mundo – premissa reafirmada pelas filosofias do século XX – para, ao revés, promover a postura contemplativa de um jurista científico voltado apenas a operações subsuntivas de elementos abstratos sempre a pairar na esfera da transcendentalidade esquematista ou de um conhecimento proposto a lograr apenas o que se considere como a realidade objetiva das coisas; tal é a contundência mais metafísica desta obra.

Para Kelsen, a separação do direito com a moral além de ajudar a fundamentar ainda mais a proposição epistemológica da pureza do direito, vincula-se ao seu aspecto mais criticável de que não caberia ao jurista emitir juízos de avaliação sobre o que seja bom ou ruim ao operar pelo espectro unicamente normativo do direito. As convicções morais, neste esteio, estariam desprovidas de validade – para a teoria pura – já que não serviriam a descrever a dinâmica da normatividade; seriam como que assuntos particulares a serem deixados de lado quando da elaboração de discursos doutrinários e, prioritariamente, quando da efetuação hermenêutica nos processos decisórios do

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direito. Em parâmetros opostos, o discurso de Dworkin, pelas repercussões práticas da atitude interpretativa e, em específico, da interpretação construtiva, vem a unificar, de maneira convincente, todas as esferas antes separadas pela epistemologia do normativismo. Mesmo que se atenha aos problemas da common law; a discussão teórica do Império se afirma como autêntica filosofia do direito mesmo na experiência mais abstrata do civil law. Aliás, é por este último sistema que as tentativas de justificar e legitimar moralmente a positividade jurídica no interior de processos decisórios ganha ainda mais relevância na medida em que as premissas legais – nunca sendo olvidadas pelo intérprete – se agregam quantitativamente em velocidade cada vez maior, como no caso brasileiro.

Não seria imprudente desde já afirmar que a estrutura das convicções de cada sujeito – na valência hermenêutica que tem – se determina, em seu jogo multívoco porque não solipsista, como o âmbito central do processo de justificação da positividade através do vivenciamento hermenêutico dos intérpretes. Isto porque negar a transcendentalidade e os elementos metafísicos do conhecimento jurídico significa ir além da busca por definir a melhor ontologia do direito não no modo das velhas disputas de jusnaturalistas e positivistas, mas sim no sentido da aceitação pelo intérprete daquilo mesmo que o direito é enquanto prática social. Trata-se não de refutar um modelo de direito e reencontrar outro das profundezas da elucubração teórica individual de gênios da teoria, mas de, em se fazendo a própria prática pela positividade legitimada, encontrar o melhor nicho de aplicabilidade; do contrário, é muito provável que juízes passem a incorporar disposições próprias de congressistas eleitos pelo povo. Nisto se justifica a tarefa necessária da melhor justificação do direito positivo, legitimando-o mesmo que numa simples fundamentação decisória ou em discursos doutrinários mais imaginativos e criativos porque situados na vivência coletiva de seus leitores. Legitimar a positividade, neste esteio, implica necessariamente entrever o texto legal por sua matéria de princípio; por aquilo que corresponde enquanto direitos comunalmente concebidos como existentes per si.

Nas ricas proposições do Império, a apologia ao estatuto legitimatório das convicções morais como medium para situar o direito no mundo; na vida dos que o experienciam no tempo, encontra-se sempre atrelada ao desenvolvimento da teoria da Integridade. Não nos propomos, no entanto, a fazer articulações mais detalhadas sobre a multiplicidade de repercussões dessa teoria; mas sim de destacar a permanência do elemento moral no direito transmudado no sistema de convicções assumido pelo intérprete como parte integrante da experiência hermenêutica no direito. A questão que já emerge desta simples consideração refere-se à maneira como a valência hermenêutica da convicção moral pode não ser pervertida na arbitrariedade, na violência e hipocrisia do sentido usual dado ao que se conhece por moralismo ou do simples solipsismo dos que se abstém do diálogo em prol da fundamentação plural do direito. Veja-se que a moralidade assume determinações específicas em Dworkin; é o modo de articulação atribuído à questão que possibilita entrever a validade da convicção no acontecer da interpretação. A incidência da estrutura de convicções na interpelação pela prática social do direito é inegável. Esta constatação, todavia, não se reveste de conotações negativas; ao contrário: é no assumir da convicção mesma que o fundo comum da comunidade pautada em princípios existentes e operantes ganha sua determinação mais objetiva. Como já antes destacado, isto se resume, simploriamente, nas decisões onde intérprete se dispõe como um sujeito de princípios – e tal se diferencia em muito do moralismo

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pejorativo – e não como um interprete hábil em resolver questões morais e éticas como se fossem problemas de ordem puramente lógica.

Dworkin não aborda os princípios como o dever ser metafísico efetuado por Kelsen e pelas doutrinas positivistas; a fundação por princípios é um acontecimento próprio do mundo; se não pode ser visualizada no cotidiano comum; existe mesmo assim: caberia justamente ao intérprete situá-los na prática social do direito no encontro que faz destes princípios com a força de suas próprias convicções já que, mesmo não o querendo, as convicções incidem já que o intérprete participa diretamente do evento social e prático do direito; não estando nunca a apenas observá-los de longe, quer dizer, suas convicções sempre se referem a um fundo comunal de princípios imanentes. A questão se torna ainda mais pertinente se, no âmbito das teorias da argumentação e da nova retórica, o desejo de que convicções morais sejam reconhecidas e compartilhadas pelos co-intérpretes possuem, de fato, condições reais para ganhar uma razão tecnológica[18].

A existencialidade (mundanidade) do fundo principiológico ganha sua determinação ontológica – portanto, sua legitimidade como coisa do mundo e não enquanto uma metafísica de valores – na força que as convicções morais possuem em contendas próprias dos processos decisórios – principalmente naquilo que Dworkin chama como o princípio jurisdicional da Integridade. É neste sentido que as divergências contribuem para o enriquecimento autêntico do encadeamento temporal do direito (base e possibilidade da Integridade) já que expõem direitos à sua melhor luz através do fundamento e legitimação que os princípios conferem a eles. Já se destacou que é mais oportuno abordar o fundo comum dos princípios – que do ponto de vista singular do intérprete configuram parte de sua tópica na elaboração de argumentos de fundamentação – não em sua dicotomia com relação à regra; mas sim a partir do que pode representar enquanto um lugar comum a ser compartilhado por todos os intérpretes, ganhando sua determinação prática na relação especular que pode assumir nas convicções morais dos intérpretes. Quando se fala em convicção, refere-se à sua incidência enquanto uma realidade imanente e independente de qualquer falsa tentativa de persuadir a partir do uso articulado de argumentos principiológicos. O fundo comum dos princípios que legitimam a coercividade e a temporalidade do direito enquanto prática social; por ser uma imanência e um elemento do acontecimento hermenêutico naquilo que é; e não naquilo que deve ser; não pode ser disposto livremente pelos intérpretes, quer dizer, o sistema de convicções não tem como ser falseado, mesmo com o desenvolvimento máximo de tecnologias retóricas. Certo tipo de convicção – ligado ao fundo comum dos princípios fundantes – se destaca na fala e na fundamentação de um intérprete mesmo que este tencione se basear, falsamente, em outra convicção usada como chave de argumento e persuasão. O sistema de convicções é, portanto, uma incidência indispensável – ela se destaca e simplesmente acontece na experiência dos processos decisionais do direito.

O fundo comum de princípios possibilita o consenso temporalizado sobre questões de direito; não no sentido da solução conciliatória ou pelo viés de um consenso meramente procedimental. Em Dworkin, encontram-se referências constantes ao que se pode constituir em uma verdadeira comunidade de princípios otimizada pelo ideal assumido da fraternidade a partir da noção de fidelidade. Para cada intérprete cabe partilhar desse interesse geral a partir da justificação que promove ao direito enquanto prática social. No esteio da teoria da Integridade cada cidadão ou intérprete – como agentes morais distintos, porém unidos – devem se permitir desenvolver; pela força e veracidade de

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suas convicções, as próprias normas públicas de sua comunidade. Veja-se que a partir deste processo torna-se exeqüível a unificação necessária da vivência moral com a vida política a partir das premissas coercivas oferecidas pelo direito em sua positividade.

A relação da incidência inevitável de convicções morais na construção da interpretação do direito em sua coerência e integridade a partir de princípios aceitos com a hermenêutica-filosófica de Gadamer é muito clara se atentarmos para as origens metodológicas da atitude interpretativa e da interpretação construtiva. Embora Dworkin faça mais uma reintrepretação do que uma representação esquemática de algumas premissas hermenêutico-filosóficas fica clara a relação quando a teoria da Integridade, do ponto de vista do intérprete, assume a tarefa filosófica da adequação temporal do direito naquilo que era e que pode continuar sendo embora sob novas configurações e qualificações.

Na discussão aqui proposta; cabe investigar até que ponto a questão da convicção – ressaltada no decorrer do Império – possui em elementos hermenêuticos e filosóficos já na forma traçada por Gadamer. Tratemo-la em um sentido específico, quer dizer, do ponto de vista do intérprete então reconhecido como um agente moral legítimo para justificar o direito a partir do que acredita; a partir da matéria de princípio espelhada na força argumentativa da convicção. Neste esteio, a discussão tradicionalmente caminha para a estrutura circular da compreensão, na forma de um a priori existencial ou mais especificamente na forma da estrutura pré-conceitual que condiciona o fenômeno da compreensão – e da interpretação – à situação do sujeito do mundo, ao que ele é enquanto presença situada na totalidade da vivência histórica – um dos temas centrais tratados por Gadamer na Verdade e Método.

4. A Convicção e o Círculo Hermenêutico da Compreensão.

Gadamer não chega a tratar diretamente sobre as manifestações hermenêuticas da convicção moral. Isto corresponderia bem; e ganha fundamento, no modo de abordagem escolhido por Gadamer para redimensionar a hermenêutica no caminho de todas as suas possibilidades e pressupostos filosóficos irrecusáveis. A qualidade interpretativa da Verdade e Método refunda a hermenêutica em novas possibilidades no próprio falar sobre ela mesma; já que Gadamer a reconhece como uma tarefa aberta (caso contrário, estaria contra seus próprios princípios). Reconstrói-se na obra a trajetória de modos de conhecimento e manifestação do que se pode considerar hermenêutica no sentido de situá-la como um modo da compreensão; uma inerência da própria condição humana; quer dizer, o ser humano, em sua construção espiritual autocompreensiva, traz em si o modo de ser dessa compreensão. O geist proveniente do modo da compreensão do ser-aí vivente possui elementos que a distinguem das ciências naturais possibilitando às ciências humanas ou, se quisermos, às ciências do espírito; o entrever-se de sua própria trajetória. O modo compreensivo é uma lição a ser cultiva e articulada em suas exitosas possibilidades para todos os âmbitos disciplinares das humaniore. Para Gadamer, na discussão sobre as ciências do espírito, mais do que se primar pelo conhecimento – aplicando-se o método indutivo – para o entendimento de uma lei confrontada com fatos (hermenêutica jurídica) ou como se desenvolvem estados

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e povos; o modo da compreensão vem situar o intérprete para que ele compreenda “como pode acontecer que agora é assim”[19]. O aspecto filosófico da hermenêutica gadameriana – em suas raízes fenomenológicas (Husserl); da antropologia filosófica do Ser e Tempo e da filosofia hermenêutica dos outros textos de Heidegger – promove, desta forma, a possibilidade de redimensionamento das humaniore no sentido do já construído por elas mesmas.

Para sermos objetivos ao interpelarmos a convicção em seu aspecto hermenêutico; daremos prioridade ao que Gadamer discute pela idéia de círculo hermenêutico e sobre a estrutura preconceitual enquanto condição da compreensão. O tratamento da questão sobre o círculo hermenêutico é abordado por Gadamer no esteio da estrutura prévia da compreensão no sentido heideggeriano da temporalidade do ser-aí (da presença; do Dasein). Não se intenta, pela abordagem hermenêutico-filosófica, construir um modelo definitivo e esquemático do acontecimento da compreensão da vida dos intérpretes. Cuidadosamente, ao invés; tenciona-se livrar a autocompreensão – exercida no processo da compreensão – das inadaptações inadequadas; no sentido de aprimorar a arte do compreender de modo indireto. É preciso enfatizar, ainda, que Gadamer trabalha especificamente a respeito do caso paradigmático da hermenêutica jurídica na Verdade e Método. Entretanto; a abordagem é particularizada pelo problema de se saber se a diferença entre a função dogmática e a histórica é dada de maneira unívoca: trata-se de vincular o interesse dogmático do jurista – a boa fé de não se deixar à margem da norma abstrata – com o interesse histórico; confluindo a função dogmática da hermenêutica jurídica com a construção hermenêutica própria às ciências do espírito; esta é a base da idéia de que há casos em que é possível que um texto legal seja interpretado juridicamente e compreendido historicamente – e tal se constitui em um elemento convergente à alegoria do romance em cadeia. Este é o enfoque que pode ser interpretado como um dos aspectos que tornam possíveis os exercícios próprios da interpretação construtiva. Isto porque toda interpretação que se queira originária – não vinculada ao objetivismo dos cânones – pressupõe a atenção cuidadosa para as possibilidades de um conhecimento originário; mais aproximado da coisa abordada; da coisa mesma em sentido fenomenológico. Pelos primados da fenomenologia – e, mais ainda, da filosofia hermenêutica (Heidegger) – o compreender autêntico, atual e ligado às premências da vida mundana ganha possibilidade a partir da posição, visão e concepção prévia. Fala-se aqui em um sentido negativo já que posição, visão e concepção podem se constituir em óbices inconscientes – ou seja, não anteriormente interpelados pelo intérprete – para que se chegue à coisa mesma; ao conteúdo de significação mais original da situação e do texto legal que se interpreta para dizer (quem tem) direitos. Gadamer afirma contundentemente que “quem busca compreender está exposto a erros de opiniões prévias que não se confirmam nas próprias coisas” [20].

A incidência do erro na interpretação; quando o intérprete não consegue interpelar significados para além do circuito fechado de suas próprias opiniões, é passível de ser fundamentada enquanto um acontecimento do processo da compreensão no exercício interpretativo – daí ser coerente a afirmação de Dworkin sobre decisões corretas e incorretas para cada caso –. Gadamer ressalta neste esteio a possibilidade latente da arbitrariedade quando o intérprete não consegue trespassar o solipsimo que pré-concebe a coisa; mais especificamente: a questão moral e legal sob julgamento. O processo da interpretação errônea se perfaz quando da não aceitação, pelo intérprete, dos significados da alteridade que não correspondem ao que ele “a priori” pré-concebe. A diferença dos significados não correspondentes à estrutura pré-conceitual quando

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descartados, sem exame, pelo intérprete; o afastam do encontro da coisa mesma; da diferença disposta no texto, do outro que se abre à compreensão, mas que acaba relegado a um não-ser ao não-reconhecimento. É neste sentido que o moralismo se imiscui à posturas solipsistas; dificultando, desta forma, a atualização e modernização de conteúdos jurídicos que passam a ser definidos, sem um juízo compreensivo, como aquilo que “não é” e “não pode ser” direito (s). Interessante notar que, mesmo com todos os óbices dos preconceitos arbitrários (expectativas de sentido), Gadamer entende ser possível, mesmo assim, realizar um exame legítimo efetuado pelo próprio intérprete com relação àquilo que lhe precede enquanto aparato preconceitual. Há posições, visões e concepções prévias que são legítimas e que não obscurecem os sentidos do texto, mas o situam ainda mais em seu valor atual de verdade; afinal o que importa é que se dê conta dos pressupostos internos para que o texto possa se mostrar em sua alteridade, em um processo circular de interação produtiva entre sua verdade diante das opiniões prévias personalizadas.

Na temática aqui proposta; é na questão dos pressupostos que se mostram como a diferença em relação à alteridade do texto, que a questão e o valor hermenêutico da convicção moral pode ser trabalhado. Desde aí muitos questionamentos emergem para uma abordagem cuidadosa da questão: as convicções morais, compreendidas enquanto certezas internas inabaláveis se configurariam nos conceitos da estrutura preconceitual? Em sendo assim, como examiná-las, discerni-las, para que possam ser abstraídas em sua legitimidade pelo confrontamento produtivo junto aos significados do fato e do texto legal interpretado? É preciso admitir, antes de tudo, a boa fé de juízes (um dos intérpretes oficiais do direito) dispostos a agir como verdadeiros juízes. Outra hipótese também deve ser admitida: a de que a separação da prática jurídica de seus conteúdos éticos e morais é um aparte impróprio; podendo ser justificada no argumento de que a interpretação fundamentada em cânones; tendo como premissa apenas a normatividade abstrata do texto, é incapaz de atender as demandas de sociedades plurais e intricadas em situações de fato cada vez mais complexas. O modo compreensivo da interpretação permite que questões legais sejam vislumbradas por sua validade moral; que textos legais sejam relacionados com os conteúdos morais que lhe dão finalidade por mais técnico que seja o assunto tratado. Neste sentido, a certeza interna da convicção; mesmo na problemática dos conceitos prévios, permitem que a questão legal seja transversalizada com a questão moral e com matéria de princípio. A convicção moraliza a coisa sob julgo; dirime as disposições neutras que quando fechadas para o que o outro tem a dizer (o fato em sua importância para o direito; a palavra das partes de um processo; o texto legal, os precedentes, a comunidade de intérpretes etc.) acabam terminando em desfechos injustos para aqueles que acreditam (de maneira convicta) que possuem determinado direito. A convicção moral assumida pelo juiz; quando correspondida ao fundo comum de princípios epocais compartilhados, podem, pela tarefa hermenêutica, encontrar e corresponder à convicção daqueles que reivindicam e acreditam possuírem direitos em uma situação de fato. Por esta via a intersubjetividade se torna possível como inter-est (termo bastante utilizado por Hannah Arendt em seus textos de língua inglesa); como compartilhamento comum de interesses em prol de algo maior do que o poder estatal do juiz ou da aferição econômica dos direitos pelas partes – o interesse comum passa a ser, desta forma, o do próprio direito e o da comunidade; quer dizer, dos princípios dispostos como condição sine qua para a legitimação da positividade, mesmo a mais contingente.

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É por este processo que as convicções; competentemente exteriorizadas no discurso jurídico, podem se configurar como fonte de legitimação da positividade e se tornar uma chave para a tarefa do juiz frente ao encadeamento temporal do direito – inovar produtivamente pelo que já vem sendo (o direito é positivo e não positivista) se torna possível quando todos os intérpretes envolvidos passem a vislumbrar as motivações reais de seus pares. A aceitação da positividade não implica em promover o discurso metafísico de um legislador criado mentalmente para que se entenda uma intenção e que para tão somente assim se possa justificar e legitimar o status temporal do direito positivo. É preciso dirimir essa ambição transferindo-a para os vieses práticos do direito a partir de situações concretas onde a tarefa hermenêutica passa a ganhar seu lugar mais apropriado. Pelo viés prático é possível dizer que mesmo diante das dificuldades de análise do espaço subjetivo do direito – o âmbito individual do intérprete – as convicções morais podem ser trabalhadas no que trazem de positivo para os processos de legitimação do direito. Quando algumas convicções naturalmente correspondem ao fundo comum de princípios (onde todos teriam a chance de reconhecê-los e defendê-los mesmo que sem o aparato cognitivo do conhecimento jurídico) a discussão sobre o justo se torna mais situada; mais fácil de ser discutida pela comunidade de intérpretes porque desvinculada de suas qualificações metafísicas e literárias. A consciência das próprias convicções, assumidas e defendidas, quando legitimadas pela questão de princípio; permitem o entendimento das convicções correspondentes do outro que fala. Permitem, afinal, o interesse comum, o inter-est; democratizando ainda mais o processo judicial através de argumentos potencialmente convincentes porque já internamente convictos. Como se vê, a compreensão da diferença do outro que quer falar (como os míseros e as minorias étnicas p. ex) também pode ser efetuada pelo reconhecimento recíproco das convicções assumidas, sendo, então, uma rota de convergência entre o que o intérprete traz em si mesmo, passando a reconhecer no outro; como um agregamento produtivo para a atualização ontológica do direito. É neste esteio que o argumento de que o que é bom para mim não o é para outrem; de que a moral é sempre relativa e solipsista; já se torna falho e sem aplicabilidade: o solipsismo e a barreira construída entre o que há de comum entre os intérpretes se rompem em prol do interesse comum; em prol da globalidade do direito como uma manualidade instrumental em prol do ser humano e não apenas de intérpretes oficiais.

A convicção; a partir do momento em que é tomada como um preconceito legítimo – na forma do convencimento de que a convicção tida por argumento é, de fato, um desdobramento autêntico (apropriado) de princípios morais aceitos pela comunidade de intérpretes – por trazer em si a força da certeza interna, encontra a possibilidade de encontrar as convicções alheias no sentido de promover-se a unificação apropriada entre a questão de fato; a questão de direito e a questão moral na resolução de casos concretos, principalmente daqueles em que o direito positivo, no aparato que oferece, não é capaz de resolver prontamente. É por este viés que o primado metafísico da mens legis e mens legislatores também passam a ser mitigados quando o intérprete, ao interpelar textos legais, vislumbra seus conteúdos a partir daquilo que melhor podem oferecer para uma prática encadeada – íntegra – do direito. A certitudo da convicção, quando legitimada, traz os princípios comuns à mundanidade do direito; quer dizer, aos seus casos concretos. No processo interpretativo de textos legais; o encontro com a coisa mesma que o texto tem a dizer a partir do trespasse do circuito fechado dos preconceitos permite o encontro com a melhor luz do texto da lei. É desta forma, afinal, que a certeza da convicção corresponde à estabilidade dos princípios que justificariam a

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razão de ser daquele texto, de outra forma: possibilitam o encontro concatenado daquilo que o direito pode trazer de melhor; daquilo que lega como sua razão de ser e que sempre pode corresponder aos espaços subjetivos da interpretação através de um confrontamento produtivo.

5. A Convicção e a Eficácia da Norma abstrata na temática do Ser e Dever Ser.

De maneira conclusiva à questão da validade hermenêutica das convicções morais; é-nos razoável tecer alguns comentários – que valeriam como um desdobramento da discussão até aqui proposta – sobre uma temática tradicional do conhecimento jurídico: a questão da eficácia da norma abstrata pela temática do ser e do dever ser.

Veja-se que, inicialmente, qualquer articulação da construção teórica tradicional do direito com as discussões contemporâneas da filosofia do direito devem ser guiadas pelo bom senso de que o conhecimento jurídico; diferentemente das teorias da física teórica p. ex – não se afirmam a partir de desconstruções livres ou pelo anacronismo de sucessivas substituições de modelos teóricos dominantes. Arrisca-se mesmo a dizer que o conhecimento sobre o direito traz em si uma índole cumulativa. Não seria razoável desprezar, de pronto, mesmo que o valor didático e descritivo das antigas teorias jurídicas. No esteio da cultura construída sobre a teoria do direito; a questão do ser e do dever ser emerge como um lugar comum para a descrição funcional da normatividade do estado de direito. Estas duas categorias – não utilizadas de maneira exclusiva por juristas – servem a discutir de maneira lógica a questão da eficácia material das normas abstratas. A dificuldade que aqui nos propomos a apontar estaria no fato de que esta separação categorial pode ensejar muita das aporias irresolúveis do direito quando assumidas como único pressuposto do modo pelo qual o abordamos. Para situar mais a questão, entenda-se a aporia por sua definição tradicional, quer dizer, como a igualdade de raciocínios na forma de dificuldades para a escolha da via ou do resultado que se quer defender. O discurso cuidadoso de Aristóteles na Metafísica[21] chega a enunciar quatorze variedades de aporias. Seu problema é permanente e dificulta a expansão temática do falar sobre o direito para nichos problemáticos e atuais. Em linhas gerais; o aparte do ser com o dever ser legitima-se por problemas epistemológicos discerníveis na própria história da filosofia. A diferenciação entre aquilo que é com o que deve ser; ainda é um elemento comum do discurso dogmático. Perfaz-se na boa fé do jurista em não falar sobre o direito estando à margem de sua positividade. O modo mais aceito de se falar sobre o direito traz, pela esfera do dever ser, a idéia de que a norma abstrata promove, por sua coercividade, um acontecimento que deve acontecer; não por uma previsibilidade ou probabilidade de algo que está para acontecer, para mais, a lei é por essência prescrição e coercividade; existe no mundo para que algo deva e não apenas possa acontecer. Fala-se na eficácia quando o que deve ser encontra-se com aquilo que material ou mundanamente é. A relevância crítica da questão justifica-se na índole metafísica deste tipo de abordagem por dois motivos: a abstração da norma jurídica pela pura descrição lógica: artigos, alíneas, parágrafos de leis são aleatoriamente concebidas como normas em si sem que se tenha uma concepção unívoca do que seja de fato a norma ou regra jurídica. É neste sentido que a dificuldade do próprio conceito de regra

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jurídica se torna sempre insuficiente ou passageiro. É muito claro que este tipo de abordagem vincula-se ao outro motivo que aqui aludimos como constituinte da índole metafísica da questão: a objetivação e abstração absoluta da norma em si; decorre, essencialmente, do discurso metafísico das antigas tradições epistemológicas. Mente e matéria; sujeito e objeto, mais do que problemas da filosofia, configuram-se, pelo menos para o direito, como o modelo mais tradicional sobre o modo como o abordamos e falamos sobre ele. Não se trata, todavia, de resolver pela retórica ou pela hermenêutica o problema epistemológico do direto – pelo menos nas bases que aqui criticamos.

No âmbito hermenêutico e retórico a questão pode ser tratada na forma dos empecilhos que o dualismo epistemológico pode legar para o modo como se fala e se aborda o rol de questões sobre o direito. Teoricamente, as conseqüências retóricas do dualismo metafísico são muito claras na análise do discurso tradicional: o jurista, ao optar pelo plano do dever ser, é conduzido à descrição e desdobramento apenas do conteúdo semântico dos textos legais – como conhecimento reprodutivo dos atos legislativos –. Daí a técnica do comento legal correr o risco de funcionalizar abstratamente o papel do jurista para a comunidade (e há nisso muitas repercussões negativas). Outro caminho seria o de imiscuir-se em problemas “de fato” ao conduzir a discussão apenas para a crítica sociológica ou apenas para a análise econômica, criticando-se, de forma abstrata, um legislador metafísico como suposta fonte de todos os problemas práticos do direito. Mais do que resultado único do aparte entre o ser e o dever ser; estas limitações emergem também das separações tradicionais do que se considera, restritivamente, como jurídico, político, moral, ético etc.

Se a questão da eficácia da norma abstrata for pensada nestas bases; o desfecho ou resolução de algumas questões se torna improvável. Isto porque há uma distância metafísica entre as esferas do ser e do dever ser; tal qual ocorre com a distância metafísica entre o que é sujeito e o que é propriamente objeto. Em outras palavras: não há como preencher a distância infinita – porque metafísica – entre aquilo que é com relação àquilo que deve ser por decorrência de normas jurídicas abstratamente concebidas. O problema da eficácia não pode ser resolvido teoricamente pela retórica dualista porque depende de elementos mundanos que fogem ao controle do jurista por mais detalhados e criativos sejam seus argumentos. Ao invés de se imiscuir pelo caminho do ser ou do dever ser; o papel social do jurista pode ganhar mais produtividade a partir de considerações mais práticas do direito. Daí serem tão importantes as discussões sobre a atitude interpretativa (Dworkin) no sentido de se interpretar o direito a partir da suspensão desse aparte categorial para que o abordemos como prática social em constante aperfeiçoamento e disposto ao controle de seus próprios intérpretes como agentes partícipes dessa prática. Aliado a isto, justifica-se mais ainda a aceitação da premissa de que, fenomenologicamente, a norma jurídica ganha de fato sua mundanidade a partir de processos interpretativos como manualidade e humanização absoluta da abstração normativa. Observe-se que as articulações semânticas de textos legais são incontáveis; o plano abstrato da descrição normativista ou do apego a um mundo de fatos que contraditoriamente desconsidera o fato da positividade de leis não corresponde ao vislumbre prático do direito. Assim, ao invés das elucubrações sobre como a norma abstrata pode se tornar “eficaz” no sentido daquilo que ela deve ser; a questão pode ser mais proficuamente trabalhada na forma de seus vieses práticos.

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A discussão da eficácia, sob essas premissas, passa a depender não (apenas) das possibilidades teóricas da interpelação abstrata sobre textos legais – como elaborar planos ou argumentos teóricos para o dever ser da normatividade – mas sim de processos humanizados de interpelação de textos legais a partir da experiência dos próprios intérpretes. É neste sentido que a convicção moral daqueles interpretam ganha ainda mais em sua validade hermenêutica já que transfere os parâmetros da discussão e do discurso para processos interpretativos humanizados. O direito enquanto prática social é acima de tudo uma experiência ao alcance do ser humano e não um acontecimento abstrato – a experiência da interpretação, fortificada pelas estruturas da convicção interpretativa, permite que, para além da abstração e da mística de agentes ou vontades metafísicas – seja a do legislador, da lei, do estado – se vislumbre o direito naquilo que realmente é; naquilo que serve enquanto um fato primordial da vida relacional dos seres humanos. Por este aspecto, a hermenêutica filosófica; na renovação que traz para a hermenêutica jurídica na permanência inescusável de sua função dogmática, e a interpretação construtiva; ao expor as possibilidades para uma construção encadeada da manifestação temporal do direito, situam ainda mais o intérprete tanto pela pergunta de como e o que se falar sobre o direito quanto pela questão fundamental de como torná-lo melhor; adequando-o e justificando-o em sua razão de ser seja qual for o modo ou a via ontológica pela qual se manifeste.

6. Conclusão.

O aspecto moral da hermenêutica pode se tornar um campo profícuo de investigação na medida em que expõe o processo de interpretação do direito naquilo que realmente é. É claro que a busca pelo estatuto ontológico da convicção moral é ainda uma tarefa criticável já que sua conceitualidade é relativa. O fato é que sua incidência nos processos decisórios é inescusável. Em razão destas dificuldades, sua razão de ser será mais bem compreendida se vinculada à própria discussão moral, ou melhor; sobre a moralidade imanente do direito. O que se procurou demonstrar nesta comunicação refere-se à hipótese de que as convicções morais podem ser abordadas pela temática da estrutura pré-compreensiva dos intérpretes naquilo que o viés hermenêutico filosófico oferece para a compreensão do que realmente ocorre em exercícios interpretativos. Em suas raízes fenomenológicas e ontológicas – o intérprete, como ser-em e ser-com, está mundanamente condicionado às visões, posições e concepções prévias. Tendo em vista o ethos relacional do ser-com; a convicção moral, enquanto pré-compreensão não pode ser desvinculada de seu predicativo manifesto enquanto certeza interna. Podemos mesmo admitir a hipótese de que em casos muito difíceis, onde as premissas do texto legal são incertas e obscuras, a certeza interna, por se revestir em força convicta, tem mais a oferecer do que as justificações pautadas apenas na indução. Além disso, o aceite aberto das próprias convicções permitem, como visto, otimizar o alcance daquilo que os textos legais ou as significações de um fato trazem como diferença em relação ao que o intérprete pré-concebe como verdade absoluta. O reconhecimento das próprias convicções – das certezas internas não idiossincráticas – permite ao intérprete reconhecer o interesse e a reivindicação convicta do outro que lhe interpela já que ambas pertencem a um fundo comum; ressaltando ainda mais a unidade comunitária do direito.

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No âmbito da interpretação construtiva; o que se procurou defender pauta-se na tese de que, admitindo-se a existência concreta de princípios imanentes dispostos a legitimar as manifestações positivas do direito; as convicções podem ser vislumbradas como uma das revelações objetivas dos princípios comunitários. Isto quer dizer que mesmo absorto em suas idiossincrasias, as convicções mais usuais do intérprete estão sempre situadas na irreversibilidade de sua situação existencial. As convicções, pela certeza interna do intérprete que as defende, situam de maneira concreta os princípios naquilo que oferecem para legitimar a prática jurídica e também para situar ainda mais os conceitos do justo, temporalizando-os no esteio vida comunitária. Para mais, o viés prático das mais recentes concepções hermenêuticas permite que se atualizem as antigas discussões aporéticas sobre problemas comuns da teoria do direito como no caso da discussão da eficácia material de normas abstratas a partir da temática do dever ser. Mais do que se imiscuir nas elucubrações teorias pautadas em conceitos metafísicos da vontade um legislador abstrato ou nas acepções ainda mais abstratas da vontade do estado ou da lei; caberia ao intérprete o alargamento das possibilidades hermenêuticas do direito já compreendido em e por sua prática social, no sentido de sua melhor exteriorização em processos decisórios. É desta maneira que a tarefa de legitimá-lo em prol de melhoramentos imediatos permanece como um ponto de partida irrecusável do jurista intérprete.

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[1] BETTI, Emílio. Interpretação da Lei e dos Atos Jurídicos. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

[2] Cf. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. – 2ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2007. Cap. VII – “Integridade no Direito” – pags. 271 a 333. A incidências das convicções moralizadas do intérprete são inerentes ao processo interpretativo na perspectiva do encadeamento próprio da Teoria da Integridade: “estamos tentando ver o que é a interpretação do ponto de vista do intérprete, e, desse ponto de vista, a coerção que ele sente é tão genuína como se fosse incontroversa, como se todos sentissem com a mesma força que ele” (p. 283).

[3] Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1999. A idéia de rendimentos e resultado que ganha duração na lineraridade da viviência histórica (exteriorizada, p.ex, na produção cultural e científica que se agregam no tempo)

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corresponde no tratamento conferido por Gadamer à significação hermenêutica da “vivência” e do “vivenciado” (pág. 106).

[4] Cf. LEGRAND, Gerard. Dicionário de Filosofia. Lisboa – Portugal: Edições 70, 1983. Mesmo nos dicionários de filosofia os conteúdos significativos da moral não são tratados por rótulos semânticos; no sentido de muitas vezes a filosofia se reduz à moral ou a tem como centro: “nenhum homem é filósofo sem o saber, mas todo homem é moralista sem o saber” (p. 270). Podendo ser ainda considerada, de maneira singela, “como a arte ou uma ciência de se comportar na vida de acordo com determinados princípios” (idem). O Nicômaco aristotélico segue, por exemplo, este viés eminentemente prático da moralidade.

[5] Cf. GADAMER, Hans Georg. Verdade e Método II: complementos e índices. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, Bragança Paulista, SP: Ed. Universitária São Francisco, 2002. Em artigo publicado em 1980 intitulado “Problemas da Razão Prática”; Gadamer procura fundamentar a hermenêutica, como ciência do espírito, na razão prática daquilo que os gregos conheciam como phrónesis. Neste sentido, “a natureza finita do ser humano adquire uma posição decisiva ante a tarefa infinita do saber”. (p. 376). O decisivo, como decisão, ressalta a dimensão ética ou moral da compreensão hermenêutico no sentido que tem como modo de ser da presença humana (Heidegger).

[6] A temática de como legitimar a coercitividade do direito – pode-se admitir aqui a premissa liberal de Dworkin na abordagem da questão – é corrente durante todo o percurso estabelecido no Império do Direito.

[7] op. cit. pág. 10 (p. 84 e ss.)

[8]DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

[9] Op. cit. pág. 10 (p. 291)

[10] Op. cit. pág. 3.

[11] PERELMAN, Chäim. OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: a Nova Retórica. – 2ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2005.

[12] ALEXY, Robert. Teoria de la Argumentación Jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.

[13] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. – 6ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1998.

[14] Cf. ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. Trad. Mário da Gama Kury. – 3ª Ed. – Brasília: Editoria UnB.

[15] SPINOZA, Benedictus. Ética. Buenos Aires: Aguilar, 1973.

[16] Cf. KELSEN, Hans. Quem deve ser o guardião da Constituição? In: KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Um exemplo

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simples das concepções modernas de Kelsen a respeito da jurisdição constitucional são suas réplicas à teoria do estado-total de Carl Schmitt.

[17] Op. cit. pág. 12 (p. 67 a 76)

[18] Cf. PERELMAN, op. cit. pág. 12.

[19] Cf. GADAMER, Op. cit. pág. 8 (p. 39).

[20] Idem (p. 356).

[21] ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Abril Cultural, 1982 (Os Pensadores).

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