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Entrevista A `frica hoje na visªo de Samir Amin* Theotônio dos Santos - Como membro do conselho editorial de C&p, dou as boas-vindas ao nosso convidado, Profes- sor Samir Amin, agradecendo-lhe pela aceitaçªo do convite, como tambØm aos demais membros da mesa. Por uma ques- tªo de eficiŒncia, faria a apresentaçªo dos participantes desta mesa-redonda ao nos- so convidado. Ao meu lado, começo pelo Embaixador Ovidio Melo, que nos anos 70 esteve à frente das dØmarches que leva- ram ao reconhecimento da independŒn- cia de Angola por parte do governo brasi- Inquietante e vexatório para a maioria do povo brasileiro tem sido o tratamento dado pela nossa media aos dramas em curso na `frica: tragØdia ecológica com desertificaçªo, secas acompanhadas de fome, massacres de etnias, guerras civis, Aids. Sempre exibindo imagens pungentes e discurso fragmentado, essa media nªo explica o que ocorre, justifica o castigo que recebe aquele que nªo quer ou nªo pode ser globalizado.... Desse modo, esconde, entre outros, o fato de que muitas das doenças hoje endŒmicas na `frica foram disseminadas por açıes de guerra biológica ou teste de vacinas em seres humanos a partir dos anos 60. Em sua exposiçªo, Samir Amin constrói-nos o modelo de compreensªo do drama das jovens naçıes africanas: a) formaçıes pluri-Øtnicas constituindo Estados nacionais segundo o modelo ocidental, sobre um substrato sócio-econômico e cultural da era colonial; b) aceitaçªo pelos agentes sociais do pacto modernizador o poder exercido pelas elites legitimava-se pela fruiçªo (ou crença nessa fruiçªo por parte do povo) das conquistas da civilizaçªo pós-revoluçªo industrial saœde, educaçªo, previdŒncia social o estado do bem-estar; c) desenvolvimento econômico (industriali- zaçªo) financiado pelas atividades agrícolas ou extrativistas... Como se vŒ, Ø o nosso modelo. É patente a vulnerabilidade deste projeto quando se desagrega o esquema geopolítico da bipolarizaçªo. A redaçªo de C&psente-se orgulhosa por apresentar a seus leitores as anÆlises do Prof. Samir Amin. * Escritor, economista e historiador, o erudito egípcio, Samir Amin Ø mundialmente respeitado como teórico marxista, com uma fØrtil produçªo em torno das questıes candentes deste período entre-sØculos. Este texto Ø transcrito a partir de palestra proferida em francŒs, em junho de 2000, na sede do CEBELA, no Rio de Janeiro. A transcriçªo e traduçªo sªo de Paloma Vidal. S. Amin, T. dos Santos, Ovídio A. Melo e A.C. Peixoto Comunicaçªo&política,n.s.,v.VII,n.2p.061-179

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61Entrevista

Entrevista

A África hoje � na visão de Samir Amin*

Theotônio dos Santos - Como membrodo conselho editorial de C&p, dou asboas-vindas ao nosso convidado, Profes-sor Samir Amin, agradecendo-lhe pelaaceitação do convite, como também aosdemais membros da mesa. Por uma ques-tão de eficiência, faria a apresentação dos

participantes desta mesa-redonda ao nos-so convidado. Ao meu lado, começo peloEmbaixador Ovidio Melo, que nos anos70 esteve à frente das démar ch e s que leva-ram ao reconhecimento da independên-cia de Angola por parte do governo brasi-

Inquietante e vexatório para a maioria do povo brasileiro tem sido o tratamento dado pela nossamedia aos dramas em curso na África: tragédia ecológica com desertificação, secas acompanhadasde fome, massacres de etnias, guerras civis, Aids. Sempre exibindo imagens pungentes e discursofragmentado, essa media não explica o que ocorre, �justifica o castigo que recebe aquele que nãoquer ou não pode ser globalizado...�. Desse modo, esconde, entre outros, o fato de que muitas dasdoenças hoje endêmicas na África foram disseminadas por ações de guerra biológica ou teste devacinas em seres humanos a partir dos anos 60.

Em sua exposição, Samir Amin constrói-nos o modelo de compreensão do drama das jovens naçõesafricanas: a) formações pluri-étnicas constituindo Estados nacionais segundo o modelo ocidental,sobre um substrato sócio-econômico e cultural da era colonial; b) aceitação pelos agentes sociais do�pacto modernizador � � o poder exercido pelas elites legitimava-se pela fruição (ou crença nessafruição por parte do povo) das conquistas da civilização pós-revolução industrial � saúde,educação, previdência social � o estado do bem-estar; c) desenvolvimento econômico (industriali-zação) financiado pelas atividades agrícolas ou extrativistas... Como se vê, é o nosso modelo. Épatente a vulnerabilidade deste projeto quando se desagrega o esquema geopolítico da bipolarização.A redação de C&p sente-se orgulhosa por apresentar a seus leitores as análises do Prof. Samir Amin.

* Escritor, economista e historiador, o eruditoegípcio, Samir Amin é mundialmente respeitadocomo teórico marxista, com uma fértil produçãoem torno das questões candentes deste período�entre-séculos�. Este texto é transcrito a partirde palestra proferida em francês, em junho de2000, na sede do CEBELA, no Rio de Janeiro. Atranscrição e tradução são de Paloma Vidal. S. Amin, T. dos Santos, Ovídio A. Melo e A.C. Peixoto

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leiro. Ao seu lado, o Professor AntônioCarlos Peixoto, titular da cadeira de rela-ções internacionais da UERJ. À nossa fren-te, o Professor Ailton Benedito de Sousa,secretário de redação de nossa revista.Acompanham o nosso convidado, sua es-posa, Isabelle Amin e a Sra. Mônica Bruck-mann, diretora do Instituto de PesquisasPerúMundo. Ouçamos nosso convidado.

Professor Samir Amin - Começarei comalgumas questões gerais, solicitando aospresentes que não hesitem em me inter-romper se perguntas houver que possamencaminhar o desenvolvimento da discus-são. Começo dizendo que contra a Áfricahá muitos preconceitos, preconceitos deraízes históricas, hoje reforçados pelo fatode que o Continente continua sendo umaregião fraca, uma das mais vulneráveis dosistema capitalista mundial. E quando so-mos fracos, somos sempre desprezados.São inúmeros, portanto, os preconceitos,isso, porém, não impedindo que a África ea Ásia participassem desse gigantesco pro-cesso de transformação do mundo depoisda Segunda Guerra Mundial. A análise quefaço é que a Segunda Guerra Mundialconcluiu-se com uma dupla derrota e umadupla vitória: a derrota do fascismo e aconseqüente vitória da democracia, porum lado: e a derrota do velho colonialismoe a conseqüente vitória dos povos da Áfri-ca e da Ásia, por outro. Essas duas vitórias,ou duas derrotas, criaram relações de for-ças sociais, tanto internas às sociedades,quanto externas ou internacionais, um pou-co menos desfavoráveis para esses povosdo que as que haviam até então prevalecidosob o capitalismo.

Os movimentos de libertação nacional,amplamente disseminados depois da Se-gunda Guerra Mundial, estenderam-se até1994 - último combate na África do Sul;até 1980, para Zimbábue; até 1974 para ascolônias portuguesas; até 1960 para a maiorparte dos países do Continente ao sul doSaara; até apenas alguns anos antes, 1954,1956, no que concerne à evacuação doEgito e ao final do regime de protetoradono Marrocos e na Tunísia, e por fim 1962,no que concerne à guerra da Argélia. OContinente como um todo participou,portanto, desse movimento de libertaçãonacional.

Por óbvio, esses movimentos de liberta-ção nacional apresentaram diferenças emfunção das condições sociais e históricaslocais, cada qual nascido com graus diver-sos de radicalização, desde dos que man-tinham fidelidade a princípios socialistas eanticapitalistas, até os que simplesmentepostulavam um projeto nacional puro esimples, sem colocar em questão as rela-ções fundamentais do capitalismo, local einternacionalmente.

Ao contrário do que normalmente se diz� um preconceito � os imperialistas nãoconcederam a independência à África,mas foi a África que a exigiu, às vezesatravés de guerras muito longas, comonas colônias portuguesas. E mesmo quan-do não houve guerras longas, as houvecurtas, entremeadas de batalhas políticas.Se não houvesse ocorrido esse grandemovimento de insurreição camponesa, deinsurreição nacional em vários lugares, aindependência da África não teria aconte-

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cido. Ela não foi dada. Os imperialistasnunca fazem concessões. Eles só as fazemquando são obrigados.

É verdade que a conjuntura possibilitouque num momento dado os imperialistaspercebessem que era preciso fazer con-cessões antes que fosse tarde demais, eisso eles fizeram, porém do seu ponto devista. E essas concessões não impediramcerta radicalização. É enorme a quantida-de de regimes por mim denominados denacionalistas-populistas � embora eles seautodenominem socialistas � que o Con-tinente africano conheceu. A metade dospaíses do Continente conheceu em algummomento regimes nacionalistas-populis-tas radicais.

Cabe notar que os regimes que saíramdesses movimentos de libertação nacio-nal apresentam, apesar das diferenças,certo número de traços comuns. O parti-do único não ocorreu, como freqüente-mente se diz, no âmbito dos regimes não-democráticos; ele foi visto tanto nos regi-mes neocoloniais, como na Costa doMarfim ou no Quênia, quanto nos paísesditos socialistas, como o Egito de Nasser,a Argélia de Boumediene, o Mali, Ganaetc. Afinal de contas, corresponde ao pro-

jeto nacionalista-populista: um programamodernizador, de aceleração do desen-volvimento econômico através da indus-trialização � uma industrialização, pelomenos em teoria, relativamente autôno-ma, relativamente autocentrada, mas eminterdependência e não numa concepçãoautarquista �, implicando transformaçõessociais mais ou menos importantes, desti-nadas a acompanhar, a criar a base socialdo projeto modernista, industrialista, na-cionalista, transformações que variaramde reformas agrárias, como no Egito e naEtiópia, a simplesmente movimentos decriação de uma base social nova, objetivode uma estratégia nacionalista-populista,através da educação, da urbanização etc.

Na área da educação, para dar algunsnúmeros, conheci o ex-Congo Belga1 , umpaís enorme, onde apenas �nove� congo-leses haviam terminado o segundo grau.Desses nove, seis eram padres e, dosoutros três, dois deviam ser advogados eum médico. Há certamente mais de ummilhão agora. É um número que mudacompletamente, em vinte anos, mesmosob o mais terrível regime que se possaimaginar, o de Mobutu. A esse respeito,mesmo sob esse regime foi possível fazermais do que nos setenta anos de coloniza-

1 Atualmente República do Congo, ex-Zaire,cujo território até 1918 manteve-se como propri-edade particular do rei Leopoldo II, da Bélgica.Nessa data, recebeu o status de colônia, cuja lutapela independência conclui-se em 1960, com acriação da primeira República do Congo. Em1971 o ditador Mobuto rebatizou o país com oantigo nome português: Zaire. Com a vitória deLaurent Kabila em 99, retorna-se ao nome origi-nal. N. do E.

Ovidio Melo, A.C. Peixoto, Ailton Benedito

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ção belga. Se observarmos as taxas decrescimento dos anos 60 e 70, vemos queelas são duas ou três vezes superiores àsmelhores das décadas da colonização,superando as do momento atual. Aquelefoi um período de um crescimento acele-rado, feito com muitos desequilíbrios, àbase de grande dependência, é verdade,fundado em grande parte, nesse primeiroestágio, sobre a continuação dos valorescoloniais, isto é, da exploração das ativida-des primárias etc. Mas havia um projeto.

No plano político, certamente não se deuênfase à questão da democratização, opróprio conceito de democracia sendoum conceito populista de enquadramentodas classes populares, de progresso, eudiria um pouco até como no século XIXbrasileiro, aquela idéia de �ordem e pro-gresso�, esse tipo de conceito da transfor-mação social.

Outra característica dos regimes da épo-ca: eram regimes trans-étnicos, literalmen-te �além das etnias� A colonização recor-tou o mapa africano de uma maneiraartificial que, paradoxalmente, acaba setornando mais ou menos real, reunindopovos...não utilizo o termo tribo, não fazsentido: os haussás são da ordem dosquarenta milhões, não vejo porque elesseriam uma tribo, enquanto os islandeses,que são duzentos mil, seriam um povo...repetindo: reunindo povos com línguas,religiões e histórias bem diferentes. Osregimes então se propuseram como trans-étnicos, no sentido verdadeiro do termo.Isso quer dizer que, mesmo se em certoscasos os políticos podiam criar uma clien-

tela em base local ou regional, o fato doponto de vista da ideologia não era tolera-do. A ideologia oficial, compartilhada in-clusive pelas classes populares, era deconstrução de uma nação. Não se devever aí exclusivamente uma ilusão, umautopia: era um momento real da constru-ção nacional a partir de uma ideologiatrans-étnica. Esse momento é positivo namoderna história da África, afirmaçãoque não exclui de modo nenhum a neces-sidade de grande rigor na analise das pro-fundas contradições internas que consti-tuíam sua fragilidade.

Em primeiro lugar, a ausência de demo-cracia, pois mesmo a questão trans-étnicafoi apresentada de maneira burocrática,de cima para baixo: �não há etnias�. Naverdade elas existem, e essa é uma manei-ra brutal de negá-las. �Só há uma realida-de�, eles dizem, �que é a nação�, quernigeriana, quer angolana etc. Ou seja,trans-étnica, mas não democrática.

A segunda contradição está relacionadaao projeto populista, no sentido da con-sígnia �fazemos coisas pelo povo�, queexistiu efetivamente. Assim, houve políti-cas públicas de educação, de saúde, emfunção de que ocorreram mudanças fabu-losas, antes que a Aids viesse novamenteexterminar populações inteiras. É precisoser justo: isso foi realizado tanto nos paí-ses nacionalistas radicais, ditos socialistas,talvez um pouco melhor nestes, quantonos países de opção capitalista, como aCosta do Marfim ou o Quênia. Não hou-ve exemplos ignóbeis como o do Zaire emtodos os lugares.

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Enfim, em graus diferentes, foram reali-zações muito generalizadas. Mas o proje-to é um projeto burguês, apesar de suasambições populares e populistas. Burguêsno sentido de que não concebia formas deorganização da sociedade, da produção,da administração etc. que fossem diferen-tes daquelas do Ocidente capitalista de-senvolvido, tomado como modelo geral.Incluem-se aí a neutralidade da tecnologiae a criação de relações de produção capi-talistas, mesmo se esse fosse � uma ex-pressão que utilizei para a União Soviéti-ca, mas que é igualmente válida, em váriosníveis, para todos os países da África � umcapitalismo sem capitalista, onde o Esta-do cumpre em grande parte a função oucertas funções do capitalista.

Além disso, e isso constituía a sua fragili-dade, o ponto de partida era uma basefreqüentemente muito frágil, isto é, paísesmuito atrasados pela colonização, pelaforma brutal da colonização, mantidosfora da revolução industrial, com trinta ouquarenta anos de atraso em relação àAmérica Latina.

A conjuntura econômica era de cresci-mento geral do capitalismo mundial, e aconjuntura política era a bipolaridade e apossibilidade de um país apoiar-se, diplo-mática ou militarmente, na União Soviéti-ca ou na China, para contrabalançar asameaças de intervenção ocidental. Essaconjuntura favoreceu, permitiu essa ex-periência. Mas ela não teria ocorrido senão houvesse o movimento de libertaçãonacional interno, ou seja, não foi decor-rente da indução nem do modelo ociden-

tal nem do modelo soviético, foi decor-rente de uma vontade construída pela lutade libertação nacional africana, que optouem graus diferentes por um sentido oupor outro, ou ficou entre ambos, a meiocaminho entre um e outro.

Esses sistemas se esgotaram rapidamente,antes mesmo que pudessem entrar na faseda revolução industrial, industrializando-se. As exportações de produtos primáriosperderam o fôlego e não puderam finan-ciar esse tipo de crescimento, a urbaniza-ção etc. As transformações sociais que oacompanharam � a educação etc. � nãotiveram escoadouro. Houve de fato umperíodo de crescimento elevado � foi omomento em que o Banco Mundial faloudo �milagre� do Quênia, do �milagre� doMalavi. Basta olhar esses países para veronde está o milagre... Eles se esgotaramrapidamente, entraram em crise.

A virada da conjuntura internacional acele-rou igualmente a crise. Passou-se, a partirdo meio dos anos 70, de um momento degrande crescimento na escala capitalistamundial, fato que nunca havia sido vistona história anterior do capitalismo, comtaxas de crescimento muito elevadas nospaíses capitalistas desenvolvidos, princi-palmente nos países da Europa ocidental,

Mônica Bruckmann e o casal Amin

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a um momento em que as taxas diminuí-ram pela metade, em que apareceu naEuropa e na América do Norte o desem-prego maciço etc., fenômenos que pareci-am ter desaparecido depois da SegundaGuerra Mundial. Isso criou uma conjun-tura econômica internacional muito maisdifícil e foi aí que esses países, comooutros na América Latina e na Ásia, entra-ram no ciclo infernal do endividamentopara continuar por algum tempo o mes-mo projeto em condições de crise. Dívidaque pôde ser financiada porque a crise noOcidente gerou um excedente de capital,atribuído freqüentemente ao petróleo, quena verdade representou só uma parte des-se excedente, um excedente à procura deum escoadouro financeiro para o cresci-mento econômico do próprio Ocidente,dos países capitalistas desenvolvidos, queassim financiaram a dívida. Antes mesmoque o sistema soviético desmoronasse, nomomento em que nos anos 80 ele perdecredibilidade, capacidade de intervir, aconjuntura política novamente se modifi-ca e chegamos ao momento atual, quepodemos chamar de recolonização, derecolonização coletiva, por assim dizer.

As políticas ditas de ajuste estrutural sãopolíticas de desmantelamento do que ha-via sido feito de positivo, apesar de todasas contradições já apontadas, pelos regi-mes nacionalistas-populistas. Essas polí-ticas restabelecem a dominação unilateraldas transnacionais do capital dominante edesmantelam os sistemas de educação, desaúde etc. � elementos fundamentais dodesenvolvimento social e econômico alongo prazo. O Banco Mundial é de uma

hipocrisia atroz em seu discurso sobre apobreza. Não se pode combater a pobre-za e simultaneamente desmantelar os sis-temas de educação e saúde nacionais.

As ideologias de libertação nacional naci-onalistas-populistas começaram a perdercredibilidade frente às classes populares,porque o regime não tinha mais nada paradar. Enquanto havia um crescimento ele-vado e as taxas de incremento na educa-ção eram muito altas, as classes da base dapirâmide social, os camponeses, pensa-vam ser a vida muito difícil para eles, masque seus filhos iriam ao colégio e seriammédicos, funcionários etc. Havia entãolegitimidade para esse tipo de poder. Eramgovernos não-democráticos, mas, excetono caso do desvio total como é o deMobutu e outros (que aliás eram os me-lhores amigos do Ocidente), não eramgovernos tirânicos. Eram não-democráti-cos, mas populistas em diferentes graus.Havia certa legitimidade, um projeto delegitimação nacional trans-étnico.

Quando esse tipo de desenvolvimentodesmorona-se, quando a ofensiva do ca-pital dominante fecha o cerco em tornodesses países, a classe dirigente perde sualegitimidade. O partido único e o discursosobre a nação, sobre a modernização,sobre a industrialização tornam-se cadavez mais... apenas discursos, e as classespopulares percebem isso. Por outro lado,fenômenos de corrupção, de clientelis-mo, em graus diferentes, tornam-se cadavez mais evidentes e ocupam o primeiroplano. Os regimes ditos liberais, que fo-ram objeto de elogios ilimitados por parte

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do Banco Mundial � os �milagres�, comose dizia � serão os que se desmoronarammais rapidamente, que não resistem aosprimeiros golpes, às primeiras dificulda-des. Vejam o que acontece no caso daCosta do Marfim, numa situação total-mente dramática. Assim, esse desmoro-namento causou a perda de legitimidadedessas ideologias.

A infelicidade histórica é que a esquerda,a esquerda comunista, que era a únicacoisa que existia nesses países além daideologia nacionalista-populista, apresen-tou diferentes graus de compreensão emsua análise crítica dessa situação. Não sepode dizer que nunca tenha havido críticaà política nacionalista-populista, mas emgeral a esquerda aderiu ao projeto exer-cendo uma crítica moderada enquantoesquerda partícipe do movimento de li-bertação nacional. É o caso do comunis-mo egípcio em relação ao nasserismo, docomunismo do Mali em relação a ModiboKeita, do comunismo em Moçambique,do comunismo em Angola, é o caso detodos. É claro que houve nuances, grausdiferentes, nem todos os indivíduos tive-ram as mesmas posições sobre os mes-mos problemas. Conseqüentemente, aesquerda, independentemente da derro-cada soviética, fez parte do processo de

desmoronamento da noção de legitimida-de das políticas públicas oriundas dashostes dos movimentos de libertação na-cional, perdendo sua legitimidade. E, comodiz o provérbio africano, �o peixe começaa apodrecer pela cabeça�.

Foi a própria classe dirigente que come-çou a apodrecer e que se segmentou,procurando reinstaurar uma legitimidadeprópria, jogando com as cartas que podiajogar, isto é, a religião, no sentido tradici-onal do termo, a etnicidade ou as duas. Oaniquilamento da sociedade veio de cima.Não é um fenômeno exclusivo da África.Acredito que o que está acontecendo naIugoslávia é da mesma natureza, assimcomo o que ocorre na ex-União Soviéticaou na Rússia. Ou seja, as classes dirigentesque perderam sua legitimidade tentamreconstruí-la sobre outras bases, basesdemagógicas. Eles utilizam algo que jáexiste, como a etnicidade ou a religião,mas que não era um fato primordial, umfato que determinasse posições ou atitu-des fundamentais e as relações entre ascomunidades.

Ao mesmo tempo, é ai que entra em jogoa estratégia imperialista da �democracia�,ou seja, diz-se que o que faliu foi o partidoúnico e que basta ter um pluralismo departidos e eleições para que o problema seresolva, sob a condição de que ao mesmotempo se aceite o mercado e com isso oajuste estrutural, a inserção na lógica domercado etc. Então, de um lado, está asubmissão ao mercado e, do outro, comocompensação, a adoção de um mínimo dedemocracia que se limita praticamente ao

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pluralismo de partidos e de um mínimo derespeito, de aceitação da pluralidade polí-tica e de expressão.

Essa é a crise atual do Continente. Essadegradação se manifesta numa estagna-ção e mesmo num recuo econômico nosúltimos dez, quinze anos. Quanto maissomos vulneráveis, fracos, mais despreza-dos somos. O preço relativo que se pagapela crise é pesado, e mesmo se ele não évolumoso na escala capitalista mundial, émuito pesado para o povo que o sofre.Temos então uma estagnação relativa,uma retroação, um desmantelamento ace-lerado do sistema educacional, sanitário,estrutural etc. O funcionamento dessa�democracia� teve insucessos contínuos,expondo uma vulnerabilidade, uma fragi-lidade visível nesses primeiros passos emdireção a uma democracia pequeno-bur-guesa. Nos casos mais dramáticos, che-gou-se à dissolução de toda a sociedade �Somália, Libéria, Serra Leoa � e a ameaçaexiste em outros países. Em outros, aetnicidade manipulada pelas classes diri-gentes locais e pelos imperialismos pas-sou a ocupar o primeiro plano político. Éo caso de muitas ex-colônias inglesas, é ocaso talvez do Congo, é o caso extremo deRuanda. Em outros países, ainda, princi-palmente nos países muçulmanos, houveo islamismo político � político e não fun-damentalista, porque é um islamismo quenão tem nada a ver com a teologia dalibertação, é uma instrumentalização po-lítica reacionária da religião que ocupa oprimeiro plano. É o caso dos países árabese do norte da Nigéria atualmente, poden-do se tornar o caso do Senegal. Essas são,

digamos assim, os efeitos negativos, asrespostas negativas ao desafio: é essa sub-missão ao mercado, acompanhada de ilu-sões fundadas seja na religião, seja naetnicidade.

Mas há também elementos positivos. Omaior foi o fim do a p a r t h e i d, fato quemuitas vezes é apresentado como sendo aevolução natural do capitalismo, já que ocapitalismo seria por natureza democráti-co e anti-racista, neste caso a África do Sulsendo então uma exceção à lógica profun-da do capitalismo. A tendência naturalencaminhava então, em direção à demo-cracia. Em minha opinião, esse é umraciocínio que nada tem a ver com ocapitalismo histórico real. Outras explica-ções, a essa um pouco relacionadas, di-zem que foi a conjuntura internacionalque mudou: os Estados Unidos e a Euro-pa sustentaram o regime do apartheid con-tra a União Soviética, presente principal-mente em Angola, no Zimbábue, masquando esse perigo desapareceu, elesabandonaram os regimes do apartheid. Esseé um indício, a meu ver, totalmente falso.O a p a r t h e i d foi derrotado pela luta dopovo africano durante quarenta anos. Essaluta foi principalmente da classe operária,através dos sindicatos e do Partido Co-munista. O desenvolvimento de uma classeoperária ativa, com uma organização tal-vez um pouco tradicional, mas eficaz,corroeu progressivamente a margem derentabilidade desse capitalismo. Foi umaespécie de greve permanente, de sabota-gem permanente, que gerou primeiro aredução e depois o desmoronamento dosfluxos de investimentos capitalistas na

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África do Sul, finalmente provocando avirada a partir de 1990.

Há muitas respostas. A história não acabanunca. Vemos, por exemplo, a ditaduramilitar no Mali de Moussa Traoré, que foiapoiada pelo Ocidente e principalmentepela França. Ela não caiu sem mais nemmenos, não caiu porque estava na modaser democrático. Caiu porque houve mi-lhares de pessoas no Mali que lutaram nasruas, que foram mortas, que participaramde manifestações cotidianas durante nomínimo dois anos, até o momento em queo regime desmoronou. Houve a experiên-cia de Sankara, com uma tentativa desegunda edição do populismo, mas comum caráter claramente mais democrático,principalmente no que concernia à auto-nomia das classes populares. Houve tam-bém esse tipo de resposta.

Há algumas semanas, vimos as eleiçõesno Senegal, que colocaram no poder umgoverno dito socialista, ainda que nãotenha muito a ver com o socialismo, ape-sar de descender da socialdemocracia,numa coalizão das mais curiosas, reunin-do liberais de direita com a extrema es-querda, composta pelas três correntes docomunismo histórico � soviético, chinêsmaoísta, e trotskista. Eles ganharam as

eleições que os ocidentais, principalmen-te os norte-americanos, não teriam aceitohá alguns anos, mas que foram impostaspor dois ou três anos de luta. Mesmo se oresultado venha a ser duvidoso e signifi-car uma contradição grave no futuro, sãocoisas que acontecem. Esse é rapidamen-te o quadro que vejo.

Há o renascimento de uma consciênciapan-africana e pan-árabe na África, masainda vaga, insuficiente para se tornar osubstrato de uma estratégia como forçapolítica, renascimento que continua sen-do muito nacional, muito local. Depois daSegunda Guerra Mundial houve uma fren-te asiática de sustentação das lutas delibertação nacional, incluindo a ação di-plomática e militar. Houve a conjunturade convergência das lutas contra os siste-mas coloniais. Hoje há esse renascimento.Como prova, há o exemplo de pequenascoisas, que ainda não são fatos importan-tes, mas que importantes bem poderiamrapidamente se tornar. Assim, em abrilhouve uma reunião de cúpula euro-africa-na no Cairo, entre a União Européia e aOrganização da Unidade Africana - OUA.Pessoalmente, não tenho respeito por ne-nhum dos governos atuais da OUA. Comexceção do meu respeito pela África doSul, zero pelo o resto. Neste encontro, ospaíses europeus propuseram um progra-ma que esvaziava a reunião de qualquerconteúdo � falavam sobre a corrupçãoetc. Os africanos propuseram um progra-ma centrado em como relançar a questãodo desenvolvimento econômico, discu-tindo, entre outros temas, a questão dadívida. Todos se mostraram acordes em

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Isabelle e Samir Amin

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torno de algumas questões comuns comopolítica geral em relação à segurança. Masa posição africana foi intransigente emrelação a dois pontos: o primeiro era aquestão da dívida. Os europeus disseramque não podiam discutir a dívida ali por-que a dívida implicava outros parceiros,isto é, os Estados Unidos, evidentemente.E os africanos tiveram a coragem de dizeraos europeus: �Senhores, vocês são hipó-critas�. O termo �hipócrita� foi utilizado.Os países da União Européia dispõem noFundo Monetário e no Banco Mundial deum poder de voto igual ou até superior aodos Estados Unidos. Então, por que elesnão o utilizam? Por que se apoiam nosEstados Unidos? E se negam a discutir nasua ausência? Os europeus estavam es-pantados e não tiveram resposta.

O segundo ponto dizia respeito ao fato deque a segurança na África depende exclu-sivamente das Nações Unidas e da OUA.Isso se tornou totalmente contraditórioem relação ao texto que os europeus assi-naram depois da guerra do Kosovo no dia28 de abril de 1999, na reunião da OTAN,que estende a responsabilidade da OTANàs regiões vizinhas da Europa, isto é, àÁfrica e à Ásia. Como se vê, há algunssinais da possibilidade de emergência deum renascimento, de uma reconstruçãoda frente do Sul. Há sinais também naÁsia, relacionados com a crise do Sudoes-te asiático. Com isso, termino, meu muitoobrigado...

Theotônio dos Santos - O agradecimen-to é nosso, da direção do Cebela, daredação de Comunicação&política, enfim,

do público brasileiro e latino-americanoque terão acesso a essa aula através denossa revista. O público irá entender quenessa mesa-redonda, dado o fluxo da ex-posição e interesse em ouvir por parte doscomponentes da mesa, não couberam asinterrupções. Nesse sentido, agora a pala-vra está franqueada aos que desejaremfazer perguntas.

Ailton Benedito de Sousa - ProfessorSamir, há uma questão que jamais ficouclara para o público brasileiro, sobre aqual talvez o senhor possa fornecer algunselementos. Refiro-me ao acordo entreNelson Mandela, o Congresso NacionalAfricano e as lideranças racistas � o gran-de acordo por trás da criação da África doSul, com essa configuração atual: algumascidades, como a Cidade do Cabo, concen-trando uma grande população branca; ointerior, com certas áreas impenetráveis,concentrações negras em outras. Aqui,nós trabalhamos com o conceito de Esta-do patrimonial, que ilustra essa interação,a interação entre um centro e uma perife-ria em torno de demandas da modernida-de, esquema que justificaria que as eliteslancem mão ou se apropriem do patrimô-nio nacional, postergando a criação danação, país do futuro... No caso da Áfricado Sul, como fica esse Estado patrimoni-al? Gostaria de saber se o senhor tem algoa dizer também sobre a Aids na África.

Samir Amin - A questão da África do Sulé uma questão de primeira importância.Enquanto africano, não posso ter senãorespeito pelas três forças principais daÁfrica do Sul, isto é, a força sindical, o

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Congresso Nacional Africano, o PartidoComunista, além da figura de Mandela.No entanto, a história não terminou. Foium capítulo da história que terminou. Oque foi ganho em 1990 não foi poucacoisa, foi o fim do a p a r t h e i d, o fim doracismo oficial e o princípio político deum ser humano ter uma voz. Mas isso foiacompanhado do compromisso entre oPartido Comunista da África do Sul e oCNA, que se reuniram para redigir a novaConstituição da África do Sul. Eles acei-taram um compromisso, e acho que esta-vam certos em fazer isso, que consistiaem manter os princípios fundamentaisdo capitalismo, isto é, o respeito à propri-edade privada. A propriedade privada naÁfrica do Sul quer dizer que os brancospossuem todas as terras de melhor quali-dade; as indústrias são propriedade dastransnacionais, pois há muito pouco ca-pital privado local. Isso quer dizer que opovo sul-africano tem ainda pela frentecinqüenta anos de luta para corrigir essesdesequilíbrios criados pela história colo-nial e pelo aparthe id. É uma luta que aindanão terminou. Muitos estados ocidentais,as potências ocidentais, seus porta-vozes,e um grande número de políticos sul-africanos gostariam de interromper a his-tória neste capítulo. Pensam que agora

tudo está mais ou menos bem, já que oprincípio da democracia e o mercadoforam adotados e deram por si sós resul-tados relativamente positivos. Mas háuma rachadura que está se desenhandono seio das forças que foram as forças delibertação nacional, no seio da força sin-dical, do CNA, de outras organizaçõespopulares, que já existem em grande quan-tidade, no seio do próprio Partido Comu-nista. Entre eles, estão os que aceitam, emgraus diferentes, a idéia de que por umlongo momento ainda se deve funcionarsobre as bases de uma democracia bur-guesa, aceitando a integração no sistemacapitalista mundial como ele é, grosso modo:a estrutura da distribuição da proprieda-de tal como ela existe agora, favorecendoas multinacionais e a minoria branca noque concerne às terras agrícolas. Na mi-nha opinião, isso não vai durar muito e asbatalhas que vão se desenvolver nos pró-ximos anos e que já estão se desenvolven-do dirão respeito a isso. Os camaradassul-africanos foram extremamente cora-josos na luta e hábeis na negociação,hábeis no reconhecimento do que repre-sentava um grande perigo no momentoda discussão sobre a Constituição doEstado. Havia uma tendência de criar umestado federal, admitindo amplos pode-res para os estados e praticamente sobreuma base racial, com uma forte minoriabranca, por um lado, e o aniquilamentodos estados negros, por outro, em funçãojustamente das ditas etnias. Tiveram alia-dos africanos � os zulus especialmente.Finalmente, o acordo que foi feito naConstituição e que mostra a habilidade

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dos negociadores do lado africano dastrês organizações: tem-se uma Constitui-ção pseudo-federal, mas centralizada, eli-minando a existência de Estados brancose a possibilidade de uma �Palestina�. Issonão quer dizer que a batalha tenha termi-nado. Há um excelente livro a esse respei-to, de autor sul-africano, que se chamaLimits to change, que foi publicado em1998, mas ainda não foi traduzido para ofrancês. Isso é o que tenho a dizer arespeito da África do Sul.

No que diz respeito à segunda questão,sobre a Aids, os estragos em algumasregiões da África, África Central e Orien-tal, principalmente onde houve movimen-tos militares desordenados e permanen-tes, em Uganda, Ruanda e Congo, chegamao nível da catástrofe, com uma amplitu-de gigantesca. Essa questão é certamentemuito importante, mas eu não conheçotodos os detalhes.

Antonio Carlos Peixoto - Há dois outrês pontos que eu gostaria que o senhoresclarecesse. Eu me pergunto se em al-guns casos, principalmente nos países is-lâmicos, a religião não pode se transfor-mar numa força de coesão nacional, mes-mo sendo reacionária, mesmo se é utiliza-da com propósitos reacionários, mas umaforça nacional capaz de impedir esse des-mantelamento de que o senhor falou,mesmo que não totalmente, mas ao me-nos num certo nível. Essa é a minhaprimeira pergunta.

A segunda pergunta é sobre um pontomuito preciso: o senhor considera que aforma �Estado� � �Estado� enquanto

autoridade política centralizada � mesmoem graus diferentes, se é implantada demaneira definitiva, ela pode subsistir aodesmantelamento das sociedades de queo senhor falou?

A terceira pergunta vai num sentido que étalvez um pouco mais histórico. O senhorusou o termo etnicidade e disse que setentou criar estados trans-étnicos, que háuma certa renovação dessa etnicidade. Otermo usado em geral pela imprensa doOcidente, principalmente a imprensa maisreacionária do Ocidente, é tribalização.Eu me pergunto se não dá no mesmo. Éclaro que há um preconceito, que há umlado totalmente negativo em falar de tri-bos. Mas, se usamos etnicidade em rela-ção à formação de uma estrutura socialcom mais coesão e tendo em vista aconstrução de um estado nacional, nãotem o mesmo efeito?

Samir Amin - Respondendo a primeira:nos países árabes � não nos países islâmi-cos em geral, pois há uma grande varieda-de, seria como falar sobre os cristãos emgeral �, o nacionalismo existente, o naci-onalismo local, principalmente nos paísesque já têm uma estrutura de estado hámuito sedimentada, como o Egito evi-dentemente, como o Marrocos, é o nacio-nalismo árabe, que não precisa do islamis-mo como cimento. Muito pelo contrário,não é porque haja minorias cristãs, porexemplo, como no caso do Egito, da Síriae do Líbano, que existem problemas.Observe-se que são minorias pouco signi-ficativas na escala árabe. O fato é que háuma ideologia reacionária manipulada, que

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apóia o mercado profundamente, enquan-to que o nacionalismo árabe, seja local oupan-árabe é, pelo contrário, crítico domercado, crítico do mercado mundializa-do, pois a história dos países árabes é ahistória das vítimas desse mercado mun-dializado. Assim, o nacionalismo árabe écrítico e sempre foi uma dimensão impor-tante da política nacional. O islamismo seapresenta, pelo contrário, como pró-mer-cado, sem fazer nenhuma crítica ao capi-talismo, ao mercado etc. Tudo isso estámuito bem.

No caso da África, eu seria também nega-tivo no que diz respeito ao islamismopolítico. Evidentemente, é preciso anali-sar caso a caso, o perigo das generaliza-ções abusivas é muito grande, e peçodesculpas de antemão. Tomarei um casopreciso, o da Etiópia. A estratégia dosEstados Unidos foi a de levá-la ao des-mantelamento a partir de uma questãoétnica ou pseudo-étnica, não somente secolocando tardiamente do lado de Men-gistu na guerra da Etiópia, mas tambémsustentando o movimento dos FPLT, debase maoísta � um pouco como o Sende-ro Luminoso no Peru �, que se tornouetnicista e aceitou a idéia de desmantelara Etiópia com base nas etnias. A CIAfabricou um mapa de quinze estados,usando o mapa de Mussolini, da gestão dofascismo italiano, com base nas etnias. A

Etiópia é um caso parecido com o daIugoslávia: se se faz um mapa étnico,metade da população vai ficar de fora,pois não há talvez um só bairro que sejahomogêneo etnicamente. É uma estraté-gia realmente criminosa. Por sorte, naEtiópia, apesar desse governo trazido nabagagem pelos norte-americanos, a rea-ção do povo foi de recusa à etnicidade, derecusa ao desmantelamento, e há umaforte retomada da afirmação pan-etíope.Esse é um exemplo. Nesse exemplo, aetnicidade é totalmente negativa. A mun-dialização cria sua própria sustentação nafragmentação máxima, nos discursos so-bre a etnicidade, sobre o comunitarismo,no desmantelamento. A etnicidade não éuma alternativa para a construção de Es-tados, não direi nacionais, pois não setrata de anular a etnicidade, de impedir aspessoas de falar suas línguas ou de seproclamarem como pertencendo a tal ouqual grupo cultural, político ou religioso,mas estados trans-étnicos pequenos e tam-bém grandes. Sou a favor dos grandesEstados. É preciso levar a cabo uma bata-lha ideológica sobre essa questão. Eviden-temente, isso coloca em questão as formasdo Estado e muitas formas culturais eideológicas que acompanharam a históriada concepção de Estado na África. Há nassociedades africanas forças que permitemconceber um Estado trans-étnico.

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