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Ciências Sociais Unisinos 50(3):184-193, setembro/dezembro 2014 © 2014 by Unisinos - doi: 10.4013/csu.2014.50.3.01 Cultura, mercado e desenvolvimento: a construção da agenda contemporânea para as políticas culturais Culture, market and development: The construction of the contemporary agenda for cultural policies 1 Universidade Federal de Alagoas. Av. Lourival Melo Mota, s/n, Tabuleiro dos Martins, 57072-900, Maceió, AL, Brasil. Elder P. Maia Alves 1 [email protected] Resumo O processo teórico e político de aproximação envolvendo as categorias de cultura e desenvolvimento engendrou as condições de possibilidade que permitiram a elaboração das políticas econômico-culturais. Tais políticas ocupam hoje o centro da agenda contem- porânea para as políticas culturais públicas. As ações e programas que mais mobilizam recursos discursivos e materiais são aquelas dirigidas à chamada economia criativa, cujo léxico conceitual e político se espraia e se consolida no âmbito das mais distintas orga- nizações. Para compreender a especificidade desse processo, é preciso explorar o terreno teórico, político e institucional no qual as categorias de cultura e desenvolvimento nutriam uma antinomia frontal, entre os anos de 1950 e 1980. Este trabalho busca objetivar as principais condições sociológicas responsáveis pela dissolução dessa tensão, cujos efeitos práticos têm permitido a operacionalização de determinadas políticas culturais, como, por exemplo, o financiamento da incubação de empresas culturais. Palavras-chave: cultura, desenvolvimento, economia criativa. Abstract The theoretical and political approach process involving the categories of culture and development engendered the conditions of possibility that enabled the development of economic and cultural policies. Such policies now occupy the center of the contemporary agenda for public cultural policies. The actions and programs that mobilize most discursive and material resources are directed to the so-called creative economy, whose concep- tual and political lexicon is spreading and consolidating in very diverse organizations. To understand the specificity of this process, it is necessary to explore the theoretical, political and institutional realm in which the categories of culture and development stood in sharp contrast between the years 1950 and 1980. This paper seeks to objectify the main sociological conditions responsible for the dissolution of that tension, whose practical effects have allowed the operation of certain cultural policies, such as financing the incubation cultural enterprises. Keywords: culture, development, creative economy.

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  • Cincias Sociais Unisinos50(3):184-193, setembro/dezembro 2014 2014 by Unisinos - doi: 10.4013/csu.2014.50.3.01

    Cultura, mercado e desenvolvimento: a construo da agenda contempornea para as polticas culturais

    Culture, market and development: The construction of the contemporary agenda for cultural policies

    1 Universidade Federal de Alagoas. Av. Lourival Melo Mota, s/n, Tabuleiro dos Martins, 57072-900, Macei, AL, Brasil.

    Elder P. Maia [email protected]

    Resumo

    O processo terico e poltico de aproximao envolvendo as categorias de cultura e desenvolvimento engendrou as condies de possibilidade que permitiram a elaborao das polticas econmico-culturais. Tais polticas ocupam hoje o centro da agenda contem-pornea para as polticas culturais pblicas. As aes e programas que mais mobilizam recursos discursivos e materiais so aquelas dirigidas chamada economia criativa, cujo lxico conceitual e poltico se espraia e se consolida no mbito das mais distintas orga-nizaes. Para compreender a especificidade desse processo, preciso explorar o terreno terico, poltico e institucional no qual as categorias de cultura e desenvolvimento nutriam uma antinomia frontal, entre os anos de 1950 e 1980. Este trabalho busca objetivar as principais condies sociolgicas responsveis pela dissoluo dessa tenso, cujos efeitos prticos tm permitido a operacionalizao de determinadas polticas culturais, como, por exemplo, o financiamento da incubao de empresas culturais.

    Palavras-chave: cultura, desenvolvimento, economia criativa.

    Abstract

    The theoretical and political approach process involving the categories of culture and development engendered the conditions of possibility that enabled the development of economic and cultural policies. Such policies now occupy the center of the contemporary agenda for public cultural policies. The actions and programs that mobilize most discursive and material resources are directed to the so-called creative economy, whose concep-tual and political lexicon is spreading and consolidating in very diverse organizations. To understand the specificity of this process, it is necessary to explore the theoretical, political and institutional realm in which the categories of culture and development stood in sharp contrast between the years 1950 and 1980. This paper seeks to objectify the main sociological conditions responsible for the dissolution of that tension, whose practical effects have allowed the operation of certain cultural policies, such as financing the incubation cultural enterprises.

    Keywords: culture, development, creative economy.

  • Cincias Sociais Unisinos, So Leopoldo, Vol. 50, N. 3, p. 184-193, set/dez 2014

    185Elder P. Maia Alves

    No Brasil, nos ltimos 12 anos, a grande maioria dos do-cumentos e propostas orientadas para a formulao das polticas culturais tem mobilizado a categoria de desenvolvimento. Esta, mediante o seu lxico conceitual tradicional, passou a figurar ao lado de categorias ticas, estticas e normativas mais recentes, como diversidade cultural, identidade cultural, direitos cultu-rais, empreendedorismo cultural, patrimnio imaterial, cidades criativas, economia criativa, etc. Devido consolidao e insti-tucionalizao das principais balizas poltico-institucionais que norteiam a elaborao e implementao das polticas culturais no pas (o Sistema Nacional de Cultura e o Plano Nacional de Cultura), as relaes entre cultura e desenvolvimento so trata-das quase como um dado atemporal, como dois polos comple-mentares, justapostos e remissivos. Ocorre, todavia, que entre os anos de 1950 e 1970 perodo de apogeu das teorias, propostas e aes desenvolvimentistas no Brasil e na Amrica Latina as relaes entre cultura e desenvolvimento eram marcadas por um antagonismo frontal. As elites tcnicas e intelectuais frente de instituies como a Comisso Econmica para a Amrica La-tina (CEPAL) e diversos rgos de coordenao econmica e de planejamento regional enxergavam na diversidade das crenas religiosas, costumes e tradies das populaes rurais e/ou se-miurbanas um severo obstculo para a consecuo dos padres de disciplina laboral exigidos pela industrializao, assim como a dificuldade de construo de racionalidades empresariais mais amplas, responsveis pela oferta de determinados servios e a estruturao da ordem social competitiva (Fernandes, 2000).

    Segundo essa visada, os padres culturais eram trata-dos como atavismos arraigados, reminiscncias coloniais e pa-roquiais que comprometiam a efetivao de padres e hbitos urbano-industriais, condio imprescindvel para o desenvolvi-mento. No decurso dos anos 90 e, sobretudo, a partir da dcada passada, essa objeo foi sendo diluda. Ao contrrio de com-prometer o desenvolvimento, a singularidade e a diversidade das tradies e o seu repertrio expressivo (rituais, tcnicas alimen-tares, celebraes, festas, artefatos artesanais, etc.) passaram a ser tratados como substrato e um dos principais caminhos para o desenvolvimento. Trata-se de uma mudana substancial. Essa inflexo s foi possvel porque as categorias de cultural e de-senvolvimento experimentaram, nas ltimas duas dcadas, uma grande dilatao terica e conceitual, cuja reelaborao permi-tiu a formulao e implementao de novas polticas culturais. Esse trabalho tem como objeto precisamente as condies socio-lgicas que permitiram e, simultaneamente, pressionaram para que ocorresse uma dilatao terico-conceitual das categorias de cultura e desenvolvimento. Desvelar essas condies de possi-bilidade permite desnudar tambm a emergncia e operacionali-zao de polticas muito recentes. Por exemplo, as polticas para a chamada economia criativa correspondem ao grande catalisa-dor desse processo contemporneo de aproximao (quase fu-so) das categorias de cultura e desenvolvimento. Os programas e aes que objetivam fomentar o empreendedorismo criativo, os empreendimentos culturais e a incubao de empresas de cul-tura s podem ser compreendidos e explicados luz do recente

    processo de aproximao dos polos semnticos e discursivos en-volvendo os conceitos de cultura e desenvolvimento.

    Na ltima dcada, o Brasil tem experimentado uma ex-panso geral dos seus mercados de cultura. Essa expanso s foi possvel porque os gastos culturais das famlias brasileiras logra-ram um expressivo aumento nesse perodo. Em 2003, o gasto total das famlias brasileiras com o consumo de bens culturais representava 3,5% do oramento familiar; em 2010 esse mesmo gasto alcanou o percentual de 5%. Em 2012, esse percentual de gastos com bens, servios e atividades culturais correspon-deu ao montante de R$ 65 bilhes, aproximadamente 60% do PIB (Produto Interno Bruto) da cultura. Para essa expanso geral contribuiu tambm a atuao direta das organizaes estatais, que, por meio de polticas econmico-culturais, sedimentaram e potencializaram alguns mercados culturais antes claudicantes, como o mercado de filmes nacionais (fortalecido por meios dos editais do Fundo Setorial do Audiovisual FSA); o mercado de contedos audiovisuais para a televiso por assinatura (robus-tecido pela aprovao e o consequente impacto da nova Lei da TV por Assinatura, Lei 12. 485); o mercado editorial (catapultado pelo aumento das compras governamentais e os impactos ini-ciais do Programa Vale Cultura). Esses so apenas os mercados que experimentaram um crescimento mais contundente, mas h outros, cujo crescimento tem sido mais regular e equilibrado, como, por exemplo, o de artesanato, de design, de espetculos teatrais, de festas e shows populares e de msica fruda me-diante os suportes digitais. Participaram e participam da co-ordenao e/ou financiamento dessas aes estatais agentes poltico-institucionais antes distantes do cadinho da produo e do financiamento cultural, como o Banco Nacional de Desen-volvimento Econmico e Social (BNDES), a Empresa Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP/MCTI) e o Servio de Apoio s Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE). Neste caso, assim como para a existncia e expanso dos demais mercados (imobilirio, indus-trial, educacional, tecnolgico, financeiro, entre outros), o Esta-do desempenha um papel decisivo. A atuao estatal no mbito da produo e do financiamento cultural secunda a assertiva cunhada por Bourdieu por ocasio das suas reflexes e pesquisas sobre o Estado: uma das funes do Estado construir merca-dos (Bourdieu, 2014, p. 52).

    Essas duas dimenses combinadas elevao regular dos gastos familiares com bens servios culturais e a efetivao de aes, financiamentos e polticas estatais explicam, em parte, a expanso e diferenciao dos mercados culturais. A ao estatal passou a ocorrer de forma mais direta no domnio do financia-mento e da produo cultural, induzindo criao de empresas, novos modelos de negcios e diversas racionalidades empresa-riais. Com efeito, a compreenso do processo de expanso dos mercados culturais no Brasil sugere a adoo de um recurso me-todolgico imprescindvel, qual seja: objetivar o principal eixo semntico-discursivo responsvel pela justificao das polticas econmico-culturais as novas relaes conceituais e polticas entre as categorias de cultura e desenvolvimento. Dito de outra forma: s possvel compreender, de fato, a ao estatal orien-

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    Cultura, mercado e desenvolvimento: a construo da agenda contempornea para as polticas culturais

    tada para a criao e expanso dos mercados culturais se forem investigadas as novas relaes ticas, estticas, polticas entre as categorias de cultura e desenvolvimento. Portanto, mediante essa chave histrico-relacional que se compreende, por exem-plo, o advento das aes e polticas orientadas pelo conceito e o tema da economia criativa coordenadas pela Secretaria da Economia Criativa do Ministrio da Cultura (SEC/MINC).

    O tema/conceito de economia criativa passou a figurar como uma das principais justificativas conceituais utilizadas para a elaborao e execuo das polticas culturais contempo-rneas. O termo abriga um novo lxico conceitual (cidades cria-tivas, classes criativas, capital criativo, etc.) que orienta as aes de governos, empresas, corporaes, fundaes de pesquisa, es-colas de negcios, coletivos de artistas, grupos culturais, bancos pblicos e privados, entre outros, que, de acordo com os seus ob-jetivos e atuao institucional, usam e manejam o conceito para justificar aes, projetos, abertura de crdito, financiamento de pesquisa e cursos acadmicos. Ao faz-lo, mais do que refletir e analisar sobre o teor do conceito, esses agentes instauram e difundem um tema (economia criativa) na agenda nacional do desenvolvimento urbano e sustentvel. Logo, ao difundir e pro-mover aes inspiradas no tema/conceito de economia criativa, esses agentes poltico-econmicos esto, direta e indiretamente, contribuindo para a expanso dos novos negcios culturais e dos mercados culturais, lanando mo de novos recursos simblicos e tericos que passam a justificar e/ou pacificar as relaes entre arte e negcio, entretenimento e cultura, diversidade e homo-geneizao e/ou cultura e desenvolvimento. De outro lado, esse mesmo tema/conceito utilizado por pesquisadores das cincias humanas e sociais como um recurso analtico para compreender e explicar as novas relaes entre cultura e mercado e a prpria expanso, complexificao e diferenciao dos mercados cultu-rais globais. Ora, fica patente que h, aqui, duas formas de uso do conceito de economia criativa bastante distintas, cuja indis-tino metodolgica compromete e inviabiliza a consecuo de uma agenda de pesquisa mais consistente, que gravita em torno da realizao de uma sociologia dos mercados culturais contem-porneos.

    O primeiro uso de ordem prtica; j o segundo, de or-dem analtica. Um e outro so utilizados e manejados indistin-tamente, tanto pelos agentes que constroem o real e as suas novas estruturas de poder (neste caso, as polticas culturais e a sua nova agenda), quanto pelos agentes que tm se comprome-tido em compreender e explicar essa nova dinmica emprica e a sua correspondente agenda poltico-discursiva. Em uma pa-lavra: para compreender e explicar o fenmeno, os sujeitos da objetividade (pesquisadores e autores das cincias sociais e hu-manas) esto lanando mo dos mesmos recursos e expedientes adotados por aqueles que constroem o fenmeno: naturalizao do conceito; positivao esttica do conceito; suavizao das tenses que o conceito encerra; esvaziamento explicativo do conceito; entre outros. Para evitar tais armadilhas, imperioso localizar a gnese histrico-institucional do conceito e as suas tramas de interesse.

    Diferentemente dos conceitos e categorias de anlise ur-didas pela sociologia para compreender as relaes entre produ-o cultural e mercado como indstria cultural e materialis-mo cultural , o conceito de economia criativa e/ou indstrias criativas no foi forjado no interior do artesanato intelectual das cincias sociais. Urdida a partir dos trnsitos relacionais entre as escolas de negcios (notadamente europeias), os go-vernos nacionais (principalmente o governo do Reino Unido e o governo australiano) e as agncias transnacionais (como a UNESCO e a UNCTAD), a categoria de economia criativa uma sntese terica nativa, utilizada por uma mirade de novos agen-tes econmico-culturais para justificar e implementar polticas econmico-culturais e, por conseguinte, a criao de novos ne-gcios culturais. Importa tomar o conceito no como uma cate-goria analtica (forjada pelo artesanato intelectual das cincias sociais), mas como um conceito (um metadiscurso) mobilizado por diversos agentes econmico-culturais para justificar aes e legitimar novas visadas.

    Nesse sentido, imperioso tratar o tema/categoria de economia criativa como uma formulao nativa, cunhada, apli-cada e legitimada por determinados agentes poltico-institucio-nais. Essa visada metodolgica permite enxergar com clareza os usos terico-prticos do conceito/tema de economia criativa, assim como os distintos interesses poltico-institucionais que se acomodam e se formam em torno do tema/conceito. Impor-tam muito mais os usos prticos do conceito e as suas implica-es poltico-econmicas e muito menos o eventual potencial explicativo e interpretativo do mesmo. A prpria existncia do conceito/tema j sugere uma alterao profunda no mbito da relao entre cultura e desenvolvimento. Por isso, torna-se im-perioso indagar: que condies sociolgicas permitiram o ad-vento, a profuso e a operacionalizao do conceito/tema de economia criativa? Diante de tais aspectos e indagaes, este trabalho pretende rastrear e capturar as mudanas pelas quais passaram os conceitos de cultura e desenvolvimento. Para tanto, aproxima a sua lupa de dois momentos: (i) as trs dcadas ime-diatamente aps a II Guerra Mundial e (ii) os ltimos 20 anos.

    Cultura e desenvolvimento: uma antinomia inconcilivel entre os anos 50 e 80 do sculo XX

    O conceito de desenvolvimento povoou o pensamento das geraes de intelectuais e pesquisadores latino-americanos, a intelligentsia nativa (Mannheim, 2001), que estiveram, duran-te o intervalo dos anos 1950 aos anos 1970, frente dos princi-pais rgos estatais de planejamento econmico. At a dcada de 1930 era comum a utilizao do termo progresso para se re-ferir instaurao de processos de modernizao, concentrados na incorporao de novas energias e na adoo de reformas das infraestruturas urbanas em diversas partes do mundo. O termo era um legado conceitual e valorativo do processo de industria-

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    lizao europeu, desencadeado no fim do sculo XVIII e intensi-ficado durante o sculo XIX, assim como um lema tributrio dos ideais positivistas daquele sculo. A partir das primeiras dcadas do sculo XX, o conjunto de preceitos inscritos no conceito de progresso foi deslocado e substitudo pela categoria moderniza-o. Nas repblicas latino-americanas que assistiram ao primeiro grande conflito mundial (1914-1918), os ideais de modernizao e desenvolvimento surgiram como uma fora capaz de superar o atraso dos longos sculos de colonizao. O nico meio de superar tal atraso seria concentrar as energias em torno de uma organizao poltico-jurdica slida que plasmasse uma unidade suficientemente centralizada, capaz de materializar o processo de industrializao, considerado o demiurgo do projeto de mo-dernizao e desenvolvimento ocidental. A noo de desenvol-vimento passa, nesse perodo, a comparecer como um axioma geral, sntese das ideias de transformao das infraestruturas habitacionais, urbanas e materiais de um modo geral. Tornou-se um grande pleonasmo se falar de desenvolvimento econmico, j que a noo de desenvolvimento, construda e implementada no perodo, enfatizava diretamente noes como crescimento econmico, elevao dos nveis de renda, aumento do nvel da taxa de emprego, proteo do mercado nacional, crescimento da renda per capita, substituio de importao e industrializao (Hermet, 2002).

    Na Amrica Latina, o agente que passou a coordenar e executar o processo de desenvolvimento no foi outro seno o Estado, dirigido por elites polticas modernizadoras e autorit-rias. O rpido e intenso processo de urbanizao e industriali-zao verificado no Brasil, durante os anos 1940, 1950 e 1960, expressa bem a fora do imperativo do desenvolvimento latino--americano. Segundo Guy Hermet, a noo de desenvolvimento latino-americano do perodo tambm incorporava um preceito imprescindvel: a excluso ou, no mnimo, a reduo da partici-pao poltica de segmentos importantes daquelas sociedades em profunda transformao. O autor destaca uma frase de Mar-celo Cavarozzi que sintetiza bem esse aspecto do desenvolvi-mento latino-americano: o crescimento, agora; a participao, depois. A noo de desenvolvimento lastrada em uma dimenso tcnico-industrial ganhou mais flego na Amrica Latina aps a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando o modelo de uma industrializao acelerada coordenada pelo Estado nacional as-sumiu o status de mtodo consensual absoluto. Hermet sustenta que esse consenso vigorou entre 1945 e 1975, adicionando-se a excluso poltico-popular a esse receiturio.

    A racionalidade tcnico-cientfica implementada pelo Estado desenvolvimentista latino-americano pode ser percebida atravs da importncia assumida por determinadas instituies de pesquisa e planejamento econmico, como, por exemplo, a CEPAL (Comisso Econmica para a Amrica Latina), e, por conseguinte, por determinados tcnicos e economistas latino--americanos, como Ral Prebisch e Celso Furtado. Criada por iniciativa da Organizao das Naes Unidas (ONU), a CEPAL incumbiu-se de realizar um conjunto de pesquisas e traar me-tas de planejamento econmico que permitissem aos governos

    latino-americanos se inserir no mundo das naes industrial-mente avanadas. Durante os anos 1950 e 1960, a CEPAL foi o centro das principais reflexes e teses sobre a economia latino--americana, abrigando duas matrizes de economistas que se di-vidiam e rivalizavam quanto ao mtodo mais apropriado para o desenvolvimento latino-americano. Os brasileiros Roberto Campos e Roberto Simonsen foram os principais artfices dessa contenda. De um lado embora mais tarde tenha mudado in-teiramente de posio estava Campos, sustentando a posio majoritria dentro da CEPAL, qual seja, a favor de uma indus-trializao autctone e de um desenvolvimento dirigido pelo Estado; de outro lado, sustentando uma posio minoritria, estava Simonsen, para quem o desenvolvimento deveria partir da iniciativa de grupos empresariais e corporaes privadas. A primeira posio gozou de maior prestgio e no teve maiores dificuldades de programar e implementar certas ideias gestadas pela CEPAL. Escrevendo sobre o perodo em que esteve na CEPAL, Celso Furtado ressalta:

    Aos 28 anos, quando fui CEPAL, encontrei um grupo de jo-vens de toda a Amrica Latina. Desse grupo, os que tinham uma experincia mais rica e uma viso mais ntida dos pro-blemas eram os provenientes da Argentina. Ral Prebisch, que era o lder do grupo, comeou a estabelecer hipteses novas e criou a tese do centro-periferia. De acordo com essa teoria, o capitalismo no homogneo, no obedece a uma lgica line-ar. Ele apresenta, em lugar disso, rupturas, descontinuidades importantes. Tambm a teoria que distingue modernizao e desenvolvimento nasceu das experincias e intercmbios den-tro da CEPAL. Tudo isso fruto do debate que iniciamos l, naquela poca, sobre o desenvolvimento atpico, ou especfico, da Amrica Latina. Essa a gnese da escola estrutural latino--americana [...] Foi no Brasil, no entanto, que se realizou o pri-meiro grande debate moderno sobre desenvolvimento, suscita-do pelas reflexes da CEPAL. As teses nasceram em Santiago do Chile, mas proliferaram aqui. E elas so importantes, tanto que durante um quarto de sculo dominaram o pensamento latino-americano. E vou mais longe: em todo o mundo o pro-blema do desenvolvimento discutido a partir das ideias sur-gidas aqui na Amrica Latina (Furtado, 2008, p. 129).

    As palavras de Furtado no deixam dvidas quanto im-portncia do tema do desenvolvimento e o papel de incubadora intelectual desempenhado pela CEPAL. A trajetria de Furtado emblemtica para se compreender o desenho geral da relao entre cultura e desenvolvimento. Inscrito em um movimento poltico-administrativo responsvel por elevar o planejamento econmico ao status de guia de uma racionalidade que desa-guou na criao de rgos e instituies de planejamento, como a Superintendncia de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), Furtado coordenou diversos grupos de trabalho e comisses em torno da chamada questo Nordeste. As comisses e grupos de trabalho eram compostos por tcnicos e economistas perten-centes CEPAL e ao BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico), rgos nos quais Furtado plasmou suas principais teses acerca da economia brasileira.

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    Cultura, mercado e desenvolvimento: a construo da agenda contempornea para as polticas culturais

    Furtado sustentava que o desenvolvimento da economia brasileira deveria respeitar as especificidades e caractersticas scio-histricas do processo de integrao das regies e dos mercados nacionais. Cnscio das peculiaridades e potenciali-dades do processo de industrializao, realizado desde os anos 1930 de acordo com o modelo de substituio de importaes, Furtado acreditava que, nos anos 1950, a economia brasileira passava por uma nova fase. A conjuntura internacional favo-receu a intensificao do processo de substituio de importa-es durante os anos 1930 e 1940, e, a partir dos anos 1950, as condies para uma industrializao autctone estavam pos-tas. Entre 1945 e 1952, a fabricao de equipamentos indus-triais cresceu 290%, enquanto o total das importaes cresceu apenas 15%. No final dos anos 1950, o principal obstculo, se-gundo Furtado, para o desenvolvimento da economia brasileira no era o atraso no processo de industrializao, mas sim sua concentrao e assimetrias regionais. A rpida industrializao e a grande diferenciao produtiva assumida pela economia brasileira s poderiam dar os saltos esperados se esse processo fosse estendido s demais regies nacionais, sobretudo regio Nordeste (Furtado, 2008).

    Para Furtado, era preciso fomentar um processo coorde-nado de integrao do Nordeste com o Sul e Sudeste do pas, no como uma mera articulao, tal como ocorria no sculo XIX, explorando as potencialidades regionais. O vasto e populoso Nordeste rural era o principal obstculo para o desenvolvimento brasileiro na metade do sculo. Esse diagnstico foi imediata-mente sucedido por um prognstico: integrar a regio locomo-tiva do desenvolvimento nacional sob a gide de uma instituio estatal de planejamento econmico, cujo objetivo central seria coordenar o processo de industrializao da regio: a SUDENE. Essa instituio fomentou a necessidade do planejamento re-gional e da economia regional, desencadeados anos antes nas reflexes da CEPAL.

    No momento de criao da SUDENE, o Nordeste era visto pelas agncias de planejamento segundo um duplo re-gistro: o do arcasmo e da tenso social. Ambos concorriam para conformar um antagonismo em torno da relao entre a cultura sertanejo-nordestina e o desenvolvimento econmi-co. O primeiro registro, tributrio de reflexes desenvolvidas pela ONU no ps-guerra, era informado por um conceito de cultura que pensava o processo cultural como uma totalidade vivida, isto , como um conjunto de prticas, crenas, valores, costumes e formas de reconhecimento, portanto, uma noo bastante diferente daquela relacionada ao cultivo da fruio artstica e bem prxima da noo antropolgica de cultura. Esse registro percebia o Nordeste, sobretudo a sua regio se-mirida, como o ncleo das reminiscncias coloniais, como a presena viva de todos os arcasmos medievais trazidos pela colonizao portuguesa (Oliveira). O segundo registro percebia a regio como ncleo de representao das tenses polticas e injustias sociais no mundo subdesenvolvido. Carlos Mallor-quin, um dos maiores pesquisadores do pensamento de Celso Furtado, ressalta:

    bvia a fora do desenvolvimentismo no Furtado de 1962, sobre a possibilidade e capacidade de novos centros de deciso para dirigir o pas at sua plena autonomia. E isso apesar de o Nordeste representar o ltimo reduto e manifestao espeta-cular de desigualdades econmicas e sociais, a ponto de se di-zer que, no Brasil, podia-se passar em questo de quilmetros da fase pr-histrica da civilizao moderna (Mallorquin, 2005, p. 123).

    Diante do imperativo da industrializao coordenada e dirigida pelo Estado, durante as dcadas de 50 e 60, a relao entre cultura e desenvolvimento no Brasil foi pautada por uma tenso frontal. O acervo discursivo criado para justificar o tema do desenvolvimento julgava que a totalidade dos hbitos e cos-tumes das sociedades latino-americanas, arraigados durantes sculos de colonizao, era inteiramente incompatvel com a disciplina do empreendedorismo, do rigor do trabalho cotidiano e o senso de previso e planejamento reclamados pelo desen-volvimento material. Quando da implementao das polticas econmicas, a totalidade das experincias culturais deveria ser amoldada ao imperativo de uma razo de Estado, secundada por um projeto civilizador mais amplo e contundente, que consistia em reformar o conjunto das condutas cotidianas e as represen-taes sociais. Tem-se ento um quadro em que o Nordeste apa-rece como o ncleo irreconcilivel do antagonismo envolvendo cultura e desenvolvimento. Por um lado, era a regio Nordeste que comprometia, em certa medida, o desenvolvimento da eco-nomia nacional, pois estava, em decorrncia dos desequilbrios e disparidades engendrados durante a segunda metade do sculo XIX e incio do sculo XX, muito atrs no processo de industriali-zao. Por outro lado, qualquer empreendimento mais vigoroso de industrializao, planificao e modernizao teria que lidar com um complexo sociocultural que ia desde o latifndio mo-nocultor semiescravista, predador e estagnado, localizado nas bordas do vasto litoral, at a pequena agricultura familiar de subsistncia, praticada nos rinces mais ridos da regio, que abrigava uma imensa populao de famintos, alm de uma es-trutura poltica dominada pelo assistencialismo e pelo monop-lio da violncia exercidos pelos coronis.

    Esse confronto manifesto entre cultura e desenvolvimen-to, notadamente entre o desenvolvimento de uma regio espec-fica e seu complexo de prticas, smbolos e crenas, perdurou at meados dos anos 80. A partir de ento, essa incongruncia passa a ser aplacada, tornando-se objeto de novas investidas discursi-vas que visavam a acomodar os termos e suas respectivas cargas ticas, morais e valorativas. O mesmo Furtado desenvolvimen-tista de 1962, apresentado por Mallorquin, revelou, em 1982, uma compreenso de desenvolvimento bem mais dilatada. Em seus dois principais trabalhos acerca da relao entre cultura e desenvolvimento (Criatividade e dependncia e Cultura e desenvolvimento em poca de crise), ambos tributrios de suas teses sobre desenvolvimento endgeno publicadas nos anos 80, Furtado considera a relao em novos termos, ora apresentando a cultura (no sentido de um conjunto de crenas, hbitos e sa-beres) como uma dimenso imprescindvel, que deveria ser res-

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    peitada na dialtica complexa entre cultura e desenvolvimento, ora como uma dimenso que faz parte do prprio crescimento econmico, pois os bens e servios culturais so decisivos para a dinmica de produo e acumulao das economias modernas.

    A aproximao conceitual e poltica entre cultura e de-senvolvimento que se verifica no interregno de 1962 a 1982 no pensamento de Celso Furtado no ocorreu como um estalo fulminante da noite para o dia. Foi resultado das vicissitudes socioeconmicas que redirecionaram o conjunto das economias nacionais, escavando uma rota de transio para as contempo-rneas economias urbanas de servios, no interior das quais o lazer, o entretenimento, o turismo, as diversas atividades infor-macionais e comunicacionais, a produo e o consumo artsti-co-cultural tornaram-se condies de possibilidade para o que hoje se nomeia de economia criativa. Entre as dcadas de 1960 e 1980, essas atividades e servios assumiram tamanha relevncia na economia norte-americana e europeia que o eixo de acumu-lao da riqueza se alterou. Por exemplo, a partir dos anos 1970, Daniel Bell passou a cunhar de maneira sistemtica o conceito de sociedade ps-industrial, que aparece com maior clareza e consistncia no seu livro The coming of post-industrial society (1973). A ideia nuclear que aparece no livro diz respeito re-duo da importncia da produo industrial no conjunto das economias dos principais pases industrializados. A transforma-o e crescimento do setor de servios levaram muitos autores a sustentar que estaria ocorrendo uma revoluo para uma socie-dade dos servios (Kumar, 1996). A nova e variada estrutura de servios estaria escorada na importncia cada vez maior confe-rida informao, o que leva Bell a sustentar: A sociedade ps--industrial uma sociedade de informao, como a sociedade industrial uma sociedade produtora de bens (Bell, 1973, p. 88).

    Os contornos de uma sociedade da informao, na qual a infraestrutura de produo de bens industriais sofreu uma sen-svel diminuio a partir dos anos 1960, levou Bell a se debruar sobre o potencial econmico de uma nova economia, a economia da informao. Segundo o autor, somando-se o setor primrio de informao (segmentos industriais que produzem bens e ser-vios comercializveis de informao, como os parques grficos de editoras de jornais, livros, revistas, etc.) ao setor secundrio da informao (atividades ligadas aos servios de marketing e publi-cidade das grandes corporaes pblicas e privadas), obtinha-se um percentual de 46% do Produto Interno Bruto (PIB) americano em 1967. Esse percentual corresponderia a cerca de 45% de todos os salrios e vencimentos pagos no pas naquele ano, isto , cerca de metade da renda nacional (Bell, 1973).

    As transformaes tecnolgicas (sobretudo aquelas li-gadas esfera da informtica e da robtica) que redundaram no aparecimento do paradigma administrativo da tecnologia da informao, classificado por muitos autores como a ter-ceira revoluo industrial (Kumar, 1996), demandou, desde os anos 1950 e 1960, um aumento considervel do nmero dos profissionais de nvel superior. Isso resultou, por um lado, na expanso das instituies de educao superior (tanto de na-tureza pblica quanto privada) e, por outro, na elevao do sa-

    lrio mdio dos profissionais de nvel superior. A maioria desses profissionais (como engenheiros, fsicos, qumicos, advogados, professores, pesquisadores e tcnicos em geral) se inseriu nos ramos de pesquisa e automao desencadeados nos setores de planejamento de grandes companhias e corporaes indus-triais. Estas, por sua vez, passavam a atuar em outras reas, muitas delas ligadas aos servios de sade, lazer, alimentao, informao, entretenimento e cultura. Segundo Bell, os pro-fissionais de nvel superior constituem o eixo ocupacional da economia da informao. Os chamados profissionais do bem--estar (servios de educao, lazer, alimentao, educao, en-tretenimento e cultura), aliados aos profissionais da pesquisa cientfica e tecnolgica (que constitui o ncleo de aprimora-mento e disseminao da tecnologia da informao), tm uma importncia econmica e poltica inconteste nas sociedades da informao. Esses profissionais constituiriam uma nova classe, uma classe de servios que cresceu a taxas bastante elevadas. Segundo o autor, a grande maioria desses profissionais possua nvel superior, e esses, por sua vez, cresceram em todas as so-ciedades ocidentais desde o incio do sculo.

    Celso Furtado estava atento a todo esse processo, cuja consequncia maior seria a desindustrializao progressiva. En-tre outros aspectos, essa foi uma das causas da aproximao en-tre cultura e desenvolvimento no pensamento do economista brasileiro nos anos 80, o que o levou, inclusive, a chefiar o re-cm-criado Ministrio da Cultura (MINC). No decurso da dcada de 1990, a noo de desenvolvimento sofreu um deslocamento em trs direes. (i) De um lado, seu contedo econmico foi atenuado. Os ndices macroeconmicos (como taxa de cresci-mento, nvel de industrializao, nvel de emprego, renda per capita, balana comercial, taxa de juros, etc.) foram revistos a partir de sua relao com as condies de vida das populaes mais pobres, que permaneciam margem dos ganhos econmi-cos e do crescimento da economia. Os critrios macroeconmi-cos passaram a conviver com ndices que buscam aferir e ava-liar at que ponto e em que medida o crescimento econmico e o desenvolvimento esto melhorando a vida de determinados pases, sobretudo das suas populaes mais pobres, como foi o caso do ndice de Desenvolvimento Humano (IDH). Com efeito, conceito de desenvolvimento passou a ser objeto de uma reviso crtica que o deslocou para um escopo normativo mais amplo, aquela que v o desenvolvimento econmico apenas como uma dimenso do desenvolvimento humano. (ii) De outro lado, ocor-reu um deslocamento no sentido de se respeitar e se aprender com outras experincias culturais de desenvolvimento. Seguindo essa dimenso, seria preciso que o desenvolvimento (pensado como crescimento industrial e econmico) fosse relativizado at o grau em que perdesse sua marca estritamente econmica e material. Essa dimenso se liga inteiramente trama das mu-danas discursivas que foram empreendidas pela Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura (UNESCO), a partir do final dos anos 1950, no que toca cultura. Diante dessa mudana, no mais o desenvolvimento, como um pro-cesso exgeno, que condiciona a cultura (pensada como tota-

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    Cultura, mercado e desenvolvimento: a construo da agenda contempornea para as polticas culturais

    lidade de hbitos, costumes e valores), mas antes o contrrio: agora a cultura que passa a abrigar uma viso particular do desenvolvimento. (iii) Por fim, a clssica noo de desenvolvi-mento esposada e executada na Amrica Latina foi tributria da necessidade premente de industrializao e coordenao estatal da implantao e consolidao do capitalismo. Com as injunes do processo de desindustrializao e expanso das atividades e setores de servios, a noo de desenvolvimento escorada na intensa industrializao sofreu um esvaziamento econmico e, como corolrio, uma deslegitimao poltica. No interior desse diapaso, os anos 90 viram a expanso global da produo e fruio dos bens, servios e atividades simblico-culturais, que contriburam sobremaneira para o crescimento e multiplicao dos servios de alimentao, entretenimento, lazer, turismo, transporte, comunicao e informao. No por acaso, o comr-cio global dos bens e servios culturais foi objeto pela primei-ra vez de longas discusses, acordos e tenses envolvendo as principais potncias econmicas e culturais do mundo. Inscrita no mbito da longa Rodada do Uruguai (1986-1994), negocia-o que resultou na criao da OMC (Organizao Mundial do Comrcio, rgo do Sistema ONU), em 1995, a discusso sobre o livre comrcio dos bens culturais revelou poderosos interesses econmicos e culturais, cujo resultado foi o advento de um dos mais importantes mecanismos jurdicos de produo e proteo da riqueza material contempornea: o Acordo Relativo aos As-pectos do Direito da Propriedade Intelectual Relacionados com o Comrcio (ADPIC), tambm conhecido internacionalmente como acordo TRIPS. Esse acordo, assinado pelos estados-membros da OMC, estabeleceu os procedimentos para a obteno dos diretos concernentes s modalidades da propriedade intelectual: paten-tes, marcas, indicao geogrfica (IG), desenho industrial e di-reito autoral. Esse triplo deslocamento permitiu, paulatinamen-te, que as novas formulaes e as polticas de desenvolvimento abrigassem o conceito de cultura e o seu novo lxico conceitual e poltico.

    Cultura, empreendedorismo e desenvolvimento: a diversidade cultural como novo ativo simblico-econmico

    A noo de cultura, por seu turno, tambm expandiu a sua grade de significao conceitual e poltica. Operou-se nos ltimos 20 anos uma dilatao conceitual bastante acentua-da. O alargamento do conceito de cultura operou no sentido de incorporar a noo de cultura como experincia cotidiana vivida e saber no formal acumulado, valorizando as noes de oralidade, identidade, diversidade e patrimnio imaterial, mas tambm passou a conferir grande relevo noo de cultu-ra enquanto produo, circulao e fruio de bens e servios culturais. Essas duas dimenses passam a figurar nos progra-mas, aes, conferncias e convenes levadas a cabo pelos

    diversos pases-membros de organizaes como a UNESCO e a UNCTAD (Conferncia das Naes Unidas sobre Comrcio e Desenvolvimento). A primeira dimenso granjeou grande for-a poltica a partir da reao ameaa de homogeneizao simblico-cultural trazida pelos acordos de livre comrcio dos bens culturais no mbito da OMC. As profundas assimetrias existentes entre os principais polos de produo simblica (Es-tados Unidos e Unio Europeia), classificados como os centros exportadores de bens culturais, e os polos de consumo (Amri-ca Latina, frica e sia), classificados como os centros de im-portao, produziram a sensao generalizada de que o mundo estaria passando por um processo acelerado de homogeneiza-o e padronizao cultural. A globalizao cultural estaria, assim, potencializando as antigas e j profundas assimetrias da diviso internacional do trabalho cultural (Ydice). em nome da preservao e da promoo da diversidade e da iden-tidade cultural que muitos governos, empresas de cultura, or-ganizaes no governamentais (ONGs), movimentos sociais, culturais e instituies transnacionais passaram a defender a elaborao e a execuo de novas polticas pblicas de cultura, vicejando em todo o globo a formulao e institucionalizao das polticas da identidade. Essas mobilizaes culminaram na aprovao da Conveno sobre a Proteo e a Promoo da Diversidade das Expresses Culturais, em 2005, e da Conveno para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial, em 2003. A ameaa de padronizao das expresses artstico-culturais trazida pela globalizao cultural e, com efeito, pelos grandes conglomerados transnacionais de cultura e comunicao criou as condies para a emergncia de um apelo global em defesa da diversidade e da identidade cultural local e regional. Todo esse processo tem sido acompanhado pela difuso uma nova gramtica tico-poltica, encabeada por noes como direito cultural, cidadania cultural, diversidade cultural e patrimnio cultural imaterial.

    A diversidade passou a ser um valor mobilizador, capaz de catalisar e unificar a atuao poltico-cultural de diversas insti-tuies e movimentos sociais em todo o mundo, cujo resultado foi a costura de uma nova rede conceitual e normativa que apro-ximou a diversidade da chamada cultura popular tradicional e/ou o patrimnio imaterial. Essas trs categorias passaram a figu-rar como as principais fontes da diversidade cultural. Essas cate-gorias/princpios/valores (cultura popular, patrimnio imaterial, criatividade, diversidade e tradio) tornaram-se, por um lado, recurso para se falar e justificar o tema/valor da diversidade; por outro, converteram-se em objeto de proteo e promoo, necessrio manuteno e expanso da diversidade (UNESCO, 2005). No Brasil, a proteo, promoo e difuso do princpio da diversidade encontraram acolhida institucional no mbito da Secretaria da Diversidade e da Identidade Cultural (SID), criada em 2004 (hoje Secretaria da Cidadania Cultural do MINC), mas encontraram tambm grande ressonncia prtica e legitimidade esttico-econmica na Secretaria da Economia Criativa (SEC), no Plano Nacional de Cultura (metas 3, 4, 5 e 6), no Sistema Nacio-nal de Cultura e na nova Lei da TV por Assinatura.

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    De acordo com o Plano de Criao da Secretaria da Eco-nomia Criativa (SEC/MINC), a economia criativa brasileira norteia--se por quatro princpios: incluso social, diversidade cultural, inovao e sustentabilidade. O segundo princpio, a diversidade cultural, o grande princpio prtico e terico mobilizador, no s porque aciona prticas, polticas e aes com vistas manuteno e promoo da diversidade, mas porque catalisa dois aspectos centrais. (i) De um lado, trata-se de um princpio tico-esttico que goza de grande reconhecimento e legitimidade em diversos grupos, organizaes e instituies nacionais e transnacionais de cultura, que, em unssono, cerram fileiras em nome da diversidade cultural (que condensa as demais identidades: sexual, tnica, gera-cional, etc.); (ii) de outro lado, trata-se de um princpio-meio, pois, em todas as falas institucionais e governamentais, a diversidade percebida como o principal recurso simblico e econmico da economia criativa brasileira; ou seja, como um manancial vibrante e fecundo, prenhe das mais variadas possibilidades. Essa justifica-tiva-meio se acha espraiada por um circuito transnacional, que envolve a atuao de diferentes agentes polticos, culturais e eco-nmicos, como as coalizes globais de luta em defesa e promoo da identidade e da diversidade cultural; a UNESCO; os governos nacionais latino-americanos e asiticos; grupos de artistas e in-telectuais; organizaes no governamentais (ONGs); executivos e empresrios da cultura; empresas e organizaes de entreteni-mento; presidentes de bancos de fomento; entidades de capaci-tao e apoio; institutos e universidades; profissionais do design; da moda; da arquitetura; da publicidade; da televiso; do cinema; da gastronomia, etc. Esses agentes costumam apontar a chama-da cultura popular tradicional (tambm justaposta ao conceito de patrimnio imaterial) como o substrato e o grande reservatrio da diversidade cultural, forjando o amlgama diversidade/tradio/imaterialidade/criatividade, plasmando um sistema de homologias entre as categorias terico-prticas de desenvolvimento, cultura, criatividade, diversidade, imaterialidade, identidade e tradio. Talvez uma breve passagem do texto de apresentao do Plano da SEC/MINC, de autoria do presidente do BNDES, Luciano Coutinho, expresse tais homologias.

    Hoje se reconhece que quanto mais denso, diverso e rico o con-tedo cultural de uma sociedade, maiores as suas possibilida-des de desenvolvimento. O vigor das manifestaes culturais mais enraizadas permite sua preservao e difuso e pode re-presentar uma significativa alternativa de incluso produtiva, seja pelas oportunidades de criao de emprego e renda, seja pela ampliao do acesso e da qualificao desses servios. Em consonncia com o Plano Brasil sem Misria, destaque-se, ainda, a capacidade de estimular o desenvolvimento de outras atividades produtivas associadas s atividades culturais. Esses atributos so particularmente importantes em pases como o Brasil, de vasta riqueza e diversidade natural, patrimonial e cultural, fruto de um territrio de dimenses continentais e da fuso de mltiplas etnias.

    A passagem acima atesta uma contundente ruptura. A positivao que o BNDES confere hoje ao carter das manifes-

    taes culturais mais enraizadas, celebrando os atributos de um pas de vasta riqueza e diversidade natural, patrimonial e cul-tural, diametralmente oposta aos diagnsticos e prognsticos realizados pelas teorias desenvolvimentistas. Esses aspectos posi-tivos, hoje, so justamente os fatores que, entre os anos 1950 e 1980, o receiturio clssico do desenvolvimentismo julgava como entraves. No texto de abertura do Plano da Secretaria da Econo-mia Criativa do Ministrio da Cultura (SEC/MINC), intitulado A criatividade e a diversidade cultural brasileira como novo recurso para um novo desenvolvimento, indaga-se: como transformar um esforo desesperado de cultura em um direito fundamental ao desenvolvimento? O ttulo do texto de abertura do plano su-pracitado deixa patente: a diversidade cultural, mais do que um princpio tico-esttico, um recurso econmico. Esse recurso a criatividade artstico-popular, encontrada em abundncia, se-gundo tais documentos e perspectivas, nas tradies expressivas, nas prticas, hbitos, crenas, costumes, identidades, modos de ser e de fazer das culturas populares. Esse manancial heterogneo e multifacetado pode se transformar em servios, bens, ativida-des e produtos culturais: artesanatos, artefatos de design, festas populares, celebraes religiosas, documentrios, exposies fo-togrficas, festivais de gastronomia, eventos musicais, encontros literrios, aes de valorizao do patrimnio material e imaterial, que potencializam as diversas cadeias produtivas nas quais esto inseridas tais atividades, bens e servios. Eis aqui o encontro mais sutil e impactante envolvendo as categorias de cultura e desen-volvimento, cuja combinao e acomodao permitiram no s a operacionalizao do conceito/tema de economia criativa, como tambm a insero da cultura na poderosa agenda do desenvolvi-mento local e regional, concebido antes apenas na sua dimenso industrial e tecnolgica.

    No Brasil, a primeira tentativa poltico-institucional de aproximao entre cultura, desenvolvimento, criatividade, diver-sidade e identidade cultural foi realizada pelo designer grfico Alosio Magalhes, ainda no final dos anos 1970. Em parceria com a Universidade de Braslia (UnB) e com o Ministrio do De-senvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior (MDIC), Alosio foi um dos criadores do Centro Nacional de Referncias Culturais (CNRC). De acordo com os idealizadores, o CNRC deveria inte-grar um acervo de informaes acerca do patrimnio material e imaterial brasileiro, com vistas a criar uma identidade de objetos, artefatos, produtos, comidas, bebidas, etc., que representasse e encarnasse as tradies brasileiras. No obstante, no final dos anos 70 as mudanas estruturais, apontadas na primeira seo, no haviam se consolidado e, logo, no existiam as condies de possiblidade que facultaram a aproximao entre cultura e desenvolvimento.

    As associaes entre o design, a identidade nacional, as tradies populares e a disseminao dos bens da brasilidade (os bens que materializam a diversidade e as tradies culturais brasileiras) podem ser constatadas hoje mediante um exemplo--sntese. Em abril de 2014, aps diversas tentativas de entidades empresariais brasileiras, finalmente a aguardente brasileira foi reconhecida (tendo a marca registrada) como cachaa brasilei-

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    ra no mercado de bebidas norte-americano (maior do mundo), suprimindo o antigo rtulo de rum brasileiro, utilizado pelos im-portadores e revendedores para definir o gnero alcolico bra-sileiro. Segundo os representantes da Associao Brasileira de Bebidas (ABRABE), essa chancela jurdica pode expandir o volu-me das exportaes da bebida brasileira (atualmente de U$$ 14 milhes), pois certamente, agora, a cachaa uma vez reconhe-cida como brasileira poder ser associada a outros elementos da brasilidade, como a msica (o samba e a bossa nova so muito difundidos nos EUA), a comida (principalmente a feijoada) e, so-bretudo, poder ser utilizada para a feitura da caipirinha, e no mais o chamado rum brasileiro.

    Desde 2013, a Secretaria da Economia Criativa (SEC/MINC) tem coordenado em todo o pas a implantao do pro-grama Rede Incubadoras Brasil Criativo, que consiste em criar incubadoras de empresas culturais ao longo de 2014 e 2015. Para tanto, o programa possui recursos da ordem de R$ 40 mi-lhes. A ao tem sido executada por meio de convnios com os governos de diversos estados da federao, em parceria com entidades e instituies como o Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio (MDIC); o Ministrio da Cincia, Tecnologia e Inovao (MCTI); o Ministrio da Educao (MEC); o Ministrio do Turismo (MTUR); as secretarias estaduais e municipais de Cul-tura; as secretarias de Desenvolvimento Econmico; o SEBRAE; o SENAC; o Banco do Brasil; a Caixa Econmica Federal e as uni-versidades federais e estaduais. De acordo com o Ministrio da Cultura (MINC), at setembro de 2014 a rede abarcava 13 esta-dos: Acre, Bahia, Cear, Gois, Mato Grosso, Minas Gerais, Par, Paran, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Distrito Federal. Nestes estados foram instala-dos espaos que oferecem aos profissionais culturais servios de elaborao de projetos e capacitao de recursos; planejamento estratgico; assessoria de marketing, de comunicao, jurdica e contbil; alm de ofertar cursos, formao tcnica especializada e balces de crdito. Segundo o MINC, o programa tem como princpios norteadores a diversidade cultural e incluso social e visa potencializar os empreendimentos nesses setores, posicio-nando a cultura como um dos principais eixos estratgicos de desenvolvimento do pas.

    O Programa Rede Incubadoras Brasil Criativo resulta-do, em parte, da operacionalizao do Plano da Secretaria da Economia Criativa (MinC, 2011). Os seus efeitos prticos devem--se eficcia da justificativa mobilizada para aproximar as ca-tegorias de cultura e desenvolvimento. No interior dessa nova rede terico-discursiva, o fio condutor tem sido o princpio ti-co, esttico e econmico da diversidade cultural. Esse princpio tem sido acionado como um recurso para criar e potencializar negcios culturais especficos, fomentando elos de produo cultural e cadeias de valor simblico-material inexistentes at recentemente. No interior desses elos e suas cadeias, o programa objetiva incubar micro e pequenas empresas que possam atuar como fornecedoras de bens, servios e atividades criativas para o audiovisual; o entretenimento; a cultura digital (games e apli-cativos); a gastronomia; o segmento editorial; o design; as festas

    populares e shows musicais; o turismo cultural; o teatro e os espetculos ao vivo; a moda, o artesanato e os segmentos de de-corao; a arquitetura e as atividades de restauro e preservao.

    Com efeito, o Programa Rede Incubadoras Brasil Criati-vo busca se inscrever numa complexa estrutura de produo e oferta de bens e servios que envolvem as micro e pequenas empresas no interior da economia global de servios, lanando mo do princpio da diversidade cultural como um novo recurso econmico para o empreendedorismo. No final dos anos 1960, a mdia global do setor de servios no Produto Interno Bruto (PIB) era de 50%; em 2010, essa mesma mdia alcanou 70%, representando 78,6% da riqueza produzida nos Estados Unidos, 77,6% no Reino Unido e 79,2% na Frana. Em 2013, o setor res-pondeu por 69,4% do PIB brasileiro. A cada ano so abertas 316 mil novas empresas no Brasil. Destas, aproximadamente 85% so micro e pequenas empreendimentos, que, em 2012, represen-tavam 99% das empresas brasileiras e 25% do Produto Interno Bruto (PIB). De acordo com o SEBRAE, existiam, em 2012, 6,3 milhes de estabelecimentos que figuravam como micro e pe-quenas empresas, responsveis pelo estoque de 15,6 milhes de empregos formais privados no agrcolas. Esses nmeros posi-cionam o Brasil frente de pases como Alemanha, ndia e Itlia. Chama ateno, ainda, o crescimento da taxa de sobrevida e manuteno dos empreendimentos (mais de dois anos), que sal-tou de 50%, em 2002, para 73%, em 2011, taxa de crescimento superior, por exemplo, quela verificada nos Estados Unidos.

    O aprimoramento dos processos de incubao de micro e pequenos empreendimentos, o refinamento das suas metodo-logias e a adoo de novas modalidades de incubao tm con-corrido para o substancial crescimento do empreendedorismo no Brasil, assim como para a dilatao da taxa de sobrevida desses empreendimentos. Como assinala Zardo, em 2005, durante o primeiro ano de atuao, o ndice de mortalidade das empresas que surgiram fora do ambiente de incubao foi de 80%; j en-tre os empreendimentos que se desenvolveram no ambiente da incubao, esse mesmo ndice caiu para 20%. De acordo com a Associao Nacional de Entidades Promotoras de Empreendi-mentos Inovadores (ANPROTEC), em 2011, existiam no Brasil 384 incubadoras de empresas em operao. Estas incubaram 2.640 empresas, sendo 2.509 graduadas, contando, ainda, com 1.124 empresas associadas, que j fomentaram 16.394 postos de tra-balho nas empresas incubadas e 29.204 postos de trabalho nas empresas graduadas, granjeando um faturamento de R$ 533 mi-lhes na primeira categoria e R$ 4,1 bilhes na segunda.

    Em 2012, do total de incubadoras em operao no Brasil, apenas 2% possuam o perfil de incubadora de empreendimen-tos culturais. Por outro lado, o BNDES acentua que cerca de 90% dos empregos criativos esto concentrados em micro e pequenas empresas. Conforme assinala o SEBRAE, as microempresas so aquelas que, no setor industrial, abrigam at 19 trabalhadores formais e, nos setores de comrcio e servios, possuem at 9 pessoas formalmente ocupadas; j as pequenas empresas so aquelas que, no setor industrial, abrigam de 20 a 99 pessoas ocupadas e, nos setores de comrcio e servios, detm de 10

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    at 49 trabalhadores. Entre 2003 e 2012, foram gerados mais de 6 milhes de postos de trabalho formais pelo segmento das micro e pequenas empresas, ou seja, dos mais de 15 milhes de postos formais de trabalho gerados entre 2003 e 2012, o micro e pequeno empreendedorismo respondeu por 40% desse total. No mbito da produo e do empreendedorismo cultural, apenas o segmento audiovisual foi responsvel, em 2012, pela gerao de mais de 110 mil empregos formais, o que representou, naquele ano, 0,35% dos empregos na esfera dos servios. De acordo com a Motion Picture Association na Amrica Latina (MPA-AL) e o Sindicato Interestadual da Indstria do Audiovisual (SICAV), para cada emprego gerado no segmento audiovisual so gerados ou-tros 1,09 nas demais esferas da economia. Tambm em 2012, o mercado audiovisual produziu 0,52% da massa total de salrios da esfera dos servios, superando segmentos como o turismo, com 0,20%, e a hotelaria, com 0,49%. No mesmo perodo, o total da massa salarial alcanada pelo mercado audiovisual foi de R$ 4,2 bilhes, bem superior aos R$ 3 bilhes alcanados em 2007, um crescimento da ordem de 36%. Por fim, em 2012, a m-dia salarial lquida obtida pelo segmento audiovisual foi de R$ 2.735, bastante superior aos R$ 2.028 obtidos pela mdia geral da esfera dos servios.

    Consideraes finais

    No Brasil e na Amrica Latina, as organizaes estatais de fomento produo cultural tm agido de acordo como uma nova justificativa geral: a produo cultural contribui para o desenvolvimento; tambm mediante a cultura que se obtm incluso social, crescimento econmico, bem-estar, dignidade e o fortalecimento dos laos de pertencimento. Para tanto, tm transformado o cotidiano, o prosaico e o ordinrio de diversas comunidades, cidades, regies e territrios em contedos au-diovisuais, gastronmicos, literrios, arquitetnicos, musicais, artesanais, de entretenimento, de design, de moda, de cultura digital, de turismo cultural, de patrimnio material e imaterial. Esse processo feito mediante a difuso e legitimao das tc-nicas do empreendedorismo, que renovam o seu repertrio con-

    ceitual e poltico atravs da categoria de economia criativa e o seu lxico correspondente: cidades criativas, territrios criativos, classes criativas, capital criativo, etc. O substrato de sustenta-o de todo esse edifcio corresponde valorizao esttica e econmica da diversidade cultural, que empresta subsdios para acomodar novos interesses estticos e econmicos. Nada disso seria possvel sem a proteo cmoda e segura oferecida pelas novas relaes entre as categorias de cultura e desenvolvimento, que delineiam os contornos gerais da agenda contempornea das polticas culturais pblicas.

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    Submetido: 19/09/2014Aceito: 28/10/2014