document7

19
O sonho do nixi pae. A arte do MAHKU – Movimento dos Artistas Huni Kuin Amilton Pelegrino Mattos 1 Universidade Federal do Acre Resumo: Inspirado no filme O sonho do nixi pae (2014), o artigo percorre a trajetória do MAHKU – Movimento dos Artistas Huni Kuin, traçando paralelos entre o percurso do grupo e a travessia mítica dos huni kuin que atravessaram o jacaré-ponte. O artigo se dedica a pensar a música e suas transformações em artes visuais e audiovisual desde uma teoria da tradução nativa. Palavras-chave: Huni Kuin, etnomusicologia, poética, tradução, xamanismo. 1 Professor na Licenciatura Indígena. Pesquisador em artes e música indígena.

Upload: marco-aurelio

Post on 17-Aug-2015

212 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

antropologia do cinema

TRANSCRIPT

O sonho do nixi pae.A arte do MAHKU Movimento dosArtistas Huni Kuin Amilton Pelegrino Mattos1 Universidade Federal do Acre Resumo: Inspirado no filme O sonho do nixi pae (2014), o artigo percorre atrajetriadoMAHKUMovimentodosArtistasHuniKuin,traando paralelosentreopercursodogrupoeatravessiamticadoshunikuinque atravessaramojacar-ponte.Oartigosededicaapensaramsicaesuas transformaesemartesvisuaiseaudiovisualdesdeumateoriadatraduo nativa. Palavras-chave:HuniKuin,etnomusicologia,potica,traduo, xamanismo. 1 Professor na Licenciatura Indgena. Pesquisador em artes e msica indgena. MATTOS, Amilton Pelegrino. O sonho do nixi pae. A arte do MAHKU "# The dream of the Nixi Pae.The art of MAHKU - Huni Kuin Artists Movement Abstract: Inspired by the film's Dream of the Nixi pae (2014), the article coversthetrajectoryofMAHKU-HuniKuinArtistsMovement,makinga parallelbetweenthegroup'srouteandthemythicalcrossingofhunikuinwho crossed the alligator bridge. The article is dedicated to thinking about music and itstransformationsinvisualandaudiovisualartsfromtheperspectiveofa theory of native translation. Keywords: Huni Kuin, ethnomusicology, translation, shamanism, poetic. El sueo del Nixi Pae.El arte de MAHKU Movimiento de los Artistas Huni Kuin

Resumen:InspiradoporlapelculaElSueodelNixiPae(2014),el artculocubrelatrayectoriadeMAHKU-MovimientodelosArtistasHuni Kuin, estableciendo paralelismos entre la ruta del grupo y la travesamtica de losHuniKuinquecruzaronelpuentecocodrilo.Elartculoestdedicadoa pensarenlamsicaysustransformacionesenartesvisualesyaudiovisuales desde la perspectiva de una teora de la traduccin nativa. Palabrasclave:HuniKuin,etnomusicologa,traduccin,chamanismo, potico. ACENO, Vol. 2, N. 3, p. 59-77. Jan. a Jul. de 2015. ISSN: 2358-5587. Polticas e Poticas do Audiovisual na contemporaneidade: por uma antropologia do cinema (dossi) "$ O sonho do nixi pae OvdeoOsonhodonixipae2,de2014,recompeaconstituioeo percursodoMAHKU,movimentodosartistashunikuin,aolongodosltimos cinco anos.Em2013,naUniversidadeFederaldaBahia,quandoIbfazaprimeira apresentaodoMAHKU,queacabaradeseconstituircomoassociao,ele entoouopakarin(canto)dokapetaw(jacargrandeoujacar-ponte).Poucas semanasdepois,naexposioMira,Artesvisuaiscontemporneasdospovos indgenas,noCentroculturaldaUFMG,BeloHorizonte,ondeestvamosna companhiadosartistashunikuinBaneeKe,Ibtornouacant-lona cerimnia de abertura. Anopassado,oMAHKUparticipoudaexposioHistriasmestias,no InstitutoTomieOhtakeemSoPaulo.Dos15desenhosrealizadosparaa ocasio, 14 foram huni meka (cantos de ayahuasca) e um dos desenhos o canto-mito do kapetaw. O vdeo mostra nosso encontro com um amigo na exposio, oantroplogoBruceAlbert.Emcertomomento,mostrandoodesenhodo kapetaw e lendo a legenda que pode ser entendida como histria dos antigos, Ib diz a Bruce: shenipabu miyui... shenipabu miyui somos ns... Travessias Nesteartigotrataremosdetravessias,detradues,deantropologias.Ele consiste num apanhado de rizomas que proliferaram no tempo em que editamos 2 Disponvel em https://www.youtube.com/watch?v=8LOL3BM0eRY MATTOS, Amilton Pelegrino. O sonho do nixi pae. A arte do MAHKU "% ovdeoOsonhodonixipae.Humaleituraparalelaartigo-vdeo:oque escrevemos aqui pode afetar a leitura do vdeo, assim como o que escrevemos um desdobramento do texto audiovisual. OprojetoEspritodaFlorestaresultadotrabalhodepesquisa desenvolvido pelos autores no contexto da Licenciatura da Universidade Federal doAcre,CampusFloresta.OvdeoOsonhodoNixipaeresultadotrabalhodo LABI Laboratrio de Imagem e Som da UFAC Floresta. Assimcomoovdeo,esteartigoimaginaoMAHKUesuatrajetriacomo umatravessiasimilartravessiamticadoshunikuinnolombodokapetaw. Porfim,nossamaneira,podemosdizer,comojfoidito,escrevemosadois, mas somos sempre ajudados, aspirados, multiplicados3. Histria Vamosfalardopovohunikuin(kaxinawa).TudocomeacomTuinHuni Kuin (Romo Sales). Tuin filho de Tene (Chico Curumin). Eu, Ib, sou filho de Tuin.Foicomelequeaprendiacantar:pakarin,hunimeka,oscantosqueele cantavanofimdatarde,alegrenasuarede,ensinandoseusfilhos.Formei professor,aprendiaescrever,adquiriumgravadorparagravarmeupai. Aprendiapesquisarcommeupai.Elepassouavidaaprendendooscantos,os rituaiseoutrosconhecimentosdoshunikuinmaisvelhosemaisbrabosque chegavamdetodasaspartesparaescapardascorrerias,abrigando-senorio Jordo,noseringalherdadopornossafamliadepatresbrancosdepoisde muitotrabalhoesobaidentidadedecaboclosbrasileiros,trabalhadorese civilizados. Em 1984, o seringal se torna terra indgena e os huni kuin passam a serreconhecidosnovamentecomopovoindgena.Tuinagoraestavapronto paraensinartudooqueguardou,tudooquetinhaaprendido.momentode retomar prticas e rituais que haviam sido perdidos. Os professores das escolas hunikuinempenham-senesseprocessoetemporrefernciaovelhoRomo Tuin.Sou professor indgena desde 1983. Nesse projeto coletivo de pesquisa dos professores,assumioshunimeka,oscantosdonixipae(bebidaayahuasca), aquelasmsicasquemaismeimpressionavam.Passeianosregistrandoesses conhecimentos e transcrevendo. Em 2006, publico meu primeiro livro, Nixi pae - O esprito da floresta4. Antesdecomearaestudarnalicenciaturaindgena,em2009,otxai Amilton chegou na aldeia Chico Curumim. Nesse mesmo ano elaboramos nosso projetodepesquisanauniversidadedafloresta.Nossaideiaeracontinuar pesquisando os cantos huni kuin. Norteava-nos a grande aceitao do livro que tinhaatingidodiversasterrasdoshunikuinecausadoimpactosobretudonas aldeias cuja lngua hatxa kuin rareava. Enoeraapenasalnguaqueeraassumidapelosjovens,eraalngua estranha dos cantos, a linguagem potica que h pouco constrangia. Junto com avontadedecantar,estimuladatambmpelodaimedosbrancoseapresena dosinstrumentoscomomaracsevioles,oshunikuintambmretomaram suaspinturascorporais,voltandoautiliza-lascomfrequncianoapenasnas aldeias, mas a exibi-las publicamente nos municpios prximos s aldeias. 3 Gilles Deleuze e Flix Guattari, Mil Plats, vol. 1, trad. Aurlio Guerra Neto, So Paulo, Ed. 34, 1995. 4 Isaias Sales Ib, Nixi pae, O esprito da floresta, Rio Branco, CPI/OPIAC, 2006 ACENO, Vol. 2, N. 3, p. 59-77. Jan. a Jul. de 2015. ISSN: 2358-5587. Polticas e Poticas do Audiovisual na contemporaneidade: por uma antropologia do cinema (dossi) "& Txanu Huni Kuin (2011) AntesdereencontrarIbnoJordo,em2009,subiorioTarauaccom Bane. Chamavam a ateno as atas desenhadas que Bane produzia em reunies nas aldeias do Jordo. Desdeoinciotrabalhamoscomoaudiovisual.Quandonoschegaramos primeirosdesenhosdeBaneexperinciainicialde10desenhosem2007 passamosatrabalharcomaseguintecomposio:desenhos,cantoe comentrios, vdeo.Organizamos um Encontro de artistas no Jordo em 2011, coordenado por Bane e Ib. Durante 10 dias nos dedicamos a desenhar os huni meka (cantos da ayahuasca)deTuinregistradosnolivrodeIb.Aindaem2011,construmos nossostiovirtual(www.nixi-pae.blogspot.com.br)efizemosnossaprimeira exposio em Rio Branco. Em 2012 fomos convidados por Bruce Albert e Herv ChandsparaexpornaFundaoCartierparaaArteContempornea,na exposioHistoiresdevoir,comessasriededesenhosproduzidosno Encontro.ParaessaocasiorealizamosovdeoOespritodafloresta5.Mais importantequenossaprojeoparaforadaaldeiaedopas,essaprimeira exposiointernacionalprojetou-nosparadentro.Reunimo-nosnaaldeiaem agostode2012ecriamosoMAHKU,MovimentodosArtistasHuniKuin, coletivo de artistas e associao. Cantos-desenhos Nosso trabalho tem origem, portanto, na convergncia de canto, desenho e vdeo.Osdesenhostraduziamamsicanumavisualidadeprpriaaesse universomusicaleovdeoforneciarecursosparaevidenciaressarelao.O vdeopossibilitavafazerconvergirimagemecanto,coloca-losparalelosou justapostos. 5 www.youtube.com/watch?v=zRlbRpoi0cQ MATTOS, Amilton Pelegrino. O sonho do nixi pae. A arte do MAHKU "' Avisualidade,construdacomosrecursosdoparalelismoejustaposio (CESARINO,2006),caractersticaprincipaldadimensoverbaldoscantos huni meka. Oscomentriosaoscantos(prnosentido,veradiante)feitosporIbno vdeo,simulamessaarticulaonamedidaemquenoexplicam,esimcriam umtextoparaleloimagem-msica,talqualodesenhopropeemrelao msica-texto. Se os textos dos cantos so marcados por paralelismo e justaposio, essas caractersticasnovofaltaraosdesenhosepinturas.Omesmovaleparaa linguagemformuladaporIbparaprnosentido,comoficaclaronasua frmulaqueexploraaparataxeparanosaproximardessalinguageme apresentaraconvergnciacanto/desenho:naimanpuyubek,cupssaro jiboia. Temosaquiumasriedeimagensdeummesmocanto.Ocantonai manpuyubekaparecenaprimeira,desenhodeBanede2007.Imagem2, painelde5x3metrospintadopeloMAHKU(Bane,IsakaeIb)em2014,na exposioMadeby...Feitoporbrasileiros,emSoPaulo.Naterceira,outra pinturade3x6metrospintadapeloMAHKU(Bane,IsakaeIb)em2014,na ACENO, Vol. 2, N. 3, p. 59-77. Jan. a Jul. de 2015. ISSN: 2358-5587. Polticas e Poticas do Audiovisual na contemporaneidade: por uma antropologia do cinema (dossi) "( exposioNixipaewennamateOsonhodonixipae,realizadapeloMAHKU no SESC de Rio Branco.Nota-sequeostrabalhosdeBanenotmalinhadohorizonteque organiza a lgica sintagmtica letrada da tradio ocidental. Est praticamente ausentedosdesenhos,comodoscantos,portanto,umadinmicadenarrao, vistoqueoselementosdanarratividade:espao,tempo,personagens,so organizados, na linguagem visual, pela linha do horizonte.Osdesenhospropemoutrasconexes.Oquesetemacontiguidade,a superposio,caractersticasprpriasdessasartesverbaiscomodeoutras tradies orais. Nessaprimeirasrie,asfigurasparecememergirdopapelaosomda msica, evidenciando o jogo de planos que simula a justaposio ou a sucesso deimagensdamsicaquesedporsobreposio.Temosdoisdesenhosde Bane: Dua meke newane (2010) e Yube nawa ainbu (2011). Dua meke newane (2010)Yube nawa ainbu (2011) Essejogodeplanos,quandoacompanhadodamsica,daperceberuma dinmica,emqueasimagensavanam,emergemparaoprimeiroplanode acordo com os versos.Desdeoincio,aideiadetransformaroscantosemdesenhoanimado vinha tona em nossas conversas. Porm, sempre estacvamos diante da aridez narrativadoscantosouramosreconduzidosaomitoenosafastvamosda msica.Nessescantosnoocorrenarrao,osversossotratadoscomo imagens que vo se sucedendo e justapondo, compondo blocos de imagens mais doqueumanicaimagem.Osblocosdeimagenssomarcadosnosdesenhos porrecursosdiversos.NodesenhoDuamekenewane(2010),ocipimagem cantada em alguns versos e tambm serve para destacar o yuxibu (esprito) que MATTOS, Amilton Pelegrino. O sonho do nixi pae. A arte do MAHKU "" compostocomasobreposiodefragmentosdaimagem(amogrande,o cocar, gestos ou movimentos). Mirao Mesmo se tratando de cantos, a percepo visual fundamental tanto nas palavrasquesocantadascomonoritualdonixipaequegiraemtornodas vises.Asvisesoumiraesnosovisescotidianas,elasconsistemnum cdigo sensorial outro6. Banerefere-sesuainiciativadedesenharoscantosnessestermos:euvi queoqueestavafaltandoeraveramirao(Osonhodonixipae,2014). Marca da visualidade est na definio dos trs tipos de cantos huni meka: entre oscantosdechamaraforaediminuiraforaestoosdautibuya,cantosde mirao, que recobrem a maior parte do ritual de nixi pae.Umexemplo:umdoscantosmaisimportantesensinadoporTuin,hawe dautibuya,refere-sequelequevemadornado,enfeitado,transformado, potente.Outrosexemplos:txaipuke(Bane,2007),duameke(Bane,2010), hawedautibuyaeduameke(Mana,2014).Trata-sedecantosdedaraver, chamaroupotencializaraviso.Osdesenhossodescritivos,masnosetrata dedescreveroquesev,esimdealteraravisoparadaraveralgoqueno pode ainda ser visto. Portanto, no se trata da viso cotidiana, mas de uma viso transformada, aprimorada,talvezumahiperviso,quetambmprecisasertraduzidaou transcriada, tal como se d com a poesia dos cantos tornada desenhos no papel enogiz,nastintasenatela.Emoutromomento,Ib(Oespritodafloresta, 20127) comenta esse trabalho artstico: Ento foi isso que eu sonhei dentro da mirao, dentro do meu sentido, que d pra fazerissoemostrar,paraaquelequenochega,aquelequenoconheceainda bebida ayahuasca, d pra entender; tem gente que ficava com medo, por isso que eu fiz desenho; na hora que voc convidava pra realidade, pra mostrar o trabalho, tem gente: ah no, tenho medo, eu vejo cobra, talvez eu veja alguma coisa do futuro; d pra entender melhor aquele que nunca tenha conhecido, seja huni kuin ou no: ah, isso que est falando na msica... Humatravessiaaserfeita.Astradiespoticasocidentaisignoramat hojeasartesverbaisdospovosamerndios.Umamadurecimentorecentena formadeveressespovoseseupensamentocriacondiesparaumatraduo dessa potica. De Lvi-Strauss ao perspectivismo amerndio8, h um trabalho de traduoprimeiro,queabrecaminhosparapropostas.Assimqueaetnologia passaaaceitaressasoutrasantropologiasimplicadasnopensamento amerndio,atraduoperdeseucarterunidirecional.Otradutorocidentalao traduzirotextoindgenaparasuapoticapodesuprimiressetrabalhode traduoprimeiro.Portanto,essemovimentonopoderestringir-seincluso de uma literatura indgena. 6 Cf.BarbaraKeifenheim,noartigoNixipaecomoparticipaosensvelnoprincpiodetransformaodacriao primordial entre os ndios kaxinawa no leste do Peru, In: Beatriz Caiuby Labate e Wladimyr Sena Arajo (orgs.). O Uso Ritual da Ayahuasca. Campinas, Mercado de Letras, So Paulo, Fapesp, 2002. 7 https://www.youtube.com/watch?v=zRlbRpoi0cQ 8EduardoViveirosdeCastro.Ainconstnciadaalmaselvagemeoutrosensaiosdeantropologia,SoPaulo,Cosac& Naify, 2002. ACENO, Vol. 2, N. 3, p. 59-77. Jan. a Jul. de 2015. ISSN: 2358-5587. Polticas e Poticas do Audiovisual na contemporaneidade: por uma antropologia do cinema (dossi) ") Traduzirtransformar,criar.Oshunikuin,numaantropologiareversa9, esto traduzindo sua maneira, para ns, no apenas sua poesia e sua potica, mastambmaescrita,asartesvisuaisemesmoaescola,apesquisa,a universidade. A traduo que nos propomos liberar aqui no apenas uma traduo dos cantoshunikuinnostermosdatraduoservil10dosbrancos.Oshunikuin, pelaperspectivaoudevir-animaldajiboia,traduzem,atravsdeseuscantose desenhos,outraspossibilidadesdemundo.Aotraduzir,reinventandosua realidadeapartirdarealidadenoindgena,traduzem-seasiprprios, intensificando-se como verdadeiros, como huni kuin. Essamsicavocaldohunimekaoperacomdiversosrecursosque compemintensidades,camposdefora:repetiodepalavrasedesons, vocalizaes,aceleraoedesacelerao,movimentoerepouso,quebradosom e extenso etc. Associadosaessesefeitossonoros,asimagensdescritasnaspalavrasdos cantos vo compondo imagens que se relacionam com a mirao. Essa noo de mirao ser aqui combinada com o tornar visvel de Paul Klee. Referimo-nos a ummaterialvisualquedevecapturarforasno-visveis(DeleuzeeGuattari, 1997: 158).ComodizemDeleuzeeGuattari,noestamosmaistratandodeuma relao matria-forma. Ela se apresenta aqui como uma relao direta material-foras;captarasforasdocosmosnumaobra;paratalobraprecisomeios muito simples, muito puros, quase infantis, mas preciso tambm as foras de um povo, um povo por vir11. Almdeconduziraumaperceptividadedovisualprpriadojogode imagens dessa poesia, bem como dos efeitos sonoros empregados nesses cantos para modular intensidades, as imagens das pinturas constituem uma linguagem prpriadeumprocessodetranscriaointerespecfica:trata-sedetraduziro que foi apreendido com exeika, a jiboia. A frmula nai manpu yubek, configura comsuaparataxe,suacontiguidadeesobreposio,umalinguagempotica prpria. Pr no sentido: traduzindo mundos Sintetizamosessapoticadoshunimekanafrmulanaimanpuyubek: naicu,manpuopssaro,yubeajibia;elatambmsintetizaaquiloque chamamos colocar no sentido. Ibcriouaexpressoprnosentidoparasereferiraoqueestvamos fazendo:osseuscomentrios,emvdeo,acompanhadosdodesenhoeda msica.Entendemosqueprnosentido,essaexpressoumtantoenigmtica queelecrioucomseuportuguscrioulohunikuin,defineumprocessode leituraqueaprendeucomRomo,queoensinavaqueasmsicascifram conhecimentos numa linguagem potica que constitui quase um idioma outro. 9Antropologiareversa,conformesugeriaBruceAlbert(1995)arespeitodapolticacosmolgicaacionadanadimenso xamnicadosrelatosdeDaviKopenawa(1990)tratandodainvasoedosmassacres:BruceAlbert.Oourocanibalea quedadocu.UnB,1995.Porfim,essediscursoteminteresseporseuefeitodedesconstruoculturaldafronteira: como crtica xamnica do fetichismo do ouro, claro, mas, o que ainda mais interessante, como reverse anthropology (Wagner 1981: 31) do ecologismo ps-moderno (idem: 5) 10 Traduo servil expresso elaborada por Haroldo de Campos (1981: 179-80). 11Nohmaismatriaqueencontrarianaformaseuprincpiodeinteligibilidadecorrespondente.Trata-seagorade elaborarummaterialencarregadodecaptarforasdeumaoutraordem:omaterialvisualdevecapturarforasno visveis. Tornar visvel, dizia Klee, e no trazer ou reproduzir o visvel (DELEUZE e GUATTARI, 1997: 158). MATTOS, Amilton Pelegrino. O sonho do nixi pae. A arte do MAHKU "* Sobre essa prtica de pr no sentido, um registro feito por Ib com Tuin h cercadedezanos,possibilitaalgumasconsideraessobreanaturezadessa poesiaeaaprendizagemdeTuin.Acertaalturaelefazumapausanocanto pakarinparadecifraralgunsversos,prnosentidocomodizemos.Ibento interrompe,pedindoqueelecontinueocanto,poisqueriagrava-lo.Ovelhose negaedizqueprecisavadecifrarosentidoparaqueofilhoentendesseoque estava sendo cantado. Ouvindo hoje esse episdio, acreditamos que Tuin estava aqui nos ensinando a respeito da prtica de pesquisa que aprendeu ao longo de sua vida ouvindo os antigos. Audiovisual

Omesmocomoaudiovisual,nosetratadeescreverarespeitodesse trabalho,trata-sedecriar,assimcomoodesenhofazcomamsica,criara partir dela. Com o audiovisual pudemos convergir, articular, dispor no tempo e na percepo os cantos ea criao visual, os desenhos. Fizemos isso com outra linguagem. Txana Kixtin (2011) Interessa-nosalinguagemdovdeocomopossibilidadedecriaode realidade.Ovdeopossibilitoufazermosdacriaoumpercurso,eletornou mais claro que nossa criao era um percurso, que era nesse rumo da travessia que nos levava nosso trabalho. ACENO, Vol. 2, N. 3, p. 59-77. Jan. a Jul. de 2015. ISSN: 2358-5587. Polticas e Poticas do Audiovisual na contemporaneidade: por uma antropologia do cinema (dossi) "+ Acmeraoperacomocatalizador.Comooquesedizarespeitodafsica quntica, que a realidade pode ser afetada ou produzida pelo pesquisador.Percebo que a interao entre o trabalho e o registro, isto , os huni kuin se criando, produziu um desdobramento que nos abriu mais possibilidades de nos recriarmos, de compor um corpo coletivo que nos possibilita viver a experincia artstica como alternativa para escapar aos modos de existncia que se impem pelaeconomialocal,taiscomoafuncionarizao,oetnoturismoouo assistencialismo de estado. Otrabalhodomovimentodosartistashunikuintemcomoorigema pesquisadecantos,rituais,lnguaeoutrosconhecimentos,feitaporRomo Sales ao longo de sua vida. Dessa maneira, entendemos todo esse percurso como capacidadededesenharmosansmesmos,denoscriarmoscomohunikuin, como povo verdadeiro, como gente de verdade. Os antigos nos ensinam que s somosverdadeiros,inteiros,protegidosseestivermospintados.Opoderdo keneya definidor na elaborao de si. Estar pintado ou trajar roupas com kene ou dormir na rede de kene atributo para estar completo, forte, saudvel12. Etnografias pulso dionisaca, [que] pe a cristalografia em reebulio de lava Haroldo de Campos O universo dos desenhos indgenas impressiona. Mas perceba-se que aqui noestamosfalandoapenasdedesenhos,falamosdeumaetnografia,uma etnografiavisualquejatraduodeumaetnografiafeitanamsica,mas sobretudopelamsica.Essamsicanofaladeoutrosmundos,noserefere apenasaessesoutrosmundos,essamsicanoscomunicadesdeoincioque esse mundo em que vamos entrar no um mundo em que podemos referir s coisas,comoseascoisasfossemfixaseossignificados,sentidos,ounomes variassem. a que a msica faz, que a msica , e no quer dizer ou representa. Essaetnografiafeitapelamsicacomodescriodeoutrosmundos(outras culturas):mundodajiboia,mundodovegetal,docip,nopodeserfeitasem problematizardesadaarelaodopensamentoocidentalcomalinguageme comomundoconcebidocomorealidade.Omitodeixaosrastrosdissoquea msicafaz.Elepalavra,narrativa.Jessamsica,nodizrespeitoaalguma coisa,elacriaintensidades.Entrar,permaneceresairdafora:ostrshuni meka.quandofalamosqueamsicacriaumcampodeintensidades,issofica claroemexpressescomofora(essamsicaserveparachamaraforaou esse canto de diminuir a fora).Ao colocar no sentido o canto Txai puke dua, Ib diz que esse canto serve para voc ver seu trabalho e fala a respeito do xin, que chama de pensamento, e d o exemplo no vdeo Puke dua ainbu13 (2012): Xinbesuaket:xinnossosegredodepensar,dentro,oquevocpensando, construiu uma casa, por exemplo, esse o seu segredo do seu pensamento, que voc fez; besua, voc est olhando, virando o pescoo, o olhar no rumo que voc quer. 12 O mesmo se d com a expresso dami (O sonho do nixi pae, 2014), que se refere a desenho e a transformao. Quando se est no ritual, em conexo com o nixi pae, a gente encanta da mesma maneira que a jiboia; estamos no corpo e fora dele,transformados;somosdaminiedamiwa,gerandoesendogerado;quandoestamosdesenhando/filmando, desenhamos e somos desenhados. 13 https://www.youtube.com/watch?v=pIo90b2qGDI MATTOS, Amilton Pelegrino. O sonho do nixi pae. A arte do MAHKU )# Aideiadedesenhartambmnoalheiaaessanaturezatradutriados cantos que de um lado traduo ou etnografia de outros mundos, e de outro umatraduoqueaotraduzirooutro,traduzoprpriohunikuin(WAGNER, 2010: 36-7). Aflorestaviva,sensvel.Osanimais,asplantassoseresnoapenas sencientes,sodotadosdeconhecimentoseperspectivasinauditasque precisam ser traduzidos. Os huni kuin foram construindo nos mitos uma viso domundoquetraduzparanoespecialistas,hunikuinouno,alguns conhecimentosquesoprpriosdeconhecedorescomoostxanas14,melhor referidoemportuguscomocantor.Osmitostraduzemprticasqueso atualizadas em outras linguagens como a msica, os cantos. Portanto,humaoutratraduodoscantosedofenmenoayahuasca, bem como de seu ritual, entre os prprios huni kuin. O que se diz que se trata deummitoarespeitodaorigemdo nixipae. Comessaexpresso,sobonome denixipaeestabebida,evidentemente,mastambmoutrossegredosda famlia de Yube Xanu. Mito e canto Se pensarmos o mito como traduo dos cantos, da percepo colocada em experimentaonoritualnixipae,dasrelaesentrehumanoseno-humanos quesodescritasnessapoticadoscantos,tambmsuadinmicanarrativa comea a ser afetada. No se trata do que diz o mito, mas do como diz, quais os recursos,asvelocidades,oscortes,osdetalhes,oqueeleescondeounoda ver, do que rpido demais para ser percebido. Mesmo que seja uma narrativa, o mito traz ecos da alterao da percepo que define a prtica do nixi pae. Omitodereferncia,comotantosoutros,versasobreomododeverde humanoseno-humanos,tratadoqueacontecequandosevumaoutra humanidade, sobretudo quando nos vemos huni kuin nos termos do outro. Omitonotraduzummundoobjetivo,traduzummundoafetado,mas sobretudo sua transformao. O mito versa sobre o processo de transformao. Ele no apresenta um processo de transformao, o seu tema a transformao, otransformar-se15.Aprincpiotransformaonamaneiradever,deperceber, yubeinusetransformaemjiboia.Depoisnoprpriocorpo,elesetransforma em cip, destinado a ser transformado e bebido.Essaetnografiadomundodajiboia,dalinguagemdajiboiafeitanos cantoseemsuaprtica.Osdesenhosdoscantos,noentanto,nodescrevem objetivamenteoquesev,comopoderiaseesperardeumaetnografia.So uma etnografia voltada para a potncia de criao da linguagem.O desenho tambm traduo, mas essa traduo no transforma apenas umsentidoqueestariaportrsdaletra.Elesimulaalinguagemqueocanto manifesta,criacomocampointensivoouplanodeimanncia.Sobretudo,esse processo de traduo converte aquilo ou aquele que est diante da tela, o artista, o huni kuin. O keneya ao mesmo tempo pintor e pintado. 14 Categoria que no deve ser confundida com o genrico paj pois no a nica categoria de especialistas desses saberes dasplantas,dosanimais,dascurasetc;houtrosespecialistasdessesconhecimentos.BarbaraKeifenheim(2002) comenta o xamanismo huni kuin. 15 Aqui se cruzam linhas interpem xamanismo e caa, visto que a caa prtica privilegiada para uso e transformao dossentidos.Acaa,talcomooxamanismo,consistenumespaoprivilegiadoparaexperinciasdesentidonolimite. Nos mitos os encantados sempre manifestam prodgio na caa, quase sempre por suas qualidades perceptivas. ACENO, Vol. 2, N. 3, p. 59-77. Jan. a Jul. de 2015. ISSN: 2358-5587. Polticas e Poticas do Audiovisual na contemporaneidade: por uma antropologia do cinema (dossi) )$ Por isso a preocupao de pr no sentido, de traduzir maneira dos huni kuin,emqueimportaentenderanaturezadalinguagemdooutro.Nocaso,a linguagem com que a jiboia teria traduzido ela mesma, ainda, por sua vez, uma outra lngua, a lngua do vegetal. Anaturezadessasmsicastraduzidanomito.Elasresultamdeuma incurso,tambmumcasamentoeumatransformao,deumhunikuinao mundodajiboia,dohunikuinjiboia.Essasmsicas,assimcomoabebida ayahuasca, so um conhecimento secreto do mundo da jiboia.Nohtraduopossvelaquisemessaetnografia,semlanar-sena experimentaodelinguagens,detraduodemundos.Nopossvel tampouco tratar do que estamos fazendo se no considerarmos a perspectiva da jiboia,senoconsiderarmosessaantropologiainterespecficacomqueoshuni kuin se fazem verdadeiros16. Comoprocuramostraduziraqui,nosetratadeumarelaomatria-forma,comodizemDeleuzeeGuattari,esimumarelaodiretamaterial-foras.assimqueomaterialvisualdevecapturarforasno-visveis.As matriasdeexpressodolugaraummaterialdecapturae,apartirda,as forasaseremcapturadasnosomaisasdaterra,queconstituiaindauma grandeformaexpressiva,elassoagoraasforasdeumcosmoenergtico, informal e imaterial17. Traduo Sovriasdimensesdetraduoimplicadasnessescantos.Deumlado, trata-sedetraduzirdeumalnguaparaoutra,deumageraoparaoutra (lnguamaisantiga),deumalinguagempoticaparaumalinguagemobjetiva, do som/palavra para a imagem e at de uma cultura para outra. De outro, ainda, trata-setambmdetraduzirdeumaculturaparaoutra,masnumatraduo interespecfica,umatraduodemundosdeanimaisevegetais,queimplicao perspectivismohunikuineaequivocaocontroladapropostaporEduardo Viveiros de Castro18. Ns articulamos canto, desenho e vdeo para dar conta de recriar essa arte verbal,sonoraevisual.Noentanto,entendemosquenossatraduonose restringeadaraentenderosentidodaspalavrasnascanes.Nossatarefa tradutria definida por Ib como pedagogia huni kuin e alinha-se com aquilo que Deleuze e Guatari podem chamar de arteso csmico.Nossointeresseestnosprocessosdecriao,nasperformances,maisdo quenosdesenhos,quadrosenquantoobjetosoumesmolinguagem.Issoficou clarodesdeoprimeiroencontrodeartistas-desenhistas,ninhodoMAHKU.Os artistascriaramdesenhosrecriandoalnguadeyube.Aomesmotempo, tambmestavamcriandoasiprprioscomoartistas,estavamcriandoo MovimentodosArtistasHuniKuin,estavamcriandooutrostantosartistasque vemcomporoMAHKU.Trata-sedeumatraduocriadora.Seoshunikuin, povo verdadeiro, so verdadeiros na medida em que so keneya, isto , pintados e pintores ao mesmo tempo, trata-se de criar o povo verdadeiro, huni kuin. 16Noatodeinventaroutracultura,oantroplogoinventaasuaprpriaeacabaporreinventaraprprianoode cultura (WAGNER, 2010: 31). 17 Ver ainda ROMANDINI, 2012. 18Indigenousperspectivismisatheoryoftheequivocation,thatis,ofthereferentialalteritybetweenhomonymic concepts (VIVEIROS DE CASTRO, 2004: 5). MATTOS, Amilton Pelegrino. O sonho do nixi pae. A arte do MAHKU )% Nosetratadereinventar-se,porm,apartirdonadaoudecategorias artificiaisdomundono-indgena.Acategoriaartista,comqueosjovenshuni kuinquecompemogruposeidentificamoufazemdevir,nofoiconcebida desvinculadadotrabalhodepesquisa.Masatentemosparaaespecificidade dessapesquisaqueconsistenumaatividadeaqueIbtemdedicadotodasua vida.Principalmenteseentendemosqueoconhecimentohunikuinuma qualidade para a qual a pessoa preparada desde quando concebida. Desde o nascimentoatosrituaisdeiniciao,prepara-seapessoahunikuinparater boa memria e aprender os cantos, por exemplo. E essa pesquisa como obra de umavida,porsuavez,consistenoapenasnaapropriaoetransmisso daquiloqueherdoudeseupai,esimprincipalmenteemrecriaressaatividade depesquisa,seleo,comparao,armazenamentos,partilha,zeloentretantas outras,articuladaaumprocessoderecriaomticooupoticocontnuodo povo verdadeiro. Notentamos,noentanto,reconduzirparaumprincpiodeidentidade,e simcolocaremrelaoessapesquisacomapesquisaacadmica,quandoessa pesquisaseinventaparaproporcionarumaantropologiareversa.Ainterface desseprocessoainteraocomouniversono-indgena:omundodaarte,a universidade e a pesquisa, mesmo a prtica escolar. QuandoIb,emapresentaonoCESTA(USP)19aoserquestionadose aprenderaapesquisarnauniversidade(UFAC),eleresponde,comtodo respeito:auniversidadetemqueaprendercomigo.Podeparecerpretenso, mastalvezprecisemosentenderoqueelequerdizercomisso,poisdefatoa maneiradepesquisarqueeleaprendeucomseupaispoderiaseraprendida entre os huni kuin, algo que seu pai aprendeu a fazer com seu povo a partir de sua prpria inteligncia, percepo e tudo o mais que o qualificava para realizar essetrabalho.Apartirdaesseconhecimentoredefinidonarelaocomo outro, com a universidade e a pesquisa acadmica. algo que a universidade, medidaqueseproponhaatrabalharpesquisaemparceriacomindgenas, precisa compreender. Essa nossa experincia. Masnosisso,essetrabalho-obra-pesquisacaracteriza-seporum princpiooutside(ROMANDINI,2012),porverauniversidadedefora,defora do universo autocentrado ocidental. Essapossibilidadedetransformaodauniversidadeabertapormeioda pesquisa que realizamos, que aprendemos com Tuin e com os huni kuin e que se desdobrou em projetos como Esprito da floresta e MAHKU, assim como nossa propostadetransformaodaescola(indgenaeno-indgena)atravsdaquilo que chamamos de pedagogia huni kuin, pode ser entendido nos termos de uma antropologia reversa20.TalcomopropostoporViveirosdeCastro(2004),aantropologiaque colocaemjogooperspectivismoamerndioimplicaumprocessodetraduo comoequivocaocontrolada,poisenquantootradutorocidentalpermanece noslimitesdaontologianaturalista,ateoriadatraduohunikuin, diferentemente, opera com a transformao de mundos e inveno de culturas (WAGNER,2010).Esseprocessosedapartirdaaoedeconhecimentos apreendidoscomatorescomoexeika,ajiboia-sogro,ekapetaw,ojacar-ponte. 19Otrechonarradoencontra-senovdeoOsonhodonixipae,paraveraapresentaonoCESTA(USP)nantegrao endereo : http://vimeo.com/62086730 20 Ver nota 8. ACENO, Vol. 2, N. 3, p. 59-77. Jan. a Jul. de 2015. ISSN: 2358-5587. Polticas e Poticas do Audiovisual na contemporaneidade: por uma antropologia do cinema (dossi) )& Ointeressedohunikuinpelofora21ganhaumsentidodiverso.Oque caracterizaohunikuinessemovimentoparaofora,essebuscar-senofora, essaaberturaaocosmos,essetornarvisvel,umagenciamento(pensamento-esttica-tica) que nos orienta em tempos de formular uma filosofia do outside (ROMANDINI,2012).Meupaidiziaqueojacargrandevemdeantesda estrela, exeika tambm diz Ib no filme.Foras csmicas. No se trata de ficar no mbito da histria, da terra, e sim de abrir para o cosmos. No se trata, como j dissemos, de sermos includos na arte ocidental, e sim da arte ocidental ser confrontada com essa abertura para o cosmos, para as foras csmicas. Povo huni kuin22 Huni kuin pode ser traduzido como gente verdadeira, humano verdadeiro ou povo verdadeiro, ou ainda os verdadeiros homens conforme Tastevin (2009: 144). Aexemplodeoutrospovos,oshunikuinretomamsuaautodesignao com mais intensidade na ltima dcada. Como tantos outros povos indgenas do continente,oshunikuincompemsuaautodesignaocomointensificador verdadeiro (kuin). Otermokuinvemsendoproblematizadohtempos.Suatraduocomo verdadeirogeraequvocos23.Interessa-nosmuito,porm,acaracterizaodo adjetivo como um intensificador. Tratandodoperspectivismodascosmologiasamerndias,Eduardo ViveirosdeCastroconsideraanoodehumanidadenopensamentoindgena distinguindoqueasautodesignaescoletivasdetipogentesignificam pessoasenomembrosdaespciehumana;eelassopronomespessoais, registrando o ponto de vista do sujeito que est falando, e no nomes prprios (2002:372).Segundooautor,essaidentificaoentregenteeonomedopovo indgena teria sido produzida na interao com o etngrafo24.Emais,segundooautor,essadefiniodaautodesignaoest diretamenteligadaaofatodeamaioriadosetnnimosamerndiosnoserem autodesignaes,masnomes(frequentementepejorativos)conferidospor outrospovos:aobjetificaoetnonmicaincideprimordialmentesobreos outros, no sobre quem est em posio de sujeito (2002: 372). Oshunikuinentraramparaahistriacomokaxinawa25,nomeque Tastevintraduzporhomensvampiros.Eraesseonomeutilizadodesdeos temposdocontato.Foicomessenomequeasterrasindgenasforam registradas. Era como todos se referiam aos huni kuin, inclusive o nome como o estado, que nunca aceitou seus nomes prprios, aceitava registra-los. 21 Ver KEIFENHEIM, 2002. 22 Sobre a noo de povo que vimos tratando, ver Ritornelo, de Deleuze e Guattari, Mil plats, 1997: 152 e seguintes. 23BarbaraKeifenheim(2002)escrevesobreosintagmahunikuinemlugaresdiversos;elacriticaatraduodekuin pelotermoverdadeiro,apontandoparaosentidodencleoendgeno,numainterpretaoqueesbarracomade Viveiros de Castro a seguir. 24 A primeira coisa a considerar que as palavras indgenas que se costumam traduzir por ser humano, e que entram nacomposiodastaisautodesignaesetnocntricas,nodenotamahumanidadecomoespcienatural,masa condiosocialdepessoa,e,sobretudomodificadosporintensificadoresdotipodeverdade,realmente,genunos, funcionam,pragmticaquandonosintaticamente,menoscomosubstantivosquecomopronomes.Elasindicama posio de sujeito; so um marcador enunciativo, no um nome. Longe de manifestarem um afunilamento semntico do nomecomumaoprprio(tomandogenteparanomedatribo),essaspalavrasfazemooposto,indodosubstantivoao perspectivo (usando gente como a expresso pronominal a gente) (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 371).25 Tastevin, 2009:144. MATTOS, Amilton Pelegrino. O sonho do nixi pae. A arte do MAHKU )' SobreaproduodenomesnasprimeirasdcadasdosculoXX,perodo decontatointensivodoshunikuincomasociedadeseringalista,Tastevin26 (2009:113-4)chamaaatenoparaumpontoaserconsideradonaadooe disseminaodenomes.Elenarraocasodepovosadotandoonomedeoutros grupos que j eram conhecidos como mansos, que j tinham sido amansados. O objetivoeraproteger-sedeumapossvelconfusocompovosdesconhecidose brabos. Assim,paraoskaxinawaeracmodomanter-sesobumnomeconhecido, que lhes dava segurana, ainda que esse nome fosse mais um eles que um ns. RetomandoViveirosdeCastroeospronomescosmolgicos,depoisde falardonsedoeles,trata-seagoradasegundapessoa.Segundooautor, responderaumtuditoporumno-humanoequivale(equivoca)acolocar-se numa perigosa posio/condio de no-humano, pois apenas os xams seriam capazes de transitar pelas perspectivas sem terem ameaada sua humanidade.Entreoshunikuin,constata-secadavezmenosumadistinoclaraentre xams,txanaseoutros(KEIFENHEIM,2002).Ousodaayahuascaassocia-se cadavezmaisaotornar-sehunikuin.Maisqueumsistemadecurarestrito,a prticapodeserentendidacomoumaestticadapercepo27queengajaos participantesnametamorfosecontnuadasformasedimensesoque chamamos aqui de foras csmicas e que define a importncia dos processos de transformao visual no seu pensamento28. Propomosaquiqueaarte,conformeapropriadaecolocadacomo mediadornarelaocomomundono-indgena,operacomoextensoe traduo dessa prtica xamnica: as etnografias poticas e visuais. Os processos detraduo.Asprticassinestsicas.Otornarvisvelasforasno-visveis.A experimentaodocomplexoperceptivodocorpocomoprticacentraldeum regimedepensamento.Oengajamentonatransformaooumovimentodas foras csmicas. Essaconclusodoperspectivismoamerndio,apontandoparaa possibilidadedeassumiroutrasperspectivassemperder(ouperdendo,ou compondo,oudevindoetc)suahumanidadenosremeteaumhunimeka. Trata-se de um kayatibu, um canto que se canta para diminuir a fora, encerrar orituale,portanto,certificar-sedoretornodetodosparasuasprprias perspectivas, isto , para sua condio de humanos, ou de huni kuin, humano de verdade (ou hiper humano) na medida em que o ritual pode ser entendido como uma atividade de intensificao de humanidade. 26 Por que se diziam Katukina? Supe-se que para evitar a perseguio dos brancos. Quando estes apareceram na regio, elesseapresentaramacompanhadosdendiosKatukinaeKanamar,queeramamigosdoscivilizadoshaviatempo. Todos os ndios do grupo pano tinham ento uma reputao, talvez exagerada, de ferocidade selvagem e cruel. Centenas deles foram massacrados sem piedade pelos civilizados, e sobretudo pelos semi-civilizados do Peru. (p. 113-4, traduo de Nicols Niymi Campanrio) 27Sobrearelaoentremsica,xamanismoecorporalidadeverMATTOS,2005(www.oqueseouveentre-indice.blogspot.com.br) 28 Simultaneamente,comprovei,emnvelpraxeolgicoeconceitual,osignificadocentralepistmicoatribudopelos ndiosKaxinawaaosprocessosdetransformaovisual,quesovivenciadosemsuaplenitudenumaexperincia sinesttica.SobaperspectivadosKaxinawa,asexperinciasvisuaisliminais-queemgeralpodemserrelacionadas tanto a sonhos, delrios febris, comas e alucinaes, quanto a certos modos de contemplao de padres ornamentais - permitemparticipardametamorfosecontinuamentepossveldeformasedimenses.Atravsdesteprocessode participao,pormeiodaauto-experinciasensorial-corporal,manifestam-seosprincpiosmitolgico-cosmolgicos coletivos (Keifenheim, 2002). ACENO, Vol. 2, N. 3, p. 59-77. Jan. a Jul. de 2015. ISSN: 2358-5587. Polticas e Poticas do Audiovisual na contemporaneidade: por uma antropologia do cinema (dossi) )( EssecantosechamaYameawakawanai,odonodoespritodanoite. Yame noite, awa so as antas que passam noite. Est dizendo que anta vem tepegar,tecomer;dentrodamiraofalando.Entovocresponde:pianti duaken;querdizer:antanovaimepegar,mecomer,euquecomoaanta.E segue:voccomeanta,entovemveado...esegueomesmodilogocomo veado,oporquinho,tatu,paca,cutiasotodosencantados.Vocesttrocando falacomoesprito,trocandoexperinciacomyuxibu.Oespritocomo adversrio29. Ao mesmo tempo voc est curando e mandando diminuir a fora. Histria do kapetaw O vdeo O sonho do nixi pae mostra ainda o MAHKU no projeto Feito por brasileiros,em2014.FomosconvidadospelaartistaNazihaMestaouipara comporaobraYubepdamiwani(Soundsoflight),umainstalaocom 29Bebimosnixipae.Antesdeempezarloscantos,hablamosunpoco.Lainfusinempezahacermeefectoybebun poco ms. No tard en temblar todo. La tierra tembl. Sopl el viento y los rboles se balancearon La gente del nixi pae empezaaparecer.Tenanarcosyflechasyquerandispararcontram.Yotuvemiedo,peromidijeronquesus flechasno me mataran, slo me emborracharan ms (Kensinger, 1976: 20). MATTOS, Amilton Pelegrino. O sonho do nixi pae. A arte do MAHKU )" pinturasnasparedesdoantigoHospitalMatarazzoemSoPaulo.Osmotivos foramdois:Exeika,ajiboia,eoKapetaw,ojacar-ponte.ImagensdeIb, Bane e Isaka pintando a obra Yubep damiwani: E ainda no Instituto Tomie Ohtake, em 2014, Ib canta e conta para Bruce a narrativa do kapetaw (jacar-ponte): EssatxaiBruce,essaaquiqueagenteatravessava,anossaponte,prooutrolado, chama Estreito de Bering, na nossa lngua chama kapetaw, que tem uma msica, umafalaantigaquedeuprans,nalnguadojacar...(Ibcanta)...dizque atravessado pro outro lado, um lago bem grande, de um lado da terra ao outro lado da terra, pedindo: oh meus filhos, se quiser atravessar nas minhas costas, eu troco comvoc,matacaapramim:veado,porquinho,masnomexejacarezinho pequeno, esse minha casca; a os jovens atravessando matavam caa; todo mundo passando,acabandoascaas,ficousjacar;afinalmente:rapaz,notemcomo nscaarmos,vamosmataressejacaredarpraessevelho?T...(nodeixou mais)eahistriaessa;essamsicaquensaindatemosguardadafoieleque deu... ACENO, Vol. 2, N. 3, p. 59-77. Jan. a Jul. de 2015. ISSN: 2358-5587. Polticas e Poticas do Audiovisual na contemporaneidade: por uma antropologia do cinema (dossi) )) Referncias CAMPOS,Haroldode.DeuseodiabonoFaustodeGoethe.SoPaulo, Perspectiva, 1981. CARNEIRO DA CUNHA, M. (Org.) Tastevin: fontes sobre ndios e seringueiros do Alto Juru. Museu do ndio/Funai, 2009. CESARINO,PedrodeNiemeyer.Deduploseestereoscpios:paralelismoe personificao nos cantos xamansticos amerndios, Mana, 12 (1), 2006. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil plats, vol. 4, traduo de Suely Rolnik, So Paulo: Ed. 34, 1997. IB,IsaiasSales.Nixipae,Oespritodafloresta,RioBranco,CPI/OPIAC, 2006. ___________. Huni Meka, Os cantos do cip. IPHAN/CPI, 2007. KEIFENHEIM,Barbara.Nixipaecomoparticipaosensvelnoprincpiode transformao da criao primordial entre os ndios kaxinawa no leste do Peru, In:LABATE,B.C.;ARAUJO,W.S.(orgs.)OUsoRitualdaAyahuasca.Campinas: Mercado de Letras/So Paulo: Fapesp, 2002.KENSINGER,Kenneth.ElusodelBanisteriopsisentreloscashinahuadel Per.HARNER,Michael.Alucingenosychamanismo,Madrid,Punto mega,1976. MATTOS, Amilton Pelegrino de. O que se ouve entre a opy e a escola? Vozes e corpos na ritualidade guarani, Faculdade de Educao, USP, 2005.ROMANDINI,F.L.Paraalmdoprincpioantrpico.Porumafilosofiado Outside. Desterro, Cultura e Barbrie, 2012.VIVEIROSDECASTRO,Eduardo.Ainconstnciadaalmaselvagem,So Paulo, Cosac & Naify, 2002. ___________.PerspectivalAnthropologyandtheMethodofControlled Equivocation, Tipit, 2004, 2(1): 322. WAGNER, Roy. A inveno da cultura, traduo de Marcela Coelho de Souza e Alexandre Morales, So Paulo, Cosac e Naify, 2010.