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FRANCISCO JOSÉ SOARES TEIXEIRA TRABALHO E VALOR CONTRIBUIÇÃO PARA A CRÍTICA DA RAZÃO ECONÔMICA Prefácio PREFÁCIO PARA UM BANQUETE CLÁSSICO FRANCISCO DE OLIVEIRA Posfácio A RAZÃO ECONÔMICA EM DEBATE MANFREDO ARAÚJO DE OLIVEIRA

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3

FRANCISCO JOSÉ SOARES TEIXEIRA

TRABALHO E VALOR

CONTRIBUIÇÃO PARA A CRÍTICA DA RAZÃO ECONÔMICA

Fortaleza

Janeiro-2003

SUMÁRIO

________________________________________________________________

PREFACIO

_________________________________________________________________

FRANCISCO DE OLIVEIRA

________________________________________________________________

PREFÁCIO PARA UM BANQUETE CLÁSSICO

________________________________________________________________

INTRODUÇÃO: ANTES QUE OS OUTROS FALEM

_______________________________________________________

PARTE PRIMEIRA

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A ECONOMIA POLÍTICA NA ÉPOCA DAS CIENCIAS

DA CIENCIA DA RIQUEZA DAS NAÇÕES À CIÊNCIA EXPLICATIVA

DA DISTRIBUIÇÃO DA RIQUEZA

__________________________________________________________________

1. ECONOMIA E POLITICA NA RIQUEZA DAS NAÇÕES: CIÊNCIAS

A SERVIÇO DA LIBERDADE DO HOMEM MODERNO

1.1 - O EGOÍSMO COMO MEDIAÇÃO ESTRUTURADORA E SOCIALIZADORA

DA PRAXIS SOCIAL

1.2 - SMITH E A BUSCA DA RIQUEZA COMO FUNDAMENTO RACIONAL DA

AÇÃO DO HOMEM

2. DAVID RICARDO: EM BUSCA DE UM IDEAL DE CIENTIFICIDADE

PARA A ECONOMIA POLITICA

2.1 - A GUINADA EPISTEMOLÓGICA E UMA NOVA ARQUITETURA DA TEORIA DO VALOR

2.2 - A TEORIA DO VALOR ENQUANTO EXPRESSÃO DA FISIOLOGIA DO

SISTEMA DE PRODUÇÃO DE MERCADORIAS

3. CONCLUSÃO: DA CIENCIA DA RIQUEZA DAS NAÇÕES À UMA

CIENCIA EXPLICATIVA DA DISTRIBUIÇÃO DA RIQUEZA SOCIAL

3.1 - O MÉTODO ENQUANTO ESTATUTO DE CIENTIFICIDADE

3.2 - AS ARMADILHAS DA COERENCIA

4. SISTEMA E HISTÓRIA NA ECONOMIA POLÍTICA

4.1 - DA LEI DO VALOR ENQUANTO TEORIA SISTÊMICA DA SOCIEDADE

4.2 - HISTÓRIA, CRÍTICA E RESIGNAÇÃO

__________________________________________________________________

PARTE SEGUNDA

__________________________________________________________________

A ECONOMIA POLITICA E SUA TRANSFORMAÇÃO NUMA CIENCIA DA

MECANICA DA UTILIDADE

__________________________________________________________________

1. CARL MENGER: A ECONOMIA ENQUANTO CIENCIA

DA ESCASSEZ E DA FELICIDADE HUMANA

_______________________________________________________________________________

1.1 - DA DOUTRINA DA TROCA

1.2 - DA TEORIA DO VALOR

1.3- MENGER E AS RACIONALIDADES DO SABER MODERNO

1.4 - FORMA E MATERIA NA COMPREENSÃO DA ECONOMIA

1.5 - ECONOMIA; CIENCIA DA TOTALIDADE

1.6 - MENGER E O CONCEITO DE HOMEM

____________________________________________________________________________

2. JEVONS E A MORTE DO HOMEM ENQUANTO SUBJETIVIDADE

________________________________________________________________

2.1 - JEVONS E MENGER: IDENTIDADES E DIFERENÇAS

2.2 - PARA UMA CIENCIA DA ECONOMIA POLITICA

2.3 - O MÉTODO COMPLETO DA ECONOMIA

2.4 - O AGENTE ECONOMICO RACIONAL E A MORTE DO HOMEM

__________________________________________________________________

POSFÁCIO

_____________________________________________________________________________

MANFREDO ARAÚJO DE OLIVEIRA

__________________________________________________________________

A RAZÃO ECONÔMICA EM DEBATE

Para Francisco de Oliveira, a quem a Economia Política muito deve. Com CRITICA À RAZÃO DUALISTA, por inaugurar uma nova forma de pensar a dialética do subdesenvolvimento; Com ELEGIA PARA UMA RE(LI)GIÃO, pois desmonta o conceito de região para reconstruí-lo como espaços produzidos pelo desenvolvimento de uma forma de reprodução do capital e uma forma especial de luta de classes; com OS DIREITOS DO ANTIVALOR, porque convida a sociedade a repensar o conceito de luta de classes, não para abandonar a luta pelo socialismo, mas, sim, para recolocá-la à altura dos novos tempos.

_______________________________________________________

PREFÁCIO

________________________________________________________

PREFÁCIO PARA UM BANQUETE CLÁSSICO

________________________________________________________

FRANCISCO DE OLIVEIRA

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Com este Trabalho e Valor: Contribuição para a Crítica da Razão Econômica, o professor Francisco Teixeira, meu xará, reenceta um roteiro de trabalho que começou com o seu excelente Pensando com Marx. Uma Leitura Crítico-Comentada de O Capital ( São Paulo, Editora Ensaio, 1995). Nos dois casos, Teixeira tem um propósito, plenamente alcançado, não de história das idéias econômicas - que também não deixa de abordar no exame das teorias e suas conexões no campo das idéias e da história - mas sobretudo de caráter teórico-conceitual-metodológico no sentido forte: “ empreender uma reconstrução do edifÍcio conceitual da Economia Política”, nas suas próprias palavras.

São contribuições notáveis para a bibliografia brasileira, geralmente pobre em abordagens desse calibre.No que se refere às teorias e autores repassados neste livro, Smith, Ricardo, Menger e Jevons – outros autores, como Mill e Walras, comparecem tangencialmente, na localização de influências e afinidades – o resultado alcançado é inestimável, pois tais autores têm sido sistematicamente naturalizados, como se suas posições teóricas tivessem surgido da cabeça de Minerva.

A tradição dos adeptos do main stream em economia trabalha contra os objetivos dos próprios autores endeusados, pois o que queriam era fazer ciência. Isto fica transparente no tratamento que Teixeira dá à transição de Smith para Ricardo, em que este procurou , para validar Smith e a teoria do valor-trabalho, despojá-la de toda “contaminação” metafísica, exatamente para dar à economia política um estatuto científico. Tal “descontaminação” logrou pleno êxito, e num autor como Jevons encontra sua máxima expressão; mas o custo para a economia política da “descontaminação” foi precisamente o de afastar-se do terreno da ética, tornando a ciência econômica imune a seus próprios erros, uma espécie de “vingança” popperiana.Que tal, em tempos dos grandes conglomerados oligopolistas, submeter à prova empírica o dogma do equilíbrio geral ? E no desastre das fraudes das grandes corporações norteamericanas revelar-se a impotência teórica para tratar questões como a corrupção ? “Desvios” da concorrência ?

Marx está excluído do conjunto aqui examinado por Teixeira, não apenas pelo fato de que nosso autor já lhe dedicou um exame exaustivo no livro citado, mas porque as diferenças entre Marx e os clássicos, de um lado e Marx e os teóricos do valor-utilidade, são profundas. Achar-lhes afinidades teóricas e metodológicas para além do já reconhecido pela história da teoria econômica – o clássico História da Análise Econômica de Schumpeter e o próprio Pensando com Marx podem facilitar essa busca - falsificaria exatamente o objetivo de Chico Teixeira, já referido: a reconstrução conceitual. Para os que conhecem a história das relações entre Marx e os clássicos, sobretudo Ricardo, esse tema não é novo e não mereceria nenhuma nova pesquisa.A linha divisória situa-se precisamente no subtítulo deste livro de Teixeira: Marx não elabora uma teoria da “razão econômica”, que é, para ele, apesar de todas as grandes contribuições dos clássicos, uma “racionalização” ou uma ideologia; o subtítulo de O Capital, por sua vez, revela o que Marx elaborou: uma crítica da economia política.

Nesse meticuloso trabalho de reconstrução conceitual, Teixeira assinala, por exemplo, quando trata de Smith, que a concepção de indivíduo do clássico mais ancestral não é, nem de longe, a de um Robinson Crusoé, isolado, autárquico, fazendo escolhas num vazio social, tal como a ideologia dominante na economia o apresenta. Ao mesmo tempo, uma citação de Smith ajuda a destrinchar a relação entre ética e negócios: “ Não é da benevolência do açougueiro... mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse” (A Riqueza das Nações, apud Francisco Teixeira).Isto nos ajudaria contemporaneamente a desmistificar a pretensão de ética nos negócios, que de fato são negócios de ética, em que as empresas incluem uma suposta ética no marketing.A ironia é que tal estratégia aumenta o faturamento. Não tanto paradoxalmente quanto se pode supor, o fundamento disso é o que Gianetti chamou “vícios privados, virtude pública”, vale dizer os clássicos da economia política. .

O rastreamento da gênese dos conceitos é precioso. Seria necessário citar e assinalar muitos trechos,o que tornaria esse prefácio enfadonho e supérfluo, pois o autor faz melhor.Vale para o prefaciador, o conselho do escultor grego ao sapateiro: não passe do chinelo.É de notar-se que Teixeira ancora Smith na melhor tradição filosófica ocidental: ninguém menos que Aristóteles, que por sinal é, também, a principal âncora de Marx.Como já se notou, Ricardo, na seqüência de Smith, tem como propósito livrá-lo da metafísica, e com isso deslocou o campo de investigações da economia, da produção para o da distribuição da riqueza. Ao fazê-lo, formulando de maneira mais acabada o conceito de valor-trabalho, deu o decisivo passo para uma teoria das classes sociais, ao mesmo tempo que criou a mais robusta filière teórica que pode ainda ser reconhecida nos dias de hoje.

Mas duas conclusões aparecem como inevitáveis depois do exame de Teixeira: quão grande é a distância entre os fundamentos conceituais desses clássicos e a pobreza de seus epígonos; aquela fundamentação é a responsável pela permanência de suas idéias, pois elaboram uma verdadeira teoria da sociedade, enquanto seus epígonos trabalham uma teoria minimalista sem capacidade de totalização.Por ser uma teoria da sociedade, ela pôde transformar-se em ideologia do status quo, o que não tem aqui caráter pejorativo, mas a qualidade de ter passado pela prova da história, o que raras teorias sociais conseguiram. A de Marx é a outra principal concorrente nesse terreno.

No exame das teorias que deslocaram o valor do trabalho para a utilidade, Teixeira esclarece equívocos que juntam Menger e Jevons no mesmo saco. Sendo irmãos siameses nesse deslocamento, têm entretanto profundas diferenças, assinaladas por Teixeira exatamente no fato de que Menger pensa qualidades, enquanto Jevons pensa apenas quantidades. Nesse diapasão, enquanto Menger pensa as escolhas do indivíduo ,o segundo leva às últimas conseqüências a direção epistemológica de Ricardo, no sentido de livrar a economia política de quaisquer “resquícios” de fora de seu próprio campo, de qualquer “contaminação” metafísica: de “economia política” para “economics”. Max Weber, como corretamente assinala Teixeira, foi leitor de ambos, e fez o mesmo na sociologia sobretudo: uma sociologia compreensiva, não-teleológica segundo seu desiderato, que constrói seu objeto – filiação a Menger – mas que não julga e trabalha com tipos-ideais – filiação a Jevons - e portanto, “crítica e resignação” na precisa fórmula de Gabriel Cohn.

A leitura atenta, fluente e convidativa de Teixeira deixa indelevelmente marcado o caráter conservador que foi imprimido à economia política pela sua última grande corrente, a teoria do valor-utilidade. Enquanto os clássicos revolucionavam a compreensão da sociedade, criando armas teóricas para a transição do feudalismo para o capitalismo, a corrente utilitarista transita com Jevons e Walras para “economics”, despolitizam a economia. Menger estando atento à subjetividade, concede a esta um lugar central e desloca a classe; Jevons e Walras – embora este tenha sido apenas referenciado neste belo livro de Teixeira – anulam o sujeito e sua capacidade de escolha. Se parecem mais objetivos e contemporâneos por isso, já que a real capacidade de escolha no capitalismo monopolista é mera ficção, tiram o homem do centro da história: tiram a pólis. Sendo a economia uma realidade matemática, que se pode apenas pesquisar mas não transformar – bem na fórmula platoniana e galileica - não há o que fazer.Não é à toa que essa teoria subsiste. Mas isto é outro capítulo. Devore, leitor, mas com paciência e gosto, e não na forma MacDonalds, este belo livro.Eu já o fiz, com o privilégio desse prefácio.Ele ajudará não apenas ao seu enriquecimento pessoal, mas à compreensão do mundo.

INTRODUÇÃO

ANTES QUE OS OUTROS FALEM

Os leitores afeitos à teoria econômica bem poderiam tomar este estudo como mais um trabalho de história do pensamento econômico. A estruturação do texto conspira a favor desta suspeita. Realmente, a ordem de exposição dos capítulos reproduz o desenvolvimento histórico em que apareceram as diversas teorias econômicas e seus autores, assim como apresentam os manuais de história do pensamento econômico.

É bem diferente o objetivo deste autor. Sua pretensão não é fazer uma narrativa dos conceitos da economia, descrevendo como surgiram e se contrapuseram entre si ao longo da história desta ciência. Pelo contrário, o que se pretende é bem mais ambicioso. A intenção do autor é empreender uma reconstrução do edifício conceitual da Economia Política, tal como foi edificado por seus fundadores. Quer-se compreender como este edifício foi construído, como cada parte foi ajustada, para formar um todo coerente chamado de ciência econômica. Neste sentido, poder-se-ia dizer que a pretensão do autor é a de empreender uma reconstrução lógico-conceitual da Economia.

Para atender a esse propósito, o autor dividiu este livro em duas grandes partes. A primeira pretende dar conta de como a Economia Política, que nasce como um saber ainda calcado sobre bases metafísicas, se transforma numa ciência explicativa, tal como entende o projeto moderno de ciências. Na verdade, o que aqui se discute é o processo pelo qual a Economia Política se constitui como uma verdadeira ciência.

Os autores privilegiados nesse estudo são Adam Smith e Ricardo. Partindo do primeiro, procura-se reconstruir a gênese conceitual da Economia Política, tal como o autor de a Riqueza das Nações concebeu e arquitetou o edifício teórico desta ciência. Infelizmente, essa empresa não se fez sem problemas. Nessa construção, Adam Smith incorre numa série de contradições, que, se não eliminadas, como mais tarde Ricardo vai chamar a atenção, todo o edifício desta ciência estaria comprometido. E mais, tais contradições, diria ele, poriam em cheque o estatuto de cientificidade da Economia enquanto ciência.

Não sem razão, Ricardo toma como sua principal tarefa livrar a Economia Política das incoerências em que esta ciência se viu enredada nas mãos de Smith. E mais: era preciso ainda investigar se a acumulação de capital e a apropriação da renda da terra anulam o princípio segundo o qual as mercadorias são trocadas na proporção do tempo de trabalho nelas inseridas. Sem isto a teoria do valor estaria incompleta. É esta a acusação que Ricardo dirige a Smith, censurando-o por ter limitado aquele princípio unicamente ao rude e primitivo estado da sociedade em que não há acumulação de capital nem apropriação da renda da terra.

Com isto, Ricardo completa o edifício teórico da Economia Política. Em suas mãos, esta ciência pôde atingir melhor o objetivo que a ela fora fixado por seu fundador maior, Smith. Para este, o objetivo seria o de investigar as leis que determinam a produção e crescimento da riqueza; para Ricardo, o objetivo é outro: investigar as leis que governam distribuição da riqueza social entre as diversas classes da sociedade. Independentemente de como cada um desses pensadores vê o objeto da Economia Política, ambos concordariam que esta ciência nasceu com a preocupação de descobrir as leis que governam a produção da riqueza social e sua distribuição entre as diferentes classes da sociedade: capitalistas, trabalhadores e proprietários de terra.

Para chegar às determinações dessas leis, Smith e Ricardo partem da superfície imediata em que aparecem as principais formas de riqueza (salário, lucro, renda da terra e juros), fixas e independentes entre si, para descobrir que todas essas formas têm como fonte o trabalho. Vale dizer, essas formas de riqueza, independentes umas das outras, têm em comum o fato de serem formas de manifestação de uma única e mesma substância: trabalho humano, que é o preço, como dizia Smith, com o qual se paga a riqueza social.

Assim, Adam Smith e Ricardo apreenderam o sistema capitalista como totalidade, que é conexão dos diferentes elementos que compõem a produção e reprodução da riqueza social como um todo. Entenderam, assim, que a riqueza apropriada pelas diferentes classes sociais - trabalhadores, capitalistas e proprietários de terra - depende de uma única fonte: o trabalho.

É óbvio que essa totalidade é totalidade formal, porque a conexão das diferentes formas de riqueza é pensada como uma redução do pensamento. É este que, varando a superfície imediata dos fenômenos, descobre o que está oculto por trás das formas aparentes de riqueza. Mesmo assim, Smith e Ricardo, partindo da desordem aparente que reina na economia, conseguiram construir uma representação da sociedade capitalista como totalidade, pois foram capazes de compreender a regularidade imanente que rege os movimentos irregulares do mercado - a lei do valor. Assim, puderam mostrar que todas as formas de riqueza repousam sobre um elemento comum - o trabalho, de onde tudo brota: salário, lucro, renda da terra e juros. Não por menos, o Hegel, da Filosofia do Direito, parte justamente dessa totalidade construída pelos clássicos da economia para compreender, a partir daí, como o sistema de carecimentos produz, por sua própria dialética interna, um sistema universal de interdependência, no qual cada particular só se afirma enquanto tal quando mediado pelo metabolismo da troca engendrado pela divisão social do trabalho.

É assim que Menger vai entender a Economia Política: um todo organicamente articulado, em que cada parte é ajustada para formar uma totalidade de sentido. Da mesma forma como se constrói uma casa, arquiteta-se a estrutura conceitual da economia. Como os blocos constituem os elementos simples a partir dos quais se edifica uma casa, na economia, esses blocos, como entende Menger, correspondem aos fenômenos econômicos mais simples, que devem ser conhecidos e concatenados, segundo o nexo de causalidade por que se ligam entre si. Este é o caminho que o teórico da economia deve proceder: reduzir os complexos fenômenos da economia aos seus elementos mais simples, acessíveis a observação do pesquisador, para descobrir a importância de cada um e, assim, investigar como se pode daí evoluir para compreender os fenômenos econômicos mais complexos.

É com este autor que se abre a segunda parte deste estudo. Trata-se de um pensador que inaugura, juntamente com Walras e Jevons, um novo paradigma na economia política: a teoria subjetiva do valor, que faz da utilidade a fonte explicativa dos preços. Mas atenção: se Menger compartilha com Walras e Jevons a idéia de que a fonte do valor é a utilidade e não mais o trabalho, como entendiam Smith e Ricardo; se divide com aqueles este mesmo ponto de vista, deles diverge radicalmente tanto no plano metodológico, quanto antropológico. É essa divergência que impede considerá-lo como um dos membros da chamada escola marginalista, tal como geralmente são conhecidos Walras e Jevons. A rigor, nem mesmo se pode considerar Menger um marginalista. Realmente, o método seguido por ele não lembra em nada o método abraçado por Jevons e Walras. Referindo-se a este último, Menger o censura por conta da matematização que ele faz da economia. Ora, argumenta ele, a economia não pode ser uma ciência matemática porque não trabalha com quantidades; pelo contrário, sua preocupação é investigar a essência do valor, da renda da terra, do lucro etc. Quer investigar a essência dos fenômenos econômicos para, então, conhecer suas leis exatas.

No plano antropológico, a divergência com relação à chamada escola marginalista não poderia ser maior. Muito diferente do que pensam Jevons e Walras, para os quais os agentes econômicos têm perfeito conhecimento de mercado, Menger entende que os indivíduos não possuem tal conhecimento. Para ele, o mercado não é uma instituição transparente, mas, sim, o lugar da incerteza, do risco e da busca de informações.

São duas concepções de homem completamente diferentes. Para Jevons e Walras o homem de carne e osso é reduzido a um abstrato homem econômico, que não pensa nem age como indivíduo ativo; nem é necessário. Para que pensar, se o mundo é totalmente transparente? Por que buscar informação, num mundo onde só há certeza? Não é assim que entende Menger. Para ele, como a economia não é um mundo transparente, o homem é obrigado a agir e a planejar suas ações para enfrentar as incertezas de mercado. Se é assim, não tem sentido considerar Menger um marginalista. Considerá-lo como tal, é um erro que se deve aos manuais de história do pensamento econômico, que não estão interessados em investigar como surgem tais diferenças, mas, sim, preocupados unicamente em narrar e catalogar as idéias econômicas, na ordem em que apareceram na história.

Menger e os marginalistas (Jevons e Walras) estão, assim, separados em campos diretamente opostos. Realmente, não só têm concepções metodológicas diferentes, como também entendem de forma radicalmente distinta o "homem econômico".

O fato de pertencerem a um mesmo paradigma teórico, a teoria subjetiva do valor, não os faz pensar do mesmo modo. Para entender esse qüiproquó, este autor convida o leitor, para com ele, investigar as razões de tudo isso. É uma longa jornada, que começa com Adam Smith, passa por Ricardo, chega a Menger e termina com Jevons. Bem, o convite está feito. Espera-se que a viagem seja agradável e ajude leitor a descobrir algo mais do que geralmente oferecem os manuais de história do pensamento econômico.

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PARTE PRIMEIRA

_________________________________________________

A ECONOMIA POLÍTICA NA ÉPOCA DAS CIENCIAS

DA CIENCIA DA RIQUEZA DAS NAÇÕES À CIÊNCIA EXPLICATIVA

DA DISTRIBUIÇÃO DA RIQUEZA

1. ECONOMIA E POLÍTICA NA RIQUEZA DAS NAÇÕES: CIENCIAS

A SERVIÇO DA LIBERDADE DO HOMEM MODERNO

1.1 - O EGOÍSMO COMO MEDIAÇÃO E STRUTURADORA E SOCIALIZADORA

DA PRÁXIS SOCIAL

Partindo do pressuposto de que o homem é por natureza um ser que nasceu para viver numa sociedade mercantil, Smith entende que

em todo espaço de tempo que medeia entre o berço e a sepultura, dificilmente haverá um só momento em que uma pessoa esteja tão perfeita e completamente satisfeita com sua situação, que não deseje alguma mudança ou melhoria de qualquer tipo que seja.

Acontece que este desejo de melhoria, que cada indivíduo carrega consigo, não depende unicamente do esforço individual de cada um. Para melhorar suas condições de existência, o indivíduo precisa da cooperação dos demais membros da sociedade. E não poderia ser diferente, diria Adam Smith, pois ninguém é capaz de, por si só, prover-se de tudo de que necessita para sobreviver; ninguém é capaz de produzir, sozinho, tudo de que precisa. Por isso, necessita da cooperação dos demais. “Numa sociedade civilizada”, escreve Smith,

o homem a todo momento necessita da ajuda e cooperação de grandes multidões, e sua vida inteira mal seria suficiente para conquistar a amizade de algumas pessoas .

Mas se um indivíduo não pode conquistar a amizade de todos os seus semelhantes, e talvez isto nem faça parte de seus planos, pode, entretanto, ganhar a simpatia e a cooperação de seus vizinhos. Aliás, diz Smith, é assim que agem todos aqueles que precisam da cooperação dos outros para realizar seus interesses pessoais. Smith tem consciência de que as coisas não poderiam ser diferentes. Sabe que, numa sociedade em que a produção é produção para o mercado, é inútil contar-se com a benevolência do próximo para conseguir o que se deseja. “Cada um terá maior probabilidade de obter o que quer”, diz o autor de A Riqueza das Nações,

se conseguir interessar a seu favor a auto-estima dos outros, mostrando-lhes que é vantajoso para eles fazer-lhe ou dar-lhe aquilo de que ele precisa. É isto o que faz toda pessoa que propõe um negócio a outra. Dê-me aquilo que eu quero, e você terá isto aqui, que você quer ...; é dessa forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos serviços de que necessitamos. Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse. Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas à sua auto-estima, e nunca falamos das nossas próprias necessidades, mas das vantagens que advirão para eles.

É assim que todos agem em sociedade. Ninguém, por mais pobre que seja, pode viver dependendo da benevolência dos seus semelhantes. Isto não quer dizer que não haja lugar para o desenvolvimento de sentimentos de generosidade, de amor, de gratidão e de amizade. Tais sentimentos, embora presentes no homem, não são, contudo, a principal força impulsionadora do mundo. O que explica a prosperidade e riqueza de um povo ou nação é, acima de tudo, a busca incessante pela satisfação dos interesses materiais. Para tanto, os indivíduos devem poder gozar de total liberdade de ação.

É assim mesmo que Smith explica o crescimento e desenvolvimento das nações. Quando uma nação permite aos seus membros gozarem da liberdade de agirem em nome dos seus interesses próprios, no sentido de melhorarem sua própria condição de vida, todos ganham, todos prosperam; a sociedade torna-se mais rica e feliz. Foi este o caminho trilhado pela Inglaterra. Neste país, diz Smith,

embora os altos gastos do governo [...] devam ter retardado o curso natural da Inglaterra em direção à riqueza e ao desenvolvimento, não foi possível sustá-lo. A produção anual da terra e do trabalho na Inglaterra é, sem dúvida, muito maior hoje do que na época da restauração ou da revolução. Em conseqüência, maior deve ter sido também o capital empregado anualmente no cultivo da terra e para manter essa mão-de-obra. Em meio a todas as exceções feitas pelo governo, esse capital foi sendo silenciosa e gradualmente acumulado pela frugalidade e pela boa administração dos indivíduos particulares, por seu esforço geral, contínuo e ininterrupto no sentido de melhorar sua própria condição. Foi esse esforço protegido pela lei e permitido pela liberdade de agir por si próprio de maneira mais vantajosa, que deu sustentação ao avanço da Inglaterra em direção a grande riqueza e ao desenvolvimento em quase todas as épocas anteriores, e que, como é de se esperar, acontecerá em tempos futuros

Nesta passagem, o autor de A Riqueza das Nações deixa claro que a melhor forma de sociedade é aquela que propicia aos indivíduos liberdade de iniciativa individual para alocar seus recursos naquelas atividades que julgarem melhor para aumentar o seu capital. Isto só é possível numa sociedade de livre mercado, pois, diz Smith,

não há regulamentação comercial que possa aumentar a quantidade de mão-de-obra em qualquer sociedade além daquilo que o capital tem condições de manter. Poderá apenas desviar parte desse capital para uma direção para a qual, de outra forma, não teria sido canalizada; outrossim, de maneira alguma há certeza de que essa direção artificial possa trazer mais vantagens à sociedade do que aquela que tornaria caso as coisas caminhassem espontaneamente

Deixados por conta de sua livre iniciativa, todos serão levados como que por uma mão invisível a promover o interesse geral da sociedade. Por isso, argumenta o autor da "Riqueza das Nações":

é evidente que cada indivíduo (...) tem muito melhores condições do que qualquer estadista ou legislador de julgar por si mesmo qual o tipo de atividade nacional na qual pode empregar seu capital, e cujo produto tenha probabilidade de alcançar o valor máximo. O Estadista que tentasse orientar pessoas particulares sobre como devem empregar seu capital não somente se sobrecarregaria com uma preocupação altamente desnecessária, mas também assumiria uma autoridade que seguramente não pode ser confiada a alguma assembléia ou conselho, e que, em lugar algum, seria tão perigosa como nas mãos de uma pessoa com insensatez e presunção suficiente para imaginar capaz de exercer tal autoridade

A defesa smithiana de livre mercado é muito clara: nenhuma autoridade central pode ter conhecimento melhor do que os indivíduos, no que diz respeito a suas decisões de investimentos; e não pode porque nenhum planejador tem condições de dispor de um conhecimento global que permita a coordenação de milhões de decisões, tomadas por diferentes sujeitos e com diferentes interesses. Por isso, o mercado é o único mecanismo capaz de suprir essa falta de conhecimento e, assim, coordenar a multiplicidade de decisões e ações dos indivíduos.

Desdobrando melhor seus argumentos em defesa do livre mercado, salta à vista que, para Smith, uma coordenação consciente do mercado seria uma ameaça fundamental à liberdade e, por extensão, prejudicial ao progresso e ao desenvolvimento da humanidade. É o que também advoga David Ricardo, que defende a liberdade de mercado como condição de possibilidade para a construção do homem como ser do mundo, como cidadão mundial. Em suas próprias palavras,

num sistema comercial perfeitamente livre, cada país naturalmente dedica seu capital e seu trabalho à atividade que lhe seja mais benéfica. Essa busca de vantagem individual está admiravelmente associada ao bem universal do conjunto dos países. Estimulando a dedicação ao trabalho, recompensando a engenhosidade e propiciando o uso mais eficaz das potencialidades proporcionadas pela natureza, distribui-se o trabalho de modo mais eficiente e mais econômico, enquanto, pelo aumento geral do volume de produtos difunde-se o benefício de modo geral e unem-se a sociedade universal de todas as nações do mundo civilizado por laços comuns de interesse e de intercâmbio

O mercado se apresenta, assim, como a única forma de produção e de distribuição da riqueza social, que permite ao homem desenvolver suas aptidões naturais: a busca incessante e ininterrupta para melhorar a sua própria condição de vida. Embora cada indivíduo esteja interessado unicamente no que diz respeito imediatamente a si, a realização do seu interesse particular depende dos outros que, igualmente como ele, precisam da cooperação dos demais. Afinal de contas, todos vivem numa sociedade em que a troca é o único meio pelo qual podem conseguir o que desejam.

Essa liberdade de agir, governada unicamente pelo interesse privado, explica, para Adam Smith, o progresso e o desenvolvimento da humanidade. A Inglaterra é o exemplo clássico de que se serve para dar razão a sua investigação das causas e natureza da riqueza das nações.

1.2 - SMIITH E A BUSCA DA RIQUEZA COMO FUNDAMENTO RACIONAL

DA AÇÃO DO HOMEM

Em que se fundamenta Smith para chegar a tais conclusões? O que o autoriza a falar de uma natureza humana orientada para a obtenção da riqueza privada e de uma harmonia dos interesses particulares, consoante com o interesse geral da sociedade? Como sabe o que sabe? Em síntese, como chega a esse conhecimento da natureza humana? Observando o comportamento dos homens em suas ações cotidianas? Se não procede dos fatos empíricos, para, a partir deles, chegar a uma conclusão geral sobre a natureza humana, de onde, então, parte Smith para explicar a conduta humana em seu agir econômico?

Essas indagações levam o leitor da Economia Política à questão de como os fundadores desta ciência procedem em sua investigação para se apropriarem da realidade econômica e, assim, transformá-la em objeto de estudo. Em forma de pergunta, quais as regras metodológicas que orientam o conhecimento da economia? Será que essas regras conferem caráter de cientificidade a essa ciência, tal como ocorre com as ciências contemporâneas, que orientam o seu saber por meio de leis controladas pela experiência e adquirido metodicamente? A Economia Política teria, portanto, tal objetivo: produção de conhecimentos que têm por finalidade elaborar prognósticos tecnicamente aplicáveis? Ou, o que é a mesma coisa: até que ponto a Economia Política pode ser considerada como um conhecimento verdadeiramente científico; um conhecimento fundado em sentenças precisas e úteis, capazes de predições sobre o curso dos eventos sociais?

Seria vão buscar uma resposta diretamente nos compêndios da Economia Política. Esta ciência, como qualquer outra, não trata das questões metodológicas ou das regras lógicas que sustentam o seu edifício teórico. Com mais razão, se se considerar que estas questões são objetos de estudo da lógica ou da filosofia das ciências. Por isto, elas não aparecem diretamente na investigação e apresentação da teoria econômica; são assumidas como condições de possibilidades para a construção da realidade como objeto de conhecimento econômico.

Se o conhecimento científico e sua fundamentação obedecem a uma divisão intelectual do saber bem definida, a melhor maneira para começar a analisar o método de investigação da economia seria definir o seu campo de estudo, seu objetivo. Nesta direção, John Stuart Mill, ao que se julga, é quem melhor definiu o interesse que move a produção do conhecimento econômico. Este filósofo, que escreveu obras sobre lógica e economia, parte do princípio de que a economia, para falar com segurança das questões sociais, deve definir com precisão o seu objeto de estudo. Seguindo-o de perto, Mill defende a idéia de que a Economia Política deve se ocupar

apenas daqueles fenômenos do estudo social que ocorrem em conseqüência da busca de riqueza. Faz total abstração de qualquer outra paixão ou motivo humano, exceto aqueles que podem ser considerados como princípios perpetuamente antagônicos ao desejo de riqueza, a saber, a aversão ao trabalho e o desejo da satisfação presente de indulgência dispendiosa. Estas ela considera, até certo ponto, em seus cálculos, porque não apenas, como nossos outros desejos, entram em conflito ocasional com a busca da riqueza, mas acompanham sempre, como um empecilho ou impedimento e estão, portanto, inseparavelmente misturadas em sua consideração. A Economia Política considera a humanidade enquanto ocupada unicamente em adquirir riqueza e visa a mostrar qual é o curso da ação no qual a humanidade, vivendo em um estado de sociedade, seria impelida se aquele motivo, exceto pelo grau em que é refreado pelos dois perpétuos motivos contrários acima referidos, fosse a regra absoluta de todas as suas ações. Sob a influência desse desejo, ela mostra a humanidade acumulando riqueza e empregando-a na produção de outra riqueza; sancionando por meio de um acordo mútuo a instituição da propriedade, estabelecendo leis para impedir que os indivíduos usurpem, pela fraude ou pela força , a propriedade dos outros, adotando várias invenções para aumentar a produtividade do seu trabalho; ajustando a divisão do produto por meio de acordo e sob a influência da competição (a própria competição sendo governada por certas leis, leis que são, portanto, as reguladoras últimas da divisão do produto); e empregando certos meios (como dinheiro, crédito, etc.) para facilitar a distribuição.

Ao definir, assim, o objeto da Economia, Mill tinha muito mais em mente os Princípios de Economia Política de Ricardo do que propriamente a teoria da Riqueza das Nações de Adam Smith. Este último, como visto há pouco, não entende o homem como um ser puramente econômico, isto é, movido exclusivamente pelo instinto da busca da riqueza pela riqueza. A riqueza das Nações, que tem como tarefa investigar as causas e natureza do crescimento da riqueza social, insere-se no sistema de Smith como parte de um todo maior, cujo propósito é pensar os princípios e conceitos fundamentais do agir e pensar do homem. A atividade econômica é apenas parte deste todo, como se pretende demonstrar mais adiante. Neste sentido, a idéia de Mill de que a economia é uma ciência preocupada exclusivamente com ação do homem em sua busca pela riqueza, no caso de Smith, deve ser entendida como uma abstração que separa a economia da totalidade mais complexa da vida social.

Se é assim, como chega a Economia Política ao seu objeto de estudo? Quem a informa de que sua preocupação é explicar a conduta humana em busca de maior quantidade possível de riqueza e com o menor esforço possível? Dentre as diversas ações que definem o comportamento humano, como demarcar aquelas que deverão integrar, num corpo teórico, coerente e único, o edifício teórico dessa ciência?

No caso específico de Adam Smith, o melhor caminho para se chegar a essa demarcação seria recorrer ao testemunho de alguém que acompanhou de perto a construção do seu pensamento: seu amigo pessoal, Sr. Dugald Stewart, Em sua biografia crítica sobre a Teoria dos Sentimentos Morais e A Riqueza das Nações, assim define as idéias centrais destas obras:

orientar a política das nações para a mais importante classe de suas leis, as que formam seu sistema de economia política, constitui a grande finalidade da Investigação do Sr. Smith.

Mas, quais são esses princípios que deverão nortear a política? Com a palavra o Sr. Stewart:

as doutrinas fundamentais do sistema do Sr. Smith são tão amplamente conhecidas [...]. O grande e principal propósito de suas especulações é ilustrar como a natureza proveu os princípios do espírito humano, e as circunstâncias da situação exterior do homem, a fim de aumentar gradual e progressivamente os meios de riqueza nacional. Além disto, o autor pretende demonstrar que o plano mais eficaz para levar um povo à grandeza é manter essa ordem de coisas que a natureza indicou, permitindo a todo o homem, enquanto observar as regras da justiça, perseguir, à sua maneira, seu próprio, e trazer sua indústria e seu capital para a mais livre competição com os dos seus concidadãos. Todo sistema de política que se esforce, seja por extraordinários incentivos, para destinar a uma espécie particular de indústria uma parte do capital da sociedade maior que naturalmente atrairia, seja por extraordinárias restrições, para afastar de uma espécie particular de indústria parte do capial que do contrário nela seria empregado, na realidade subverte o grande propósito que deveria promover

Uma leitura atenta desta citação deixa claro que cabe à política a realização da liberdade e do bem comum da sociedade, mediante a observação vigilante dos princípios incondicionados que a natureza gravou no espírito humano. Há uma ordem traçada pela natureza que não deve ser violada pela intervenção dos homens responsáveis pela condução da política social. Iluminados pela teoria, os estadistas deverão cuidar para não deixar a política se desviar da ordem preestabelecida pela natureza. A este respeito, o biógrafo de Smith não poderia ter sido mais direto. Referindo-se aos objetivos últimos que o estadista deve buscar, diz que

a tranqüilidade de sua administração e o sucesso imediato de suas medidas dependem do seu bom senso e sua habilidade prática, enquanto seus princípios teóricos apenas o capacitam a administrar suas medidas de maneira sábia e constante para a melhoria e felicidade da espécie humana, evitando com isso desviar-se dessa importante finalidade por concepções mais limitadas de eficácia provisória.

Stewart não poderia ter sido mais claro: há uma ordem teleológica inscrita na natureza, que deve ser observada pela política, de modo que esta possa realizar, na prática, o que esta ordem prescreve aos homens em sua práxis social e política. Neste sentido, a finalidade da política é trabalhar para ajudar a efetivar as disposições naturais do homem em sua vida prática. Para isso, ela dispõe da Economia, que tem como tarefa traduzir os princípios fundamentais constitutivos da natureza humana.

Se é assim, como é possível o homem conhecer essa ordem teleológica da natureza e, assim, recomendar a sua aplicação prática? Como se pode notar, esta questão é fundamentalmente de natureza metodológica. Ela abre a porta que dá acesso à problemática do método da Economia Política. E é com base no método utilizado por esta ciência que se deve responder a questão que pergunta como essa ciência conhece as leis que presidem as ações humanas.

Uma resposta plausível seria a seguinte: é na história que se deve espelhar a Economia Política, para encontrar as leis universais da conduta do homem em suas ações econômicas. Sem dúvida, quem conhece a Riqueza das Nações sabe muito bem que esta obra é repleta de relatos históricos e exemplos que mostram as formas concretas de ação dos homens em sua busca incessante e ininterrupta para obtenção da riqueza. Em seus estudos comparativos entre as sociedades antigas e modernas, ou até mesmo nas comparações que faz entre o sistema mercantil e a economia capitalista, Smith encontra extenso material para dar razão à sua tese de que existe uma finalidade última gravada na natureza humana, que impele o homem a buscar sua felicidade material. Logo nos primeiros capítulos da Riqueza das Nações, Smith, recorrendo a certos exemplos históricos, tem como certo que o desenvolvimento da sociedade é conseqüência necessária, embora muito lenta e gradual, de certa propensão humana, que impõe aos indivíduos a busca ininterrupta e incessante de meios para melhorar as suas condições materiais de vida.

Esta leitura encontra apoio na biografia crítica que Stewart faz da obra de Smith. Referindo-se à distinção entre a política antiga e a moderna, este autor mostra como os tempos modernos propiciaram as condições necessárias para a realização da felicidade do homem: sua ambição natural para adquirir cada vez mais riqueza. Deixando que o próprio Stewart se manifeste:

as vantagens da política moderna sobre a antiga nascem principalmente de sua conformidade [...] com a ordem de coisas recomendada pela natureza; e não seria difícil mostrar que, onde permanece imperfeita, seus erros podem ser relacionados às restrições impostas sobre o curso natural dos assuntos humanos.

Stewart faz uso dessas argumentações, segundo afirma, para ilustrar

a ligação entre seu sistema [de Smith] de política comercial e as especulações de seus primeiros anos, em que buscava mais declaradamente o avanço do aprimoramento e da felicidade humana .

Acontece que há um grande hiato entre os princípios delineados pela teoria e a realidade. Smith tinha clara consciência disto. Como bem notou o Sr. Stewart, a aplicação prática dos princípios últimos, delineados pela teoria dependeria de uma série de circunstâncias particulares, que variam de país para país. Nunca será possível predizer de modo infalível que a política efetivará plenamente as predisposições naturais do homem. Principalmente, se se considerar que a história é o lugar da contingência, dos erros e imprevistos, os quais a teoria não pode prognosticar com certeza.

Se é assim, a história não seria o lugar apropriado para descobrir, de modo certo e seguro, os princípios naturais de conduta do ser humano. Ora, se a Economia Política deve estar a serviço da política, enquanto doutrina voltada para traduzir os princípios da constituição humana, que conduzem a humanidade para a felicidade, seus fundamentos não podem ser derivados da experiência. Com mais razão ainda, se se levar em conta que, para Smith, a história é lugar de realização desses princípios; não a fonte de sua constituição. Tudo indica que é assim mesmo que ele pensa. Um exame apressado de sua teoria do valor parece não deixar nenhuma dúvida quanto a isso. Quem conhece sua teoria sabe que ela se alicerça numa concepção essencialista de que o homem é um ser da troca. Se é assim, para demonstrar que o trabalho é a verdadeira fonte do valor, Adam Smith parte de um estado ideal de natureza que precede tanto a apropriação privada da terra quanto o acúmulo de capital em mãos de pessoas particulares. Nestas condições, para o autor de a Riqueza das Nações, todo o produto do trabalho pertence ao trabalhador; e a quantidade de trabalho normalmente empregada em adquirir ou produzir uma mercadoria é a única circunstância capaz de regular ou determinar a quantidade de trabalho que ele normalmente deve comprar, comandar ou pelo qual deve ser trocado. Se é assim, a remuneração que cada um recebe por seu trabalho, para falar em termos smithianos, é igual ao valor do produto, ou, se se preferir, salário e valor são duas grandezas iguais. Em conseqüência, a troca dos diferentes produtos do trabalho se faz de acordo com o princípio da equivalência.

Neste mundo, onde cada um é dono integralmente do produto do seu trabalho, a concorrência entre os diversos produtores estabelece a devida proporção entre quantidades ofertadas e demandadas de mercadorias. Em conseqüência, não haverá excesso ou falta de bens; as necessidades da sociedade são plenamente atendidas.

Mas isto não é o que acontece no mundo real. A interferência do estado, a existência de corporações de ofício, a presença de oligopólios, entre outras coisas, impedem que os recursos da sociedade sejam alocados de acordo com as premissas da teoria do valor. Daí que esta teoria, para Smith, é vista como um referencial, a partir do qual ele lê a realidade do seu tempo e, assim, prescreve como as coisas deveriam ser para que os homens pudessem ser felizes, isto é, pudessem desenvolver e aprimorar suas aptidões naturais em busca de maior riqueza e conforto. Neste sentido, não seria exagero acrescentar que a teoria do valor é a mediação teórica da qual devem os homens se valer para realizar no chão da história os seus fins últimos: a busca pela riqueza e, assim, sua felicidade suprema.

Aos olhos de David Hume, o sistema smithiano não poderia ser mais metafísico. Amigo particular que fora do autor de A Riqueza das Nações e com quem deve ter mantido acaloradas discussões teóricas, dirige-lhe várias censuras, desabonando o método por ele utilizado, possivelmente por seu caráter metafísico. Numa carta datada de 1769, Hume se queixa da ausência do companheiro que se havia retirado do convívio dos amigos para escrever a Riqueza das Nações, e afirma:

estou contente por ter-te em meu horizonte; mas, como também desejaria ter-te ao meu lado, gostaria que tomássemos certas medidas para esse fim [...]. Quero saber o que tens feito, e exijo uma rigorosa descrição do método em que tens te ocupado nesse teu retiro. Estou seguro de que estás errado em muitas de tuas especulações, em particular as que têm a infelicidade de divergir das minhas .

Como se sabe, em sua crítica à metafísica, David Hume demonstra que a razão, por meio de conceitos, é incapaz de pensar a priori uma relação necessária entre causa e efeito. Somente a experiência, diz Hume, pode fornecer esta relação. Não de forma rigorosamente necessária, pois nada pode garantir que um efeito sempre se seguirá à sua causa. Sendo assim, a relação causa e efeito não passaria, para ele, do hábito que as pessoas adquirem ao ver um determinado fenômeno seguir-se a outro. Se não há relação necessária de causalidade, o conhecimento será sempre relativo e parcial. Se é assim, não é possível nenhum conhecimento absoluto sobre os princípios determinantes da conduta humana.

Ora, para quem tinha a ambição intelectual de produzir um referencial teórico fundado em certezas inabaláveis, o ceticismo de Hume não poderia ser mais contrário aos propósitos de Smith. As censuras que aquele lhe dirige em carta devem ter soado como um tiro que sai pela culatra. De fato, muito embora Smith tenha recorrido à experiência como instância produtora de conhecimentos, não se deixou enfeitiçar-se por ela. Sabia que, na história, domina a contingência e que, por isso, não oferece um chão seguro para, a partir dele, via indução, construir um saber seguro, que o autorizasse a falar dos princípios universais que devem governar a ação dos homens em busca da realização de sua felicidade. Sua teoria do valor, como antes anunciada, é uma prova disto.

Acontece que não é preocupação da teoria do valor demonstrar a causa primeira que prescreve aos homens uma conduta voltada permanente e ininterruptamente, para melhoria de suas condições materiais de existência. Aliás, como visto antes, não é tarefa das ciências ocupar-se de questões metodológicas; esta é uma tarefa reservada à filosofia das ciências. Neste sentido, não cabia à Riqueza das Nações demonstrar seus fundamentos metodológicos, mas, sim, assumi-los como pressuposto em sua investigação sobre as causas e natureza da riqueza das nações.

Adam Smith, ao que tudo indica, tinha consciência dessa divisão intelectual do saber. Afinal de contas, era filho da modernidade, isto é, de uma época em que as ciências haviam se separado da filosofia, constituindo-se um saber não mais preocupado com os princípios ou essências constitutivas do agir e do pensar. Talvez por isso, atribui à sua Teoria dos Sentimentos Morais a tarefa de fundamentar os princípios que governam a ação humana. Na verdade, nesta obra, a preocupação de Smith é dupla: por um lado, sua preocupação é explicar como a teoria pode conhecer a conduta do homem e, por outro, como a partir desta conduta os homens aprendem a agir moralmente.

Restringindo-se unicamente à questão da fundamentação, como conhece Smith as leis que determinam a natureza humana? Em oposição ao esquema weberiano, sua concepção metodológica poderia ser resumida na seguinte frase: é preciso ser Smith para entender Smith Vale dizer: para compreender as paixões constitutivas do ser homem, Smith lança mão de um esquema de “revivência empática” para conhecer as ações alheias. Noutros termos, A. Smith parte da idéia de que o único modo pelo qual se pode apreender o comportamento alheio é assumir hipoteticamente a situação vivida pelo próximo. Sua argumentação funda-se no princípio de que a natureza dotou o homem do sentimento de experimentar em si a situação do próximo, de experimentar a situação dos outros. Se é assim, o observador, sempre que se coloca na situação do observado, pode experimentar “na pele” os sentimentos de quem sofre.

A essa teoria, Smith dá o nome de simpatia ou solidariedade. Deixando que ele mesmo defina sua teoria, afirma que

por mais egoísta que se suponha o homem; evidentemente há alguns princípios em sua natureza que o fazem interessar-se pela sorte dos outros, e considerar a felicidade deles necessária para si mesmo, embora nada extraia disso senão o prazer de assistir a ela [...]. É fato óbvio demais para precisar ser comprovado, que freqüentemente ficamos tristes com a tristeza alheia; pois esse sentimento, bem como todas as outras paixões originais da natureza humana, de modo algum se limitam aos virtuosos e humanitários, embora estes talvez sintam com uma sensibilidade mais delicada

Será que esse modo de compreender os sentimentos alheios não leva o observador a confundir sua vivência com a do sujeito que é seu objeto de conhecimento? A resposta de Smith é surpreendente. Para ele,

como não temos experiência imediata do que os outros homens sentem, podemos formar uma idéia da maneira como são afetados se imaginarmos o que nós mesmos sentiríamos. Embora nosso irmão esteja sendo torturado, enquanto nós mesmos estamos tranqüilos, nossos sentidos jamais nos informarão sobre o que ele sofre

Os sentidos, diz Smith, não podem levar um indivíduo para além se si próprio. O pôr-se no lugar do outro não é uma questão que possa ser resolvida mediante o uso dos sentidos. O observador só pode trocar de lugar com o observado na imaginação. Que o diga Smith, para quem, somente

por intermédio da imaginação podemos nos colocar no lugar do outro, concebemo-nos sofrendo os mesmos tormentos, é como se entrássemos no corpo dele e de certa forma nos tornássemos a mesma pessoa, formando, assim, alguma idéia de suas sensações, e até sentido algo que, embora em menor grau, não é inteiramente diferente delas .

Em nenhum momento, Smith põe em xeque essa disposição natural de que todo homem é dotado para viver em si situações alheias. A revivência empática parece ser assim uma condição geral do espírito humano. Se é assim, o que Smith tem em mente não é a estrutura do aparelho sensorial, que pode mudar de indivíduo para indivíduo; mas, sim, a estrutura cognitiva do homem enquanto tal, do gênero humano. . Sem tal pressuposição, Smith não poderia sentir-se seguro para fazer das disposições naturais do homem o arquétipo da política a ser seguida pelos estadistas.

Se isso é certo, a conclusão óbvia que daí se segue não poderia ser outra: a teoria econômica de Smith está diretamente conectada com a sua concepção metafísica da natureza humana. Esta conexão salta à vista, quando se tem presente a sua teoria do valor, que se assenta em premissas de caráter metafísico, como visto antes. Se é assim, não seria exagero afirmar que a economia anda de mãos dadas com sua teoria da moralidade. Aliás, esta última fornece os fundamentos para a ação econômica, a partir de uma problematização das determinações básicas constitutivas das paixões humanas.

A arquitetura da teoria de Smith imita os grandes sistemas filosóficos: uma teoria dos fundamentos primeiros do agir e do pensar do homem e uma teoria que, ancorada na primeira, traduz e aplica aqueles princípios na esfera das ações concretas. Tudo indica que é assim mesmo que ele procede. Depois de inventariar e investigar as paixões humanas em sua Teoria dos Sentimentos Morais, Smith destaca destas paixões aquelas que podem ser reunidas e estudadas sob um departamento particular do conhecimento: a teoria econômica.

Mill, que tanto se dedicou ao estudo do método da Economia Política, deduz esta ciência a partir de um quadro geral da conduta humana; um quadro geral que antes foi matéria de investigação filosófica. De fato, em primeiro lugar ele investiga as Leis da Mente, que

compõem a parte universal ou abstrata da filosofia da natureza humana e todas as verdades da experiência comum que constituem um conhecimento prático da humanidade devem, na medida em que são verdades, ser resultados ou conseqüência dessas leis .

Partindo de um quadro geral da natureza humana, a Economia Política deve ocupar-se apenas daqueles fenômenos que ocorrem em conseqüência da busca de riqueza. Raciocinando a partir desse princípio, que marca e determina o comportamento econômico do homem, diz Mill:

podemos explicar e predizer essa parte dos fonômenos da sociedade, na medida em que dependem apenas desta classe de circunstâncias, sem levar em quaisquer outras circunstâncias e, portanto, sem reportar as que levamos em conta às suas possíveis origens em outros fatos do estado social e sem considerar a maneira pela qual essas outras circunstâncias podem interferir, modificando ou anulando, o efeito das primeiras. Pôde assim ser construído um departamento da ciência que recebeu o nome de Economia Política .

Daí, o caráter hipotético da Economia Política, que decorre do fato de esta ciência se ocupar apenas de uma parte das paixões humanas: aquelas diretamente ligadas à busca natural da riqueza. Informada por este desejo, que já foi objeto de demonstração pela Teoria dos Sentimentos Morais [Smith] ou pela Lógica [Mill], a Economia Política estuda as ações ligadas àquele desejo, abstraindo as demais paixões humanas. Este é o modo pelo qual a ciência deve necessariamente proceder. Que o diga Mill, para quem a Economia Política não deve se preocupar com aquelas paixões não ligadas diretamente com a busca de riqueza.

Mas há certos departamentos dos afazeres humanos em que a aquisição de riqueza é o fim principal e reconhecido. A Economia Política leva em conta unicamente estes últimos .

Tudo indica, pelo menos para Smith, que o que recomenda a separação dos fenômenos estudados pela economia é a mesma e única razão: em sua dimensão geral e abstrata, tematiza os fundamentos primeiros da ação humana; em sua dimensão prática, investiga a conduta concreta dos homens em sua vida empírica. Teoria dos fundamentos da natureza humana, teoria política e teoria econômica constituem, assim, momentos integrantes de um sistema de saber, tendo como centro de sua temática a investigação dos princípios gerais, que deverão nortear e fundamentar as leis de convivência que, sob qualquer forma de governo, devem regular a ordem social de maneira sábia e constante para a melhoria e felicidade da espécie humana. A Economia Política, enquanto parte deste sistema de saber, terá necessariamente um caráter contingencial, o que a transforma numa ciência hipotética, no sentido de que suas predições dependem das circunstâncias empíricas, que variam de país para país.

Um leitor de senso crítico mais aguçado poderia levantar objeções quanto a esta leitura que aqui se faz de Smith, alegando que essa dimensão moral, atribuída à Economia Política, está longe de responder às exigências de uma vida verdadeiramente ética. Nesta direção, poderia argumentar que a busca da maior quantidade possível da riqueza, enquanto condição imprescindível para a realização da felicidade humana é, na verdade, a morte do homem enquanto subjetividade, no sentido de que o funcionamento do mercado independe da vontade consciente dos homens. Mas, quem disse que, para Smith, o mercado é um mecanismo auto-reflexivo, cuja finalidade repousa em sua própria lei de movimento? Ora, para o autor de A Riqueza das Nações, o mercado repousa, antes de mais nada, numa base antropológica, que determina a extensão e expansão da atividade econômica. Smith não tem um conceito de capital como valor que se autovaloriza, como “objeto-movimento”. Nem poderia, pois, para ele, o dinheiro não é capital, mas simples meio de troca; enquanto tal, existe apenas para contornar as dificuldades do intercâmbio de mercadorias. Para este pensador, o capital se define a partir da função técnica que as mercadorias assumem no processo de produção: capital são aqueles bens necessários para produção de outros bens. Portanto, o capital não é nenhum poder autônomo, que, em movimento incessante e ininterrupto, faz do mercado resultado do seu próprio movimento. A concepção smithiana de capital está longe disto. Com mais razão, se se levar em conta que, para Smith, o produto do trabalho não nasce já como mercadoria que, movimentando-se cria o seu próprio mercado. Plagiando Marx, poder-se-ia dizer que, para Smith, não são as mercadorias que, movimentando-se, criam o mercado; mas, sim, é pela ação deste que os produtos do trabalho se transformam em valores.

Segue-se daí que o funcionamento do mercado não significa retirar dos homens seu poder de deliberação sobre as coisas. Parece, portanto, não haver razão para se falar da morte da subjetividade do homem pelo mercado, no sentido de que a vida das pessoas seriam controladas por esse mecanismo, cujo funcionamento independeria de sua vontade. Por conseguinte, a Economia, como quer Adam Smith, pode ser vista como uma ciência a serviço da realização da felicidade humana e, assim, reivindicar o estatuto de uma ciência prática.

2. - DAVID RICARDO: EM BUSCA DE UM IDEAL DE CIENTIFICIDADE

PARA A ECONOMIA POLÍTICA

2.1 – A GUINADA EPISTEMOLÓGICA E UMA NOVA ARQUITETURA DA TEORIA DO VALOR

Com David Ricardo, a Economia Política se despe de sua casula metafísica; isto é, abandona a necessidade de uma teoria dos fundamentos dos princípios primeiros da natureza humana, como assim entendia Adam Smith. Apoiado na concepção moderna de ciência, Ricardo entende a Economia Política como um sistema positivo derivado de certo número de hipóteses gerais, obedecendo rigorosamente às regras metodológicas da análise. Alicerça a exposição das leis econômicas na observação precisa dessas regras, conferindo à Economia Política um estatuto verdadeiramente científico.

E mais: diferentemente de Adam Smith, com Ricardo, a Economia Política renuncia à problemática da investigação da natureza e causas da riqueza, para abraçar a determinação das leis que governam a distribuição desta riqueza entre as três grandes classes sociais: proprietários de terra, trabalhadores assalariados e capitalistas.

Essa guinada epistemológica leva Ricardo a se preocupar expressamente com o rigor lógico da economia. Para isso, assume como primeira tarefa livrar a teoria do valor das incoerências em que estava enredada nas mãos de Smith. Para acompanhá-lo nesta empreitada, seria interessante destacar o diálogo que ele estabelece com o autor da Riqueza das Nações, nos dois primeiros capítulos de seus Princípios de Economia Política e Tributação.

Como essa tarefa não é tão simples, principalmente para quem dispõe de pouca intimidade com a Economia Política, impõe-se a necessidade de destacar as contradições smithianas, para, a partir daí, poder entender como Ricardo se propõe corrigi-las. Para tornar as coisas mais simples possível, o melhor caminho é tomar a contradição central do pensamento smithiano, pois é dela que se seguem todos os demais problemas lógicos, com os quais vai se ocupar Ricardo.

Sem mais demora, a contradição básica do sistema de Smith aparece quando ele tenta aplicar a teoria do valor-trabalho à realidade. Para entender esse desencontro da teoria do valor com a realidade, é suficiente ter presente seus enunciados básicos, que podem assim ser resumidos: [1] num mundo onde não existe propriedade privada da terra nem acúmulo de capital em mãos de particulares, o valor se determina pela quantidade de trabalho necessária à produção de cada mercadoria; [2] sendo assim, a remuneração que cada produtor recebe é proporcional ao valor de sua mercadoria, pois na inexistência de classes sociais, o valor do produto é igual ao valor do trabalho despendido em sua produção; [3] nestas condições, ninguém estaria disposto a abrir mão do produto do seu trabalho se, em troca, não recebesse outro de igual valor; [4] conseqüentemente, a troca se faz obedecendo ao princípio de equivalência; permutam-se valores de iguais magnitudes.

Acontece que quando esses enunciados são aplicados à troca entre capital e trabalho, a lei do intercâmbio de equivalentes é anulada. Ora, como toda a teoria do valor repousa sobre este princípio, Smith vê-se enredado numa verdadeira aporia: abandonar essa teoria ou continuar sustentando que as mercadorias se trocam de acordo com o tempo de trabalho gasto em sua produção. Se abandonasse a teoria do valor, Smith não teria como explicar a formação dos preços. E o que é pior: na ausência de uma medida do valor da riqueza produzida, não teria como comparar um período econômico com outro e, assim, avaliar o grau de prosperidade e de crescimento da riqueza das nações. Neste sentido, é todo o seu sistema que se vê em xeque. Que fazer diante de tal situação?

A saída de Smith é complicada. Para explicar a troca entre capital e trabalho, recorre ao conceito de valor como trabalho comandado, ou seja à idéia de que o valor do trabalho [vale dizer: o valor da força de trabalho] se mede por sua capacidade de comandar um valor maior do que o que nele [trabalho] está inserido: troca-se mais valor por menos valor. Um exemplo ajuda a esclarecer melhor tudo isso.

Suponha-se que em uma mercadoria estão contidas 100 horas de trabalho, proporcionadas por trabalhadores cuja subsistência custa 50 horas de trabalho: então, com essa mercadoria pode-se proporcionar a subsistência de um número de trabalhadores capaz de proporcionar 200 horas de trabalho. Nesse caso, o trabalho contido é 100 e o trabalho ordenado (comandado) é 200 .

Ao lado deste conceito, Smith continua fazendo uso do conceito original de onde partiu para construir a sua teoria do valor; qual seja: o valor de certa mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho que custou a sua produção. Em conseqüência disto, Smith se vê de posse de dois conceitos de valor: um que define valor como a capacidade que tem de comandar trabalho alheio; e outro que afirma que a magnitude do valor das mercadorias depende da quantidade de trabalho nelas inserida. Neste último caso, é observado o princípio de equivalência dos valores permutados, uma vez que as mercadorias se trocam de acordo com as quantidades de trabalho nelas inseridas.

Em vista dessa sua ambigüidade, Smith ora diz que o valor é trabalho comandado, pois, do ponto de vista do trabalhador, este troca mais trabalho contra menos trabalho; ora sustenta que o valor é trabalho contido - troca de quantidades iguais de trabalho, visto que as mercadorias são trocadas de acordo com seus respectivos tempos de trabalho necessários à sua produção.

Ora, quem afirma que o valor é trabalho comandado e depois nega tal afirmação para dizer que o valor é trabalho contido, quem assim procede, sem que explicite as devidas circunstâncias em que se está fazendo uso do sujeito lógico de tais proposições, desobedece aos princípios da lógica formal que presidem a articulação de todo e qualquer discurso racional. Noutras palavras, se está cometendo uma contradição, na medida em que seu discurso não observa a coerência exigida por qualquer discurso científico. Para falar com Aristóteles, Smith fere o princípio de não-contradição ou, o que é a mesma coisa: o princípio da coerência. O castigo para quem comete semelhante coisa é o de não poder ser levado a sério, já que o falar só tem sentido, só pode ser considerado racional, se não for contraditório.

Ricardo tinha plena consciência disso. Observador fiel que era do método científico, sabia que as ambigüidades lógicas cometidas por Smith retiravam da teoria do valor o seu estatuto de ciência. Por isso, corrigir tais incoerências era uma tarefa urgente, para que a teoria do valor pudesse gozar de legitimidade científica. Mas, por onde começar este trabalho de reparação da teoria de Smith? A resposta já foi, de alguma forma, antecipada: a existência de dois conceitos de valor fere o princípio da coerência discursiva. Então Ricardo tinha de eliminar um desses dois conceitos? O problema é saber qual deles deve ser excluído. A solução apresentada por Ricardo salta à vista quando se observa mais atentamente o conceito smithiano de valor como trabalho comandado. Seguindo de perto o seu raciocínio, Smith faz do salário recebido pelo trabalhador a base explicativa do valor comandado. Se é assim, para se determinar a magnitude do valor comandado, exige que se conheça primeiro o valor da mercadoria recebida pelo trabalhador, na forma de salário. Conclusão: a magnitude do valor comandado depende do valor do trabalho, de sorte que o valor é, assim, determinado pelo valor. Chega-se, assim, a uma proposição destituída de sentido: o valor depende do valor.

Criticando este raciocínio tautológico de Smith, Ricardo argumenta que o valor do trabalho [salário] não pode servir de medida-padrão de valor porque, neste caso, a remuneração do trabalho não só não é igual ao valor do produto por ele produzido, mas, acima de tudo, o valor do trabalho é tão variável como o valor de qualquer outra mercadoria. É interessante deixar que o próprio Ricardo expresse o teor de sua crítica:

Adam Smith, que definiu com tanta exatidão a fonte original do valor de troca, e que coerentemente teve que sustentar que todas as coisas mais ou menos valiosas na proporção do tempo de trabalho empregado para produzi-las, estabeleceu também uma outra medida-padrão de valor, e se refere a coisas que são mais ou menos valiosas segundo sejam trocadas por maior ou menor quantidade dessa medida-padrão. Como medida padrão ele se refere algumas vezes ao trigo, outras ao trabalho....

No parágrafo seguinte arremata a sua crítica dizendo que

se isso fosse verdadeiro, se a remuneração do trabalhador fosse sempre proporcional ao que ele produz, a quantidade de trabalho empregada numa mercadoria e a quantidade de trabalho que essa mercadoria compraria seriam iguais, e qualquer delas poderia medir com precisão a variação das outras. Mas não são iguais. A primeira é, sob muitas circunstâncias, um padrão invariável, que mostra corretamente as variações nas demais. A segunda é sujeita a tantas flutuações quanto as mercadorias que a ela sejam comparadas .

Mas isso ainda não é tudo. Fazer do salário uma medida-padrão de valor significa admitir que os preços se elevam sempre que os salários aumentam. Neste caso, não haveria nenhum limite para o aumento de salários e preços. E o que é mais grave: sendo o salário também um preço, volta-se novamente ao círculo vicioso antes referido: os preços são determinados pelos preços. Destrói-se, assim, a base racional da Economia Política. Daí os elogios que Marx dirige a Ricardo, reconhecendo que se deve a ele

o grande mérito de haver destruído até os fundamentos, com sua obra sobre os Princípios da Economia Política, publicada em 1817, o velho erro, tão divulgado e gasto de que os salários determinam os preços, falácia já rechaçada por Adam Smith e seus predecessores franceses na parte verdadeiramente científica de suas investigações, mas que, não obstante, eles reproduziram nos seus capítulos mais superficiais e de vulgarização .

Agora, tudo se esclarece: para retirar a teoria do valor das incoerências em que esta se viu enredada nas mãos de Smith, Ricardo teve de eliminar o conceito de valor como trabalho comandado, guardando o conceito de valor como trabalho contido. Acontece que, para Ricardo poder sustentar que o trabalho contido nas mercadorias é a verdadeira medida do valor, teria de elaborar o conceito de valor do trabalho, de modo a deixar claro que este valor, como o de toda outra mercadoria, é determinado pelas quantidades de trabalho contidas nos meios de subsistência do trabalhador. Ora, se o trabalho é uma mercadoria como outra qualquer, a troca entre capital e trabalho obedece ao mesmo princípio da troca das mercadorias em geral: troca‑se valor por valor, equivalente por equivalente. Assim, a teoria do valor ganha rigor lógico e pode reclamar o direito de pertencer ao rol das ciências.

2.2 – A TEORIA DO VALOR ENQUANTO EXPRESSÃO DA FISIOLOGIA

DO SISTEMA DE PRODUÇÃO DE MERCADORIAS

Corrigida a contradição básica lógico-formal da teoria do valor, Ricardo tinha ainda pela frente duas questões: investigar se os efeitos da acumulação de capital e da apropriação da renda anulam o princípio segundo o qual as mercadorias são trocadas na proporção do tempo de trabalho nela inseridas. Em seu diálogo com o autor de A Riqueza das Nações, Ricardo revela quão importante era essa investigação, sem a qual a teoria do valor estaria incompleta. Numa nota de pé de página, num tom de cobrança, assim se dirige a Smith:

embora Adam Smith reconheça plenamente o princípio de que as proporções entre as quantidades de trabalho necessário para adquirir objetos diferentes sejam a única circunstância que pode proporcionar uma regra para a nossa troca de um por outro, ele limita, no entanto, a aplicação desse princípio àquele rude primitivo estado da sociedade que antecede tanto a acumulação de capital como a apropriação da terra.

Portanto, diz Ricardo em seguida:

É importante determinar em que medida os efeitos – reconhecidamente produzidos sobre o valor de troca das mercadorias pela quantidade comparativa de trabalho empregada em sua produção - são modificados ou alterados pela acumulação de capital e pagamento da renda da terra .

Quando Ricardo se pergunta se a acumulação de capital altera o princípio segundo o qual o valor é determinado pela quantidade de trabalho necessária à produção de certa mercadoria, tem consciência de que a magnitude do valor se resolve em dois componentes: [1] no quantum de trabalho vivo, isto é, o trabalho imediatamente despendido na produção de uma mercadoria e [2] o quantum de trabalho incorporado nos meios de produção e que entra, também, na formação do valor dessa mercadoria. Infelizmente, Ricardo não é bem sucedido nessa empreitada. Depois de idas e voltas, ao longo das seções III, IV e V, do capítulo I, é obrigado a reconhecer que, além do trabalho, outros elementos entram na formação do valor. Que elementos são esses? Sua resposta não é nada fácil; só aparece depois de uma série de exemplos extremamente complicados e confusos, dos quais Ricardo lança mão para investigar se a acumulação de capital altera ou não a lei do valor, segundo a qual as mercadorias devem ser trocadas na proporção do tempo de trabalho necessário à sua produção. Para não sobrecarregar a paciência do leitor e evitar que venha a se desanimar com as demonstrações de Ricardo, é interessante resumir os resultados de sua análise do modo como se segue: para os capitalistas que trabalham com grandes quantidades de máquinas, equipamentos, edificações, etc., portanto, com mais capital e menos mão-de-obra, há prazos de retorno do capital investido mais longo do que os seus consórcios, que trabalham basicamente com mão-de-obra e pouco instrumentos de produção. Noutras palavras, os primeiros só podem reembolsar seu capital investido depois de um longo prazo de produção; os segundos, produzem e recebem de volta o capital investido, acrescido do lucro, num período de tempo menor. Mesmo que os capitalistas invistam a mesma soma de dinheiro em seus respectivos negócios, os primeiros deverão ter uma recompensa maior pelo tempo que são obrigados a esperar até poder reembolsar integralmente o valor do seu investimento. Por conta disto, surge uma diferença de valor na produção das mercadorias produzidas por esses capitalistas. Ou como diria Ricardo,

a diferença de valor surge , em ambos casos, dos lucros acumulados como capital, e é apenas uma justa recompensa pelo tempo em que os lucros permanecerão retidos .

Segue-se daí que a acumulação de capital introduz um novo elemento na determinação do valor, que não só a quantidade de trabalho gasto na produção das mercadorias: o tempo de espera que certos grupos de capitalistas são obrigados a suportar até poder reembolsar o lucro do seu capital investido. Mas isto pouco abalou Ricardo. Sem nenhum constrangimento afirma que

todo melhoramento na maquinaria, nas ferramentas, nas edificações e na obtenção de matérias-primas poupa trabalho, permitindo-nos produzir mais facilmente a mercadoria à qual se aplicou a melhoria e, em conseqüência, seu valor se altera .

Em seguida diz que

seria errôneo omitir totalmente o efeito produzido pelo encarecimento ou barateamento do trabalho, mas seria igualmente errôneo atribuir-lhe muita importância. Assim, embora apenas ocasionalmente mencione essa causa na parte restante desta obra, considerarei todas as grandes variações que ocorrem no valor relativo das mercadorias como sendo produzidas pela maior ou menor quantidade de trabalho que, em épocas diferentes, seja necessário para produzi-las .

Para quem conhece Ricardo mais de perto, certamente julgaria que seu tropeço deve-se ao fato de ele tomar a taxa de lucro como uma magnitude dada a priori. E não só isto, diria: confunde a taxa de mais-valia com a taxa de lucro, como se as duas fossem a mesma coisa. Ora, estas taxas só seriam iguais se os capitais tivessem, além da mesma magnitude, a mesma composição: isto é, se se dividissem em partes iguais entre capital variável [gastos com salários para pagamento da força de trabalho] e capital constante [dispêndio efetuado na aquisição de máquinas, equipamentos, edificações e matérias-primas]. Como isso não acontece, para se chegar à verdadeira proporção pelas quais as mercadorias são trocadas entre si, é necessário transformar, primeiro, a mais-valia em lucro, para daí chegar a uma taxa geral de lucro, como produto desta transformação. Só, então, é que se pode explicar o processo de formação dos preços. Ricardo desconhecia totalmente esta mediação, pois passa diretamente do valor aos preços de produção. Por isso, não há como explicar os efeitos da acumulação de capital sobre a formação do valor, o que o obriga a supor que, além das quantidades de trabalho incorporadas nas mercadorias, deve haver outro fator que entra na formação do valor: os lucros acumulados pelo capital e não desfrutados por seus donos são contabilizados como uma recompensa, devido ao tempo de espera que eles devem suportar até que possam vender suas mercadorias.

Diferentemente de Smith, para quem, ora o valor é trabalho contido, ora é trabalho comandado, jogando assim a teoria do valor numa série de contradições, Ricardo sustenta, do começo ao fim de sua exposição, que o valor é determinado unicamente pelas quantidades de trabalho necessárias à produção das mercadorias. Reafirma este princípio até mesmo quando não consegue explicar os efeitos da acumulação sobre a formação do valor, como visto há pouco. Isso não o leva a cair em contradição, como acontece com Smith. Seu problema é de outra natureza: desconhecimento das mediações necessárias para explicar a formação dos preços. Neste sentido, o embaraço em que se viu enredado Ricardo não é de natureza lógica; mas, sim, de natureza teórica.

Tendo assim demonstrado que a acumulação de capital não anula o princípio, segundo o qual o valor das mercadorias é determinado pelo tempo de trabalho necessário à sua produção, Ricardo tinha mais uma tarefa pela frente: investigar se a apropriação da renda pelos donos de terra fere a lei do valor. Peremptoriamente, sua resposta é negativa: ou seja, a renda da terra não contradiz aquele princípio de que o trabalho inserido nas mercadorias é a única fonte do valor. Se é assim, então, como se explica a renda? Esta pergunta assume um tom mais dramático, se se considerar que, além do excedente criado sob a forma de lucro, há ainda uma renda que é apropriada por uma classe, que não tem nenhuma ligação direta com a geração da riqueza. Vale dizer, por uma classe que não participando da produção, tem direito a uma parte dessa riqueza.

Para Ricardo, a renda da terra, tanto quanto o lucro, é um excedente de produção, um sobrevalor. Se é assim, como se forma este excedente? Vendendo os produtos agrícolas acima do valor? Ou trata-se de uma parte dos lucros de que os capitalistas abrem mão em nome dos LandLords, de modo que possam ter acesso ao uso da terra? Se Ricardo houvesse adotado a primeira hipótese, a venda dos produtos agrícolas por um preço acima do valor faz cair por terra o princípio de que o trabalho é única fonte do valor. E mais: teria de adotar duas teorias: uma para explicar os preços segundo a lei do valor; outra, para interpretar a formação dos preços agrícolas. Neste caso, iria por água abaixo a tarefa que ele se propõe, qual seja: fazer da Economia Política uma ciência verdadeiramente rigorosa, assentada num corpo de enunciados coerentes, sistematicamente correlacionados entre si.

Descartada a hipótese de que renda não provém da venda dos produtos agrícolas por um preço acima do valor, ela só poderá vir de uma dedução dos lucros apropriados pelos capitalistas. Mas, que interesse os levaria a investir na agricultura, se na indústria podem se apropriar de todo o lucro gerado, uma vez que neste setor não teriam que dividir seu lucro com ninguém? Acontece que se os capitalistas investissem seus capitais unicamente na indústria, de quem iriam comprar as matérias-primas e outros produtos agrícolas necessários à produção industrial? Mas isso ainda não é tudo; quem produziria os bens de consumo da classe trabalhadora, considerando que esta classe, para Ricardo, não dispõe de nenhuma propriedade, conseqüentemente, das condições materiais de produção? Se os capitalistas, hipoteticamente falando, não têm interesse em explorar a produção agrícola, por que os seus próprios donos não o fazem? Neste caso, estaria resolvido o problema da oferta de produtos agrícolas. Os proprietários de terra poderiam contratar seus trabalhadores para produzir bens agrícolas e, assim, ao invés de renda, receberiam lucros. Acontece que a renda da terra é um fato. Especular sobre a possibilidade de sua inexistência, imaginando que os proprietários de terra poderiam se transformar em capitalistas, não tem nenhum sentido teórico.

Ricardo tinha plena consciência disto. Partindo da existência das três grandes classes sociais, sua preocupação era explicar as leis que governam a distribuição da riqueza entre capitalistas, trabalhadores e proprietários de terra. Perguntar por que essas classes existem, seria, para ele, o mesmo que indagar por que existe o mundo. De modo mais radical: perguntar por sua existência seria uma questão absurda, pois há de se admitir que o que aí está, não existe. Portanto o que cabe explicar é como se forma a renda da terra; como ela se relaciona com as outras variáveis da distribuição do produto do trabalho, e se sua existência fere ou não a lei do valor.

Retomando o raciocínio do ponto em que foi interrompido, dizia-se que a renda da terra não pode provir da venda dos produtos agrícolas por um preço acima do valor. Restava então a hipótese de que a renda é uma dedução de uma parte do lucro. Mas admitir tal dedução parecia irracional, pois os capitalistas não teriam interesse em investir na agricultura. Supõe-se, então, que os proprietários poderiam explorar suas próprias terras. No entanto, esta suposição foi considerada sem sentido; por conseguinte não há outra senão explicar a renda a partir dos lucros auferidos pelos capitalistas que investem na agricultura.

De fato, é assim mesmo que procede Ricardo. Ele parte do fato de que a quantidade de terra não só é limitada em quantidade, mas também é variável em qualidade. Como essa diferença de qualidade economia trabalho, ela permite que os investimentos naquelas terras de qualidade superior produzam um lucro extra, acima da taxa média geral de lucro da economia. É justamente deste lucro extra que o dono da terra se apropria, na forma de renda. Resolve-se, assim a questão por que os capitalistas decidem abrir mão de uma parte do lucro obtido na agricultura: o lucro normal que obtém neste setor, poderiam igualmente obter se investissem em qualquer outro setor da economia. Portanto, para os donos do capital, é indiferente investirem na agricultura ou na indústria. Em qualquer um desses setores, seus capitais são valorizados pela mesma taxa de lucro. A lei do valor, segundo a qual um capital aplicado num determinado setor rende tanto quanto outro aplicado em qualquer ramo, permanece de pé.

Mas alto lá! Por que o capitalista não se torna ele mesmo um proprietário de terra? Não seria vantajoso para ele reter o lucro extra, gerado na agricultura, ao invés de entregá-lo ao landlord? Ricardo tinha esta questão como resolvida. Aliás, isso nem sequer o preocupava, pois tinha em mente um leitor atento e capaz de acompanhar seu raciocínio dedutivo das conseqüências lógicas que se seguem da lei geral do valor. Assim, não tinha de perder tempo com explicações adicionais, que lhe pareciam óbvias. No caso da questão acima formulada, sabia que a renda da terra representa uma subtração do lucro total, que o capitalista obtém nas terras de qualidade superior. Entretanto pressupunha que se o capitalista adquirisse a propriedade da terra, isso implicaria igualmente uma redução do seu capital, já que uma parte dele deveria ser imobilizada na sua aquisição. Neste caso, a apropriação da terra por outra classe, que não a dos capitalistas, é até mesmo uma vantagem para os donos do capital.

Segue-se daí que, do ponto de vista da lógica acumulação do capital, a figura do proprietário de terra é uma necessidade requerida pelo sistema; portanto, nada há de irracional na existência de uma classe que vive permanente na ociosidade. Contra a reprovação moral de Smith, de que “ os proprietários de terra são uma classe que vive de colher o que nunca semeou” , Ricardo justifica a necessidade desta classe. Na ausência desta classe, o trabalhador estaria livre da necessidade de ter de vender sua força de trabalho em troca de um salário. Assim, o que parece irracional é, na verdade, racional.

Essas pressuposições, sobre as quais repousa a teoria da renda, mostram quão aguda era a compreensão de Ricardo da fisiologia interna do sistema burguês. Não sem razão, Marx não lhe poupava elogios. Referindo-se à sua coerência lógico-expositiva, o autor de O Capital mostra como ele, partindo da determinação do valor pelo tempo de trabalho,

leva então a ciência a abandonar a rotina vigente, a verificar até que ponto as demais categorias por ela desenvolvidas e descritas – relações de produção e de circulação - formas daquele fundamento, correspondem ao ponto de partida, ou o contradizem; até que ponto a ciência que espelha e reproduz simplesmente as formas aparentes do processo, e assim esses próprios fenômenos, correspondem ao fundamento sobre que repousam os nexos internos, a fisiologia verdadeira da sociedade burguesa, ou que constitui seu ponto de partida; e, em geral, como se comporta essa contradição entre o movimento aparente e o real do sistema. Este é, portanto, o grande significado histórico de Ricardo para a ciência [...]. Entrosa-se com esse método científico de Ricardo a circunstância de ele descobrir e expressar a contradição econômica entre as classes – segundo patenteiam os nexos causais; em conseqüência, a economia apreende e revela as raízes da luta histórica e do processo de desenvolvimento .

Contando, portanto, como o aval de Marx, é óbvio que Ricardo tinha plena consciência dos pressupostos sobre os quais ele assenta sua teoria da renda. Esta, como anunciado antes, não fere o principio da determinação do valor pelo tempo trabalho, pois a renda nada mais é do que um lucro extra, obtido naquelas terras mais ricas e férteis. Se é assim, então, como o autor dos Princípios de Economia Política e Tributação explica a formação desse lucro extra acima do lucro médio?

Uma vez explicitadas as mediações lógico-expositivas de sua teoria, a resposta a essa questão não oferece nenhuma dificuldade. É bastante ter presente o conceito de renda, que Ricardo assim define:

renda é a porção do produto da terra paga ao seu proprietário pelo uso das forças originais e indestrutíveis do solo .

De acordo com este conceito, o pagamento da renda não tem nada a ver com qualquer investimento feito na terra, em instalações, adubos etc. Ricardo faz questão de precisar que o pagamento da renda corresponde exclusivamente ao uso das condições