05albres e neves 2013_libras política linguística
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Libras em estudo: poltica lingustica
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Neiva de Aquino Albres
Sylvia Lia Grespan Neves
(Organizadoras)
Libras em estudo:poltica lingustica
Ana Cristina Queiroz Agria
Andr Nogueira XavierCsar Augusto de Assis Silva
Claudia Regina VieiraCristiane Esteves de Andrade
Fbio Bezerra de BritoNeiva de Aquino Albres
Neivaldo Augusto ZovicoRenato Dente Luz
Sonia Regina Nascimento de OliveiraSylvia Lia Grespan Neves
Vnia de Aquino Albres Santiago(Autores)
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2013 by Neiva de Aquino Albres e Sylvia Lia Grespan Neves
Todos os direitos desta edio reservados EDITORA FENEIS LTDA.Rua das Azalas, 138
Mirandpolis, em So Paulo - SPTel.: (11) 2574-9151www.feneissp.org.br
Capa e projeto grficoRodrigo Sabro
Foto da capaGerson Gargalaka
Editorao Eletrnica
Neiva de Aquino Albres
Reviso do textoCrmen Righetto
OrganizaoNeiva de Aquino AlbresSylvia Lia Grespan Neves
Libras em estudo: poltica lingustica / Neiva de Aquino Albres e Sylvia Lia Grespan
Neves (organizadoras) So Paulo: FENEIS, 2013.
169 p.: 21 cm (Srie Pesquisas)
ISBN: 979-85-62950-06-3
1. Lngua de Sinais. 2. Poltica lingustica. 3. Acessibilidade.
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Agradecimentos
Aos pesquisadores, professores e militantes que
colaboraram para a realizao deste trabalho
e, generosamente, compartilharam suas inquietaes, reflexes e saberes,
para a construo de um pensar mais crtico.
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Sumrio
Apresentao 09
BILINGUISMO: REVISO DE TEORIASRenato Dente Luz 13
CONCEPES DE LINGUAGEM E SEUS EFEITOS NASCOMUNIDADES SURDASNeiva de Aquino AlbresSonia Regina Nascimento de Oliveira
39
O MOVIMENTO SURDO E SUA LUTA PELORECONHECIMENTO DA LIBRAS E PELA CONSTRUO DEUMA POLTICA LINGUSTICA NO BRASILFbio Bezerra de BritoSylvia Lia Grespan NevesAndr Nogueira Xavier
67
CONCEITO DE LNGUA MATERNA, PRIMEIRA LNGUA ESEGUNDA LNGUA E SUAS IMPLICAES NO CAMPO DASURDEZAna Cristina Queiroz AgriaClaudia Regina Vieira
105
ACESSIBILIDADE A SERVIOS PBLICOS: DIREITO DEIGUALDADENeivaldo Augusto ZovicoCsar Augusto de Assis Silva 125
SURDEZ E SOCIEDADE: QUESTES SOBRE CONFORTOLINGUSTICO E PARTICIPAO SOCIALVnia de Aquino Albres SantiagoCristiane Esteves de Andrade
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SOBRE OS AUTORES 164
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Apresentao
O presente livro resulta dos esforos de pesquisadores, professores e militantes
surdos e ouvintes do movimento para uma educao bilngue de qualidade para surdos
no Brasil. Ele integra a coleo Libras em estudo, constituda por seis volumes: o
primeiro, dedicado a questes de traduo e interpretao da lngua de sinais, o
segundo, a questes de seu ensino e aprendizagem, o terceiro, focaliza a descrio e a
anlise de alguns aspectos gramaticais da Libras, o quarto, trata sobre polticas
educacionais, este, o quinto da coleo e versa sobre poltica lingustica, e o prximo,
o sexto, ser sobre a formao de profissionais.
Estes novos volumes tm como objetivo:
1)Construir reflexo sobre o movimento poltico atual, tanto no campo doreconhecimento lingustico da Libras, como lngua da comunidade surda, quanto
da poltica educacional de educao bilngue (Libras/Portugus);
2)Visibilizar material escrito sobre vrios temas que continuam sendo escassos,visando difuso de informaes e a formao de novos profissionais;
3)Fortalecer a luta e mobilizao dos movimentos sociais surdos e por um novomarco de surdos como lderes do movimento poltico e produtores de
conhecimento (autores).
Neste momento em que, em nosso pas se consolida o reconhecimento da Libras,
fazemos uma reflexo sobre a poltica lingustica como um marco da democracia, como
um ponto de conflito, possibilitando, ao mesmo tempo, a comunidade surda agir e ser
protagonista da sua histria. Em abril de 2002, a Libras reconhecida legalmente comoa lngua da comunidade surda e, assim, inaugurada a possibilidade de respaldo para
uma luta que precede o documento legal.
Tomamos como ponto de partida a "Declarao universal dos direitos
lingusticos", uma construo poltica coletiva com ideais marcados pela discriminao
vivida por diferentes povos.
Os direitos lingusticos so simultaneamente individuais e coletivos, e adota,
como referncia da plenitude dos direitos lingusticos, o caso de uma
comunidade lingustica histrica no respectivo espao territorial, entendendo-
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se este no apenas como a rea geogrfica onde esta comunidade vive, mas
tambm como um espao social e funcional indispensvel ao pleno
desenvolvimento da lngua (DECLARAO UNIVERSAL DOS DIREITOS
LINGUSTICOS, 1996).
Desde o seu incio, as associaes de surdos, as comunidades religiosas, as
escolas de surdos e a FENEIS se configuraram como um espao social de uso e
desenvolvimento da lngua de sinais. A FENEIS, como entidade representativa dos
surdos, sempre trabalhou em direo a uma nova poltica lingustica, de conhecimento e
reconhecimento da Libras, que nos permitiu construir a articulao lingustica com
identidades sociais e uma poltica educacional bilngue.
O estudo de lnguas de sinais e a sede do multilinguismo e multiculturalismoproporcionam instrumentos para a compreenso das formas de conceber subjetividades
surdas, em juno com os aspectos histricos e sociais, para os quais sentimos a
necessidade de fortalecer as ferramentas tericas para compreend-los. Buscamos, aqui,
participar deste dilogo (terico) to profcuo que a iniciativa deste livro propiciou,
dilogo entre diferentes saberes, de quem vive a diferena lingustica, a discriminao
lingustica, e a luta por minimizar as diferenas entre surdos e ouvintes.
Neste livro, podemos situar a linguagem em um escopo poltico e coletivo,
refletir e discutir sobre ideologia e linguagem, a linguagem como ptria comum da
comunidade surda, identidade, linguagem e da globalizao, diversidade lingustica e
cultural dos surdos para compreender a construo de polticas que visibilizam o uso de
uma nova lngua e acordadas para uma realidade to complexa a diversidade humana
e lingustica. Os trabalhos aqui reunidos refletem diferentes lutas, ao olharem diferentes
aspectos da poltica lingustica, por diferentes ngulos e, assim, focalizarem aspectos
distintos dos movimentos sociais surdos.
Entre os textos produzidos pelos pesquisadores e militantes, est o de Renato
Dente Luz (ouvinte) que debate sobre a concepo de bilinguismo, focalizando as
relaes familiares e a necessidade do humano de ser, e os surdos como humanos
tambm apresentam um anseio comunicante, por meio de uma lngua de modalidade
gestual-visual.
Neiva de Aquino Albres (ouvinte) e Sonia Regina Nascimento (surda)
apresentam reflexes sobre as concepes de lingua(gem) desenvolvidas historicamente
e seus efeitos nas comunidades surdas. Consideram que as concepes contemporneas
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contriburam para o reconhecimento da Libras como lngua natural e para o
fortalecimento social e cultural dos surdos, para sua denominao como comunidade e
minoria lingustica e para a implementao da poltica educacional bilngue.
Fabio Britto Bezerra (ouvinte), Sylvia Lia Grespan Neves (surda) e Andr
Nogueira Xavier (ouvinte) registram uma histria esquecida, a histria do movimento
de surdos em prol do reconhecimento da Libras, revelando as estratgias dos militantes,
tanto popular (passeatas e assembleias), quanto de aproximao academia (produo
de relatrios tcnicos sobre a Libras).
Ana Cristina Queiroz Agria (surda) e Claudia Regina Vieira (surda) discutem
sobre os conceitos de Lngua Materna e primeira lngua, a partir destas definies
prope uma reflexo sobre as lnguas implicadas na situao de ensino-aprendizagem
das pessoas surdas, focalizando o conceito e as prticas pedaggicas de ensino de
segunda lngua.
Neivaldo Augusto Zovico (surdo) e Csar Augusto de Assis Silva (ouvinte)
problematizam o conceito de acessibilidade aos bens culturais, apresentando um
panorama da poltica institudo no Brasil. Constatam que o quadro jurdico-poltico
contemporneo e os avanos tecnolgicos recentes tm potencializado a acessibilidade
dos surdos, principalmente pelo servio de intrpretes de Lngua de Sinais.
Vnia de Aquino Albres Santiago (ouvinte) e Cristiane Esteves de Andrade
(surda) desenvolvem uma reflexo sobre as condies de incluso educacional e a
participao social da comunidade surda que usa a Lngua de sinais como primeira
lngua L1, e em especial s questes de conforto lingustico por meio da Libras para
surdos bilngues competentes para a alternncia de lnguas.
Desta forma, contemplamos neste livro questes de poltica lingustica, os
discursos indicam claramente que a diferena e a desigualdade no so prprias da
surdez, mas uma composio no tecido social marcado historicamente, relaes depoder e discriminao que marcam o movimento social surdo, a luta e as consquistas
para que vilumbremos novos significados sociais sobre a surdez e sobre a lngua de
sinais.
Neiva de Aquino Albres
Sylvia Lia Grespan Neves
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REFLEXES SOBRE O BILINGUISMO GERAL:APONTAMENTOS PARA O FORTALECIMENTO DO
BILINGUISMO DE SURDOS
Renato Dente Luz
Escola bilngue de surdos Instituto Santa Teresinha, So Paulo/SP
- Pai, ser que tem gente em outros planetas?- No sei, Estrelinha. Mas sabe o que eu acho? Se s nsexistssemos, seria um tremendo desperdcio de espao.
(CONTATO, filme inspirado no livro homnimo de CarlSagan)
ResumoO tema deste captulo o das questes referentes ao bilinguismo geral pelos vieses,sobretudo psicolgico, lingustico e poltico e suas implicaes no campo do bilinguismode surdos. Ao pensarmos o bilinguismo de surdos, assumimos aqui que este se encontrainserido tanto no contexto maior das definies e tenses do bilinguismo geral, quantoapresenta particularidades advindas da condio surda. Nosso objetivo foi pensar algunsaspectos biopsicossociais envolvidos na temtica ampla do bilinguismo geral e o que istolevantaria de contribuies para o bilinguismo de surdos na atualidade. A partir de umatrilha percorrida sobre a condio humana, do mirante bilngue amplo que alcanamos,de breves reflexes sobre os direitos humanos e as polticas pblicas, da nomeao de
uma condio surda atemporal a ser singularizada entre Outros, da constatao dossurdos serem, em geral, minoria sensorial e de recorrentemente eles sofrerem grandenormatizao, foi que levantamos sintticos e crticos apontamentos no que tange aobilinguismo de surdos e os dividimos em sete temticas: a psicolgica; a lingustica; alegal; a poltica; a educacional; a escolar e a familiar. No era nossa inteno esgotarassuntos to complexos e delicados. No entanto, esperamos que, amparados pelo ticoparadigma multilinguista, tais apontamentos contribuam com o fortalecimento daefetivao local dos direitos lingusticos dos que vivem a condio surda, por meio de umbilinguismo de surdos mais slido.Palavras-chave: condio humana; bilinguismo; polticas pblicas; surdo; bilinguismode surdos.
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1. Nosso mapa: apresentando nosso destino
Por que, ns humanos, usamos um idioma? E por que alguns usam mais de um?
Quando pensamos em bilinguismo, o que nos vem inicialmente cabea? possvel
pensarmos em bilinguismo sem pensarmos nos indivduos bilngues? Todos os
indivduos bilngues vivem as mesmas condies sociais e polticas? Quando falamos de
bilinguismo, estamos falando apenas de educao bilngue? E os surdos, seriam um caso
diferente de sujeitos potencialmente bilngues? No que o bilinguismo geral ajuda a
pensar o bilinguismo de surdos?
Estas e outras questes relacionadas so as que nos guiaro em nosso destino pela
busca de alguma leitura mais aprofundada da situao biopsicossocial das pessoas que
apresentam uma determinada condio humana: a condio surda.
De modo mais significativo, pelo menos desde os anos 1990, as discusses
envolvendo polticas sociais sobretudo lingustico-educacionais para as pessoas
surdas vm ganhando novo flego histrico. Em muito isto pode ser atribudo ao amparo
ideolgico, acadmico, social e miditico advindo da ampliao dos movimentos sociais
em defesa dos direitos das minorias1 tnicas, trabalhadoras, de gnero, econmicas,
fsico-sensrias, lingusticas e sexuais nos anos 1960 e 1970, especialmente na Europa
Ocidental e nos Estados Unidos, denunciadores e crticos da organizao excludente e
patologizante gestada em sociedades capitalistas (LUZ, 2003, 2005).
Ainda que com suas diferenas regionais, trata-se hoje de um movimento mundial
histrico um movimento surdo com surdos e simpatizantes organizados em prol do
reconhecimento irrestrito daqueles, enquanto seres humanos portadores de uma
sensorialidade prpria e como uma minoria plena de direitos lingusticos, frequentemente
no contemplados por sociedades normativas embasadas no paradigma monolinguista.
Nesta ampla luta poltica por melhores condies experienciais para o acontecer davida humana, os surdos ganharam fora para nomear e assumir na esfera pblica a
situao intersubjetiva precria em que eram inseridos e o grande descontentamento em
relao falta de reconhecimento tico de sua sensorialidade particular, presente por
meio de ofertas sociais eminentemente adaptativas. No caso desta populao, o lema da
ideologia monolinguista continua se expressando por meio da mensagem subliminar
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E que de minorias estas s so no quesito representao poltica, de modo algum noquantitativo ou na sua dignidade humana.
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cotidiana: falem a lngua oral majoritria de seu pas ou estaro amplamente
marginalizados!
Tem sido, sobretudo, no campo lingustico-educacional que esse movimento surdo
vem construindo resistncias ao padro fortemente simplista ofertado para sua condio
sensorial. Isto resultou em uma srie de conceituaes e prticas que continuam se
desenvolvendo em torno da defesa do reconhecimento das lnguas de sinais como lnguas
plenas e de direito e da afirmao de necessrias experincias sociais e educacionais
bilngues em que no s alguma lngua oral-auditiva local esteja presente, como tambm
alguma lngua de modalidade espao-visual, o chamado bilinguismo de surdos.
Relativamente recente e cheio de divergncias internas referentes a diversos de
seus aspectos componentes, o movimento bilngue de surdos vem acontecendo por todo o
mundo, sobretudo, na forma de uma importante corrente educacional em luta poltica
pela construo de processos scio-educacionais mais formativos e por uma participao
mais cidad desta populao nos seus territrios nacionais.
Mesmo com as crticas de diversas origens realizveis em relao aos seus
princpios gerais, assumido aqui que o bilinguismo de surdos pelo menos,
potencialmente oferta condies lingusticas, sociais, polticas e psicolgicas vitais para
uma realizao humana mais ampla dos que vivem a condio surda. No s na
educao, tampouco s na escola. E por isto tudo, pensar o bilinguismo de surdos por
ngulos diversos urgente. um modo importante de fortalec-lo.
Para compreender um fenmeno humano qualquer preciso olh-lo crtica e
afetivamente e por tempo prolongado. Por ser, como todos os fenmenos desta natureza,
complexos e paradoxais por definio, possui dimenses e profundidades que a
observao apenas por um ngulo impede de apreender. No entanto, sem exercitarmos
comprometidamente nosso olhar por especficos ngulos, como podemos nos aproximar
de determinado fenmeno?Em uma frase geralmente atribuda ao escritor russo Leon Tolstoi, temos alguma
nomeao desta questo humana: Se queres ser universal, comea por pintar a tua
aldeia. Em um movimento derivado deste pensamento da relao universal-
particular/todo-parte poderamos dizer: se queremos compreender bem algo em
particular, comecemos por olh-lo com afinco, a partir de algum lugar definido.
Estudar um fenmeno esforo coletivo e multiangular ao longo do tempo que
exige parcerias, complementariedade e criticidade. Estudar um fenmeno construir um
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conjunto de miradas. Aqui, queremos ofertar uma das possveis miradas sobre o
bilinguismo de surdos. Uma parte de um todo. E uma parte que expressa algo do todo.
Deste modo, o presente captulo pretende construir um olhar possvel sobre o
fenmeno que conhecemos por bilinguismo de surdos. A base de nossa observao,
nosso mirante sobre esta criao humana pensada para e por surdos, ser o bilinguismo
geral2, ou melhor, o bilinguismo enquanto fenmeno humano amplo que expressa algo da
nossa paradoxal condio humana e que realiza algo do anseio comunicante presente em
todos ns, anseio que independe de qual seja o nosso aparato orgnico.
Ao pensarmos o bilinguismo de surdos assumimos aqui que este tanto se encontra
inserido no contexto maior das definies e tenses do bilinguismo geral, como apresenta
particularidades advindas da condio sensorial especfica e da situao mais
recorrentemente sofrida por esta populao. Posto isto, nosso objetivo apontar certos
aspectos biopsicossociais envolvidos nesta temtica maior do bilinguismo geral,
enquanto fenmeno humano lingustico-comunicante e o que isto levantaria de
contribuies para o bilinguismo de surdos.
2. De onde partimos: o humano como ser comunicante
Ns, seres humanos, somos, no mnimo, complexos. Somos vida e morte. Somos
temporrios, mas desejamos a eternidade. Somos frgeis e fortes. Somos corpo fsico,
mas tambm ente psquico. Somos choro e riso. Somos encontro e desencontro. Somos
singulares e plurais. Somos particulares e universais. Somos biologia e tambm cultura.
Somos nicos e, ao mesmo tempo, somos todas as outras pessoas dentro de ns. Somos
um todo e uma parte de um todo. Somos solido e companhia. Somos o indivduo e o
social. Somos de um lugar e de uma poca, no entanto, no somos reduzveis a este lugar
e poca. Somos necessidade, assim como desejo. Somos no presente, porm, estopresentes algo do passado vivido e do futuro ansiado. Somos, na verdade, mais que
complexos: somos paradoxais.
2O termo bilinguismo est sendo entendido ao longo de todo este captulo como a capacidadede um algum ou alguma comunidade usar, em algum grau comunicante, mais de uma lngua, eno somente duas. Isto se dar pois acreditamos que nossas reflexes sobre as pessoas e ascomunidades usurias de duas lnguas se aplicam, em grande grau, s de trs lnguas ou mais.Assim, em muitos momentos aqui, este termo adquirir um sentido mais largo, enquantosinnimo de multilinguismo/plurilinguismo. Em suma, com os limites e os alcances possveis
desta escolha, o termo bilinguismo, neste captulo, guardar tanto seu sentido original, ou seja,de duas lnguas - etimologicamente bi significa duas -, quanto um sentido lingustico maisamplo, de duas ou mais lnguas.
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Pois um modo possvel de descrevermos esta nossa paradoxal condio humana
seria dizer que somos a partir de trs dimensesdialeticamente relacionadas: a dimenso
tica, a dimenso subjetivae a dimenso situacional. Inseparveis no cotidiano, elas so
dimenses de um mesmo fenmeno: a existncia humana (e suas manifestaes). E que
nossa vida , em especial, a busca pela experincia de apario de si entre outros
humanos. A busca por uma vida que existencialmente valha pena, no apenas uma vida
orgnica e materialmente existente (LUZ, 2011, 2013). Vejamos.
Na dimenso tica temos revelado o anseio de sermos reconhecidos como um
algum a priori, um rosto (LEVINAS, 1988), um algum nico e irrepetvel, ou seja, de
sermos recebidos incondicionalmente por presena afetiva e efetiva que se responsabiliza
por nossa existncia e manifesta a isso, acolhendo com consistncia nossa duradoura
fragilidade orgnica e psquica. Existimos, considerando esta dimenso, desde o princpio
de nossa vida e independentemente de quaisquer atributos especficos. Somos pessoas e
simplesmente por nossa presena no mundo, somos dignos. Esta relao de
reconhecimento e de responsabilidade com um algum, de um rosto, que consideramos
tica. Sem este apoio, esta balsa humana, para nossa travessia pela delicada experincia
da vida, ficaramos mais gravemente desamparados (SAFRA, 2004).
E sobre que bases esta dimenso tica se transforma de mera potncia em um
acontecimento? A dimenso subjetivailumina um pouco mais nossa paradoxal condio.
Sempre como rosto, como um algum a priori, ns acontecemos criativamente a partir de
um suporte orgnico, ou seja, de um amparo fsico, um corpo especfico que dotado de
certas disponibilidades sensoriais e motoras. este algum em um corpo nico que
encontra e encontrado por um Outro, ou seja, um humano, com quem experiencia a
alteridade, o no-eu, o afeto, a cultura etc., e, por meio de quem, recebe o mundo
singularizado. Somos psicossoma que singulariza continuamente o Outro e que busca
revelao nica de si, ou seja, que anseia por apario.Trata-se de um rosto que experiencia gradativamente a um si-mesmo, o Outro e o
mundo a partir de sua base orgnica e que busca signific-los de modo interpretativo. E,
com o passar do tempo e se tudo corre bem , a tudo isso o faz de modo cada vez mais
singular. Um singular que emerge de uma criatividade primria e demanda gestao pelo
plural. Assim, o algum tem sede de ser cada vez mais um eu de contornos psicolgicos
definidos de modo mais preciso, um si-mesmo, um ente singularizado para si e para o
Outro, um algum que tem testemunhada presena, que tem apario para si e para oOutro no mundo. Aqui, a experincia cada vez mais completa de si e do mundo se d
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como dependncia do Outro, como interpretao (cri)ativa deste e do mundo, como
significao do que vivido dentro de si, na sua cultura, na sua famlia, na sua escola etc.
Somos seres criativos, dependentes e ansiamos por realizao singular no mundo,
por apario. Neste sentido, somos seres potencialmente interpretantes do nosso interior,
do Outro e do mundo, e a isso realizamos quando podemos experienciar
consistentemente uma das mais importantes facetas do nosso anseio por apario: o ser
comunicante. Aparecer interpretar e ser interpretado. No somente comunicar,
tampouco ser comunicado. Aparecer se comunicar. poder, com o apoio do nosso
Outro lingustico, passar da sensao para o sentido, ascender do mundo perceptivo
para o conceitual (SACKS, 1998, p. 74, grifo do autor).
, em muito, deste anseio humano por contato interpretante e comunicante consigo
mesmo e com o ns, deste querer apario reconhecida, que as lnguas surgem entre os
humanos. As lnguas so, sob esta ptica, uma manifestao potente, varivel, altamente
complexa e no tempo de algo muito simples: o anseio comunicante em ns. Enquanto
somos inseridos no mundo, experienciamos a algo e a seu especfico nome em
determinado idioma juntos. Esta a dimenso subjetivada condio humana: um algum
como um ser biolgico, psquico e comunicante, singularizando-se nas experincias de
mundo, entre Outros lingusticos.
Ainda assim, falta definir algo sobre a condio humana enquanto paradoxo. E no
reconhecimento da dimenso situacional que encontramos maior sustentao dialtica
para isso. Como poderamos acontecer, enquanto seres encarnados e singulares, mas a
partir do nada, do vazio? Seriam o mundo e o Outro genricos e atemporais? Na verdade,
nunca. O mundo e o Outro que bebemos de modo interpretativo sempre so
manifestaes especficas em um tempo e espao. Dito de outro modo, sempre a partir
de um lugar, uma poca e entre subjetividades com seus modos de ser relacionalmente
forjados que acontecemos no mundo.Este quando-onde-quem-como uma das bases experienciais do nosso
acontecimento. E esta equao apresenta uma manifestao criativa e coletiva muito
potente em termos experienciais: a cultura. Quaisquer pessoas, incluindo nossos
pais/cuidadores, cresceram bebendo em uma fonte cultural, com certos valores, idiomas,
alimentos, sons, cores, cheiros, viso de homem e mundo, organizao poltica etc.
Quando estes cuidadores nos gestam e nos inserem no mundo, eles o fazem a partir da
singularizao que realizaram das culturas por eles experienciadas, da cultura que lhes foiapresentada por pessoas reais, por seus respectivos Outros.
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Somos, ento, no s a partir da recepo tica e de um corpo especfico e pleno de
anseio por apario, mas tambm a partir de modos de ser particulares que se configuram
em uma situao datada, localizada, nica e encarnada. E esta a dimenso situacional
da condio humana.
Em sntese, um modo possvel de compreendermos a paradoxal condio humana
a partir das suas trs dimensescomponentes: dizer que acontecemos a partir de nosso
aparato orgnico nico e comunicante e do fato de sermos um algum que foi recebido,
em algum grau, eticamente como um rosto em uma situao especfica que
experienciamos ao longo dos anos, no mundo e entre Outros. E que no fundo, o que
lutamos para alcanar a realizao do anseio por apario singular, de presena nica,
criativa e comunicante que, mesmo organicamente finita, pode se eternizar nos coraes
dos que desse testemunharam existncia nica.
Pois os idiomas so uma das maiores manifestaes da paradoxal condio
humana. Embora no seja a nica forma de experienciar nossa essncia comunicante,
uma lngua uma poderosa maneira de a isso alcanar. Cada idioma, no sendo
fenmeno puramente natural, mas sim manifestao direta do acontecer humano, tambm
revela as trs dimenses da nossa experincia no mundo e entre Outros: a dimenso tica,
a dimenso subjetivae a dimenso situacional.
Cada idioma exala, por todos seus detalhes, o contextual que se apoia no universal,
o cultural que emerge do ontolgico, o psicolgico apoiado no orgnico, o humano
amparado pelo tico. Cada lngua sintetiza certa sensorialidade humana, a esttica local,
saberes e fazeres de determinado grupo e poca, certas nomeaes, as especificidades da
natureza local, as condies materiais de vida, os jogos de fora entre determinados
grupos etc. As lnguas, emergindo de subjetividades em situao, so produes humanas
que permitem concretizao do apoio tico do qual precisamos para acontecer no mundo
plenamente. Ou seja, as lnguas, por serem fenmenos humanos, expressam as trs
dimensesda nossa condio.
As lnguas expressam, direta e indiretamente, o anseio humano por interpretao e
comunicao, por realizao de si entre Outros, por apario. As lnguas revelam, em
suas eternas transformaes, subjetividades em situao que continuamente as gestam,
negam, oprimem, transformam, publicizam, padronizam etc.
Sobretudo, a partir da presena de uma dimenso situacionalna existncia humana,
podemos afirmar: ns, seres humanos, quando falamos, no falamos lnguas genricas.Falamos, pelo menos potencialmente, uma especfica lngua. E at mais do que isso:
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falamos especfica lngua singularizada e inteligvel. Sendo criao humana, um idioma
sempre uma inveno cultural, vital, criativa, localizada, datada e em ininterrupta
mutao. Sempre se encontra sendo subjetivada por seus falantes. Sempre est sendo
forjada situacionalmente.
Qualquer lngua, como toda manifestao humana, produo coletiva e fluida que
colabora no alimento situacional especfico que nutre uma pessoa: as lnguas so
subjetivantes, ou seja, so essenciais na singularizao de um algum. So estruturantes
de subjetividade e de apario. So cho lingustico para o acontecimento comunicante
de um algum entre Outros. E so tambm expresso das tenses humanas em
determinada regio e poca. Deste modo, as lnguas so, ao mesmo tempo, fenmeno
universal, situacional, coletivo e em singularizao. So tridimensionais.
Detendo-nos em alguns traos mais prprios de sua dimenso situacional,
podemos, por exemplo, descobrir que, contemporaneamente, esto calculadas em 6.909
as lnguas vivas isso sem contar suas variaes internas. Ou seja, temos hoje quase sete
mil idiomas sendo utilizados pelos cerca de seis bilhes de pessoas que habitam este
planeta (ETHNOLOGUE, 2009). Somos seres infinitamente criativos, comunicantes e
situacionais. E, certamente, estas quase sete mil lnguas so uma das mais fortes provas
disto.
Tal a fora dos idiomas na vida humana que estes se tornam fator de agregao
para alm de outros traos humanos, como os culturais, os religiosos e os nacionais. A
isso os sociolinguistas chamam de comunidade lingustica:
Certamente os grupos identificados primariamente com suas lnguas no so
os pases ou as naes. [...] Com a criao das naes modernas, houve um
esforo poltico muito grande para estabelecer uma lngua como a lngua da
nao (e esse esforo continua at hoje). Outra ideia atraente para associar
lnguas aos grupos humanos a de associar cada lngua com uma tribo, ou
cultura, ou povo. Muitas lnguas so chamadas com o nome do povo que as
falam. Mas, como veremos mais adiante, os povos tambm no vivem em
isolamento em relao a outros povos, e a relao de uma lngua com um
povo acaba no sendo uma relao simples. Os grupos associados ao uso de
lnguas so menores (ou maiores!) do que uma nao, e no correspondem
exatamente nem a tribos, nem a culturas, nem a etnias (MCCLEARY, 2009,
p. 7-8, grifo do autor).
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Seguindo por este vis3, ou seja, focando-se na ideia da lngua como manifestao
lingustica dos seres sociais que ns somos, podemos descobrir que, de todas as lnguas
vivas, apenas 172 so faladas como primeira lngua por comunidades lingusticas com
mais de trs milhes de integrantes e que 94% das lnguas vivas so faladas por menos de
um milho de usurios, o que soma apenas 6% da populao (ETHNOLOGUE, op. cit).
Mas isto significaria que estas minorias lingusticas, falantes da maioria dos idiomas
existentes atualmente no mundo, estariam, por sua quantidade de integrantes e por seu
idioma incomum, excludas da vida contempornea global e dos processos coletivos
subjetivantes que facilitam alcanar apario singular entre Outros?
Potencialmente no, e menos ainda se estiverem em comunidades lingusticas
politicamente reconhecidas como dignas e plenas de direito. Como em toda questo
humana, no que concerne tambm diversidade lingustica, relaes de dominao que
querem, por quaisquer motivos, reduzir a criatividade e pluralidade inerente aos humanos
so uma possibilidade, aqui nomeada como monolinguista. Uma possibilidade limitada
e limitante, mas factvel. Ainda assim, mesmo quando so consideradas
representacionalmente como produtoras de excluso e so proibidas ou diminudas
simbolicamente, muitas ptrias lingusticas talvez um nome alternativo para o que
chamamos de comunidades lingusticas continuam resistindo e permanecem
engendrando singularidades apoiadas na experincia de apario que suas lnguas vivas,
enraizadas e plenas facilitam.
Alis, com tal fora do anseio comunicante em ns, com tanto pertencimento e
subjetivao ofertados pela experincia de um cdigo lingustico vivo e pleno com o qual
nos vinculamos, com tanta riqueza humana portada pelas diferentes lnguas, com tantos
Outros lingusticos pelo mundo, tantas comunidades lingusticas e tantos
entrecruzamentos e trocas possveis entre estas, seria, no mnimo, muita ingenuidade
afirmar que, ns humanos, nascemos para sermos monolngues4. O humano , naverdade, infinitamente comunicante5.
3 Sendo uma leitura (scio)lingustica, no sentido dado por Calvet (2002), aqui, comunidadelingustica parte do vis lingustico para compreender uma comunidade social, ou seja, esteaspecto encontra-se relacionado aos demais que se manifestam diariamente na vida coletivahumana, nunca estando o lingustico totalmente separado ou mesmo identificado por completocom quaisquer outros aspectos.
4 Calvet (op. cit) vai alm e pontua mais agudamente a inexistncia do monolinguismo:
realmente preciso conceber que todos os falantes, mesmo quando se acreditam monolngues(que no conhecem lnguas estrangeiras), so sempre mais ou menos plurilngues, possuemum leque de competncias que se estendem entre formas vernaculares e formas veiculares, mas
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3. Nosso mirante: o ser comunicante e o bilinguismo
Somos seres paradoxais, frgeis, dependentes, criativos, situacionais,
psicossomticos, aparicionais, comunitrios e comunicantes. E por ser esta a nossa
condio humana que idiomas foram e continuam sendo gestados. Bom, e o que isto
teria a ver com o fenmeno humano do bilinguismo? Este seria o domnio de duas
lnguas e s?
Em um primeiro momento, poderamos dizer apenas que o bilinguismo a
habilidade humana de um algum usar bem dois idiomas distintos. Mas, como todo
fenmeno humano, bem mais complexo do que isso. Segundo Flory & Souza (2009), o
termo representa uma quantidade infinita de quadros distintos, ligados a aspectos
inmeros da vida humana sociais, culturais, econmicos, polticos, legais, histricos,
psicolgicos etc. , sendo, por isto, inmeros os sentidos que lhe podem ser atribudos.
De modo geral, costumam ser foco dos estudos sobre o fenmeno humano do
bilinguismo aspectos como: repertrio lingustico total, seus domnios de uso e as
funes que as lnguas exercem na vida da pessoa bilngue (GROSJEAN, 2008); o grau
de proficincia nas lnguas, funo e uso das lnguas, a alternncia entre os cdigos e a
interferncia entre eles (MACKEY, 2000, apudMEGALE, 2005); e as competncias nas
duas lnguas, a organizao cognitiva destas, a idade de aquisio, a presena de
comunidade lingustica falante de uma segunda lngua no entorno, o statusrelativo das
no quadro de um mesmo conjunto de regras lingusticas (p. 101-2, grifo do autor). Em outraspalavras, ns falamos variaes lingusticas de acordo com as distintas situaes sociais, mesmodentro de um idioma compartilhado, o que no deixa de ser manifestao de algum tipo debilinguismo.
5
A ttulo de exemplo, no Brasil, considerado supostamente como um territrio monolngue, soutilizadas, alm da lngua portuguesa, cerca de 180 lnguas distintas, incluindo duas lnguas desinais: a Libras e a lngua de sinais dos Urubu-Kaapor (ETHNOLOGUE, 2009). SegundoCavalcanti (1999), no pas, so alguns os contextos bilngues, geralmente de minorias(polticas): contextos indgenas; contextos de imigrao; contextos de fronteiras e a comunidadesurda; alm dos contextos bidialetais/urbanos em que so utilizadas variaes distintas ao doportugus padro e que, inclusive, englobaria a maioria da populao brasileira dentro e fora daescola. Desta forma, no s seramos bilngues no Brasil, no sentido amplo, como tambmbidialetais nas variaes de portugus, incluindo muitas das pessoas pertencentes aos contextosde minorias. Disto decorre que so alguns os modelos de educao bilngue presentes no pas, amaior parte em comunidades lingusticas minoritrias politicamente: as escolas de fronteira(portugus-espanhol), as escolas bilngues para surdos (libras-portugus), as escolas indgenas
(lngua indgena-portugus); as escolas de comunidades de imigrantes (portugus-alemo/italiano/japons/coreano etc.); e as escolas de elite (portugus-lngua com prestgiointernacional) (CAVALCANTI, op. cit; MOURA, 2009).
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duas lnguas, a filiao grupal e a identidade cultural (HAMERS & BLANC, 2000, apud
MEGALE, op. cit).
So muitos os caminhos possveis para compreenso deste tema: so alguns os
modos de nomeao do termo (unidimensionais e multidimensionais); so algumas as
perspectivas para estudo deste fenmeno (sociais, psicolgicas, cognitivas etc.); so
distintos os tipos de bilinguismo (bilinguismo individual, quando estudamos o fenmeno
em um indivduo e bilinguismo social, quando estudamos uma mesma comunidade que
usa dois ou mais idiomas); h distintos graus de habilidade bilngue nos indivduos (a
bilingualidade); e vrias so as foras situacionais ajudando a produzir uma maior ou
menor quantidade e qualidade de pessoas bilngues (polticas de paradigma
monolinguista ou multilinguista) (PHILLIPSON, 2002; MEGALE, op. cit; PATEL,
2007; FLORY & SOUZA, op. cit; MOURA, 2009; SALGADO & DIAS, 2010).
E que caminho adotaremos no presente captulo para nossa insero no tema do
bilinguismo? Um tecido com base nas referncias iniciais apresentadas acima, ou seja, o
da assuno do acontecimento humano, enquanto fenmeno baseado em trs dimenses
a dimenso tica, a subjetiva e a situacional com foco na faceta comunicante que
compe a ansiada experincia humana de apario. Vejamos a que mirante esta trilha
pode nos fazer chegar.
Nos primeiros anos de vida, ns humanos experienciamos o repertrio comunicante
dos nossos primeiros Outros, nossos primeiros cuidadores e, deste, nos alimentamos
criativa e sensorialmente, enquanto iniciamos nossa realizao como seres lingusticos e
nicos. Trata-se de um Outro que , no aspecto comunicante, um Outro lingustico.
A este rico e situacional cdigo lingustico ofertado pelo agrupamento humano que
nos recebe no mundo, que aprendemos a partir do experiencivel por nosso aparato
orgnico, que nos subjetiva, e com a qual nos identificamos afetivamente, os linguistas
chamam de lngua materna. Mas quando os cuidadores deste ser que chegou ao mundosabem e desejam usar mais de uma lngua com seu filho, ou seja, ofertar mais de uma
lngua materna, gestam seres bilngues: crianas nascidas no Japo, filhas de pai
brasileiro e me japonesa, que aprendem o japons e o portugus; crianas nascidas no
Mxico que tm pai ingls e me mexicana e crescem bilngues em espanhol e ingls,
entre infinitas possibilidades.
Mas seria este o nico caminho de nos tornarmos usurios, em algum grau, de mais
de um idioma, ou seja, de sermos bilngues? Somos bilngues caseiramente e s? Demodo algum! Com o passar dos anos so mltiplos os Outros lingusticos com quem
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podemos e queremos ter contato comunicante. E estes se comunicam por meio de
inmeros cdigos. Desta forma, podemos ter nossa disposio vrios idiomas: o(s)
idioma(s) de nossos pais; o dos demais familiares; o das pessoas do bairro, da aldeia, da
cidade, da escola, da mdia; o dos amigos; o dos parceiros de trabalho etc.
Recebemos algum nome inicial para as coisas que esto dentro e fora da gente e
algum jeito de construir nossa expresso lingustica por meio de pessoas que so falantes
de determinados cdigos lingusticos: do portugus, do mandarim, do russo, do ingls, do
iorub, da Libras, do guarani, do rabe, do quchua e de mais umas 6.900 possibilidades,
atualmente.
Em nossa sede comunicante, experienciamos psicossomaticamente pessoas e
idiomas juntos. Por isso, so incalculveis os caminhos por meio dos quais podemos nos
tornar, em algum grau, bilngues: aprendemos um idioma com a me, outro com o pai;
dois idiomas na famlia; um idioma em casa, outro fora; dois idiomas em pases ou
comunidades oficialmente bilngues; um em casa e outro em escola de lnguas; um na
famlia e outro na escola; um idioma na esfera privada, outro na esfera pblica; dois em
casa e um deles tambm na escola; um at a vida adolescente e um segundo a partir da
vida adulta; um durante a vida no pas natal, outro no pas para onde imigrou; dois no
pas natal e um terceiro no estrangeiro; um na vida pessoal e dois outros na vida
profissional, e por a vai.
Sendo uma experincia tica, subjetiva e situacional de contato ao longo da vida
com um conhecimento lingustico produzido historicamente, o aprendizado e uso de
distintas lnguas por uma pessoa acaba se materializando, na dimenso subjetiva, em
habilidades bilngues individuais variveis em grau, mutveis com o tempo e variveis
ainda de acordo com o contexto de uso: a bilingualidade. Deste modo, cada pessoa
demonstra uma gama de infinitas e fluidas possibilidades lingusticas que variam ao
longo de um contnuo bilinguismo precrio, algum semibilinguismo, at um bilinguismoindividual equilibrado (MCCLEARY, 2009).
Como se no bastasse toda esta complexidade e certa precariedade na experincia
humana da bilingualidade, cabe ainda pontuar que so, em geral, quatro as habilidades
lingusticas possveis de uma pessoa em cada idioma, o mesmo valendo quando falamos
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de algum uso em dois ou mais idiomas: a habilidade compreensiva da fala, a habilidade
expressiva de fala, a habilidade de leitura e a de escrita6.
Por tudo isto, falarmos de bilinguismo apenas enquanto o domnio de dois ou mais
idiomas por uma pessoa ou por uma comunidade muito pouco. A partir do que
analisamos acima, o mais justo seria dizermos que: a habilidade de um algum em duas
ou mais lnguas varia em grau, contextualmente, ao longo do tempo e nas quatro (ou
duas) habilidades lingusticas derivadas de cada idioma e que as possibilidades bilngues
dependem de tudo o que compem a experincia humana de apario, ou seja, dos
aspectos mais facilmente identificados quando assumimos as trs dimenses do digno
acontecer humano, isto , dependem do seu aparato sensorial singular, da qualidade tica
das suas experincias no mundo, do ofertado situacionalmente por seu entorno, das suas
experincias formativo-educacionais formais/informais, dos seus laos afetivos, de seus
interesses pessoais/profissionais, do seu momento de vida, entre outras potncias e
condies.
O bilinguismo e suas manifestaes so mltiplos porque os caminhos
comunicantes de cada ser humano so nicos, afetivos, eticamente
facilitados/dificultados, situacionais e em contnua mutao.
4. Fortalecendo nosso mirante: direitos lingusticos, polticas pblicas e o
bilinguismo
Se do ponto de vista tico e subjetivo o bilinguismo algo absolutamente legtimo,
possvel e comum7, na dimenso situacionala questo se torna mais complexa. Embora
sejam declarados e publicizados atualmente direitos universais para todos os humanos,
inclusive o da pluralidade lingustica, na realidade situacional de cada territrio
poltico-administrativo que os discursos e as aes em torno da diversidade lingustica setornam realidade para sua populao. Vejamos com calma.
Internacionalmente, a especificao e o reconhecimento dos direitos fundamentais
inerentes a absolutamente qualquer ser humano ganharam uma maior definio e
6Vale aqui a ressalva de que muitas lnguas so, at o momento, grafas, ou seja, no possuemum sistema de registro escrito. Sendo assim, no caso das lnguas grafas, so apenas duas ashabilidades alcanveis: a compreensiva e a expressiva da fala.
7Segundo Grosjean (2008), estima-se que 50% da populao mundial saiba, em algum grau,pelo menos duas lnguas.
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publicizao, especialmente a partir do impacto de total horror causado pela intolerncia
e violncia extremas manifestadas durante a Segunda Guerra Mundial.
Desde ento, sob a liderana da Organizao das Naes Unidas e suas diferentes
suborganizaes e agncias, alguns documentos8 tm sido acordados por seus pases-
membro, partindo de direitos mais gerais na direo de maiores especificaes conforme
diferentes grupos humanos ganham conscincia crtica sobre a qualidade das condies
de vida que lhe so ofertadas, identificando seus direitos e suas respectivas violaes:
Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948; Declarao Universal dos Direitos
das Crianas, de 1959; Declarao Mundial sobre Educao para Todos, de 1990;
Declarao de Salamanca, de 1994, entre outros.
desta sucesso de geraes de direitos universais (DOUZINAS, 2012) que os
direitos lingusticos tm sido mais tematizados. Assentados sobre o princpio tico da
diversidade cultural como riqueza e como patrimnio da humanidade e de seus
especficos grupos, os direitos lingusticos tm sido proferidos dentro dos marcos da
imprescindvel pluralidade humana. Segundo Fonseca (2007):
No cenrio internacional, a questo da diversidade lingustica se insere no
universo mais amplo da preocupao com a diversidade cultural. Em 2002, a
Unesco publicou o Atlas das lnguas em perigo no mundo; em 2003 foiaprovada pela Assembleia Geral da organizao a Conveno para a
Salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial, que inclui no seu Artigo 2,
intitulado Definies, a lngua como vetor do patrimnio cultural
imaterial; e, em 2005, a Conveno sobre a Proteo e a Promoo da
Diversidade das Expresses Culturais reconhece em seu Prembuloque a
diversidade lingustica um elemento fundamental da diversidade
cultural. Acha-se em estudo, na ONU, a proposta de uma Declarao
Universal dos Direitos Lingusticos9, proclamada em Barcelona em 1996
(grifos do autor) (FONSECA, 2007).
8 Uma interessante crtica sobre a real universalidade dos documentos produzidosmajoritariamente a partir da tradio do pensamento ocidental, assim como alguns dos possveislimites internos destes materiais, podem ser encontrados em Douzinas (2012).
9A UNESCO, agncia da ONU responsvel por lutar pela paz e pela segurana mundiais pormeio de documentos e aes no campo da educao, cincia e cultura, assinou e tem apoiadoeste documento e a seguinte introduo consta em seu site portugus: Partindo do princpio quea situao de cada lngua o resultado da confluncia e da interaco de uma multiplicidade
de factores - poltico-jurdicos, ideolgicos e histricos, demogrficos e territoriais, eco-nmicos e sociais, culturais, lingusticos e sociolingusticos, interlingusticos - a DeclaraoUniversal dos Direitos Lingusticos considera que todas as lnguas so a expresso de uma
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Mesmo considerando o papel vital destas declaraes como ideal positivo do
humano e aqui sustentando alguma legtima universalidade destas declaraes h
uma significativa diferena entre sua confeco e publicizao, enquanto documento, e a
sua efetivao no cotidiano das pessoas de carne e osso. Sendo imprescindvel seu
registro, preciso construir aes para que haja sua execuo. Deste modo, alm de
declarar ideais humanos como o direito pluralidade cultural e ao bilinguismo, central
construir ao mximo seu acontecimento dentro e entre todas as inmeras comunidades
lingusticas existentes atualmente no mundo. Mas como?
Mesmo sendo essenciais as declaraes em escala mundial, na escala territorial
de um Estado e nas suas subdivises administrativas que, na contemporaneidade, pode-se
falar em acontecimento dos direitos humanos. E, so as subjetividades diversas que
habitam estes territrios, os protagonistas potenciais de sociedades mais dignas e plurais.
So os posicionamentos polticos regionais, em mutao ao longo do tempo,
oriundos de tenses universais e situacionais, globais e locais, ticas e contextuais, leigas
e tcnicas, prticas e tericas, populares e administrativas, afetivas e pragmticas,
comunitrias e estatais, que so forjadas as aes humanas em um territrio, em especial
por meio das polticas pblicas. Seu planejamento organizado e sua execuo so a
manifestao maior dos anseios dos habitantes de determinado territrio. Nas polticas
pblicas esto seus maiores sonhos e medos, suas experincias, desejos de futuro e suas
estratgias para isso. Pelo menos, o que de melhor as polticas pblicas poderiam ser.
Atualmente, em muito por meio das polticas pblicas que o direito universal
pode alcanar alguma realidade local, os anseios ontolgicos podem ser mais bem
amparados e se manifestarem sob a forma de apario cotidiana e os direitos lingusticos
podem acontecer, enquanto experincia comunicante efetiva. E sob a forma de dois
grandes paradigmas que os seres humanos cuidam politicamente de suas lnguas: o
paradigma monolinguista e o paradigma multilinguista.No primeiro paradigma, o monolinguista, expresso de uma relao de poder entre
duas ou mais comunidades lingusticas distintas, uma seria representacionalmente
superior e mais legtima por motivos situacionais, afetando a base comunitria e
lingustica, de insero tica, esttica, psicossomtica e plural no mundo dos membros
daquela que est sendo considerada enquanto minoritria, com uma suposta vantagem de
identidade colectiva e de uma maneira distinta de apreender e descrever a realidade, pelo quedevem poder beneficiar das condies necessrias ao seu desenvolvimento em todas as funes.(UNESCO, 2012)
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que estaria sendo construdo, a partir da unidade de cdigo lingustico, algum tipo de
fortalecimento econmico e poltico nacional ou global, quando no caso da escolha de
lnguas francas em eventos e encontros internacionais.
No segundo paradigma, o multilinguista, pautado sobre os princpios da igualdade
e dos direitos humanos, as lnguas gozariam de igual prestgio e estes cdigos
comunicantes das especficas comunidades lingusticas seriam base tica para a
pluralidade cultural e para a singularizao, por um algum de uma cultura amparada na
realidade e histria locais e, por isso, seriam balsa afetiva para a realizao de um si-
mesmo, enraizado na comunidade de origem entre outros argumentos de cunho tico,
psicolgico e sociolgico que tornariam quaisquer idiomas algo desejvel e digno de
apoio sistemtico (CAVALCANTI, 1999; PHILLIPSON, 2002; PATEL, 2007;
FONSECA, op. cit; MOURA, 2009).
O grau de capacidade de um pas em reconhecer sistematicamente os direitos
lingusticos universais de seus habitantes, acolher sua diversidade cultural e as diferentes
comunidades lingusticas que o compem, ou seja, de assumir, o tico paradigma
multilinguista, expressa-se na qualidade das aes voltadas para a oferta de condies
materiais e imateriais dignas e para a formao plural desta populao.
Tais aes de Estado acontecem transversalmente por meio dos mais distintos
discursos e prticas garantidos, enquanto polticas pblicas neste territrio: polticas de
segurana, polticas culturais, de sade, de habitao, em educao etc. E pela
qualidade tica destas polticas e pela relao intersetorial entre os atores envolvidos na
efetivao destas diferentes aes estatais que, em muito, ampara-se a realizao de um
pas mais humano.
, em especial, por meio do planejamento e das escolhas lingustico-educacionais
pblicas, em relao s novas geraes, que o paradigma multilinguista se efetiva em um
Estado. O paradigma multilinguista e o grau de acolhida da diversidade lingustico-cultural presentes nas polticas pblicas de Estado, tem seu carro-chefe, nas polticas
pblicas educacionais.
Estas polticas so centrais fomentadoras do paradigma lingustico nacional, de
como os idiomas das distintas comunidades lingusticas locais esto sendo apoiados em
um territrio poltico-administrativo e nas suas subdivises. Alis, no s quais idiomas
so cuidados politicamente neste territrio, mas tambm em como se lida com as
variedades lingusticas destes cdigos (CAVALCANTI, op. cit). Ou seja, o paradigmamultilinguista no se expressa somente por meio do bilinguismo, mas igualmente por
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meio da qualidade da acolhida da variedade padro e das variedades no padro de cada
lngua. O paradigma multilinguista pleno cho do bilinguismo e, igualmente, do
bidialetalismo.
Pensando a realidade formativa de um pas, mltiplos so os espaos que podem
possuir prticas educacionais mais explcitas: escolas, ONGs, associaes, sindicatos,
entidades filantrpicas, igrejas, postos de sade, centros culturais, museus, escolas de
idiomas etc. Destes todos, a escola que se configura, em nossa tradio ocidental, como
a principal instituio na formao de um pas tica, subjetiva, cultural e linguisticamente
mais plural. A escola um lugar privilegiado para isso. um terreno bastante importante
no acontecimento das polticas pblicas educacionais de um Estado.
Mas qual seria mais explicitamente ento, a ligao entre o anseio comunicante, o
bilinguismo e estas questes sobre direitos humanos, polticas pblicas, educao e
escola? Bilinguismo pode ser acontecimento nas mais diversas experincias de ns, de
Outros lingusticos, pois tudo relacionado alteridade e aos espaos onde esta pode ser
encontrada possui potencial fora comunicante, formativa e subjetivante10: a casa, o
bairro, a igreja, o local de trabalho, o clube e tambm a escola, entre outras. Bilinguismo
no se limita estritamente s polticas pblicas educacionais, nem apenas educao
bilngue.
O que o Estado produz, enquanto sntese das tenses situacionais e defende
nacionalmente por meio de suas diferentes polticas pblicas intersetoriais condio
bastante significativa para a produo de relaes mais (ou menos) ticas entre as
diferentes comunidades lingusticas locais. Dentro disto, o paradigma lingustico presente
nas polticas educacionais, primordial para analisarmos o grau de bilinguismo assumido
e fomentado nos territrios e subterritrios de um Estado, sendo suas escolas um dos
locais mais privilegiados para seu acontecimento. Polticas pblicas, bilinguismo,
educao bilngue e escolarizao bilngue no se equivalem, mas se encontram, nacontemporaneidade ocidental, relacionados em muito.
Dos dois grandes paradigmas lingusticos apontados acima emergem os dois
grandes tipos de programas bilngues de educao nas escolas: o bilinguismo
10 por isso que, mesmo com polticas pblicas do tipo monolinguista, um Estado, muitasvezes, no consegue dizimar por completo a diversidade lingustica territorial, como inmerosexemplos histricos de resistncia popular nos mostram. A ttulo de exemplo, s lembrar adramtica situao vivida, no Brasil, pelos imigrantes japoneses, italianos e alemes durante a
Segunda Guerra Mundial e como estas comunidades lingusticas imigrantes resistiram. Omesmo podemos dizer de vrias lnguas de sinais locais que resistiram apesar de sua sistemticaproibio.
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educacional fraco, expresso do paradigma monolinguista, nos quais as crianas
oriundas de minorias lingusticas passam por um processo de assimilao lngua com
prestgio local, sendo seu objetivo o monolinguismo na lngua dominante ou um
bilinguismo limitado; e o bilinguismo educacional forte, expresso do paradigma
multilinguista, em que o idioma de sua comunidade lingustica de origem, o idioma
majoritrio do territrio poltico-administrativo em que vive e/ou um idioma de
prestgio internacional so utilizados no cotidiano escolar e, no qual, todas estas lnguas
gozam de equilibrado prestgio social (MOURA, 2009).
Na sua forma escolar forte, ou seja, na escolarizao bilngue multilinguista, o
bilinguismo deve fazer parte do programa institucional, sendo as lnguas, em questo,
meio e no apenas objeto de ensino. Deste modo, neste tipo de escolarizao, os
idiomas presentes so meio e fim em si mesmo. Nestas escolas bilngues, ensina-se as
lnguas e por meio das lnguas, sendo o bilinguismo experincia escolar sistemtica de
contato com o Outro, com a pluralidade:
[...] para ser caracterizada como escola bilngue, necessrio que a escola se
organize em todos os aspectos para promover bilingualidade por parte de
todos os alunos atendidos, bem como promover aos alunos, acesso a
componentes culturais relacionados s lnguas, ampliando suas competncias
comunicativas e sua viso de mundo. O currculo deve prever uma carga
horria dedicada ao ensino de cada lngua, presente como meio de instruo
nas reas do conhecimento. O ambiente deve promover o contato com ambas
as lnguas por meio do oferecimento de materiais e oportunidades de
interao. Os professores precisam ter o necessrio conhecimento do objeto
de ensino as lnguas para poder ensin-lo pela comunicao com os
alunos (MOURA, op. cit, p. 53-4).
Segregar, assimilar ou alimentar o singular pelo plural, no campo lingustico, so
extremamente distintas aes decorrentes, sobretudo, das polticas intersetoriais de um
Estado. So produzidas situacionalmente a partir das tenses locais, estando sua
resultante em maior ou menor grau articulada com os direitos universais e os anseios
comunicantes e comunitrios presentes em todos ns. Algumas resultantes, facilitando
apario, outras, dificultando. A acolhida irrestrita ou seja, sistemtica e estvel,
especialmente por meio das polticas pblicas dos direitos lingusticos universais e do
anseio comunicante em todas as esferas da vida local a acolhida da riqueza humana e
um grande apoio tico ao princpio constitutivo do si-mesmo: a diversidade.
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5. Nosso olhar: a condio surda e alguns apontamentos sobre o bilinguismo de
surdos
Em nossa apresentao, fizemos algumas perguntas simples que adiantavam as
questes principais que queramos discutir ao longo do captulo. Delas, duas ainda restam
responder. Por hora, vamos resgatar a penltima pergunta: os surdos seriam um caso
diferente de sujeitos potencialmente bilngues?
Para responder a esta, a partir dos conceitos trazidos aqui, preciso explicitar um
pouco melhor, alguma compreenso especfica acerca da pessoa surda, ou melhor, da
condio surda. Vejamos: entendemos que essa pessoa, como as demais, sofrem as
vicissitudes da condio humana e que, do ponto de vista de sua corporeidade, apresenta,
a partir de algum momento de sua travessia pela existncia humana, uma
significativamente baixa experincia sonora de mundo. Esta pessoa, como todos os
humanos, organiza-se criativamente a partir da sensorialidade disponvel em seu aparato
orgnico neste sentido, cabe afirmar que cada surdo , inevitavelmente, diferente de um
outro surdo. Quanto mais intensamente e mais cedo estiver presente esta sensorialidade
surda, mais a realizao de seu anseio comunicante depender, especialmente, das
experincias visuais e motoras.
A fim de alcanar frequente apario, a pessoa surda demanda, ao longo da vida,
reconhecimento tico de seu rosto e acolhida humana de si, enquanto um algum digno e
irredutvel a qualquer trao fsico. Estas pessoas exalam, pelos poros, a mensagem
intersubjetiva: sou uma pessoa, sou surdo, sou digno como qualquer outra e eu falo a
partir do corpo que tenho, no apesar dele, e tambm a partir do que encontro de
experincias comunicantes acessveis entre Outros lingusticos.Neste sentido, antes de
tudo, os surdos so uma minoria sensorial.
Temos, assim, configurada uma condio surda derivada da condio humana quese apoia em quatro aspectos centrais:
a) no anseio por reconhecimento tico de seu rosto, ou seja, que independa dasua configurao orgnica;
b) em uma sensorialidade surda varivel em poca, grau, tipo etc.;c) na ontolgica sede humana por realizao de apario e, para isso, de
experincias singulares plenamente comunicantes;
d) e no anseio de um idioma que seja disponibilizado por Outros lingusticos eque, concomitantemente, seja acessvel sensorialmente.
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Os que experienciam esta condio surda geral, fazem-na de modo nico. A
experincia concreta desta condio no algo genrico. Ou seja, cada surdo uma
pessoa distinta que experiencia sua especfica condio humana surda de um jeito nico,
sendo que , a partir desta e de como isso contemplado tica e situacionalmente, que
buscar singularizao.
Mas qual seria a relao entre esta condio surda e o bilinguismo de surdos? Ao
longo da histria, a dimenso situacionaltem oscilado muito na consistncia humana do
que tem ofertado em termos de condies materiais e imateriais para que, aqueles que
vivem esta condio surda, encontrem apario. E a, em vez de tica balsa humana, o
que tem se apresentado em muito para a existncia destas pessoas um precrio e
desamparador barco furado. Desta forma, uma digna travessia humana do surdo e sua
plena apario enquanto um si-mesmo, tornam-se, em muito, dificultadas. Do ponto de
vista psicolgico, o resultado desta repetida situao tem sido recorrente sofrimento
psquico (LUZ, 2003, 2005).
Pela rara frequncia da sensorialidade surda entre os humanos e, sobretudo, pela
predominncia da experincia lingustica oral e sonora entre os majoritrios demais, as
pessoas surdas esto, frequentemente, em situao bilngue, ou seja, duas lnguas fazem
parte de seu cotidiano lingustico-comunicativo: alguma lngua espao-visual e alguma
expresso da lngua oral-auditiva (na sua verso escrita ou falada). Por tudo isto,
diramos no que os surdos seriam potencialmente bilngues, mas que estes estariam
potencialmente em situao bilngue, em duas comunidades lingusticas. na dimenso
situacionalmais recorrentemente presente para estas pessoas que sua condio surda tem
demandado o desenvolvimento de alguma bilingualidade.
As pessoas que experienciam a condio surda, tal qual definida acima, esto a
partir da frequente situao de terem sua presena em uma comunidade majoritria quetem na sonoridade um aspecto constitutivo e que usuria de outra modalidade
lingustica em repetido e cotidiano contexto de dois ou mais idiomas. E isso pede a
oferta situacional de condies ticas e subjetivantes para que sua bilingualidade
acontea o mais plenamente possvel.
Definido, ento, no um surdo em si, mas uma pessoa que vive de modo singular
sua condio surda, e considerando a dimenso situacionalmais recorrente em que estas
se encontram, chegamos finalmente derradeira e principal questo presente nestecaptulo: no que o bilinguismo geral ajuda a pensar o bilinguismo de surdos?, ou seja, de
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que forma as experincias gerais bilngues podem iluminar melhor as experincias
surdas bilngues?
a partir da trilha biopsicossocial que adotamos, do mirante bilngue amplo que
alcanamos, das reflexes sobre direitos humanos e polticas pblicas, da nomeao de
uma condio surda atemporal a ser singularizada entre Outros e da constatao da
situao ainda recorrente de serem minoria sensorial que levantamos alguns
apontamentos no que tange ao bilinguismo de surdos:
1) Do ponto de vista psicolgico, necessrio que o bilinguismo de surdosconsidere a singularidade da experincia da condio surda que cada pessoa
surda tem, em sua busca por apario lingustico-comunicante entre Outros no
mundo, sendo a realidade sensorial de cada um e a qualidade tica de sua
situao, as bases de um processo de singularizao desta condio e de uma
potencial realizao humana plena;
2) Do ponto de vista lingustico, que o bilinguismo de surdos considere o processomultideterminado que experienciar duas ou mais lnguas; que trate disto,
enquanto um processo de construo de bilingualidade fluida entre Outros
lingusticos; que as duas lnguas sejam consideradas importantes na situao
recorrente de minoria sensorial das pessoas que vivem a condio surda; e que
sejam assumidas as nuances e as respectivas decorrncias da bilingualidade dos
surdos, que uma bilingualidade bimodal, pois, na sua expresso falada, a
lngua oral-auditiva de limitado acesso sensorial e, na sua expresso escrita,
linguisticamente descontnua em relao lngua mais acessvel aos surdos que
a de modalidade espao-visual;
3) Do ponto de vista legal, que o bilinguismo de surdos continue lutando porparmetros legislativos internacionais e nacionais, a fim de oficializar o direito
humano diversidade cultural e lingustica em todos os territrios em que seencontram pessoas surdas;
4) Do ponto de vista poltico, que o bilinguismo de surdos possa trocar saberes efazeres com os demais movimentos sociais de minorias, especialmente os de
minoria lingustica, para ampliar suas estratgias de luta poltica; e que o
bilinguismo de surdos, enquanto movimento poltico, possa ajudar a fortalecer
mais ativamente o planejamento e a efetivao de polticas pblicas
multilinguistas intersetoriais portanto, no s as educacionais , que faam de
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um pas um territrio, na prtica e em todas as esferas da vida social, balsa
humana da pluralidade subjetivante;
5) Do ponto de vista educacional, que o bilinguismo de surdos possa se entendercomo um processo maior que o da escolarizao, assumindo que todos os
espaos humanos so potencialmente educacionais e que, por isso, todos
precisariam ser transformados em local de encontros efetivamente lingustico-
comunicantes;
6) Do ponto de vista escolar, que o bilinguismo de surdos possa materializar todosestes aspectos neste espao educacional vital, enquanto um bilinguismo
educacional do tipo forte, entendendo a escola tanto como um lugar produzido
por humanos como tambm produtor de humanos; e que, para isto, possa
amadurecer ferramentas de formao escolar mais adequadas, tanto condio
humana surda geral quanto condio surda, singularmente vivida por cada um
de seus alunos surdos;
7) E, por fim, do ponto de vista familiar, que o bilinguismo de surdos possa searticular aos pais que assumem os cuidados de pessoas surdas, de modo a torn-
los parceiros e protagonistas deste processo de formao, no seus inimigos,
tampouco os que devem ser os heris das pessoas que vivem a condio surda;
Estes so apenas alguns apontamentos a partir da trilha caminhada e do mirante que
alcanamos no presente captulo. Cada um destes sete pontos merece mais estudos,
pesquisas e prticas ao longo do tempo. Por hora, ficam como reflexes multilinguistas
sobre os que vivem a condio surda. Ficam como sugestes, a partir da psicologia e do
bilinguismo geral, de aspectos a serem cuidados a fim de facilitarmos a realizao de um
bilinguismo de surdos mais eticamente slido.
6. Nosso horizonte: consideraes finais
O objetivo do presente captulo era relativamente simples. Foi esboar, a partir de
uma possvel definio sobre a paradoxal condio humana, algumas contribuies do
bilinguismo geral para o bilinguismo de surdos. Para isso, buscamos utilizar vrios
conceitos oriundos, sobretudo, da psicologia e da lingustica. Disto, surgiram os sete
apontamentos acima registrados. Defendemos que bilinguismo, direitos lingusticos
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universais e polticas pblicas intersetoriais multilinguistas devem caminhar juntos.
Independentemente da condio sensorial de seus sujeitos, sejam surdos e ouvintes.
Entre a fora do ontolgico anseio comunicante, a realidade psicossomtica nica,
os processos biopsicossociais de subjetivao e de constituio de um algum em um si-
mesmo desejante, os saberes e fazeres presentes no mbito familiar, o acesso a
determinadas comunidades lingusticas, as experincias escolares pessoais, os discursos
e prticas pblicos amplos, mais ou menos facilitadoras de apario e as polticas
lingustico-educacionais praticadas por um Estado que indivduos bilngues acontecem
em maior ou menor grau. Ou seja, no s por meio das polticas educacionais, nem
somente nas escolas. entre Outros, ticos e facilitadores de apario, que podemos
ampliar nossa bilingualidade. Ou seja, depende da balsa humana que nos ofertam.
Esperamos que nossa trilha tenha sido acessvel, que nosso mirante lingustico e
poltico tenha sido alcanado por mais pessoas, e que o bilinguismo dos que vivem a
condio surda tenha sido mais fortalecidamente mirado no como miragem. E que
estes escritos tenham clareado um pouco mais o horizonte neste campo.
De qualquer forma, dentro do que nos propusemos para este captulo, no tnhamos
como objetivo esgotar os assuntos polmicos, complexos e ricos da condio humana,
dos idiomas, do bilinguismo geral, da condio surda e do bilinguismo de surdos, assim
como os demais pelos quais passamos rapidamente correndo alguns riscos, inclusive.
Propusemo-nos apenas a pensar aqui o que o bilinguismo de surdos pode aprender
com o bilinguismo geral, que um modo de dizermos: o que os surdos podem aprender
com a psicologia e a lingustica. To ou mais rico teria sido perguntar o contrrio: o que a
psicologia e a lingustica podem aprender com os surdos. No faltariam descobertas
incrveis. Fica para uma prxima oportunidade.
Aqui, tantas palavras foram usadas para dizer algo relativamente simples: sem
acolher a diversidade, precariza-se o humano pleno. Por isso, defendemosexaustivamente o paradigma multilinguista e o bilinguismo no seu sentido amplo. Para
comunicar esta ideia central, talvez no precisssemos de tantas palavras. Quem sabe?
Talvez tivessem bastado apenas as primeiras, extradas do filme Contato: se nenhum
outro planeta lingustico fosse habitado, se fossemos todos monolngues, se s nossa
lngua existisse, seria um tremendo desperdcio de espao.
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CONCEPES DE LINGUA(GEM) E SEUS EFEITOS NAS
CONQUISTAS POLTICAS E EDUCACIONAIS DASCOMUNIDADES SURDAS NO BRASIL
Neiva de Aquino AlbresUniversidade Federal de Santa Catarina - UFSC
Sonia Regina Nascimento de OliveiraFundao Getlio Vargas - FGV-SP
ResumoEste texto apresenta reflexes sobre as concepes de lingua(gem) desenvolvidashistoricamente, desde a Lingua(gem) como a representao (espelho) dopensamento, a Lingua(gem) como instrumento de comunicao, at a concepo daLingua(gem) como processo de interao ao seu entendimento como atividadediscursiva, considerando as proposies de polticas educacionais e lingusticas combase nestas concepes. O foco deste artigo analisar quais os efeitos causados nosestudos e nas comunidades surdas pelas concepes de linguagem que constituem oimaginrio social e as prticas educativas, consolidando, assim, aes afirmativasadotadas para incluso social dos surdos brasileiros. A lingua(gem) como espelho do
pensamento desfavoreceu um reconhecimento da lngua de sinais e favoreceu umaeducao oralista, j que, na poca, pensava-se que lngua de sinais no era uma lnguanatural e se representava lngua como fala. A concepo de lingua(gem) como cdigo,quando desconsidera a lngua de sinais, fortalece o ensino do portugus para surdoscomo um cdigo lingustico, mas, com o despertar das pesquisas em neurolingustica elingustica sobre a lngua de sinais, favoreceu o reconhecimento lingustico da Libras.Assim como a concepo da lingua(gem) como atividade discursiva e constituidora daidentidade dos indivduos surdos, com bases em estudos psicolgicos e lingusticos,contribuiu para o fortalecimento social e cultural dos surdos, sua denominao comocomunidade e minoria lingustica e a implementao da poltica educacional bilngue.Palavras-chave: poltica lingustica, concepes de linguagem, lngua de sinais,
comunidade surda.
1. Introduo
A linguagem tida como a essncia da comunicao e interao dos seres
humanos. Por meio dela, somos capazes de compreender e nos posicionar no mundo em
que vivemos, assumindo diferentes papis na sociedade, por ela nos constitumos
humanos (PINO, 2005). Entramos em contato com a histria de nossos ancestrais e nosrelacionamos na vida cotidiana com nossos semelhantes tambm por meio da lngua.
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Nos dias atuais, podemos nos relacionar at mesmo com pessoas que nunca vimos, ou
tivemos contato pessoal. Os espaos virtuais quebram barreiras e, hoje em dia, podemos
estar em contato com qualquer pessoa em qualquer lugar e a qualquer tempo.
A linguagem fator constitutivo de identidade, sendo por meio dela que
expressamos nossa subjetividade e nos relacionamos com nossos semelhantes. Tambm
por meio de seu uso que temos a oportunidade de compartilhar do patrimnio cultural
do conhecimento na sociedade em que vivemos (BERGER e LUCKMANN, 2004).
Todas as informaes essenciais para a sobrevivncia so transmitidas por
intermdio da linguagem. Assim, ao nascer, j temos um mundo mapeado pela lngua, e
por nossas relaes na vida cotidiana que basearemos nossa conduta e
consequentemente nossa identidade, conquistando, assim, nosso espao na sociedade.
Entre as concepes da lingua(gem) definidas no curso da histria, a primeira e
mais antiga delas, embora ainda encontre adeptos, interpreta a lingua(gem) como
representao direta do pensamento, como um espelho. O ser humano, para essa
concepo, representa por meio da linguagem o que pensa. Expressar-se bem
equiparado ao pensar bem, colocando a lngua em segundo plano, til apenas para
traduzir o pensamento.
A segunda concepo entende a lingua(gem) como instrumento de comunicao.
A lngua vista como um cdigo (conjunto de signos que se combinam segundo
regras), por meio do qual um emissor comunica determinada mensagem a um receptor.
A terceira concepo vai admitir a lingua(gem) como processo de interao. O
indivduo, ao fazer uso da lngua, no exterioriza apenas o seu pensamento, nem
transmite somente informaes; mais do que isso, realiza aes, atua socialmente,
objetivando atingir, com seu uso, resultados especficos na interpretao do outro. A
linguagem passa a ser vista como lugar de interao, inclusive comunicativa, a partir da
produo, construo de efeitos de sentido entre os falantes, em certa situao decomunicao e em um contexto especfico.
Interessa-nos discutir como estas diferentes concepes de lingua(gem)
influenciam no reconhecimento das lnguas de sinais e dos surdos como uma minoria
lingustica. Consideramos que a poltica lingustica atual no Brasil para surdos s pode
ser compreendida a partir de uma perspectiva mais ampla que abranja a sua histria e
que reflita sobre suas fundamentaes filosficas, ideolgicas e tericas.
Para compreendermos os movimentos sociais em favor da lngua de sinais, de seureconhecimento e uso em espao sociais, procedemos com uma breve retomada das
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principais correntes lingusticas que construram verdades provisrias sobre a linguagem
humana, o que se tem chamado de concepes de linguagem.
O tema sobre a lingua(gem) e seu desenvolvimento adquire fora no contexto das
transformaes da sociedade, acelerada pela globalizao, comrcio, diviso mundial do
trabalho, das tecnologias; por outro lado, a discusso da diversidade cultural, tnica e
lingustica tambm favorece outras formas de ver e compreender sobre a linguagem
humana. Desta forma, organizamos o texto em trs subtpicos, a saber: "A lingua(gem)
como representao (espelho) do pensamento"; "Lingua(gem) como instrumento de
comunicao"; e "Concepo da Lingua(gem) como processo de interao".
2. A lingua(gem) como representao (espelho) do pensamento
A Lingua(gem) como a representao (espelho) do pensamento - a primeira
concepo da linguagem registrada e teve origem na idade antiga (CHAU, 1999). Neste
perodo, a concepo de que a mesma indicativa ou denotativa, isto , serve para
indicar e representar o pensamento. Acreditava-se que quem fala ou escreve bem,
seguindo e dominando as normas que compem a gramtica da lngua, consegue
transmitir de maneira mais correta suas ideias e um indivduo que organiza logicamente
o seu pensamento. Os surdos, ento, eram classificados como incapazes de pensar e
considerados deficientes intelectual, j que a linguagem humana estava fortemente ligada
comunicao oral (MOURA, LODI e HARRISON, 1997).
A igreja teve forte influncia para enfatizar a fala como atributo essencial de
aprendizagem e conhecimento. Encontram-se, em textos bblicos, passagens que revelam
que os surdos, assim como os demais deficientes, eram considerados pecadores, j que o
corpo era o templo da alma e em consequncia, um corpo imperfeito refletia o estado
de alma tambm imperfeita.A partir da Renascena, estudos mais avanados na rea de anatomia fizeram com
que pesquisas mdicas tomassem os rumos da reabilitao, como o estudo das causas da
surdez no perodo da Revoluo Cientfica. A surdez passa a se constituir num desafio
para a medicina, pois era considerada uma anomalia orgnica a ser curada (STEVES,
1968). Inicia-se, neste perodo, as investigaes da anatomia humana, e
consequentemente, o estudo de mtodos que pudessem conduzir os surdos fala oral. De
acordo com Sacks (1998).
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A situao das pessoas com surdez pr-lingustica, antes de 1750, era de fato
uma calamidade: incapazes de desenvolver a fala e, portanto, incapazes de
se comunicarem livremente at mesmo com seus familiares, restritos a
alguns sinais e gestos rudimentares, isolados [...], privados de alfabetizao
e instruo, de todo o conhecimento do mundo, forados a fazerem trabalhosmais desprezveis, vivendo sozinhos, muitas vezes beira da misria,
considerados pela lei e pela sociedade como pouco mais que imbecis
(SACKS, 1998, p. 27).
A concepo da boa expresso oral como reflexo do desenvolvimento intelectual
disseminado nesse momento, mas, paralelamente, os surdos desenvolveram outra forma
de comunicao. No se sabe ao certo onde, como surgem as lnguas de sinais, mas
consideramos que estas foram criadas por homens ao resgatar o funcionamentocomunicativo por meio dos demais canais sensoriais (viso e produo motora), devido
ao impedimento auditivo para desenvolver naturalmente uma lngua oral-auditiva.
A preocupao dos filsofos era compreender como os homens objetivavam as
experincias abstratas por meio da linguagem, sendo a lngua uma diferena entre eles e
os animais. Segundo a filosofia, os animais podem executar algumas tarefas que
exprimem uma ao inteligente, porm, o homem o nico animal capaz de utilizar da
razo para este tipo de ao, o nico animal que modifica e constri o ambiente em quevive (VIGOTSKI, 2008). Para que estas modificaes ocorram, h necessidade de
interaes com seus semelhantes e consequente transmisso para geraes futuras. Para
isso, a linguagem fundamental para o ser humano. Baseando-se nestas concepes,
filsofos como Descartes, afirmavam que at mesmo os homens mais embrutecidos
seguiam a sua natureza, valendo-se de outras formas de expresso. Nesta afirmativa,
Descartes favorece a ideia de que os surdos tambm eram seres pensantes, ao utilizarem
uma forma gestual de comunicao para objetivar seus pensamentos.
[...] que se conhea tambm a diferena entre o homem e os animais. , na
verdade, bastante notvel a existncia de homens to embrutecidos e to
estpidos, sem excetuar mesmo os insanos, que no sejam capazes de
arranjar vrias palavras em conjunto, e de compor com elas um discurso
pelo qual se faam compreender seus pensamentos [...]. Por outro lado,
homens que tendo nascido surdos-mudos, so desprovidos dos rgos de que
os o